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SONHOS VISOES PSICANALITICAS E NEUROCIENTIFICAS

Os sonhos: integrando as visões psicanalítica e neurocientífica Elie CheniauxSOBRE O AUTOR Resumos É realizada uma ampla revisão dos estudos psicanalíticos e das mais recentes pesquisas neurocientíficas sobre os sonhos. Segundo Freud, os sonhos constituem "uma realização (disfarçada) de um desejo (reprimido)". Para muitos neurocientistas, eles são formados a partir de estímulos aleatórios originados na ponte e não possuem qualquer significado. Contudo, diversos estudos associam as emoções experimentadas durante a vigília e o conteúdo dos sonhos. A hipótese de que o sistema dopaminérgico mesolímbico-mesocortical, relacionado aos estados motivacionais, é essencial para a formação dos sonhos dá algum respaldo à teoria freudiana. Todavia, não há dados empíricos que apóiem a existência de uma instância censora que deturpe os sonhos. É possível que os sonhos exerçam um papel na elaboração psíquica de lembranças traumáticas. Na nossa opinião, as visões psicanalítica e neurocientífica sobre os sonhos podem ser complementares e mutuamente enriquecedoras. Sonho; fases do sono; psicanálise; neurofisiologia; literatura de revisão A comprehensive review was carried out about psychoanalytic studies and the most recent neuroscientific researches about dreams. According to Freud, dreams represent "a (disguised) fulfillment of a (repressed) wish." For several neuroscientists, they are formed based on random stimuli originated from the brainstem and do not have any meaning. However, several studies associate the emotions experienced during waking with the content of dreams. The hypothesis that the dopaminergic mesolimbic-mesocortical system, which is associated with instinctual appetitive craving states, is essential to the formation of dreams brings some endorsement to Freudian theory. Nevertheless, there is no empirical data to support the existence of an instance of censorship that distorts the dreams. It is possible that the dreams play a role in psychological working-through of traumatic memories. In our opinion, psychoanalytic and neuroscientific views about dreams can be complementary and mutually enriching. Dream; sleep stages; psychoanalysis; neurophysiology; literature review ARTIGO DE REVISÃO Os sonhos: integrando as visões psicanalítica e neurocientífica Elie Cheniaux Professor adjunto, Faculdade de Ciências Médicas - Universidade do Estado do Rio de Janeiro (FCM-UERJ), Rio de Janeiro, RJ. Médico, Instituto de Psiquiatria - Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPUB-UFRJ), Rio de Janeiro, RJ. Doutor em Psiquiatria, IPUB-UFRJ, Rio de Janeiro, RJ. Pós-doutor, Programa de Engenharia de Sistemas e Computação, Área Interdisciplinar de História das Ciências e das Técnicas e Epistemologia, Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-Graduação e Pesquisa de Engenharia - Universidade Federal do Rio de Janeiro (COPPE-UFRJ), Rio de Janeiro, RJ. Membro associado e docente, Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro (SPRJ), Rio de Janeiro, RJ Correspondência RESUMO É realizada uma ampla revisão dos estudos psicanalíticos e das mais recentes pesquisas neurocientíficas sobre os sonhos. Segundo Freud, os sonhos constituem "uma realização (disfarçada) de um desejo (reprimido)". Para muitos neurocientistas, eles são formados a partir de estímulos aleatórios originados na ponte e não possuem qualquer significado. Contudo, diversos estudos associam as emoções experimentadas durante a vigília e o conteúdo dos sonhos. A hipótese de que o sistema dopaminérgico mesolímbico-mesocortical, relacionado aos estados motivacionais, é essencial para a formação dos sonhos dá algum respaldo à teoria freudiana. Todavia, não há dados empíricos que apóiem a existência de uma instância censora que deturpe os sonhos. É possível que os sonhos exerçam um papel na elaboração psíquica de lembranças traumáticas. Na nossa opinião, as visões psicanalítica e neurocientífica sobre os sonhos podem ser complementares e mutuamente enriquecedoras. Descritores: Sonho, fases do sono, psicanálise, neurofisiologia, literatura de revisão. INTRODUÇÃO O neurocientista e psicanalista Mauro Mancia1, num artigo publicado no International Journal of Psychoanalysis, em 1999, ressalta as diferenças entre as abordagens neurocientífica e psicanalítica dos sonhos. Enquanto os neurocientistas se dedicam ao estudo das estruturas e funções cerebrais envolvidas na produção do sonho, os psicanalistas se interessam pelo significado deste, considerando os aspectos biológicos irrelevantes para a sua compreensão. Todavia, para outros autores, como o psiquiatra Morton Reiser2, o estudo dos sonhos representa uma grande oportunidade de exploração da relação entre corpo e mente. Segundo ele, os modelos da psicanálise e da neurociência para os sonhos, embora muito distintos entre si, não devem ser vistos como antagônicos ou inconciliáveis, mas sim como complementares. Reiser acredita que uma cooperação entre esses dois campos do conhecimento poderia ser mutuamente enriquecedora. Realizamos uma revisão bibliográfica a respeito dos sonhos, na qual comparamos as visões da psicanálise e da neurociência, com o objetivo de identificar possíveis pontos de contato e de divergência entre elas. Promovendo, assim, um diálogo entre a psicanálise e a neurociência, teremos subsídios para avaliar a viabilidade e a utilidade de uma aproximação ou mesmo de uma integração entre as duas no estudo da mente humana. Iniciamos nossa pesquisa bibliográfica pelos trabalhos sobre os sonhos de Sigmund Freud, criador da psicanálise, de James Allan Hobson, neurocientista que veementemente critica a teoria freudiana, e de Mark Solms, um dos principais pesquisadores na área da neuropsicanálise, disciplina científica recém-criada que se ocupa da integração entre os conceitos psicanalíticos e neurocientíficos. Com o auxílio das bases de dados MEDLINE, LILACS e PsycINFO, e utilizando como termo de busca "sonho" (ou dream), procuramos artigos científicos sobre o tema. Também consultamos diretamente alguns dos mais importantes periódicos nacionais e estrangeiros das áreas de psicanálise e de neurociência em bibliotecas e através da Internet, no portal Periódicos da CAPES. Optamos por incluir preferencialmente artigos originais ou de revisão recentes, ou então considerados clássicos na literatura científica. A teoria freudiana sobre os sonhos "A Interpretação dos Sonhos", de 1900, é considerada a primeira obra propriamente psicanalítica de Freud. Nesse trabalho, particularmente no capítulo VII, já se encontra uma teoria geral do aparelho psíquico, formulada a partir dos estudos de Freud sobre os sonhos, que são, segundo ele, a "via régia de acesso ao conhecimento do inconsciente na vida mental"3. Para Freud, o sonho constitui "uma realização (disfarçada) de um desejo (reprimido)". Possui um conteúdo manifesto, que é a experiência consciente durante o sono, e ainda um conteúdo latente, considerado inconsciente. Este é composto por 3 elementos: as impressões sensoriais noturnas (por exemplo, a sensação de sede durante o sono), os restos diurnos (registros dos acontecimentos da véspera) e as pulsões do id (relacionadas a fantasias de natureza sexual ou agressiva). Esses elementos do sonho latente tendem a fazer o indivíduo despertar. E, durante o sono, em função da completa cessação da atividade motora voluntária, a repressão está enfraquecida, o que aumenta a possibilidade de as pulsões terem acesso à consciência. Todavia o sonho atua como "o guardião do sono". Em função de uma solução de compromisso entre o id e o ego - que é a instância que exerce a repressão -, é permitida uma gratificação parcial das pulsões, diminuindo a força delas e, conseqüentemente, possibilitando que o indivíduo continue a dormir. Essa gratificação se dá através de uma fantasia visual (o conteúdo manifesto do sonho), que é o resultado de um processo regressivo: o fluxo da energia psíquica, ao invés de seguir em direção às vias motoras, retorna às vias sensoriais3,4. Ainda de acordo com Freud, o conteúdo manifesto dos sonhos é aparentemente incompreensível porque consiste numa versão distorcida do conteúdo latente. Essa distorção se dá, em primeiro lugar, porque no sono há uma profunda regressão do funcionamento do ego, que faz com que prevaleça o processo primário do pensamento. Este é caracterizado pelo predomínio das imagens visuais (em detrimento da linguagem verbal) e pelos mecanismos de condensação (fusão de duas ou mais representações) e de deslocamento (substituição de uma representação por outra). Além disso, entre o inconsciente e o consciente existiria uma instância censora, que deliberadamente disfarçaria o conteúdo do sonho, para que o sonhador não reconheça sua origem pulsional, proibida3,4. Algumas contestações à teoria freudiana A teoria freudiana sobre os sonhos tem sido bastante contestada, dentro e fora da psicanálise. Questiona-se se as imagens que percebemos durante o sono representariam mesmo um disfarce ou distorção. Luborsky & Crits-Christoph5 estudaram os sonhos de um grupo de pacientes utilizando o core conflictual relationship theme method (CCRT), um instrumento que avalia o padrão de relacionamentos interpessoais de um indivíduo, tendo como base o relato deste. Comparando-se os resultados da avaliação relativos apenas ao conteúdo manifesto do sonho com aqueles obtidos quando foram consideradas também as associações livres do sonhador (que indicariam o conteúdo latente do sonho), não foram encontradas diferenças. Vários estudos empíricos encontraram uma correlação significativa entre a atividade mental durante a vigília e o conteúdo manifesto dos sonhos. Na amostra de Greenberg et al.6, os problemas sonhados eram basicamente os mesmos pelos quais os indivíduos estavam passando em suas vidas diurnas. Smith7, por sua vez, observou que separação ou morte eram a temática predominante nos sonhos de pacientes cardiopatas hospitalizados. Outros ensaios clínicos demonstraram que estímulos apresentados anteriormente ao sono - como filmes, fotografias ou jogos de palavras - reaparecem claramente nos sonhos8. Por outro lado, alguns autores não acreditam que seja possível recuperar o conteúdo latente do sonho na sessão analítica. Para eles, a associação livre ocasiona a produção de um material novo, criado a partir da relação paciente-analista9,10. Blechner10 afirma que muito do que é bizarro ou confuso no sonho não resulta de repressão: são elementos originalmente extralingüísticos, que não podem ser expressos em palavras. Para Robbins11, os sonhos expressam puramente a linguagem do processo primário; portanto, a atuação de uma instância censora, que refletiria um pensamento racional (característico do processo secundário), não seria possível. Coloca-se em dúvida, ainda, a afirmativa de Freud de que desejos seriam os instigadores de todos os sonhos. Para diversos autores1,12,13, os sonhos refletiriam não