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Os sonhos: integrando as visões psicanalítica e neurocientífica Elie CheniauxSOBRE O AUTOR Resumos É realizada uma ampla revisão dos estudos psicanalíticos e das mais recentes pesquisas neurocientíficas sobre os sonhos. Segundo Freud, os sonhos constituem "uma realização (disfarçada) de um desejo (reprimido)". Para muitos neurocientistas, eles são formados a partir de estímulos aleatórios originados na ponte e não possuem qualquer significado. Contudo, diversos estudos associam as emoções experimentadas durante a vigília e o conteúdo dos sonhos. A hipótese de que o sistema dopaminérgico mesolímbico-mesocortical, relacionado aos estados motivacionais, é essencial para a formação dos sonhos dá algum respaldo à teoria freudiana. Todavia, não há dados empíricos que apóiem a existência de uma instância censora que deturpe os sonhos. É possível que os sonhos exerçam um papel na elaboração psíquica de lembranças traumáticas. Na nossa opinião, as visões psicanalítica e neurocientífica sobre os sonhos podem ser complementares e mutuamente enriquecedoras. Sonho; fases do sono; psicanálise; neurofisiologia; literatura de revisão A comprehensive review was carried out about psychoanalytic studies and the most recent neuroscientific researches about dreams. According to Freud, dreams represent "a (disguised) fulfillment of a (repressed) wish." For several neuroscientists, they are formed based on random stimuli originated from the brainstem and do not have any meaning. However, several studies associate the emotions experienced during waking with the content of dreams. The hypothesis that the dopaminergic mesolimbic-mesocortical system, which is associated with instinctual appetitive craving states, is essential to the formation of dreams brings some endorsement to Freudian theory. Nevertheless, there is no empirical data to support the existence of an instance of censorship that distorts the dreams. It is possible that the dreams play a role in psychological working-through of traumatic memories. In our opinion, psychoanalytic and neuroscientific views about dreams can be complementary and mutually enriching. Dream; sleep stages; psychoanalysis; neurophysiology; literature review ARTIGO DE REVISÃO Os sonhos: integrando as visões psicanalítica e neurocientífica Elie Cheniaux Professor adjunto, Faculdade de Ciências Médicas - Universidade do Estado do Rio de Janeiro (FCM-UERJ), Rio de Janeiro, RJ. Médico, Instituto de Psiquiatria - Universidade Federal do Rio de Janeiro (IPUB-UFRJ), Rio de Janeiro, RJ. Doutor em Psiquiatria, IPUB-UFRJ, Rio de Janeiro, RJ. Pós-doutor, Programa de Engenharia de Sistemas e Computação, Área Interdisciplinar de História das Ciências e das Técnicas e Epistemologia, Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-Graduação e Pesquisa de Engenharia - Universidade Federal do Rio de Janeiro (COPPE-UFRJ), Rio de Janeiro, RJ. Membro associado e docente, Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro (SPRJ), Rio de Janeiro, RJ Correspondência RESUMO É realizada uma ampla revisão dos estudos psicanalíticos e das mais recentes pesquisas neurocientíficas sobre os sonhos. Segundo Freud, os sonhos constituem "uma realização (disfarçada) de um desejo (reprimido)". Para muitos neurocientistas, eles são formados a partir de estímulos aleatórios originados na ponte e não possuem qualquer significado. Contudo, diversos estudos associam as emoções experimentadas durante a vigília e o conteúdo dos sonhos. A hipótese de que o sistema dopaminérgico mesolímbico-mesocortical, relacionado aos estados motivacionais, é essencial para a formação dos sonhos dá algum respaldo à teoria freudiana. Todavia, não há dados empíricos que apóiem a existência de uma instância censora que deturpe os sonhos. É possível que os sonhos exerçam um papel na elaboração psíquica de lembranças traumáticas. Na nossa opinião, as visões psicanalítica e neurocientífica sobre os sonhos podem ser complementares e mutuamente enriquecedoras. Descritores: Sonho, fases do sono, psicanálise, neurofisiologia, literatura de revisão. INTRODUÇÃO O neurocientista e psicanalista Mauro Mancia1, num artigo publicado no International Journal of Psychoanalysis, em 1999, ressalta as diferenças entre as abordagens neurocientífica e psicanalítica dos sonhos. Enquanto os neurocientistas se dedicam ao estudo das estruturas e funções cerebrais envolvidas na produção do sonho, os psicanalistas se interessam pelo significado deste, considerando os aspectos biológicos irrelevantes para a sua compreensão. Todavia, para outros autores, como o psiquiatra Morton Reiser2, o estudo dos sonhos representa uma grande oportunidade de exploração da relação entre corpo e mente. Segundo ele, os modelos da psicanálise e da neurociência para os sonhos, embora muito distintos entre si, não devem ser vistos como antagônicos ou inconciliáveis, mas sim como complementares. Reiser acredita que uma cooperação entre esses dois campos do conhecimento poderia ser mutuamente enriquecedora. Realizamos uma revisão bibliográfica a respeito dos sonhos, na qual comparamos as visões da psicanálise e da neurociência, com o objetivo de identificar possíveis pontos de contato e de divergência entre elas. Promovendo, assim, um diálogo entre a psicanálise e a neurociência, teremos subsídios para avaliar a viabilidade e a utilidade de uma aproximação ou mesmo de uma integração entre as duas no estudo da mente humana. Iniciamos nossa pesquisa bibliográfica pelos trabalhos sobre os sonhos de Sigmund Freud, criador da psicanálise, de James Allan Hobson, neurocientista que veementemente critica a teoria freudiana, e de Mark Solms, um dos principais pesquisadores na área da neuropsicanálise, disciplina científica recém-criada que se ocupa da integração entre os conceitos psicanalíticos e neurocientíficos. Com o auxílio das bases de dados MEDLINE, LILACS e PsycINFO, e utilizando como termo de busca "sonho" (ou dream), procuramos artigos científicos sobre o tema. Também consultamos diretamente alguns dos mais importantes periódicos nacionais e estrangeiros das áreas de psicanálise e de neurociência em bibliotecas e através da Internet, no portal Periódicos da CAPES. Optamos por incluir preferencialmente artigos originais ou de revisão recentes, ou então considerados clássicos na literatura científica. A teoria freudiana sobre os sonhos "A Interpretação dos Sonhos", de 1900, é considerada a primeira obra propriamente psicanalítica de Freud. Nesse trabalho, particularmente no capítulo VII, já se encontra uma teoria geral do aparelho psíquico, formulada a partir dos estudos de Freud sobre os sonhos, que são, segundo ele, a "via régia de acesso ao conhecimento do inconsciente na vida mental"3. Para Freud, o sonho constitui "uma realização (disfarçada) de um desejo (reprimido)". Possui um conteúdo manifesto, que é a experiência consciente durante o sono, e ainda um conteúdo latente, considerado inconsciente. Este é composto por 3 elementos: as impressões sensoriais noturnas (por exemplo, a sensação de sede durante o sono), os restos diurnos (registros dos acontecimentos da véspera) e as pulsões do id (relacionadas a fantasias de natureza sexual ou agressiva). Esses elementos do sonho latente tendem a fazer o indivíduo despertar. E, durante o sono, em função da completa cessação da atividade motora voluntária, a repressão está enfraquecida, o que aumenta a possibilidade de as pulsões terem acesso à consciência. Todavia o sonho atua como "o guardião do sono". Em função de uma solução de compromisso entre o id e o ego - que é a instância que exerce a repressão -, é permitida uma gratificação parcial das pulsões, diminuindo a força delas e, conseqüentemente, possibilitando que o indivíduo continue a dormir. Essa gratificação se dá através de uma fantasia visual (o conteúdo manifesto do sonho), que é o resultado de um processo regressivo: o fluxo da energia psíquica, ao invés de seguir em direção às vias motoras, retorna às vias sensoriais3,4. Ainda de acordo com Freud, o conteúdo manifesto dos sonhos é aparentemente incompreensível porque consiste numa versão distorcida do conteúdo latente. Essa distorção se dá, em primeiro lugar, porque no sono há uma profunda regressão do funcionamento do ego, que faz com que prevaleça o processo primário do pensamento. Este é caracterizado pelo predomínio das imagens visuais (em detrimento da linguagem verbal) e pelos mecanismos de condensação (fusão de duas ou mais representações) e de deslocamento (substituição de uma representação por outra). Além disso, entre o inconsciente e o consciente existiria uma instância censora, que deliberadamente disfarçaria o conteúdo do sonho, para que o sonhador não reconheça sua origem pulsional, proibida3,4. Algumas contestações à teoria freudiana A teoria freudiana sobre os sonhos tem sido bastante contestada, dentro e fora da psicanálise. Questiona-se se as imagens que percebemos durante o sono representariam mesmo um disfarce ou distorção. Luborsky & Crits-Christoph5 estudaram os sonhos de um grupo de pacientes utilizando o core conflictual relationship theme method (CCRT), um instrumento que avalia o padrão de relacionamentos interpessoais de um indivíduo, tendo como base o relato deste. Comparando-se os resultados da avaliação relativos apenas ao conteúdo manifesto do sonho com aqueles obtidos quando foram consideradas também as associações livres do sonhador (que indicariam o conteúdo latente do sonho), não foram encontradas diferenças. Vários estudos empíricos encontraram uma correlação significativa entre a atividade mental durante a vigília e o conteúdo manifesto dos sonhos. Na amostra de Greenberg et al.6, os problemas sonhados eram basicamente os mesmos pelos quais os indivíduos estavam passando em suas vidas diurnas. Smith7, por sua vez, observou que separação ou morte eram a temática predominante nos sonhos de pacientes cardiopatas hospitalizados. Outros ensaios clínicos demonstraram que estímulos apresentados anteriormente ao sono - como filmes, fotografias ou jogos de palavras - reaparecem claramente nos sonhos8. Por outro lado, alguns autores não acreditam que seja possível recuperar o conteúdo latente do sonho na sessão analítica. Para eles, a associação livre ocasiona a produção de um material novo, criado a partir da relação paciente-analista9,10. Blechner10 afirma que muito do que é bizarro ou confuso no sonho não resulta de repressão: são elementos originalmente extralingüísticos, que não podem ser expressos em palavras. Para Robbins11, os sonhos expressam puramente a linguagem do processo primário; portanto, a atuação de uma instância censora, que refletiria um pensamento racional (característico do processo secundário), não seria possível. Coloca-se em dúvida, ainda, a afirmativa de Freud de que desejos seriam os instigadores de todos os sonhos. Para diversos autores1,12,13, os sonhos refletiriam não só os desejos e as defesas contra estes, mas a atividade mental como um todo, e teriam inúmeras outras funções além de descarga (da energia psíquica), como a solução de problemas (intelectuais ou emocionais)6,14,15, criatividade8, autoconhecimento1,16, integração da mente14,17, adaptação17, aprendizagem8, neutralização do estresse8, entre outras. McCarley & Hobson18, por sua vez, argumentam que, embora possam estar presentes no sonho temas relacionados a desejos, isso não significa que estes representem um fator causal no processo de formação do sonho. Por fim, alguns autores1,9,10,12,17,19,20 destacam a relação paciente-terapeuta e a transferência como os componentes principais na formação dos sonhos durante o tratamento. Em contrapartida à importância que Freud dava aos sonhos para a investigação da mente, o interesse por estes entre os psicanalistas tem diminuído significativamente nas últimas décadas. Kantrowitz17, estudando o currículo de 28 institutos psicanalíticos americanos, constatou que o número total de horas dedicadas ao estudo dos sonhos em cursos clínicos e teóricos no biênio 1998-1999 foi muito menor do que em 1980-1981. Para muitos analistas, os aspectos intrapsíquicos trazidos pelos sonhos podem ser igualmente obtidos por meio do estudo de sintomas, traços de caráter, atos falhos ou associações livres10,17. Os aspectos neurofisiológicos do sono Na década de 1950, Nathaniel Kleitman e seus alunos William Dement e Eugene Aserinsky descreveram pela primeira vez o sono paradoxal, ou sono REM1,2. Este, que compreende no adulto cerca de 20% do tempo total de sono, é caracterizado pela ocorrência de movimentos oculares rápidos (rapid eye movements, daí a sigla), perda do tônus muscular, freqüências cardíaca e respiratória irregulares e oscilações na pressão arterial sistêmica. Esses autores detectaram ser muito comum, quando uma pessoa era despertada nessa fase do sono, que ela referisse ter estado sonhando. Em 1962, Jouvet demonstrou que o traçado eletroencefalográfico durante o sono REM é muito semelhante ao da vigília: dessincronizado (irregular) e com ondas rápidas (ritmo b). Em contrapartida, no sono profundo, não-REM (NREM), em que não há um aumento da atividade autonômica periférica, predominam um traçado sincronizado e os ritmos d e t - daí ele ser conhecido também como sono de ondas lentas (slow wave sleep)1,21. Hoje em dia se sabe que, embora os sonhos sejam muito mais comuns durante o sono REM, eles podem ocorrer também durante o sono profundo: estima-se que entre 25 e 50% dos períodos de sono NREM estejam associados a sonhos21. Além disso, 5 a 30% dos períodos de sono REM cursam sem qualquer sonho22. Todavia, dependendo da fase do sono, as características dos sonhos são bem diferentes. Comparados com os sonhos da fase NREM, os da fase REM são mais vívidos e mais bizarros, apresentam uma maior participação do sonhador e uma maior estruturação espacial, são mais facilmente lembrados e relatados com um número maior de palavras. Já os sonhos do sono NREM são mais conceituais do que plásticos, compostos por fragmentos da realidade não organizados e não narráveis, raramente são lembrados e apresentam uma participação mais passiva do sonhador1,21. Durante o sono REM, o fluxo sangüíneo cortical é maior do que no sono de ondas lentas e, às vezes, maior até do que na vigília23. Estudos de tomografia por emissão de pósitrons (PET scan) mostram que, durante o sono REM, estão ativados o córtex visual extra-estriatal (associativo) e as regiões límbica e paralímbica; estando, ao mesmo tempo, desativados o córtex visual estriado (primário) e o córtex pré-frontal. Vários aspectos característicos do sonho podem ser relacionados a estes achados: a riqueza de imagens visuais, à ativação do córtex visual associativo e desativação do primário; a intensa expressão emocional, à ativação das regiões límbica e paralímbica; e a bizarrice, incoerência, perda da crítica e esquecimento, à desativação do córtex pré-frontal1,24,25. Acredita-se que a consciência da vigília seja mediada pela noradrenalina e pela serotonina, e a consciência do sonho (do sono REM), pela acetilcolina24,25. A atividade aminérgica (noradrenalina e serotonina) está elevada durante a vigília, diminui durante o sono NREM e