só os desejos e as defesas contra estes, mas a atividade mental como um todo, e teriam inúmeras outras funções além de descarga (da energia psíquica), como a solução de problemas (intelectuais ou emocionais)6,14,15, criatividade8, autoconhecimento1,16, integração da mente14,17, adaptação17, aprendizagem8, neutralização do estresse8, entre outras. McCarley & Hobson18, por sua vez, argumentam que, embora possam estar presentes no sonho temas relacionados a desejos, isso não significa que estes representem um fator causal no processo de formação do sonho. Por fim, alguns autores1,9,10,12,17,19,20 destacam a relação paciente-terapeuta e a transferência como os componentes principais na formação dos sonhos durante o tratamento. Em contrapartida à importância que Freud dava aos sonhos para a investigação da mente, o interesse por estes entre os psicanalistas tem diminuído significativamente nas últimas décadas. Kantrowitz17, estudando o currículo de 28 institutos psicanalíticos americanos, constatou que o número total de horas dedicadas ao estudo dos sonhos em cursos clínicos e teóricos no biênio 1998-1999 foi muito menor do que em 1980-1981. Para muitos analistas, os aspectos intrapsíquicos trazidos pelos sonhos podem ser igualmente obtidos por meio do estudo de sintomas, traços de caráter, atos falhos ou associações livres10,17. Os aspectos neurofisiológicos do sono Na década de 1950, Nathaniel Kleitman e seus alunos William Dement e Eugene Aserinsky descreveram pela primeira vez o sono paradoxal, ou sono REM1,2. Este, que compreende no adulto cerca de 20% do tempo total de sono, é caracterizado pela ocorrência de movimentos oculares rápidos (rapid eye movements, daí a sigla), perda do tônus muscular, freqüências cardíaca e respiratória irregulares e oscilações na pressão arterial sistêmica. Esses autores detectaram ser muito comum, quando uma pessoa era despertada nessa fase do sono, que ela referisse ter estado sonhando. Em 1962, Jouvet demonstrou que o traçado eletroencefalográfico durante o sono REM é muito semelhante ao da vigília: dessincronizado (irregular) e com ondas rápidas (ritmo b). Em contrapartida, no sono profundo, não-REM (NREM), em que não há um aumento da atividade autonômica periférica, predominam um traçado sincronizado e os ritmos d e t - daí ele ser conhecido também como sono de ondas lentas (slow wave sleep)1,21. Hoje em dia se sabe que, embora os sonhos sejam muito mais comuns durante o sono REM, eles podem ocorrer também durante o sono profundo: estima-se que entre 25 e 50% dos períodos de sono NREM estejam associados a sonhos21. Além disso, 5 a 30% dos períodos de sono REM cursam sem qualquer sonho22. Todavia, dependendo da fase do sono, as características dos sonhos são bem diferentes. Comparados com os sonhos da fase NREM, os da fase REM são mais vívidos e mais bizarros, apresentam uma maior participação do sonhador e uma maior estruturação espacial, são mais facilmente lembrados e relatados com um número maior de palavras. Já os sonhos do sono NREM são mais conceituais do que plásticos, compostos por fragmentos da realidade não organizados e não narráveis, raramente são lembrados e apresentam uma participação mais passiva do sonhador1,21. Durante o sono REM, o fluxo sangüíneo cortical é maior do que no sono de ondas lentas e, às vezes, maior até do que na vigília23. Estudos de tomografia por emissão de pósitrons (PET scan) mostram que, durante o sono REM, estão ativados o córtex visual extra-estriatal (associativo) e as regiões límbica e paralímbica; estando, ao mesmo tempo, desativados o córtex visual estriado (primário) e o córtex pré-frontal. Vários aspectos característicos do sonho podem ser relacionados a estes achados: a riqueza de imagens visuais, à ativação do córtex visual associativo e desativação do primário; a intensa expressão emocional, à ativação das regiões límbica e paralímbica; e a bizarrice, incoerência, perda da crítica e esquecimento, à desativação do córtex pré-frontal1,24,25. Acredita-se que a consciência da vigília seja mediada pela noradrenalina e pela serotonina, e a consciência do sonho (do sono REM), pela acetilcolina24,25. A atividade aminérgica (noradrenalina e serotonina) está elevada durante a vigília, diminui durante o sono NREM e se encontra ausente no sono REM. Já a atividade colinérgica é máxima no sono REM e na vigília e mínima ou ausente durante o sono NREM. Recentemente, descobriu-se que as hipocretinas desempenham um importante papel no ciclo sono-vigília: apresentam atividade máxima durante a vigília e ausente durante o sono, tanto no REM como no NREM26,27. Consolidação da memória durante o sono Para grande parte dos neurocientistas, os sonhos não têm qualquer função: são apenas um efeito colateral de processos de consolidação da memória dependentes do sono, a manifestação consciente destes27. Diversos dados indicam que o sono é fundamental para a memória e a aprendizagem. Em primeiro lugar, durante o sono REM, predomina a atividade colinérgica, sendo que a acetilcolina está claramente envolvida nas funções cognitivas28. Em vários estudos experimentais, alguns feitos com ratos, outros com humanos, observou-se que a privação do sono REM ocasionava um prejuízo na aprendizagem de habilidades perceptivas ou perceptivo-motoras (memória implícita), treinadas pouco antes do adormecer27,29,30. Em outros estudos, em que os animais ou humanos foram submetidos a um treinamento desse tipo, mas não foram privados do sono, detectou-se um aumento da duração total do sono REM28,31. Tal aumento só ocorria quando a tarefa era de fato aprendida28. Diante disso, passou-se a acreditar numa relação entre o sono REM e a consolidação da memória implícita32. Por outro lado, um ensaio clínico evidenciou uma diminuição na capacidade de aquisição de memórias explícitas em indivíduos privados do sono NREM30. Em estudos eletroencefalográficos realizados com ratos, pássaros e humanos, constatou-se que padrões de disparos de determinados neurônios do hipocampo registrados na vigília, enquanto se treinavam tarefas cognitivas (memória explícita), reapareciam durante o sono. Esse fenômeno de reativação neuronal, ou reverberação, ocorre predominantemente no sono NREM, mas também é observado no sono REM e mesmo durante a vigília28,33,34. Experiências com ratos evidenciaram que aqueles expostos algumas horas antes de dormir a ambientes não-familiares apresentaram um aumento da expressão do gene zif-268 - particularmente envolvido em processos de neuroplasticidade - no hipocampo e no córtex cerebral durante o sono REM, o que não ocorreu com os animais-controle34. Contudo, há questionamentos quanto ao papel do sono na consolidação da memória. Para Vertes32, parece um contra-senso que o sono, sendo um estado eminentemente amnéstico, tenha esse papel. Além disso, sabe-se que a consolidação de algumas formas de memória se dá também durante a vigília28. Em cerca de metade dos estudos de privação do sono com animais, os resultados não evidenciaram um déficit de aprendizagem32, e em diversos experimentos com humanos submetidos a atividades pré-sono de treinamento, não se observou uma duração aumentada do sono REM31. Por outro lado, critica-se a metodologia de vários estudos com ratos, pois tanto o treinamento como a privação do sono costumam provocar estresse, o qual, por sua vez, pode causar um prolongamento do sono REM e também prejuízo na aquisição de novas memórias28,31,32. Também merece destaque a observação de que os antidepressivos inibidores da mono-amino-oxidase, largamente prescritos num passado recente, embora causem eliminação do sono REM, nunca foram relacionados a um déficit de memória31,32. Siegel31 argumenta que, se o reaparecimento da atividade neuronal da vigília durante o sono estivesse implicado na consolidação das memórias dos eventos diurnos, os sonhos seriam cópias fiéis destes. Mas não parece ser assim. Fosse et al.35 examinaram o conteúdo de um total de 299 relatos de sonhos de 29 voluntários. Embora 65% dos sonhos estivessem relacionados a experiências pessoais recentes, apenas 1,4% deles continha elementos que pudessem ser considerados uma repetição dessas experiências. Segundo Francis Crick - ganhador do prêmio Nobel por suas pesquisas sobre o DNA - e Graeme Mitchison36, sonhamos não com as memórias que estão sendo consolidadas, mas com aquelas que estão sendo apagadas. Para eles, o sono REM é necessário para a eliminação de informações erradas ou inúteis armazenadas no cérebro. O sonho seria um reflexo de um processo de aprendizagem reversa, no qual determinadas sinapses são enfraquecidas. Embora esta formulação não tenha recebido muito apoio nos meios acadêmicos, ela é freqüentemente citada e parece ser coerente com o fato de os sonhos retratarem eventos bizarros ou irreais, os quais precisariam ser eliminados da memória32. A teoria de ativação-síntese A teoria de ativação-síntese, de Hobson & McCarley, apresentada como uma contestação à teoria psicanalítica sobre os sonhos, tem sido amplamente aceita entre os neurocientistas nas últimas duas décadas22. No sono REM, em função de uma diminuição da atividade aminérgica, ocorre uma desinibição do sistema colinérgico, especialmente na ponte. Isso faz com sejam geradas periodicamente as ondas ponto-genículo-occipitais (PGO), detectadas no eletroencefalograma do sono REM, as quais, para os dois autores, são os estímulos básicos dos sonhos. Elas se originam na ponte, propagam-se para o corpo geniculado lateral do tálamo e chegam ao córtex visual (occipital), ativando-o. Dessa forma, com base nos traços de memória visual armazenados, são produzidas as imagens do sonho. Como essa ativação cortical se dá de forma aleatória, são formadas imagens caóticas, as quais, num segundo momento, sofrem um processo de síntese, construindo, assim, uma narrativa seqüencial. Portanto, de acordo com a teoria, os sonhos nascem, no tronco cerebral, sem qualquer significado; eles não estão disfarçando nada, pelo contrário, expressam de forma transparente a atividade cerebral24,37,38. O sistema dopaminérgico mesolímbico-mesocortical e o resgate da teoria freudiana Mark Solms22,39 apresenta uma teoria que é, ao mesmo tempo, uma crítica à teoria de ativação-síntese e uma tentativa de confirmação da formulação freudiana sobre os sonhos. Segundo ele, o sono REM e o sonho são estados dissociáveis: um pode ocorrer sem o outro. Pode haver sonhos na fase NREM do sono, e 5 a 10% destes são indistinguíveis dos sonhos da fase REM. Além disso, focos epilépticos em regiões têmporo-límbicas, ou seja, fora do tronco cerebral, podem causar pesadelos estereotipados recorrentes, tipicamente durante o sono NREM. Dos 22 pacientes estudados por ele que apresentavam uma lesão na ponte e, conseqüentemente, perda total ou parcial do sono REM, 18 mantinham a capacidade de sonhar. Por outro lado, Solms aponta que, na literatura científica, já foram registrados mais de 100 casos de eliminação do sonhar provocada por lesões no cérebro anterior que preservaram a ponte e o sono REM. Na maioria desses casos, foi afetada a área da junção parieto-têmporo-occipital, estreitamente relacionada à formação das imagens do sonho. Contudo, em outros pacientes, a eliminação dos sonhos se deveu a uma lesão no quadrante ventromedial do lobo frontal. Essa região, por sinal, era a acometida nas cirurgias de leucotomia pré-frontal, muito utilizadas no passado no tratamento da esquizofrenia e que comumente levavam a um prejuízo no sonhar. Pelo quadrante ventromedial do lobo frontal, passam fibras do sistema dopaminérgico mesolímbico-mesocortical, o qual envolve a área tegmentar ventral do mesencéfalo, o núcleo acumbente, o hipotálamo, o córtex pré-frontal e o córtex cingulado anterior. De acordo com Solms22, esse sistema é o gerador do sonho. Estudos de PET scan mostram um aumento da atividade nesse circuito durante o sono REM23,40. Além disso, agonistas dopaminérgicos, como o L-Dopa, podem causar sonhos especialmente vívidos e pesadelos. Tais achados reforçam a antiga concepção de uma ligação entre sonho e "loucura" - em ambos há alucinações, perda do juízo crítico, etc. -, já que existe uma clara correlação entre hiperatividade dopaminérgica e ocorrência de sintomas psicóticos22,23. O sistema mesolímbico-mesocortical está relacionado aos estados motivacionais, os quais instigam comportamentos que visam à satisfação das necessidades biológicas, como o beber, o comer e o copular. Substâncias estimulantes e que causam dependência, como cocaína e anfetamina, atuam nesse circuito, causando um aumento na liberação de dopamina no núcleo acumbente, o que, por sua vez, leva a uma sensação de prazer22. Um outro elemento que indica uma relação entre esse sistema dopaminérgico e o sonhar é a alta freqüência com que dependentes químicos em abstinência sonham estar buscando ou usando drogas41. Na concepção de Solms22, o sono REM e o sonho são controlados por mecanismos biológicos diferentes: o primeiro, pela atividade colinérgica da ponte; e o segundo, pelos circuitos dopaminérgicos do cérebro anterior. Estes são a via final comum de várias formas de estimulação cerebral. As ondas PGO freqüentemente exercem esse papel de estimulação cerebral, mas não de forma exclusiva. Ainda segundo Solms, o envolvimento na geração dos sonhos do sistema mesolímbico-mesocortical, claramente relacionado ao que a psicanálise chama de pulsões, parece confirmar a afirmativa de Freud quanto a um desejo ser o instigador do sonho. O papel do sonho na elaboração psíquica de experiências traumáticas Em "A Interpretação dos Sonhos", Freud3 argumenta que mesmo os pesadelos não contradizem a formulação de que os sonhos são realizações de desejos. Segundo ele, nesse caso, apesar da censura onírica, o conteúdo latente consegue chegar à consciência pouco deformado e é reconhecido pelo ego. Este então reage produzindo a ansiedade, com o objetivo de despertar o indivíduo. Freud cita ainda uma variante, os sonhos de punição, nos quais o ego antecipa a culpa (pela realização do desejo reprimido), e o conteúdo manifesto está representando uma fantasia de punição. Seria, portanto, a realização de um desejo do superego, e não do id. Mais tarde, porém, em "Além do Princípio do Prazer", de 1920, o próprio Freud42 aponta uma importante exceção à sua formulação: os sonhos repetitivos que sucedem eventos traumáticos e os que evocam traumas da infância não são realizações de desejos. Tais sonhos, de acordo com ele, obedecem à compulsão à repetição, que seria algo mais primitivo do que o princípio do prazer (e independente deste), e têm como função a sujeição ou dominação das excitações relacionadas à recordação do trauma. Para Ernest Hartmann43, contudo, os pesadelos não são uma exceção; ao contrário, constituem o paradigma de todos os sonhos. Ele estudou os sonhos de pessoas que passaram por experiências traumáticas importantes e observou que, no início, muitas vezes havia uma mera repetição do trauma; mais tarde, contudo, os sentimentos de medo, vulnerabilidade, culpa ou pesar continuavam presentes nos sonhos, mas num contexto inteiramente diferente. Por exemplo, sonhar estar sendo atingido por uma onda gigante ou um furação era muito comum, independentemente de como tivesse sido o verdadeiro trauma. Os sonhos desses indivíduos continham não os estímulos sensoriais relativos ao evento traumático, mas sim a emoção vivenciada. Segundo o autor, os sonhos contextualizam a emoção dominante, expressando-a através de uma representação pictórica. Para Hartmann, esse mesmo padrão é encontrado nos sonhos de pessoas que não sofreram traumas importantes, mas que estão experimentando uma emoção intensa, como em situações de estresse em geral. Ele afirma ainda que, quando não há uma emoção dominante, e várias emoções de menor intensidade estão presentes, tal padrão, embora menos evidente, persiste. Revonsuo15, por sua vez, baseou-se na teoria da evolução para tentar explicar os sonhos. Ele partiu das seguintes premissas: para os primeiros humanos, a vida era curta e cheia de ameaças; os eventos traumáticos freqüentemente são expressos nos sonhos; e os sonhos são fundamentais no processo de aprendizagem. De acordo com sua hipótese, a função dos sonhos é simular experiências traumáticas ou ameaçadoras que foram anteriormente vivenciadas durante a vigília. Tal simulação, segundo ele, leva a uma melhora no desempenho do indivíduo em relação à detecção e enfrentamento de ameaças, o que, conseqüentemente, aumenta a sua sobrevida e chances de procriação. Diversos autores9,14,19,20,44 acreditam que os sonhos são de grande importância para a elaboração de traumas e conflitos psíquicos e têm um papel terapêutico, semelhante ao da psicoterapia. Para explicar esse processo de elaboração, o seguinte modelo da neurociência computacional tem sido utilizado. Acredita-se que, no sonho, as redes neurais se conectem com mais facilidade do que durante a vigília43. Todavia, essas conexões não são feitas de forma aleatória: as emoções seriam os organizadores das redes neurais. Em outras palavras, as representações tendem a se associar a outras que possuam a mesma conotação afetiva2,43. Isso está de acordo com a regra de aprendizagem de Hebb, que diz que "a força de uma conexão sináptica entre dois neurônios aumenta sempre que os neurônios são ativados ao mesmo tempo por uma fonte externa". Enquanto dormimos, as experiências recentes são primeiro emparelhadas com eventos mais remotos, com os quais possuam alguma similaridade, para em seguida serem integradas aos registros permanentes de memória45. Dessa forma, a lembrança de um trauma (da infância ou recente) se associa a outras recordações, o que a torna menos poderosa e perturbadora43. DISCUSSÃO Os sonhos podem ser definidos como estados da consciência que ocorrem durante o sono. Mas ainda sabemos muito pouco sobre eles. Na edição comemorativa da revista Science, relativa ao seu 125º aniversário, é apresentada uma lista de 125 questões ainda não respondidas pela ciência e que irão desafiar os pesquisadores no próximo quarto de século. Entre elas, foram incluídas as seguintes: "qual é a base biológica da consciência?"; "por que dormimos?"; e "por que sonhamos?"46. A hipótese de Freud de que os desejos são os instigadores dos sonhos encontra agora algum respaldo na proposição de Solms22 de uma relação entre sonhos e ativação do sistema dopaminérgico mesolímbico-mesocortical. Esse autor, como vimos, baseou-se na observação de pacientes com lesões no cérebro anterior, em estudos de PET scan no sono REM, no efeito de agonistas dopaminérgicos sobre os sonhos e na existência de diversos aspectos em comum entre sonhos e psicose. Todavia, algumas dúvidas ainda pairam sobre essa questão. Por exemplo, faltam dados na literatura científica sobre como os antipsicóticos, que são antagonistas dopaminérgicos, afetam os sonhos, tanto em indivíduos normais como em psicóticos. Além disso, os sonhos e a mais importante das psicoses, a esquizofrenia, possuem diferenças marcantes do ponto de vista fenomenológico: enquanto os sonhos são constituídos basicamente por imagens visuais, na esquizofrenia predominam as alucinações auditivas, sendo bem mais raras as visuais. E não se pode esquecer que o próprio Freud42 reconheceu a existência de exceções à sua regra: os sonhos repetitivos pós-traumáticos. Já a concepção de que uma instância censora deturpa os sonhos tem encontrado pouco apoio. Robins11 defende que o conteúdo manifesto é o próprio sonho, visto que o córtex pré-frontal, que seria fundamental em qualquer mecanismo mental de disfarce dos sonhos, encontra-se inativado durante a fase REM do sono. Por outro lado, a visão de muitos neurocientistas, como Hobson & McCarley37, de que os sonhos não possuem significado é desafiada pela constatação de quanto as emoções experimentadas durante a vigília determinam o conteúdo dos sonhos, como descrito no trabalho de Hartmann43. Os aspectos emocionais das recordações são codificados como memórias implícitas47, as quais provavelmente são consolidadas durante o sono REM32. E segundo Stickgold et al.27, o sono REM pode incrementar o processamento de memórias emocionais. Tudo isso é bastante coerente com a hipótese de que as emoções exercem um papel fundamental na formação dos sonhos. O modelo da neurociência computacional sobre o papel dos sonhos na elaboração psíquica é bastante semelhante ao modelo psicanalítico. O desenvolvimento de múltiplas associações para a representação do trauma corresponderia à incorporação desta ao pensamento do processo secundário, o qual é racional e obedece à lógica e ao princípio da realidade. Incrementar a modalidade de pensamento do processo secundário em detrimento do pensamento do processo primário representa um fortalecimento da capacidade do ego de dominar o id, o que, por sua vez, consiste num dos principais objetivos do tratamento analítico48. Freud3, em 1900, afirma que tanto o pensamento irracional como o racional participam da elaboração do sonho. Robins11 discorda, afirmando que os sonhos expressam unicamente o pensamento do processo primário; o relato deles é que está relacionado ao processo secundário. Mas o neurocientista Claude Gottesmann23 atesta que os sonhos da fase NREM do sono se assemelham ao pensamento do processo secundário. Surge aqui uma questão: se os sonhos são terapêuticos por ocasionarem uma ampliação do campo de atuação do ego e incremento do pensamento do processo secundário, como eles se apresentam com características do pensamento do processo primário? Na seção D do capítulo VII de "A Interpretação dos Sonhos", Freud3 diz que a transformação de pensamentos em imagens visuais favorece a ligação com pensamentos que sofreram o mesmo processo de transformação. Talvez o sonho represente uma parte apenas do processo de elaboração psíquica que ocorre durante o sono. Embora o aumento do número de associações das representações mentais se dê durante grande parte - ou a totalidade - do sono, apenas durante os sonhos, principalmente na fase REM, chegam à nossa consciência informações sobre esse processo. Como durante o sono REM o córtex pré-frontal - fundamental para a atenção e o pensamento racional na vigília - está inativado, a nossa consciência só é capaz de funcionar de acordo com o processo primário e, assim, só capta de forma parcial o processo que está se desenrolando. Em outras palavras, embora durante o sono estejam sendo criadas novas associações entre as idéias, só conseguimos sonhar com condensações ou deslocamentos. Pelo que vimos, o diálogo entre a neurociência e a psicanálise sobre os sonhos pode ser bastante profícuo: proposições da psicanálise têm inspirado e guiado investigações neurocientíficas, e achados da neurociência têm sido úteis para um maior refinamento da teoria psicanalítica. Correspondência: Elie Cheniaux Rua Santa Clara, 50/1213, Copacabana CEP 22041-010 Rio de Janeiro, RJ Tel.: (21) 2547.0670 E-mail: echeniaux@globo.com Recebido em 10/08/2005. Aceito em 26/02/2006. 