se encontra ausente no sono REM. Já a atividade colinérgica é máxima no sono REM e na vigília e mínima ou ausente durante o sono NREM. Recentemente, descobriu-se que as hipocretinas desempenham um importante papel no ciclo sono-vigília: apresentam atividade máxima durante a vigília e ausente durante o sono, tanto no REM como no NREM26,27. Consolidação da memória durante o sono Para grande parte dos neurocientistas, os sonhos não têm qualquer função: são apenas um efeito colateral de processos de consolidação da memória dependentes do sono, a manifestação consciente destes27. Diversos dados indicam que o sono é fundamental para a memória e a aprendizagem. Em primeiro lugar, durante o sono REM, predomina a atividade colinérgica, sendo que a acetilcolina está claramente envolvida nas funções cognitivas28. Em vários estudos experimentais, alguns feitos com ratos, outros com humanos, observou-se que a privação do sono REM ocasionava um prejuízo na aprendizagem de habilidades perceptivas ou perceptivo-motoras (memória implícita), treinadas pouco antes do adormecer27,29,30. Em outros estudos, em que os animais ou humanos foram submetidos a um treinamento desse tipo, mas não foram privados do sono, detectou-se um aumento da duração total do sono REM28,31. Tal aumento só ocorria quando a tarefa era de fato aprendida28. Diante disso, passou-se a acreditar numa relação entre o sono REM e a consolidação da memória implícita32. Por outro lado, um ensaio clínico evidenciou uma diminuição na capacidade de aquisição de memórias explícitas em indivíduos privados do sono NREM30. Em estudos eletroencefalográficos realizados com ratos, pássaros e humanos, constatou-se que padrões de disparos de determinados neurônios do hipocampo registrados na vigília, enquanto se treinavam tarefas cognitivas (memória explícita), reapareciam durante o sono. Esse fenômeno de reativação neuronal, ou reverberação, ocorre predominantemente no sono NREM, mas também é observado no sono REM e mesmo durante a vigília28,33,34. Experiências com ratos evidenciaram que aqueles expostos algumas horas antes de dormir a ambientes não-familiares apresentaram um aumento da expressão do gene zif-268 - particularmente envolvido em processos de neuroplasticidade - no hipocampo e no córtex cerebral durante o sono REM, o que não ocorreu com os animais-controle34. Contudo, há questionamentos quanto ao papel do sono na consolidação da memória. Para Vertes32, parece um contra-senso que o sono, sendo um estado eminentemente amnéstico, tenha esse papel. Além disso, sabe-se que a consolidação de algumas formas de memória se dá também durante a vigília28. Em cerca de metade dos estudos de privação do sono com animais, os resultados não evidenciaram um déficit de aprendizagem32, e em diversos experimentos com humanos submetidos a atividades pré-sono de treinamento, não se observou uma duração aumentada do sono REM31. Por outro lado, critica-se a metodologia de vários estudos com ratos, pois tanto o treinamento como a privação do sono costumam provocar estresse, o qual, por sua vez, pode causar um prolongamento do sono REM e também prejuízo na aquisição de novas memórias28,31,32. Também merece destaque a observação de que os antidepressivos inibidores da mono-amino-oxidase, largamente prescritos num passado recente, embora causem eliminação do sono REM, nunca foram relacionados a um déficit de memória31,32. Siegel31 argumenta que, se o reaparecimento da atividade neuronal da vigília durante o sono estivesse implicado na consolidação das memórias dos eventos diurnos, os sonhos seriam cópias fiéis destes. Mas não parece ser assim. Fosse et al.35 examinaram o conteúdo de um total de 299 relatos de sonhos de 29 voluntários. Embora 65% dos sonhos estivessem relacionados a experiências pessoais recentes, apenas 1,4% deles continha elementos que pudessem ser considerados uma repetição dessas experiências. Segundo Francis Crick - ganhador do prêmio Nobel por suas pesquisas sobre o DNA - e Graeme Mitchison36, sonhamos não com as memórias que estão sendo consolidadas, mas com aquelas que estão sendo apagadas. Para eles, o sono REM é necessário para a eliminação de informações erradas ou inúteis armazenadas no cérebro. O sonho seria um reflexo de um processo de aprendizagem reversa, no qual determinadas sinapses são enfraquecidas. Embora esta formulação não tenha recebido muito apoio nos meios acadêmicos, ela é freqüentemente citada e parece ser coerente com o fato de os sonhos retratarem eventos bizarros ou irreais, os quais precisariam ser eliminados da memória32. A teoria de ativação-síntese A teoria de ativação-síntese, de Hobson & McCarley, apresentada como uma contestação à teoria psicanalítica sobre os sonhos, tem sido amplamente aceita entre os neurocientistas nas últimas duas décadas22. No sono REM, em função de uma diminuição da atividade aminérgica, ocorre uma desinibição do sistema colinérgico, especialmente na ponte. Isso faz com sejam geradas periodicamente as ondas ponto-genículo-occipitais (PGO), detectadas no eletroencefalograma do sono REM, as quais, para os dois autores, são os estímulos básicos dos sonhos. Elas se originam na ponte, propagam-se para o corpo geniculado lateral do tálamo e chegam ao córtex visual (occipital), ativando-o. Dessa forma, com base nos traços de memória visual armazenados, são produzidas as imagens do sonho. Como essa ativação cortical se dá de forma aleatória, são formadas imagens caóticas, as quais, num segundo momento, sofrem um processo de síntese, construindo, assim, uma narrativa seqüencial. Portanto, de acordo com a teoria, os sonhos nascem, no tronco cerebral, sem qualquer significado; eles não estão disfarçando nada, pelo contrário, expressam de forma transparente a atividade cerebral24,37,38. O sistema dopaminérgico mesolímbico-mesocortical e o resgate da teoria freudiana Mark Solms22,39 apresenta uma teoria que é, ao mesmo tempo, uma crítica à teoria de ativação-síntese e uma tentativa de confirmação da formulação freudiana sobre os sonhos. Segundo ele, o sono REM e o sonho são estados dissociáveis: um pode ocorrer sem o outro. Pode haver sonhos na fase NREM do sono, e 5 a 10% destes são indistinguíveis dos sonhos da fase REM. Além disso, focos epilépticos em regiões têmporo-límbicas, ou seja, fora do tronco cerebral, podem causar pesadelos estereotipados recorrentes, tipicamente durante o sono NREM. Dos 22 pacientes estudados por ele que apresentavam uma lesão na ponte e, conseqüentemente, perda total ou parcial do sono REM, 18 mantinham a capacidade de sonhar. Por outro lado, Solms aponta que, na literatura científica, já foram registrados mais de 100 casos de eliminação do sonhar provocada por lesões no cérebro anterior que preservaram a ponte e o sono REM. Na maioria desses casos, foi afetada a área da junção parieto-têmporo-occipital, estreitamente relacionada à formação das imagens do sonho. Contudo, em outros pacientes, a eliminação dos sonhos se deveu a uma lesão no quadrante ventromedial do lobo frontal. Essa região, por sinal, era a acometida nas cirurgias de leucotomia pré-frontal, muito utilizadas no passado no tratamento da esquizofrenia e que comumente levavam a um prejuízo no sonhar. Pelo quadrante ventromedial do lobo frontal, passam fibras do sistema dopaminérgico mesolímbico-mesocortical, o qual envolve a área tegmentar ventral do mesencéfalo, o núcleo acumbente, o hipotálamo, o córtex pré-frontal e o córtex cingulado anterior. De acordo com Solms22, esse sistema é o gerador do sonho. Estudos de PET scan mostram um aumento da atividade nesse circuito durante o sono