1. Mancia M. Psychoanalysis and the neurosciences: a topical debate on dreams. Int J Psychoanal. 1999;80(Pt 6):1205-13. 2. Reiser MF. The dream in contemporary psychiatry. Am J Psychiatry. 2001;158(3):351-9. 3. Freud S. A interpretação dos sonhos. 2Ş ed. Rio de Janeiro: Imago; 1987. 4. Freud S. Esboço de psicanálise. Rio de Janeiro: Imago; 1975. 5. Luborsky L, Crits-Christoph P. Understanding transference: the core conflictual relationship theme method. New York: Basic Books; 1990. 6. 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Distinção e capital cultural hoje Distinction and cultural capital today: introduction Edison Bertoncelo Michel Nicolau Netto Fábio RibeiroSOBRE OS AUTORES Neste dossiê, reunimos artigos que debatem a distinção no mundo contemporâneo, inspirados pelas pesquisas pioneiras realizadas desde a década de 1970 por Pierre Bourdieu e sua equipe. Como introdução, apresentamos um breve resumo da concepção bourdieusiana elaborada principalmente no texto clássico A distinção (Bourdieu, 1979), em que Bourdieu desenvolveu uma análise complexa e original da sociedade francesa a partir de abordagens metodológicas diversas. Em suas conclusões, enfatizou a importância do capital cultural, e do fenômeno associado da distinção, para estabelecer uma representação adequada do espaço social francês e suas hierarquias para além das análises tradicionais com foco apenas em questões econômicas no sentido estrito. Em seguida, faremos um resumo das discussões sobre o debate classe e cultura com base na leitura de uma série de textos que dialogam, mais ou menos criticamente, com Pierre Bourdieu e, em especial, com A distinção. A partir disso, apresentamos algumas implicações do que se expôs para pesquisas futuras, e destacamos as contribuições dos artigos que compõem este dossiê. Uma breve história d’A distinção Os trabalhos de Pierre Bourdieu sobre a relação entre classe, cultura e estilo de vida são o desenvolvimento de pesquisas anteriores feitas em geral sob encomenda de órgãos governamentais em busca de melhoria de políticas públicas. Em Os herdeiros (1964), Bourdieu e Jean-Claude Passeron observaram que, embora a escola pública francesa oferecesse condições similares de aprendizado, o desempenho dos alunos não era o mesmo. A diferença da origem de classe entre os que obtinham sucesso - e chegavam à universidade - e os que eram excluídos no processo precisava de uma explicação que não fosse baseada em preconceitos de classe. Os autores foram capazes de perceber que a suposta cultura universal ensinada nas escolas encontra direta correspondência com um conjunto de conhecimentos e valores típicos das classes dominantes. A socialização das crianças na cultura burguesa produzia uma experiência de continuidade entre a cultura escolar e a cultura familiar. Para explicar esse processo, Bourdieu e Passeron falam da incorporação de um capital linguístico pelas crianças com origem nas classes dominantes, que seria um conjunto de conhecimentos e competências linguísticas, estilos pessoais e atitudes (Lamont e Lareau, 1988), que criam um senso de pertencimento à escola. De forma correlata, a ausência desse capital produzia um estranhamento do ambiente escolar nas crianças oriundas de meios sociais não burgueses. A diferença em desempenho, portanto, pode ser explicada justamente pelo valor desse capital incorporado pela criança em sua socialização familiar. A relação entre escola, desempenho e origem de classe segue em A reprodução (1970). Ali, tanto quanto a partir da edição inglesa de 1979 de Os herdeiros (apudPrieur e Savage, 2013), o termo agora mobilizado é capital cultural, tido por Tony Bennett e Elizabeth Silva (2011, p. 429) como o mais criativo conceito do autor, de fato “um neologismo - e não uma reelaboração de um léxico herdado” como seria o caso de outros conceitos como campo e habitus. Simultaneamente, Bourdieu trabalhava com o universo das artes e percebia, de um lado, uma relação entre gosto e origem de classe (no caso o interesse pela fotografia, em Un art moyen, de 1965), e de outro a relação entre classe e as disposições para apreciação da arte (como no livro O amor pela arte, de 1966). Os trabalhos desenvolvidos na década de 1960 já se articulavam tanto na mente de Bourdieu quanto em suas intenções de pesquisa. Como revela Monique de Saint-Martin (2015), desde 1962 o autor francês organizava workshops para discutir os temas que em 1979 apareceriam em A distinção e que já começavam a aparecer nos textos aqui citados. Entre o final da década de 1960, com a fundação do Centre Européen de Sociologie (1968), e o começo da década seguinte, especialmente com a fundação da revista Actes de la Recherche en Sciences Sociales (1975), Bourdieu começa a adquirir condições materiais apropriadas para se lançar no plano audacioso de investigar a importância da cultura nos processos de reprodução de classe na sociedade francesa. Não se tratava mais de se pensar em espaços isolados da sociedade (na escola, no museu, na prática fotográfica), mas na sociedade de forma integral. O centro e a revista permitiram tanto um espaço de divulgação de pesquisas de interesse de seu diretor, quanto a reunião de jovens e talentosos pesquisadores, entre os quais alguns de seus antigos colaboradores, como Luc Boltanski, com quem publicou Un art moyen. Nesse momento, há uma intensificação de pesquisas e textos que vão desaguar n’A distinção, e o livro pode mesmo ser considerado “o ponto no qual pesquisa e artigos se encontram e interagem” (Saint-Martin, 2015). De fato, aparecem no livro pesquisas e reflexões anteriormente publicadas e que vão solidificando conceitos, hipóteses e metodologias. Seguindo a lista formulada por Saint-Martin, temos: “Disposition esthétique et compétence artistique” (Bourdieu, 1971), “Les fractions de la classe dominante et les modes d’appropriation des oeuvres d’art” (Bourdieu, 1974); “Anatomie du goût” (Bourdieu e Saint-Martin, 1976); “La production de la croyance” (Bourdieu, 1977a); “Titres et quartiers de noblesse culturelle: la critique sociale du jugement esthétique” (Bourdieu e Saint Martin, 1976); “Les stratégies de reconversion” (Bourdieu et al., 1973); “Questions de politique” (Bourdieu, 1977b), “Classement, déclassement, reclassement” (Bourdieu, 1978) e “Le couturier et sa griffe” (Bourdieu e Delsaut, 1975). Em “A anatomia do gosto”, de 1976, Bourdieu e Saint-Martin já constroem os espaços social e dos estilos de vida, sendo que muitos dos trechos desse ensaio aparecem integralmente ou em partes em A distinção. Bourdieu também se beneficiou do desenvolvimento da estatística, em especial da “escola francesa de análise de dados”, e das técnicas computacionais1. Na década de 1960, o grupo de Jean-Paul Benzécri cunhou o termo “análise de correspondências múltiplas”, utilizada por Bourdieu e Saint-Martin em “A anatomia do gosto” e por Bourdieu em A distinção, para a medição das distâncias relativas dos indivíduos no espaço social de acordo com o acúmulo e a estrutura de seus capitais, nessa ocasião, medindo-se os capitais econômico e cultural. É com base nessa técnica de análise de dados que Bourdieu e Saint-Martin são capazes de construir o espaço social francês e a ele sobrepor o espaço dos estilos de vida. É a coincidência entre as posições dos sujeitos de acordo com seus capitais (volume e estrutura) e a legitimidade de suas práticas culturais definidoras de seus estilos de vida que permitiu que Bourdieu lançasse a tese da homologia entre os espaços. Voltaremos à metodologia mais adiante nesta introdução, mas aqui destacamos que a possibilidade de se medirem as posições relativas dos sujeitos concretizava o pressuposto teórico de Bourdieu de que a sociedade é formada por posições objetivas relacionais, ou seja, as posições se definem umas em relação às outras. As “classes no papel” ou classes teóricas são o resultado desse esforço de classificação sociológica, a partir do qual é possível identificar conjuntos de agentes que ocupam posições relativas vizinhas no espaço social em função da distribuição dos capitais relevantes. As classes assim construídas diferem das classes preconcebidas ou pressupostas como em muitas correntes do marxismo e da economia prevalentes na época (ver Bourdieu, 2015, pp. 99-120). A estatística e a computação, assim como os estatísticos reunidos no Instituto Nacional de Estatística e dos Estudos Econômicos (INSEE) e no Centro de Pesquisa pelo Estudo e Observação das Condições de Vida (Crédoc), permitem a representação visual e geométrica da sociedade que Bourdieu e seus colegas descobriam empiricamente. Após A distinção, o tema do capital cultural permaneceu central na obra de Bourdieu, especialmente em suas grandes pesquisas dos anos 1980, Homo academicus (1984) e La noblesse d’État (1989), e foi desenvolvido também nas aulas de Bourdieu como membro do Collège de France. Nessas aulas, o sociólogo destaca as diferenças entre sua concepção e a ideia mais difundida na época de “capital humano”, associada a economistas como Gary Becker e Jacob Mincer, que buscava interpretar os resultados dos investimentos em educação apenas em relação à sua conversão direta em capital econômico. Já Bourdieu, como de costume, enfatizava o aspecto relacional e também temporal do conceito de capital cultural, que não pode ser reduzido diretamente a seu aspecto monetário (ver Bourdieu, 2016, pp. 239-257). Assim, fica mais fácil perceber a função teórica desempenhada pelo conceito de capital cultural, além da função metodológica já explicitada em obras como A distinção. Em termos teóricos, o capital cultural e sua relação com os conceitos adicionais de habitus e capital simbólico permitem a Bourdieu afastar-se tanto de uma abordagem enfatizada em particular na economia, na qual o fundamento da ação social está em indivíduos racionais que buscam maximizar seu interesse (ver Bourdieu, 2017, passim), quanto de abordagens de inspiração durkheimiana que localizam aquilo que é próprio ao social e à sociologia em instituições completamente externas aos indivíduos (Bourdieu, 2016, pp. 229-262). Da mesma maneira, a ideia de distinção ganha maior aporte teórico na abordagem bourdieusiana como o fenômeno por excelência que permite àqueles que ocupam posições dominantes em determinados campos não só recolher e acumular lucros de distinção, mas também, através das lutas dentro do campo, estabelecer a própria estrutura do campo, ou seja, a hierarquia que favoreça a reprodução do capital que eles próprios possuem - num processo em que, como Bourdieu enfatiza, nada precisa acontecer intencionalmente, na lógica do complô (Bourdieu, 2016, p. 291). Críticas e reflexões a partir dos debates sobre A distinção Dessa forma, é possível dizer que não só A distinção é o resultado de quase duas décadas de um trabalho coletivo que reuniu tanto indivíduos quanto instituições francesas, mas também continuou alimentando as pesquisas e reflexões de Bourdieu no decorrer de sua carreira. E seu resultado é proporcional ao tamanho dos esforços e trabalhos despendidos. O estudo da relação entre classe e cultura tem uma longa tradição na sociologia e remonta ao menos a Weber, Veblen, Simmel e Elias. A distinção segue essa tradição e se torna - ao menos do que nela se consolida, como conceitos, métodos etc. - objeto frequente de reflexões e questionamentos na sociologia. Nas próximas seções, tematizamos alguns debates centrais à literatura que se debruçou nessa problemática construída n’A distinção. Onivorismo e a crítica da homologia estrutural e do capital cultural Na década de 1990, quando ganhava impulso o movimento de apropriação dos estudos de Bourdieu sobre a distinção para além da França (a primeira tradução da obra para o inglês ocorreu em 1984), surgiu uma ideia que, posteriormente, viria a ser interpretada por muitos autores dentro da sociologia da cultura e da sociologia da estratificação social como uma crítica à abordagem bourdieusiana da relação entre classes sociais, gostos e estilos de vida. Essa ideia, mais propriamente um conceito “provisório” do que uma teoria ou mesmo uma hipótese, foi desenvolvida nos estudos do sociólogo estadunidense Richard Peterson com seus colaboradores (Peterson, 1992, 1997, 2005; Peterson e Simkus, 1992; Peterson e Kern, 1996). Como argumenta Gayo (2016), “a ideia do onívoro foi desenvolvida de uma posição de alto status e forte legitimidade na sociologia norte-americana” (p. 104). Peterson era então reconhecido nacional e internacionalmente entre seus pares por seus trabalhos sobre indústrias culturais e produção cultural, além de ter publicado fartamente em revistas acadêmicas de elevado prestígio, como Poetics (Ibidem). Se os debates em torno do onivorismo cultural (o termo aludindo a uma “metáfora zoológica” tão criticada por Bernard Lahire) ganharam enorme impulso, estimulando a produção de vários estudos ao longo das décadas seguintes e tornando-se ponto de passagem obrigatório para as pesquisas recentes sobre gostos e práticas culturais, parte disso se deve, certamente, ao contexto acadêmico norte-americano e à posição de Richard Peterson nele. A esses fatores também se deve o fato de que essa ideia ganhou mais tração nos debates na sociologia norte-americana do que na sociologia europeia (sobretudo a francesa): “o onívoro cultural era uma reiteração posterior de um tema familiar dentro da sociologia dos Estados Unidos que afirmava que a geração nascida após a Segunda Guerra Mundial era mais próspera, educada, aberta e tolerante do que as gerações posteriores de norte-americanos” (Idem, p. 106). É menos claro, no entanto, porque esse conceito foi interpretado posteriormente como tendo implicações críticas aos estudos de Bourdieu sobre a distinção. Ironicamente, Peterson, em seus próprios estudos (sobretudo em uma publicação recente, 2005), afirmava que o onivorismo não apontava para uma refutação, mas apenas uma reformulação dos argumentos de Bourdieu. Se os estudos de Peterson foram lidos posteriormente como sendo uma espécie de refutação ao livro A distinção, isso se deve, em parte, à forma como essa obra foi apropriada fora da França, sobretudo pela sociologia de língua inglesa. Como destaca Holt (1998), durante muito tempo a sociologia norte-americana fez uma leitura “substancialista” dessa obra, minimizando um elemento que lhe é central, seu caráter relacional. Lizardo e Skiles (2016) sustentam que o entendimento convencional de que o debate sobre o onivorismo questionou a validade empírica das ideias de Bourdieu quanto à associação entre gosto e classe está baseado em uma leitura incorreta do trabalho de Bourdieu. Tal leitura parte de dois pressupostos: i) de que as práticas culturais dos indivíduos de “status elevado” podem ser classificadas em um padrão de tipo “exclusivismo esnobe” [snobbish exclusiveness], ou seja, tais indivíduos gostam ou fazem coisas associadas à “alta cultura”, rejeitando a cultura popular; ii) A distinção pode ser lida como um estudo de como as classes superiores, fortemente ligadas à alta cultura, se distinguem das classes populares, com seus gostos e práticas vulgares (Idem, p. 91). O argumento contido na primeira premissa ignora que a aversão estética é um mecanismo de produção de fronteiras simbólicas que opera tanto vertical quanto horizontalmente; no caso da segunda premissa, minimiza-se a ênfase conferida por Bourdieu à multidimensionalidade do espaço social, que se traduz, por intermédio do habitus, em oposições no espaço simbólico. Isso implica, por exemplo, que as lutas em torno da imposição dos modos legítimos de viver são travadas não apenas entre diferentes classes, mas, sobretudo, entre diferentes frações das mesmas classes (por exemplo, o “ascetismo aristocrático” dos intelectuais em oposição ao “gosto do luxo” da burguesia proprietária e dirigente). Voltando aos estudos de Peterson, a ideia do onivorismo não parece muito complicada: a velha distinção entre alta e baixa cultura estaria sendo substituída por outra, entre onívoros e unívoros. Os primeiros, além de se apropriarem da “alta cultura”, também consumiriam “cultura popular”. Os unívoros teriam um repertório de gostos e práticas restrito à “baixa cultura”. Nesse sentido, o onivorismo apontaria para “repertórios de práticas culturais, emergindo no final do século xx, que são marcados por uma amplitude crescente de gostos e participação cultural e também por uma disposição para transgredir fronteiras previamente construídas entre itens ou gêneros culturais hierarquicamente ordenados” (Karademir e Warde, 2016, p. 77). Em alguns estudos, “onivorismo” é substituído por “ecletismo”, mas a ideia é a mesma. O desenvolvimento original do conceito aponta para mudanças nos princípios de distribuição dos gostos e das práticas culturais, do “esnobismo” para o “onivorismo”. O onivorismo implica, portanto, a combinação de gostos e práticas, que atravessam diferentes registros culturais. Não basta, portanto, para ser caracterizado como onívoro, que um indivíduo goste de muitos gêneros ou participe de muitas atividades culturais. Ocorrendo no contexto de transformações sociais e culturais - relacionadas com o aumento da oferta de bens culturais, a “estetização” da cultura popular, a maior mobilidade social -, a emergência dessa nova “orientação” em relação às formas culturais teria efeitos profundos para as estratégias de distinção, para a importância da “alta cultura” na hierarquização social etc. Antes de analisarmos esses possíveis efeitos, no entanto, é essencial investigar a validade empírica da tese de Peterson. Como argumentam Karademir e Warde, há muitas dificuldades para avaliar a suposta importância do onivorismo enquanto novo “princípio” subjacente à distribuição de gostos e práticas culturais, dificuldades que dizem respeito à falta de consenso na literatura que opera com esse conceito quanto às maneiras de defini-lo e operacionalizá-lo, aos domínios e itens culturais que devem ser considerados, às medidas de posição social (classe social, status), à necessidade de uso de dados de diferentes tipos (qualitativos e/ou quantitativos), aos procedimentos para medir mudança social e, por fim, quanto aos critérios a empregar para operacionalizar uma noção central ao onivorismo, que é aquela da abertura à diversidade. Ora, se o onivorismo, pelo menos segundo a definição original, significa o “cruzamento” de fronteiras culturais e a composição “eclética” de gostos e práticas, então é necessário adotar algum critério para determinar quais são as fronteiras relevantes e onde estão localizadas. Por exemplo, em um estudo de Peterson e Kern (1996), ópera e música clássica foram consideradas gêneros eruditos; bluegrass, country, gospel, rock e blues, gêneros inferiores; musicais da Broadway, músicas leves (easy listening) e big band, gêneros médios. Com base nessa classificação, repertórios musicais que combinassem, por exemplo, ópera e rock, ou ópera e easy listening seriam considerados onívoros. É óbvio, portanto, que o modo de construir a classificação e a hierarquização dos gêneros musicais interfere fortemente nos resultados sobre a suposta emergência e/ou crescimento de repertórios onívoros. Nos próprios estudos de Peterson, como salienta Brisson (2019), há diferentes procedimentos para produzir tais classificações musicais, dificultando a comparabilidade dos resultados, o que não seria necessariamente um problema, tivessem tais modificações tido o objetivo de incorporar evoluções temporais das hierarquias musicais (estetização, intelectualização ou popularização de gêneros ou subgêneros musicais) ou, então, nos modos como tais hierarquias são subjetivamente percebidas e internalizadas pelos indivíduos. Não foi o caso. Pelo que foi exposto, é provável que o onivorismo seja um “artefato metodológico” (Brisson, 2019, p. 10). De fato, a falta de consenso sobre o que é onivorismo e como operacionalizá-lo reduz nossa capacidade de estimar a validade empírica da tese de Peterson. Além disso, é preciso refletir se, mesmo que empiricamente válida, a tese acrescentaria algo aos debates sobre classes, gostos e estilos de vida na tradição bourdieusiana (Bertoncelo, 2019). A “tese” do onivorismo introduz implicações opostas ou radicalmente diferentes daquelas associadas à hipótese das homologias para a investigação das práticas culturais? Suspeitamos que não. No estudo d’A distinção, já está presente o argumento de que um dos principais marcadores da distinção é a propensão e a capacidade dos agentes para transpor a disposição estética para novos objetos e domínios da vida social. O “esnobe”, a quem supostamente o onívoro estaria substituindo no mundo contemporâneo, não seria mais distinto ou distintivo: ao invés disso, como sublinham Lizardo e Skiles (2016), o “esnobismo”, entendido como uma orientação que privilegia tão somente os bens culturais institucionalmente consagrados em detrimento daqueles da “cultura popular”, seria um indício da aquisição tardia da disposição estética, mais próximo da “boa vontade cultural” da pequena burguesia. Essas