REM23,40. Além disso, agonistas dopaminérgicos, como o L-Dopa, podem causar sonhos especialmente vívidos e pesadelos. Tais achados reforçam a antiga concepção de uma ligação entre sonho e "loucura" - em ambos há alucinações, perda do juízo crítico, etc. -, já que existe uma clara correlação entre hiperatividade dopaminérgica e ocorrência de sintomas psicóticos22,23. O sistema mesolímbico-mesocortical está relacionado aos estados motivacionais, os quais instigam comportamentos que visam à satisfação das necessidades biológicas, como o beber, o comer e o copular. Substâncias estimulantes e que causam dependência, como cocaína e anfetamina, atuam nesse circuito, causando um aumento na liberação de dopamina no núcleo acumbente, o que, por sua vez, leva a uma sensação de prazer22. Um outro elemento que indica uma relação entre esse sistema dopaminérgico e o sonhar é a alta freqüência com que dependentes químicos em abstinência sonham estar buscando ou usando drogas41. Na concepção de Solms22, o sono REM e o sonho são controlados por mecanismos biológicos diferentes: o primeiro, pela atividade colinérgica da ponte; e o segundo, pelos circuitos dopaminérgicos do cérebro anterior. Estes são a via final comum de várias formas de estimulação cerebral. As ondas PGO freqüentemente exercem esse papel de estimulação cerebral, mas não de forma exclusiva. Ainda segundo Solms, o envolvimento na geração dos sonhos do sistema mesolímbico-mesocortical, claramente relacionado ao que a psicanálise chama de pulsões, parece confirmar a afirmativa de Freud quanto a um desejo ser o instigador do sonho. O papel do sonho na elaboração psíquica de experiências traumáticas Em "A Interpretação dos Sonhos", Freud3 argumenta que mesmo os pesadelos não contradizem a formulação de que os sonhos são realizações de desejos. Segundo ele, nesse caso, apesar da censura onírica, o conteúdo latente consegue chegar à consciência pouco deformado e é reconhecido pelo ego. Este então reage produzindo a ansiedade, com o objetivo de despertar o indivíduo. Freud cita ainda uma variante, os sonhos de punição, nos quais o ego antecipa a culpa (pela realização do desejo reprimido), e o conteúdo manifesto está representando uma fantasia de punição. Seria, portanto, a realização de um desejo do superego, e não do id. Mais tarde, porém, em "Além do Princípio do Prazer", de 1920, o próprio Freud42 aponta uma importante exceção à sua formulação: os sonhos repetitivos que sucedem eventos traumáticos e os que evocam traumas da infância não são realizações de desejos. Tais sonhos, de acordo com ele, obedecem à compulsão à repetição, que seria algo mais primitivo do que o princípio do prazer (e independente deste), e têm como função a sujeição ou dominação das excitações relacionadas à recordação do trauma. Para Ernest Hartmann43, contudo, os pesadelos não são uma exceção; ao contrário, constituem o paradigma de todos os sonhos. Ele estudou os sonhos de pessoas que passaram por experiências traumáticas importantes e observou que, no início, muitas vezes havia uma mera repetição do trauma; mais tarde, contudo, os sentimentos de medo, vulnerabilidade, culpa ou pesar continuavam presentes nos sonhos, mas num contexto inteiramente diferente. Por exemplo, sonhar estar sendo atingido por uma onda gigante ou um furação era muito comum, independentemente de como tivesse sido o verdadeiro trauma. Os sonhos desses indivíduos continham não os estímulos sensoriais relativos ao evento traumático, mas sim a emoção vivenciada. Segundo o autor, os sonhos contextualizam a emoção dominante, expressando-a através de uma representação pictórica. Para Hartmann, esse mesmo padrão é encontrado nos sonhos de pessoas que não sofreram traumas importantes, mas que estão experimentando uma emoção intensa, como em situações de estresse em geral. Ele afirma ainda que, quando não há uma emoção dominante, e várias emoções de menor intensidade estão presentes, tal padrão, embora menos evidente, persiste. Revonsuo15, por sua vez, baseou-se na teoria da evolução para tentar explicar os sonhos. Ele partiu das seguintes premissas: para os primeiros humanos, a vida era curta e cheia de ameaças; os eventos traumáticos freqüentemente são expressos nos sonhos; e os sonhos são fundamentais no processo de aprendizagem. De acordo com sua hipótese, a função dos sonhos é simular experiências traumáticas ou ameaçadoras que foram anteriormente vivenciadas durante a vigília. Tal simulação, segundo ele, leva a uma melhora no desempenho do indivíduo em relação à detecção e enfrentamento de ameaças, o que, conseqüentemente, aumenta a sua sobrevida e chances de procriação. Diversos autores9,14,19,20,44 acreditam que os sonhos são de grande importância para a elaboração de traumas e conflitos psíquicos e têm um papel terapêutico, semelhante ao da psicoterapia. Para explicar esse processo de elaboração, o seguinte modelo da neurociência computacional tem sido utilizado. Acredita-se que, no sonho, as redes neurais se conectem com mais facilidade do que durante a vigília43. Todavia, essas conexões não são feitas de forma aleatória: as emoções seriam os organizadores das redes neurais. Em outras palavras, as representações tendem a se associar a outras que possuam a mesma conotação afetiva2,43. Isso está de acordo com a regra de aprendizagem de Hebb, que diz que "a força de uma conexão sináptica entre dois neurônios aumenta sempre que os neurônios são ativados ao mesmo tempo por uma fonte externa". Enquanto dormimos, as experiências recentes são primeiro emparelhadas com eventos mais remotos, com os quais possuam alguma similaridade, para em seguida serem integradas aos registros permanentes de memória45. Dessa forma, a lembrança de um trauma (da infância ou recente) se associa a outras recordações, o que a torna menos poderosa e perturbadora43. DISCUSSÃO Os sonhos podem ser definidos como estados da consciência que ocorrem durante o sono. Mas ainda sabemos muito pouco sobre eles. Na edição comemorativa da revista Science, relativa ao seu 125º aniversário, é apresentada uma lista de 125 questões ainda não respondidas pela ciência e que irão desafiar os pesquisadores no próximo quarto de século. Entre elas, foram incluídas as seguintes: "qual é a base biológica da consciência?"; "por que dormimos?"; e "por que sonhamos?"46. A hipótese de Freud de que os desejos são os instigadores dos sonhos encontra agora algum respaldo na proposição de Solms22 de uma relação entre sonhos e ativação do sistema dopaminérgico mesolímbico-mesocortical. Esse autor, como vimos, baseou-se na observação de pacientes com lesões no cérebro anterior, em estudos de PET scan no sono REM, no efeito de agonistas dopaminérgicos sobre os sonhos e na existência de diversos aspectos em comum entre sonhos e psicose. Todavia, algumas dúvidas ainda pairam sobre essa questão. Por exemplo, faltam dados na literatura científica sobre como os antipsicóticos, que são antagonistas dopaminérgicos, afetam os sonhos, tanto em indivíduos normais como em psicóticos. Além disso, os sonhos e a mais importante das psicoses, a esquizofrenia, possuem diferenças marcantes do ponto de vista fenomenológico: enquanto os sonhos são constituídos basicamente por imagens visuais, na esquizofrenia predominam as alucinações auditivas, sendo bem mais raras as visuais. E não se pode esquecer que o próprio Freud42 reconheceu a existência de exceções à sua regra: os sonhos repetitivos pós-traumáticos. Já a concepção de que uma instância censora deturpa os sonhos tem encontrado pouco apoio. Robins11 defende que o conteúdo manifesto é o próprio sonho, visto