considerações críticas, no entanto, não invalidam por completo a importância dos debates acerca do onivorismo. Ainda que este não constitua um objeto sociológico propriamente novo e que faltem as condições adequadas para apreciar a validade empírica das mudanças apreendidas por esse conceito, o debate serviu para arejar as discussões em torno da distinção. De fato, como conceber e investigar a distinção e a formação de capital cultural em um contexto marcado pela crescente circulação global de pessoas e objetos, pela disseminação das tics, pela ampliação da esfera do simbólico, pelas mudanças nos sistemas educacionais? É possível que essa capacidade “tolerante” para transpor a disposição estética para domínios não artísticos ou culturais e para objetos não consagrados, mesmo vulgares, tenha ela própria sido transposta para outras regiões do espaço social, não se restringindo, portanto, às frações mais intelectualizadas? O estudo britânico Culture, class, distincion aponta nessa direção: […] em suma, a cultura importa para a classe média, e até mais para seus estratos mais elevados. O capital cultural objetivado e institucionalizado opera como um recurso valioso, mas não exclusivamente por meio do controle da cultura legítima. Ao invés, a orientação requerida se dirige para a apreciação reflexiva, em um espírito de abertura, de uma diversidade de produtos culturais, mas continuam a existir fronteiras além das quais não é respeitável atravessar (Bennett et al., 2009, p. 194). Diferentemente, outros estudos apontam que esse ecletismo seletivo é a manifestação de certas disposições ao consumo que “divertidamente” [playfully] atravessam fronteiras culturais estabelecidas. A combinação entre gostos “estabelecidos” e “emergentes” expressa não tanto uma orientação onívora ou um novo tipo de capital cultural, mas, ao invés disso, o domínio do simbólico que está na raiz do capital cultural teorizado por Bourdieu, que opera, no entanto, em um contexto social marcadamente diferente (Flemmen; Jarness e Rosenlund, 2018). A perda da eficácia da “alta cultura” como distintiva? Uma das principais contribuições dos debates em torno do onivorismo para a Sociologia tem a ver com a problematização dos efeitos da “alta cultura” para os processos de distinção social2. Estudos recentes evidenciam que as classes superiores, sobretudo em suas frações mais intelectualizadas e cultivadas, possuem gostos “ecléticos”, que não se reduzem à “alta cultura” assim entendida (Flemmen; Jarness; Rosenlund, 2018, 2019; Prieur; Savage, 2011; Bennett et al., 2009). Mais: o consumo da “alta cultura” vem declinando socialmente, mesmo nas classes superiores, em especial nas gerações mais novas (Gripsrud et al., 2011; Purhonen et al., 2011; Dimaggio e Mukhtar, 2004)3. Quais as implicações disso para a relação entre “alta cultura” e capital cultural? Para alguns, a “alta cultura” não representa mais (ou jamais representou, fora do contexto francês) uma forma de capital cultural (Halle, 1992; Lamont, 1992). Diferentemente, DiMaggio e Mukhtar argumentam, baseados em um estudo sobre a evolução do consumo cultural nos Estados Unidos ao longo de duas décadas (1982-2002), que a “alta cultura” permanece central para a formação e acumulação de capital cultural, ainda que exista uma tendência geral de redução de seu público consumidor, mesmo que não na mesma magnitude para todas as formas culturais assim classificadas4. Conforme esse mesmo estudo, as atividades culturais populares tiveram uma redução de seu público tão grande quanto aquela da “alta cultura”, e o consumo cultural dos menos educados caiu mais fortemente do que o dos mais educados. Tais processos evidenciam, assim, que o declínio da “alta cultura” tem mais a ver com o aumento da competição por outras formas de uso do tempo livre e de modos de consumo da cultura do que propriamente com a perda de eficácia distintiva da “alta cultura”5. De forma similar, um estudo conduzido entre estudantes de ensino superior na Noruega, que cobre um período parecido com o anterior (1998-2008), aponta que, apesar de um declínio significativo das práticas associadas à “cultura legítima tradicional” - em menor medida entre estudantes de humanidades do que de disciplinas técnicas -, elas permanecem fortemente associadas às classes superiores e ainda gozam de elevado reconhecimento, o que indicaria, segundo o estudo, a provável persistência da eficácia distintiva da “alta cultura”, ou seja, ela ainda opera como um capital cultural (Gripsurd et al., 2011, pp. 524-525). Ao mesmo tempo, a contínua redução do interesse pela “alta cultura” e de seu consumo, especialmente entre os mais jovens e mais escolarizados, tenderia a torná-la uma cultura de “nichos sociais”, não mais gozando de reconhecimento social generalizado. Conforme argumentam DiMaggio e Mukhtar, “nós suspeitamos que se a participação [na “alta cultura”] continuar a cair, em algum momento, essas formas artísticas se tornarão irrelevantes para a cultura compartilhada das famílias e grupos sociais cujas chances de vida são mais dependentes do manejo de capital cultural” (Idem, p. 191). Ainda que tal tendência se concretize, esse processo teria como consequência a irrelevância do capital cultural como um princípio de diferenciação e hierarquização social? Embora, como argumentamos, a “alta cultura” ainda goze de algum reconhecimento social para além de seu público consumidor, cada vez mais restrito às classes superiores, é pouco provável que o que se entende por “cultura legítima” se restrinja a essas formas culturais (Špaček, 2017). Uma leitura relacional do capital cultural e dos processos distintivos “abre caminho para uma definição da disposição estética parcialmente dissociada dos conteúdos nos quais ela opera” (Coulangeon, 2015, p. 56). Holt (1998) chama atenção para os riscos de uma leitura substancialista que associa a “cultura legítima” à “alta cultura”, leitura essa que leva à conclusão de que a ausência de qualquer associação significativa entre o consumo da “alta cultura”, de um lado, e o pertencimento às classes superiores, de outro, indicaria a irrelevância do capital cultural na produção de desigualdades e na construção de fronteiras simbólicas e sociais. Holt entende que tal argumento confunde os aspectos abstrato e particular do capital cultural. Para ele, enquanto o aspecto abstrato é produzido pela incorporação das estruturas sociais condicionadas pelas classes, o particular é específico do campo em que o capital cultural é articulado. Dessa forma, o que os agentes incorporam não é exatamente um gosto pela “alta cultura”, mas uma condição específica de julgamento do mundo social que se manifestará como distintivo em objetos diferentes em cada campo social. Não haveria nada, portanto, de essencial no domínio da “alta cultura” para Bourdieu, sendo isso apenas um capital particular relevante para o estudo da sociedade francesa, mas que pode não importar para outros tempos ou outras sociedades. Ao invés de pressupor, deve-se, então, encontrar qual o capital específico que importa em cada contexto. É por isso que, para Holt (1997), mais importante é o estado incorporado do capital cultural, pois é ele que criará as condições para que os agentes possam ocupar posições dominantes em diferentes campos e neles controlar seus capitais específicos. Para dar um exemplo simples, é o capital cultural incorporado que permite a membros da elite ocuparem posições dominantes em campos tão distantes como o acadêmico e o financeiro, fazendo valer esse capital abstrato para o domínio dos capitais específicos. Na mesma linha, seguiram Prieur e Savage (2013). Sem adentrarem em discussão sobre campo, eles diferenciam a visão sobre o conceito de capital cultural em flexível e fixo. Segundo eles, o fixo seria a visão que atrela o capital cultural a um objeto específico - por exemplo, à “alta cultura”. Com esse olhar, “é fácil descartar a análise de Bourdieu como obsoleta e irrelevante” (Prieur e Savage, 2013, p. 249). Contudo, para eles, Bourdieu entendia o capital cultural como flexível, ou seja, uma forma de poder de qualidades exclusivas e relacionais, que se forma em objetos específicos de acordo com a relação que eles possuem com outros objetos. Assim, se a “alta cultura” não seria mais a concretização (ou, para voltar a Holt, a particularização) do capital cultural, outros objetos o são, devendo o pesquisador identificar quais. Na próxima seção voltaremos a esse debate, apresentando o que os autores chamam de “capital cultural emergente”. Não entendemos, contudo, que devemos descartar de maneira tão radical a “alta cultura” como forma de distinção. Isso se dá por dois motivos. Um primeiro motivo se refere ao que encontramos em algumas pesquisas, mas destacamos aqui Omar Lizardo (2006). O autor estuda a relação de conversão entre capital cultural e capital social. Sua tese central é inverter a noção clássica de que capital social se converte em cultural, para mostrar que o cultural se converte, com mais frequência, em social. Entretanto, o que mais nos interessa aqui é notar que, em diferentes redes de relacionamento, há a operação de diferentes conhecimentos culturais. Segundo o autor, a cultura popular tem um “valor generalizado de conversão”. Ou seja, a cultura popular pode ser convertida em diferentes redes de relacionamento, produzindo, inclusive, redes amplas de laços fracos. Já a “cultura de elite (highbrow) […] tem um valor restrito de conversão: ela deve mais provavelmente sustentar redes de laços fortes” (Lizardo, 2006, p. 783), que permitirão maiores vantagens para seus integrantes. Em outras palavras, o ecletismo cultural da elite lhe permite formar diferentes redes de socialização, sendo essas redes dependentes do conhecimento cultural mais amplo, mas também do reconhecimento das hierarquias culturais. Essa ideia se aproxima tanto à de repertório, de Michèle Lamont, quanto de variações intraindividuais de Bernard Lahire. Para ambos os autores, os agentes mobilizam diferentes conhecimentos em contextos específicos. A diferença, contudo, é que a ideia de Lizardo, e esse é o ponto aqui, nos permite vislumbrar a permanência da relevância da “alta cultura” como forma de distinção. Esforço similar foi empreendido em artigo recente (Ábile et al., 2021), em que se argumentou que a perda da relevância da “alta cultura” foi observada em pesquisas que relacionaram a “alta cultura” ao campo propriamente artístico. O texto propõe olhar como a “alta cultura” é operada em outros campos para produzir distinções. Assim, demonstra-se que os capitais valorizados no campo artístico são mobilizados pelos campos da gastronomia e da moda para produzirem diferenciações. Estilistas e cozinheiros que se aproximam de artistas (e mesmo querem ser considerados artistas) se diferenciam dos outros, e seus produtos se tornam distintivos. Sendo práticas que recebem reconhecimento social (especialmente por programas de televisão), mas, ao mesmo tempo, exclusivas de uma elite, elas