que o córtex pré-frontal, que seria fundamental em qualquer mecanismo mental de disfarce dos sonhos, encontra-se inativado durante a fase REM do sono. Por outro lado, a visão de muitos neurocientistas, como Hobson & McCarley37, de que os sonhos não possuem significado é desafiada pela constatação de quanto as emoções experimentadas durante a vigília determinam o conteúdo dos sonhos, como descrito no trabalho de Hartmann43. Os aspectos emocionais das recordações são codificados como memórias implícitas47, as quais provavelmente são consolidadas durante o sono REM32. E segundo Stickgold et al.27, o sono REM pode incrementar o processamento de memórias emocionais. Tudo isso é bastante coerente com a hipótese de que as emoções exercem um papel fundamental na formação dos sonhos. O modelo da neurociência computacional sobre o papel dos sonhos na elaboração psíquica é bastante semelhante ao modelo psicanalítico. O desenvolvimento de múltiplas associações para a representação do trauma corresponderia à incorporação desta ao pensamento do processo secundário, o qual é racional e obedece à lógica e ao princípio da realidade. Incrementar a modalidade de pensamento do processo secundário em detrimento do pensamento do processo primário representa um fortalecimento da capacidade do ego de dominar o id, o que, por sua vez, consiste num dos principais objetivos do tratamento analítico48. Freud3, em 1900, afirma que tanto o pensamento irracional como o racional participam da elaboração do sonho. Robins11 discorda, afirmando que os sonhos expressam unicamente o pensamento do processo primário; o relato deles é que está relacionado ao processo secundário. Mas o neurocientista Claude Gottesmann23 atesta que os sonhos da fase NREM do sono se assemelham ao pensamento do processo secundário. Surge aqui uma questão: se os sonhos são terapêuticos por ocasionarem uma ampliação do campo de atuação do ego e incremento do pensamento do processo secundário, como eles se apresentam com características do pensamento do processo primário? Na seção D do capítulo VII de "A Interpretação dos Sonhos", Freud3 diz que a transformação de pensamentos em imagens visuais favorece a ligação com pensamentos que sofreram o mesmo processo de transformação. Talvez o sonho represente uma parte apenas do processo de elaboração psíquica que ocorre durante o sono. Embora o aumento do número de associações das representações mentais se dê durante grande parte - ou a totalidade - do sono, apenas durante os sonhos, principalmente na fase REM, chegam à nossa consciência informações sobre esse processo. Como durante o sono REM o córtex pré-frontal - fundamental para a atenção e o pensamento racional na vigília - está inativado, a nossa consciência só é capaz de funcionar de acordo com o processo primário e, assim, só capta de forma parcial o processo que está se desenrolando. Em outras palavras, embora durante o sono estejam sendo criadas novas associações entre as idéias, só conseguimos sonhar com condensações ou deslocamentos. Pelo que vimos, o diálogo entre a neurociência e a psicanálise sobre os sonhos pode ser bastante profícuo: proposições da psicanálise têm inspirado e guiado investigações neurocientíficas, e achados da neurociência têm sido úteis para um maior refinamento da teoria psicanalítica. Correspondência: Elie Cheniaux Rua Santa Clara, 50/1213, Copacabana CEP 22041-010 Rio de Janeiro, RJ Tel.: (21) 2547.0670 E-mail: echeniaux@globo.com Recebido em 10/08/2005. Aceito em 26/02/2006. 1. Mancia M. Psychoanalysis and the neurosciences: a topical debate on dreams. Int J Psychoanal. 1999;80(Pt 6):1205-13. 2. Reiser MF. The dream in contemporary psychiatry. Am J Psychiatry. 2001;158(3):351-9. 3. Freud S. A interpretação dos sonhos. 2Ş ed. Rio de Janeiro: Imago; 1987. 4. Freud S. Esboço de psicanálise. Rio de Janeiro: Imago; 1975. 5. Luborsky L, Crits-Christoph P. Understanding transference: the core conflictual relationship theme method. New York: Basic Books; 1990. 6. 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Distinção e capital cultural hoje Distinction and cultural capital today: introduction Edison Bertoncelo Michel Nicolau Netto Fábio RibeiroSOBRE OS AUTORES Neste dossiê, reunimos artigos que debatem a distinção no mundo contemporâneo, inspirados pelas pesquisas pioneiras realizadas desde a década de 1970 por Pierre Bourdieu e sua equipe. Como introdução, apresentamos um breve resumo da concepção bourdieusiana elaborada principalmente no texto clássico A distinção (Bourdieu, 1979), em que Bourdieu desenvolveu uma análise complexa e original da sociedade francesa a partir de abordagens metodológicas diversas. Em suas conclusões, enfatizou a importância do capital cultural, e do fenômeno associado da distinção, para estabelecer uma representação adequada do espaço social francês e suas hierarquias para além das análises tradicionais com foco apenas em questões econômicas no sentido estrito. Em seguida, faremos um resumo das discussões sobre o debate classe e cultura com base na leitura de uma série de textos que dialogam, mais ou menos criticamente, com Pierre Bourdieu e, em especial, com A distinção. A partir disso, apresentamos algumas implicações do que se expôs para pesquisas futuras, e destacamos as contribuições dos artigos que compõem este dossiê. Uma breve história d’A distinção Os trabalhos de Pierre Bourdieu sobre a relação entre classe, cultura e estilo de vida são o desenvolvimento de pesquisas anteriores feitas em geral sob encomenda de órgãos governamentais em busca de melhoria de políticas públicas. Em Os herdeiros (1964), Bourdieu e Jean-Claude Passeron observaram que, embora a escola pública francesa oferecesse condições similares de aprendizado, o desempenho dos alunos não era o mesmo. A diferença da origem de classe entre os que obtinham sucesso - e chegavam à universidade - e os que eram excluídos no processo precisava de uma explicação que não fosse baseada em preconceitos de classe. Os autores foram capazes de perceber que a suposta cultura universal ensinada nas escolas encontra direta correspondência com um conjunto de conhecimentos e valores típicos das classes dominantes. A socialização das crianças na cultura burguesa produzia uma experiência de continuidade entre a cultura escolar e a cultura familiar. Para explicar esse processo, Bourdieu e Passeron falam da incorporação de um capital linguístico pelas crianças com origem nas classes dominantes, que seria um conjunto de conhecimentos e competências linguísticas, estilos pessoais e atitudes (Lamont e Lareau, 1988), que criam um senso de pertencimento à escola. De forma correlata, a ausência desse capital produzia um estranhamento do ambiente escolar nas crianças oriundas de meios sociais não burgueses. A diferença em desempenho, portanto, pode ser explicada justamente pelo valor desse capital incorporado pela criança em sua socialização familiar. A relação entre escola, desempenho e origem de classe segue em A reprodução (1970). Ali, tanto quanto a partir da edição inglesa de 1979 de Os herdeiros (apudPrieur e Savage, 2013), o termo agora mobilizado é capital cultural, tido por Tony Bennett e Elizabeth Silva (2011, p. 429) como o mais criativo conceito do autor, de fato “um neologismo - e não uma reelaboração de um léxico herdado” como seria o caso de outros conceitos como campo e habitus. Simultaneamente, Bourdieu trabalhava com o universo das artes e percebia, de um lado, uma relação entre gosto e origem de classe (no caso o interesse pela fotografia, em Un art moyen, de 1965), e de outro a relação entre classe e as disposições