produzem distinção e operam como capital cultural. Dessa forma, argumenta-se que a “alta cultura” pode ser vista ainda operando como capital cultural, mesmo em domínios que não o artístico. Do gosto à prática: de “o quê” para “como” Uma outra forma de se pesquisar o capital cultural, mal captada especialmente por pesquisas baseadas em preferências, é a diferenciação entre “o que” se consome e o “como” se consome. Essa preocupação com a modalidade das práticas está bem exemplificada em um estudo de Vegard Jarness (2015), autor que pesquisou formas de consumo cultural e estratificação social na cidade de Stavanger, na Noruega. Segundo ele, as críticas direcionadas à noção de capital cultural ignoram a distinção entre opus operatum e modus operandi, ou seja, entre um conjunto de preferências (mais ou menos volumosas e “ecléticas”) e os esquemas de avaliação e apreciação subjacentes às escolhas. No contexto da ampliação da produção, difusão e consumo de bens simbólicos e das possibilidades de estetização da vida cotidiana, é provável que “gostar das mesmas coisas” signifique cada vez menos “ter os mesmos gostos” (Idem, p. 67). Na verdade, “quando os mesmos bens culturais comuns são apreciados de modos diferentes, isso pode tornar a prática ainda mais distintiva” (Idem, p. 77). Dessa forma, se indivíduos de diferentes classes ou frações de classe declaram preferências similares em gosto (por exemplo, musical), é possível que o modo como ouvem música ou mesmo a justificativa que dão para suas preferências possam se diferenciar, manifestando diferentes habitus incorporados e produzindo fronteiras que separam as classes e geram distinção. Formas emergentes de capital cultural e novas formas de distinção? Retornando à visão sobre capital cultural flexível ou à diferença de capital cultural abstrato e particular, alguns autores argumentam a favor da emergência de formas emergentes de capital cultural. Mike Savage e Annick Prieur argumentam que, em um contexto em que se ampliam os universos de possíveis escolhas estéticas e em que o valor do domínio da “cultura erudita tradicional” se reduz a mercados de concorrência social cada vez mais restritos, é provável que os agentes equipados com mais capital cultural privilegiem um tipo de apropriação “reflexiva”, distanciada e irônica, sustentada por uma capacidade de explicitar as razões da escolha. “Irônico” aqui implica que os agentes (re)conhecem os significantes do gosto e são capazes de associar diferentes significados a práticas mainstream. Além disso, tais agentes são capazes de se posicionar para além de certos enquadramentos nacionais, regionais ou locais, adotando uma orientação cosmopolita. Esses aspectos da prática - apropriação irônica, “reflexiva” e distanciada, a partir de um enquadramento cosmopolita - teriam um “novo” valor distintivo e, por isso, os autores utilizam o conceito de formas emergentes de capital cultural para apreendê-los (Prieur e Savage, 2011, 2013). Em suma, esse conceito apreende possíveis mudanças no gosto dominante, sobretudo nas gerações mais novas, indicando a operação de “novos” modos de distinção social não mais baseados na estética do desinteresse, que, nos trabalhos de Bourdieu, constituía o princípio subjacente à apropriação legítima das formas culturais “sérias” (Friedman et al., 2015) Por outro lado, outros estudos questionam a suposta novidade dessa modalidade de consumo que combina elementos do “tradicional” e do “contemporâneo”, argumentando que as “formas emergentes” de capital cultural ou as “novas” formas de distinção não pressupõem nada além do domínio do simbólico aplicado em novos contextos sociais (Flemmen; Jarness e Rosenlund, 2018; Atkinson, 2017). Um outro conjunto de estudos busca perceber outras formas de capital. Trata-se também da emergência de capital, mas não necessariamente cultural. É o caso mais frequente de pesquisas que se focam na aparência ou na beleza. Um conjunto de autores (Vandebroek, 2015; Anderson, Grunert, Katz e Lovascio, 2010; Holla e Kuipers, 2015) considera que tais características, ao serem avaliadas como distintivas por certos grupos, operam como um capital que denominam estético. Da mesma maneira que outras formas de capital, a condição de sua acumulação é predisposta pela posição do agente no espaço social. Uma variação dessa visão percebe que esse capital estético é mais importante para as mulheres (elas são mais frequentemente avaliadas por critérios estéticos). Contudo, mesmo a elas, esse capital é de pouca vantagem, pois é mobilizado pelos homens. Em outras palavras, o capital estético acumulado por uma mulher serve, no mais das vezes, como distinção para os homens. Ashley Mears (2015) mostra “os usos do capital corporal feminino por homens que se apropriam de mulheres como um recurso simbólico para gerar lucro, status e laços sociais num mundo exclusivo de homens de negócio” (Mears, 2015, p. 22). Seus estudos se focam na relação entre homens e mulheres em feiras e eventos internacionais de produtos. Contudo, isso pode ser relacionado com aquilo que Randall Collins chama de “trabalho goffmaniano” das mulheres. Seu foco é mostrar que, seja em casa ou em suas profissões, as mulheres tendem a se focar em trabalhos que produzem status. O diálogo com Mears é que esse status também é apropriado no mais das vezes pelo homem, seja ele o chefe, seja ele o marido. Essas duas análises colocam um ponto importante para a própria teoria dos capitais. Em geral, as pesquisas se focam na posse de capitais por agentes de acordo com suas posições sociais. Contudo, pouca atenção é dada à possibilidade de os agentes se apropriarem de capitais acumulados por outros. Ou seja, ainda que capitais sejam acumulados por determinados agentes de acordo com suas condições, esses mesmos capitais podem ser apropriados por outros em melhores condições sociais. Nas análises citadas, é o caso de capitais acumulados por mulheres e mobilizados em proveito de homens. Podemos estender esse raciocínio para outros campos, como a relação entre as altas classes e a cultura popular etc. Distinção e classe social no mundo contemporâneo O estudo da distinção nos coloca, como vimos, inúmeros desafios de natureza teórica. Ao mesmo tempo, existem dificuldades propriamente metodológicas no estudo desse tema. O conceito de distinção, tal como empregado por Bourdieu, supõe diferença e hierarquia. Há muitas evidências empíricas de que as práticas culturais são estratificadas e diferenciadas socialmente. Mais fundamentalmente, a hipótese da homologia - da correspondência estrutural entre o espaço social e o espaço dos estilos de vida - encontra sustentação empírica em estudos realizados em diversas sociedades, indicando que os estilos de vida são estruturados não apenas pelo volume de capital possuído pelos agentes, mas também por sua composição (Flemmen, Jarness e Rosenlund, 2019; Atkinson, 2017; Pereira, 2005)6. É possível, assim, não apenas diferenciar as classes superiores das classes médias e inferiores, mas também, como já demonstrado n’A distinção, diferenciar frações das classes superiores em função do peso dos diferentes recursos pertinentes a um dado universo social (Börjesson et al., 2016). E a mesma diferenciação interna pode ser encontrada para as demais classes, considerando os recursos específicos e modalidades de estilização da vida típicas a essas regiões do espaço social (Pereira, 2005). Por outro lado, uma parte importante desses estudos voltou-se para a investigação de um aspecto da distinção, aquele referente à produção, acumulação e transmissão de capital cultural7. Consequentemente, é pouco comum a utilização de uma ampla variedade de indicadores para mensurar as práticas dos agentes em diferentes domínios da vida social, restringindo-se frequentemente ao consumo da cultura entendida em um sentido bastante restrito (em parte devido às limitações decorrentes do uso de fontes secundárias). Ademais, a operacionalização da noção de espaço social, a partir da construção de diversos indicadores de formas de capital e de trajetórias sociais, tem recebido relativamente pouca atenção nos estudos de classe recentes inspirados pela tradição bourdieusiana8. Se, apesar das ressalvas anteriores, é possível dizer que o aspecto da distribuição diferencial das propriedades das práticas está, de alguma forma, bem documentado, o outro elemento da distinção, qual seja, a hierarquia, parece menos explorado nos estudos que se debruçam sobre essa temática. A mera evidência estatística da raridade de uma prática ou gosto não implica necessariamente que ele hierarquize os agentes. Os instrumentos geralmente utilizados para “mapear” os gostos e as práticas culturais não são suficientes para responder a esta questão. Os dados produzidos por meio de surveys são muito úteis (sobretudo quando produzidos a partir da problemática da pesquisa), porque possibilitam evidenciar a ocorrência empírica de homologias entre as práticas dos agentes em diferentes domínios e suas posições relativas no espaço social. É necessário, no entanto, dar alguns passos adicionais para apreendermos a problemática da distinção em sua totalidade. Como a hipótese da homologia sugere haver correspondências entre as hierarquias operantes nos diversos campos sociais, por um lado, e entre elas e as hierarquias vigentes no espaço social, por outro, uma primeira tarefa consiste em situar as práticas em seus campos específicos e reconstruir a estrutura desses campos (suas instâncias de legitimação, suas hierarquias e seus agentes, os valores que os orientam, os objetos em disputa), além das relações entre eles9. Há muitos estudos desse tipo na sociologia no Brasil e alhures10. Ademais, é preciso avançar na investigação dos aspectos subjetivos de como “as pessoas explicitamente avaliam, estimam e julgam os estilos de vida dos outros (Sølvberg e Jarness, 2019, p. 180). Como produzir dados desse tipo? Como apreender empiricamente os modos pelos quais as pessoas categorizam e hierarquizam os estilos de vida? Que técnicas de observação podemos empregar para investigar as disputas em torno do valor das propriedades dos estilos de vida e o reconhecimento pelos agentes dessas hierarquias? Essa é uma tarefa fundamental, uma vez que, para que possamos considerar determinadas práticas ou gostos como distintos e distintivos, é essencial evidenciar o amplo reconhecimento da legitimidade de tais práticas ou gostos. Como argumentam Sølvberg e Jarness, os estudos de Lamont sobre as fronteiras sociais e simbólicas nos ajudam a avançar nessas indagações. Fronteiras simbólicas são “distinções conceituais feitas pelos atores sociais para categorizar objetos, pessoas, práticas, e, até mesmo, o tempo e o espaço. São ferramentas pelas quais os indivíduos e grupos lutam para chegar a definições da realidade compartilhadas” (Lamont e Molnár, 2002, p. 168). Por sua vez, fronteiras sociais são “formas objetivadas de diferenças sociais manifestadas no acesso desigual e na distribuição desigual de recursos (materiais e imateriais) e de oportunidades sociais” (Idem, ibidem). Mapear as fronteiras simbólicas, retornando aos argumentos de Sølvberg e Jarness (2019), pode ser bastante útil para investigar empiricamente “se e como as diferenças de estilos de vida baseadas em classe estão, de fato, ligadas a processos de exclusão e inclusão” (p. 180). Em Money, morals and manners (1992), Lamont investigou o processo de construção de fronteiras de diferentes tipos (cultural, econômica e moral) com base em entrevistas em profundidade com informantes norte-americanos e franceses. O modo como as pessoas falam de si e dos outros, as categorias que mobilizam, em seus discursos, para nomear, definir, avaliar suas próprias ações e as dos outros constituem dados importantes a partir dos quais podemos apreender como as fronteiras sociais e simbólicas são construídas e reconstruídas na vida social. Ao mesmo tempo, há uma tendência quase incontornável por parte dos indivíduos de idealizar seus comportamentos em situações sociais. Por isso, em situações de entrevista, é provável que os informantes recorram à produção de narrativas “honoráveis”, por meio das quais buscam transmitir uma imagem de si como indivíduos tolerantes, minimizando as diferenças de classe e evitando julgamentos ou o uso de categorias que impliquem hierarquização ou estigmatização. Mais: para os membros das classes superiores, apresentarem-se como pessoas tolerantes, “decentes”, igualitárias contribuiria, intencionalmente ou não, para a reprodução da legitimidade cultural e das fronteiras de classe (Sølvberg e Jarness, 2019, p. 23). Para que a situação de entrevista não se transforme em uma mera instância de produção de discursos complacentes ou condescendentes, é essencial que adotemos técnicas que permitam “extrair” as chamadas narrativas “viscerais”, aquelas carregadas de sentimentos de desgosto, julgamentos morais e estéticos, de categorias que produzem hierarquias entre grupos de pessoas11. A probabilidade de produção de tais narrativas “honoráveis” ou “viscerais” pode variar conforme o contexto: onde, com quem, de quem, do que se fala. Nos estudos de Sam Friedman sobre a estruturação social do gosto por comédia, por exemplo, seus informantes de frações superiores mais dotados de capital cultural construíam, em suas falas, fronteiras simbólicas baseadas na percepção da inabilidade de certas audiências de entenderem “formas mais elevadas” de comédia. Aparentemente, quando as pessoas falam sobre “o que as faz rir”, elas se sentem menos constrangidas em marcar distância com quem não compartilham seus gostos: “a comédia parece ter um poder único para definir fronteiras simbólicas, enraizado em sua conexão às propriedades sociais do humor…” (Friedman, 2014, p. 148)12. Neste sentido, tem sido cada vez mais relevante o emprego de múltiplas técnicas de pesquisa, que captem a complexidade das relações entre classe e distinção. Muito além de buscar saber as práticas raras e comuns, as que caracterizam mais o gosto de uma classe do que de outra, essas técnicas buscam nos ajudar a responder quais as práticas e os gostos mobilizados para a produção de fronteiras simbólicas. Em uma pluralidade de práticas e gostos que caracterizam a vida dos sujeitos, quais aqueles que se tornam, para usar outra expressão de Lamont, o repertório das diferentes classes nas lutas sociais. Ao fazer esse tipo de pergunta, deslocamos o capital cultural de seu aspecto distintivo para a temática do poder. Isso significa que o interesse recai na esfera da legitimidade de gostos e práticas. E, dessa forma, importa perguntar sobre as novas e antigas instâncias de legitimidade que marcam a esfera cultural. A legitimidade cultural na França de Bourdieu era altamente marcada pelo controle do Estado (operando nas escolas, nos museus, nas salas de concerto etc.), pelo gosto burguês e pela separação de alta e baixa culturas. O que ocorre com essas instâncias com o desenvolvimento da indústria cultural, da cultura produzida por empreendimentos privados e, em especial, pelos novos meios de comunicação, como a internet? A busca de respostas a perguntas como essa e outras que fizemos aparecem nos textos reunidos neste dossiê. A temática de novas configurações do capital cultural e formas de definição das fronteiras simbólicas são observadas no texto “Consumo e capital informacional nas lógicas de distinção entre os grupos dominados”, de Ana Lúcia de Castro. A autora leva o debate sobre a distinção para as classes populares e, nelas, a cultura de consumo. Seu objeto privilegiado de análise é o movimento hype, que envolve a adoção por jovens das classes populares de um consumo de bens restritos típicos do universo do luxo, mas ao mesmo tempo um afastamento das práticas mais legítimas desse universo e da classe dominante. A autora nota como nesse movimento o capital cultural é mobilizado não a partir de seus elementos tradicionais (como a “alta cultura”), mas a partir de um conhecimento da cultura digital que produz um capital informacional. Assim, é pela mobilização desse capital que os agentes do movimento hype são capazes de traçar as fronteiras simbólicas que os diferenciam de outros membros das classes populares. O capital cultural, ela argumenta, continua operando, mas sob formas não antevistas por Bourdieu. Mas se o capital cultural continua operando, sob novas formas, também deve haver instâncias que sejam fonte desse capital na contemporaneidade. Não é estranho à obra de Bourdieu observar o papel da escola e da língua nesse contexto. Contudo, a contemporaneidade exige que repensemos a escola, em especial em relação ao processo de globalização. A isso se dedica Miqueli Michetti no texto “Bilíngues, bilíngues de verdade e global citizens: distinção e disposições no mercado educacional”. O foco agora se volta para as classes altas e sua tentativa de buscar manter o valor do capital cultural que detêm. Para tanto, a inserção dessas classes em uma suposta cultura cosmopolita produz o efeito desejado. Os filhos da elite vão estudar em escolas em que não apenas aprendem uma língua estrangeira (o inglês, em geral), mas incorporam uma disposição cosmopolita e, com ela, a noção de que uma vida desterritorializada, voltada para o mundo, é superior. Dessa forma, em torno de noções que supõem o “bem”, como diversidade cultural, a valorização da diferença, a tolerância etc., o que na verdade se produz é um capital cultural, marcado pela disposição cosmopolita, que, mais uma vez, apenas a elite é capaz de adquirir. Ainda sobre o campo educacional brasileiro, Carlos Moris, Fernando Casselato, Matheus Nascimento, Gabriela Agostini e Luciana Massi mostram outro lado da atuação do capital cultural através de uma excelente aplicação do método de análise de correspondências múltiplas, que demonstra o efeito muito forte do capital cultural nas chances de sucesso no Enem e, portanto, nas chances de acesso à universidade, remetendo aos estudos bourdieusianos clássicos sobre o tema. O tema da distinção ligado ao capital cultural das elites muda de ares e nos leva ao Chile, onde Modesto Gayo e María Luisa Méndez mostram, através de métodos quantitativos e qualitativos, a existência de uma fragmentação ideológica na elite chilena, em contraposição a teorias que pressupõem um conservadorismo inerente a qualquer grupo no topo da hierarquia social. Aproveitando-se do momento de alta tensão e conflitos na sociedade chilena, o artigo estabelece correlações que sugerem uma clivagem entre grupos de elite que apoiam a mudança constitucional e querem um papel protagonista nesse processo, e outros que temem e gostariam de impedir mudanças profundas. Esses grupos, por sua vez, podem ser correlacionados a atitudes opostas no espectro político e ideológico. Do Chile, passamos para a Argentina e o texto de Alexandra Tedesco, um trabalho de sociologia histórica centrado na figura de Victoria Ocampo, escritora fundamental para a formação do campo intelectual argentino no século XX. Através de uma análise cuidadosa de sua trajetória, percebemos também a operação do habitus e do capital cultural incorporado na formação e reprodução de mecanismos de distinção da elite cultural argentina. A relação entre classe, cultura e política reaparece no artigo de Alana Meirelles Vieira, “Entre cultura e política: a distinção da produção de opinião na mídia”. Mobilizando de modo bastante frutífero os conceitos bourdieusianos de espaço social, habitus, campo e capital, a autora problematiza as tomadas de posição no mercado de produção política, centrado na mídia, considerando as homologias das posições e das trajetórias sociais dos agentes nos campos político, jornalístico, econômico e, mais amplamente, no espaço das classes sociais. Com base na análise de dados primários produzidos a partir de entrevistas em profundidade e de pesquisa documental, o trabalho contribui para dar corpo a uma vertente da Sociologia da Cultura que não se furta aos desafios de apreender os determinantes de classe, pela mediação do habitus, nas tomadas de posição política e ideológica. O texto de Michel Nicolau Netto e Bárbara Venturini Ábile propõe a tematização das homologias das hierarquias no campo da moda e no espaço das classes sociais, a partir da investigação empírica de dois eventos de colaboração criativa entre marcas de luxo e fast fashion, entendidos como instâncias empíricas do encontro entre o “sagrado” e o “profano”. Com base em dados produzidos por meio de pesquisa de material visual e de entrevistas em profundidade, os autores argumentam que tais colaborações pressupõem (e também reproduzem) o reconhecimento pelos agentes das hierarquias simbólicas e, portanto, do valor das marcas enquanto signos de distinção nesse subespaço simbólico. Por isso, os eventos de colaboração criativa servem também como uma instância de observação da luta de classes em torno da imposição dos modos legítimos de viver, luta em que as classes superiores quase sempre detêm os recursos necessários para a preservação da raridade relativa em que se assentam seus privilégios. Fechando o dossiê, apresentamos uma entrevista realizada por e-mail com o pesquisador norueguês Johannes Hjellbrekke, que nos traz observações muito interessantes sobre o uso da metodologia bourdieusiana para a produção de projetos de pesquisa no século XXI e a relevância contínua do conceito de capital cultural em nossas sociedades, já tão distantes da França das décadas de 1960 e 70 que Bourdieu investigou. Referências Bibliográficas Ábile, B. V.; Ferreira, T. A.; Miraldi, J. C. & Nicolau Netto, M. (2021), “A arte entre estilistas e chefs: os repertórios da arte e a delimitação das fronteiras na gastronomia e na moda”. CSOn-line: Revista Eletrônica de Ciências Sociais Anderson, Tammy L.; Grunert, Catherine; Katz, Arielle & Lovascio, Samantha. (2010), “Aesthetic capital: A research review on beauty perks and penalties”. Sociology Compass, 4: 564-575. Atkinson, Will. 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