para apreciação da arte (como no livro O amor pela arte, de 1966). Os trabalhos desenvolvidos na década de 1960 já se articulavam tanto na mente de Bourdieu quanto em suas intenções de pesquisa. Como revela Monique de Saint-Martin (2015), desde 1962 o autor francês organizava workshops para discutir os temas que em 1979 apareceriam em A distinção e que já começavam a aparecer nos textos aqui citados. Entre o final da década de 1960, com a fundação do Centre Européen de Sociologie (1968), e o começo da década seguinte, especialmente com a fundação da revista Actes de la Recherche en Sciences Sociales (1975), Bourdieu começa a adquirir condições materiais apropriadas para se lançar no plano audacioso de investigar a importância da cultura nos processos de reprodução de classe na sociedade francesa. Não se tratava mais de se pensar em espaços isolados da sociedade (na escola, no museu, na prática fotográfica), mas na sociedade de forma integral. O centro e a revista permitiram tanto um espaço de divulgação de pesquisas de interesse de seu diretor, quanto a reunião de jovens e talentosos pesquisadores, entre os quais alguns de seus antigos colaboradores, como Luc Boltanski, com quem publicou Un art moyen. Nesse momento, há uma intensificação de pesquisas e textos que vão desaguar n’A distinção, e o livro pode mesmo ser considerado “o ponto no qual pesquisa e artigos se encontram e interagem” (Saint-Martin, 2015). De fato, aparecem no livro pesquisas e reflexões anteriormente publicadas e que vão solidificando conceitos, hipóteses e metodologias. Seguindo a lista formulada por Saint-Martin, temos: “Disposition esthétique et compétence artistique” (Bourdieu, 1971), “Les fractions de la classe dominante et les modes d’appropriation des oeuvres d’art” (Bourdieu, 1974); “Anatomie du goût” (Bourdieu e Saint-Martin, 1976); “La production de la croyance” (Bourdieu, 1977a); “Titres et quartiers de noblesse culturelle: la critique sociale du jugement esthétique” (Bourdieu e Saint Martin, 1976); “Les stratégies de reconversion” (Bourdieu et al., 1973); “Questions de politique” (Bourdieu, 1977b), “Classement, déclassement, reclassement” (Bourdieu, 1978) e “Le couturier et sa griffe” (Bourdieu e Delsaut, 1975). Em “A anatomia do gosto”, de 1976, Bourdieu e Saint-Martin já constroem os espaços social e dos estilos de vida, sendo que muitos dos trechos desse ensaio aparecem integralmente ou em partes em A distinção. Bourdieu também se beneficiou do desenvolvimento da estatística, em especial da “escola francesa de análise de dados”, e das técnicas computacionais1. Na década de 1960, o grupo de Jean-Paul Benzécri cunhou o termo “análise de correspondências múltiplas”, utilizada por Bourdieu e Saint-Martin em “A anatomia do gosto” e por Bourdieu em A distinção, para a medição das distâncias relativas dos indivíduos no espaço social de acordo com o acúmulo e a estrutura de seus capitais, nessa ocasião, medindo-se os capitais econômico e cultural. É com base nessa técnica de análise de dados que Bourdieu e Saint-Martin são capazes de construir o espaço social francês e a ele sobrepor o espaço dos estilos de vida. É a coincidência entre as posições dos sujeitos de acordo com seus capitais (volume e estrutura) e a legitimidade de suas práticas culturais definidoras de seus estilos de vida que permitiu que Bourdieu lançasse a tese da homologia entre os espaços. Voltaremos à metodologia mais adiante nesta introdução, mas aqui destacamos que a possibilidade de se medirem as posições relativas dos sujeitos concretizava o pressuposto teórico de Bourdieu de que a sociedade é formada por posições objetivas relacionais, ou seja, as posições se definem umas em relação às outras. As “classes no papel” ou classes teóricas são o resultado desse esforço de classificação sociológica, a partir do qual é possível identificar conjuntos de agentes que ocupam posições relativas vizinhas no espaço social em função da distribuição dos capitais relevantes. As classes assim construídas diferem das classes preconcebidas ou pressupostas como em muitas correntes do marxismo e da economia prevalentes na época (ver Bourdieu, 2015, pp. 99-120). A estatística e a computação, assim como os estatísticos reunidos no Instituto Nacional de Estatística e dos Estudos Econômicos (INSEE) e no Centro de Pesquisa pelo Estudo e Observação das Condições de Vida (Crédoc), permitem a representação visual e geométrica da sociedade que Bourdieu e seus colegas descobriam empiricamente. Após A distinção, o tema do capital cultural permaneceu central na obra de Bourdieu, especialmente em suas grandes pesquisas dos anos 1980, Homo academicus (1984) e La noblesse d’État (1989), e foi desenvolvido também nas aulas de Bourdieu como membro do Collège de France. Nessas aulas, o sociólogo destaca as diferenças entre sua concepção e a ideia mais difundida na época de “capital humano”, associada a economistas como Gary Becker e Jacob Mincer, que buscava interpretar os resultados dos investimentos em educação apenas em relação à sua conversão direta em capital econômico. Já Bourdieu, como de costume, enfatizava o aspecto relacional e também temporal do conceito de capital cultural, que não pode ser reduzido diretamente a seu aspecto monetário (ver Bourdieu, 2016, pp. 239-257). Assim, fica mais fácil perceber a função teórica desempenhada pelo conceito de capital cultural, além da função metodológica já explicitada em obras como A distinção. Em termos teóricos, o capital cultural e sua relação com os conceitos adicionais de habitus e capital simbólico permitem a Bourdieu afastar-se tanto de uma abordagem enfatizada em particular na economia, na qual o fundamento da ação social está em indivíduos racionais que buscam maximizar seu interesse (ver Bourdieu, 2017, passim), quanto de abordagens de inspiração durkheimiana que localizam aquilo que é próprio ao social e à sociologia em instituições completamente externas aos indivíduos (Bourdieu, 2016, pp. 229-262). Da mesma maneira, a ideia de distinção ganha maior aporte teórico na abordagem bourdieusiana como o fenômeno por excelência que permite àqueles que ocupam posições dominantes em determinados campos não só recolher e acumular lucros de distinção, mas também, através das lutas dentro do campo, estabelecer a própria estrutura do campo, ou seja, a hierarquia que favoreça a reprodução do capital que eles próprios possuem - num processo em que, como Bourdieu enfatiza, nada precisa acontecer intencionalmente, na lógica do complô (Bourdieu, 2016, p. 291). Críticas e reflexões a partir dos debates sobre A distinção Dessa forma, é possível dizer que não só A distinção é o resultado de quase duas décadas de um trabalho coletivo que reuniu tanto indivíduos quanto instituições francesas, mas também continuou alimentando as pesquisas e reflexões de Bourdieu no decorrer de sua carreira. E seu resultado é proporcional ao tamanho dos esforços e trabalhos despendidos. O estudo da relação entre classe e cultura tem uma longa tradição na sociologia e remonta ao menos a Weber, Veblen, Simmel e Elias. A distinção segue essa tradição e se torna - ao menos do que nela se consolida, como conceitos, métodos etc. - objeto frequente de reflexões e questionamentos na sociologia. Nas próximas seções, tematizamos alguns debates centrais à literatura que se debruçou nessa problemática construída n’A distinção. Onivorismo e a crítica da homologia estrutural e do capital cultural Na década de 1990, quando ganhava impulso o movimento de apropriação dos estudos de Bourdieu sobre a distinção para além da França (a primeira tradução da obra para o inglês ocorreu em 1984), surgiu uma ideia que, posteriormente, viria a ser interpretada por muitos autores dentro da sociologia da cultura e da sociologia da estratificação social como uma crítica à abordagem bourdieusiana da relação entre classes sociais, gostos e estilos de vida. Essa ideia, mais propriamente um conceito “provisório” do que uma teoria ou mesmo uma hipótese, foi desenvolvida nos estudos do sociólogo estadunidense Richard Peterson com seus colaboradores (Peterson, 1992, 1997, 2005; Peterson e Simkus, 1992; Peterson e Kern, 1996). Como argumenta Gayo (2016), “a ideia do onívoro foi desenvolvida de uma posição de alto status e forte legitimidade na sociologia norte-americana” (p. 104). Peterson era então reconhecido nacional e internacionalmente entre seus pares por seus trabalhos sobre indústrias culturais e produção cultural, além de ter publicado fartamente em revistas acadêmicas de elevado prestígio, como Poetics (Ibidem). Se os debates em torno do onivorismo cultural (o termo aludindo a uma “metáfora zoológica” tão criticada por Bernard Lahire) ganharam enorme impulso, estimulando a produção de vários estudos ao longo das décadas seguintes e tornando-se ponto de passagem obrigatório para as pesquisas recentes sobre gostos e práticas culturais, parte disso se deve, certamente, ao contexto acadêmico norte-americano e à posição de Richard Peterson nele. A esses fatores também se deve o fato de que essa ideia ganhou mais tração nos debates na sociologia norte-americana do que na sociologia europeia (sobretudo a francesa): “o onívoro cultural era uma reiteração posterior de um tema familiar dentro da sociologia dos Estados Unidos que afirmava que a geração nascida após a Segunda Guerra Mundial era mais próspera, educada, aberta e tolerante do que as gerações posteriores de norte-americanos” (Idem, p. 106). É menos claro, no entanto, porque esse conceito foi interpretado posteriormente como tendo implicações críticas aos estudos de Bourdieu sobre a distinção. Ironicamente, Peterson, em seus próprios estudos (sobretudo em uma publicação recente, 2005), afirmava que o onivorismo não apontava para uma refutação, mas apenas uma reformulação dos argumentos de Bourdieu. Se os estudos de Peterson foram lidos posteriormente como sendo uma espécie de refutação ao livro A distinção, isso se deve, em parte, à forma como essa obra foi apropriada fora da França, sobretudo pela sociologia de língua inglesa. Como destaca Holt (1998), durante muito tempo a sociologia norte-americana fez uma leitura “substancialista” dessa obra, minimizando um elemento que lhe é central, seu caráter relacional. Lizardo e Skiles (2016) sustentam que o entendimento convencional de que o debate sobre o onivorismo questionou a validade empírica das ideias de Bourdieu quanto à associação entre gosto e classe está baseado em uma leitura incorreta do trabalho de Bourdieu. Tal leitura parte de dois pressupostos: i) de que as práticas culturais dos indivíduos de “status elevado” podem ser classificadas em um padrão de tipo “exclusivismo esnobe” [snobbish exclusiveness], ou seja, tais indivíduos gostam ou fazem coisas associadas à “alta cultura”, rejeitando a cultura popular; ii) A distinção pode ser lida como um estudo de como as classes superiores, fortemente ligadas à alta cultura, se distinguem das classes populares, com seus gostos e práticas vulgares (Idem, p. 91). O argumento contido na primeira premissa ignora que a aversão estética é um mecanismo de produção de fronteiras simbólicas que opera tanto vertical quanto horizontalmente; no caso da segunda premissa, minimiza-se a ênfase conferida por Bourdieu à multidimensionalidade do espaço social, que se traduz, por intermédio do habitus, em oposições no espaço simbólico. Isso implica, por exemplo, que as lutas em torno da imposição dos modos legítimos de viver são travadas não apenas entre diferentes classes, mas, sobretudo, entre diferentes frações das mesmas classes (por exemplo, o “ascetismo aristocrático” dos intelectuais em oposição ao “gosto do luxo” da burguesia proprietária e dirigente). Voltando aos estudos de Peterson, a ideia do onivorismo não parece muito complicada: a velha distinção entre alta e baixa cultura estaria sendo substituída por outra, entre onívoros e unívoros. Os primeiros, além de se apropriarem da “alta cultura”, também consumiriam “cultura popular”. Os unívoros teriam um repertório de gostos e práticas restrito à “baixa cultura”. Nesse sentido, o onivorismo apontaria para “repertórios de práticas culturais, emergindo no final do século xx, que são marcados por uma amplitude crescente de gostos e participação cultural e também por uma disposição para transgredir fronteiras previamente construídas entre itens ou gêneros culturais hierarquicamente ordenados” (Karademir e Warde, 2016, p. 77). Em alguns estudos, “onivorismo” é substituído por “ecletismo”, mas a ideia é a mesma. O desenvolvimento original do conceito aponta para mudanças nos princípios de distribuição dos gostos e das práticas culturais, do “esnobismo” para o “onivorismo”. O onivorismo implica, portanto, a combinação de gostos e práticas, que atravessam diferentes registros culturais. Não basta, portanto, para ser caracterizado como onívoro, que um indivíduo goste de muitos gêneros ou participe de muitas atividades culturais. Ocorrendo no contexto de transformações sociais e culturais - relacionadas com o aumento da oferta de bens culturais, a “estetização” da cultura popular, a maior mobilidade social -, a emergência dessa nova “orientação” em relação às formas culturais teria efeitos profundos para as estratégias de distinção, para a importância da “alta cultura” na hierarquização social etc. Antes de analisarmos esses possíveis efeitos, no entanto, é essencial investigar a validade empírica da tese de Peterson. Como argumentam Karademir e Warde, há muitas dificuldades para avaliar a suposta importância do onivorismo enquanto novo “princípio” subjacente à distribuição de gostos e práticas culturais, dificuldades que dizem respeito à falta de consenso na literatura que opera com esse conceito quanto às maneiras de defini-lo e operacionalizá-lo, aos domínios e itens culturais que devem ser considerados, às medidas de posição social (classe social, status), à necessidade de uso de dados de diferentes tipos (qualitativos e/ou quantitativos), aos procedimentos para medir mudança social e, por fim, quanto aos critérios a empregar para operacionalizar uma noção central ao onivorismo, que é aquela da abertura à diversidade. Ora, se o onivorismo, pelo menos segundo a definição original, significa o “cruzamento” de fronteiras culturais e a composição “eclética” de gostos e práticas, então é necessário adotar algum critério para determinar quais são as fronteiras relevantes e onde estão localizadas. Por exemplo, em um estudo de Peterson e Kern (1996), ópera e música clássica foram consideradas gêneros eruditos; bluegrass, country, gospel, rock e blues, gêneros inferiores; musicais da Broadway, músicas leves (easy listening) e big band, gêneros médios. Com base nessa classificação, repertórios musicais que combinassem, por exemplo, ópera e rock, ou ópera e easy listening seriam considerados onívoros. É óbvio, portanto, que o modo de construir a classificação e a hierarquização dos gêneros musicais interfere fortemente nos resultados sobre a suposta emergência e/ou crescimento de repertórios onívoros. Nos próprios estudos de Peterson, como salienta Brisson (2019), há diferentes procedimentos para produzir tais classificações musicais, dificultando a comparabilidade dos resultados, o que não seria necessariamente um problema, tivessem tais modificações tido o objetivo de incorporar evoluções temporais das hierarquias musicais (estetização, intelectualização ou popularização de gêneros ou subgêneros musicais) ou, então, nos modos como tais hierarquias são subjetivamente percebidas e internalizadas pelos indivíduos. Não foi o caso. Pelo que foi exposto, é provável que o onivorismo seja um “artefato metodológico” (Brisson, 2019, p. 10). De fato, a falta de consenso sobre o que é onivorismo e como operacionalizá-lo reduz nossa capacidade de estimar a validade empírica da tese de Peterson. Além disso, é preciso refletir se, mesmo que empiricamente válida, a tese acrescentaria algo aos debates sobre classes, gostos e estilos de vida na tradição bourdieusiana (Bertoncelo, 2019). A “tese” do onivorismo introduz implicações opostas ou radicalmente diferentes daquelas associadas à hipótese das homologias para a investigação das práticas culturais? Suspeitamos que não. No estudo d’A distinção, já está presente o argumento de que um dos principais marcadores da distinção é a propensão e a capacidade dos agentes para transpor a disposição estética para novos objetos e domínios da vida social. O “esnobe”, a quem supostamente o onívoro estaria substituindo no mundo contemporâneo, não seria mais distinto ou distintivo: ao invés disso, como sublinham Lizardo e Skiles (2016), o “esnobismo”, entendido como uma orientação que privilegia tão somente os bens culturais institucionalmente consagrados em detrimento daqueles da “cultura popular”, seria um indício da aquisição tardia da disposição estética, mais próximo da “boa vontade cultural” da pequena burguesia. Essas considerações críticas, no entanto, não invalidam por completo a importância dos debates acerca do onivorismo. Ainda que este não constitua um objeto sociológico propriamente novo e que faltem as condições adequadas para apreciar a validade empírica das mudanças apreendidas por esse conceito, o debate serviu para arejar as discussões em torno da distinção. De fato, como conceber e investigar a distinção e a formação de capital cultural em um contexto marcado pela crescente circulação global de pessoas e objetos, pela disseminação das tics, pela ampliação da esfera do simbólico, pelas mudanças nos sistemas educacionais? É possível que essa capacidade “tolerante” para transpor a disposição estética para domínios não artísticos ou culturais e para objetos não consagrados, mesmo vulgares, tenha ela própria sido transposta para outras regiões do espaço social, não se restringindo, portanto, às frações mais intelectualizadas? O estudo britânico Culture, class, distincion aponta nessa direção: […] em suma, a cultura importa para a classe média, e até mais para seus estratos mais elevados. O capital cultural objetivado e institucionalizado opera como um recurso valioso, mas não exclusivamente por meio do controle da cultura legítima. Ao invés, a orientação requerida se dirige para a apreciação reflexiva, em um espírito de abertura, de uma diversidade de produtos culturais, mas continuam a existir fronteiras além das quais não é respeitável atravessar (Bennett et al., 2009, p. 194). Diferentemente, outros estudos apontam que esse ecletismo seletivo é a manifestação de certas disposições ao consumo que “divertidamente” [playfully] atravessam fronteiras culturais estabelecidas. A combinação entre gostos “estabelecidos” e “emergentes” expressa não tanto uma orientação onívora ou um novo tipo de capital cultural, mas, ao invés disso, o domínio do simbólico que está na raiz do capital cultural teorizado por Bourdieu, que opera, no entanto, em um contexto social marcadamente diferente (Flemmen; Jarness e Rosenlund, 2018). A perda da eficácia da “alta cultura” como distintiva? Uma das principais contribuições dos debates em torno do onivorismo para a Sociologia tem a ver com a problematização dos efeitos da “alta cultura” para os processos de distinção social2. Estudos recentes evidenciam que as classes superiores, sobretudo em suas frações mais intelectualizadas e cultivadas, possuem gostos “ecléticos”, que não se reduzem à “alta cultura” assim entendida (Flemmen; Jarness; Rosenlund, 2018, 2019; Prieur; Savage, 2011; Bennett et al., 2009). Mais: o consumo da “alta cultura” vem declinando socialmente, mesmo nas classes superiores, em especial nas gerações mais novas (Gripsrud et al., 2011; Purhonen et al., 2011; Dimaggio e Mukhtar, 2004)3. Quais as implicações disso para a relação entre “alta cultura” e capital cultural? Para alguns, a “alta cultura” não representa mais (ou jamais representou, fora do contexto francês) uma forma de capital cultural (Halle, 1992; Lamont, 1992). Diferentemente, DiMaggio e Mukhtar argumentam, baseados em um estudo sobre a evolução do consumo cultural nos Estados Unidos ao longo de duas décadas (1982-2002), que a “alta cultura” permanece central para a formação e acumulação de capital cultural, ainda que exista uma tendência geral de redução de seu público consumidor, mesmo que não na mesma magnitude para todas as formas culturais assim classificadas4. Conforme esse mesmo estudo, as atividades culturais populares tiveram uma redução de seu público tão grande quanto aquela da “alta cultura”, e o consumo cultural dos menos educados caiu mais fortemente do que o dos mais educados. Tais processos evidenciam, assim, que o declínio da “alta cultura” tem mais a ver com o aumento da competição por outras formas de uso do tempo livre e de modos de consumo da cultura do que propriamente com a perda de eficácia distintiva da “alta cultura”5. De forma similar, um estudo conduzido entre estudantes de ensino superior na Noruega, que cobre um período parecido com o anterior (1998-2008), aponta que, apesar de um declínio significativo das práticas associadas à “cultura legítima tradicional” - em menor medida entre estudantes de humanidades do que de disciplinas técnicas -, elas permanecem fortemente associadas às classes superiores e ainda gozam de elevado reconhecimento, o que indicaria, segundo o estudo, a provável persistência da eficácia distintiva da “alta cultura”, ou seja, ela ainda opera como um capital cultural (Gripsurd et al., 2011, pp. 524-525). Ao mesmo tempo, a contínua redução do interesse pela “alta cultura” e de seu consumo, especialmente entre os mais jovens e mais escolarizados, tenderia a torná-la uma cultura de “nichos sociais”, não mais gozando de reconhecimento social generalizado. Conforme argumentam DiMaggio e Mukhtar, “nós suspeitamos que se a participação [na “alta cultura”] continuar a cair, em algum momento, essas formas artísticas se tornarão irrelevantes para a cultura compartilhada das famílias e grupos sociais cujas chances de vida são mais dependentes do manejo de capital cultural” (Idem, p. 191). Ainda que tal tendência se concretize, esse processo teria como consequência a irrelevância do capital cultural como um princípio de diferenciação e hierarquização social? Embora, como argumentamos, a “alta cultura” ainda goze de algum reconhecimento social para além de seu público consumidor, cada vez mais restrito às classes superiores, é pouco provável que o que se entende por “cultura legítima” se restrinja a essas formas culturais (Špaček, 2017). Uma leitura relacional do capital cultural e dos processos distintivos “abre caminho para uma definição da disposição estética parcialmente dissociada dos conteúdos nos quais ela opera” (Coulangeon, 2015, p. 56). Holt (1998) chama atenção para os riscos de uma leitura substancialista que associa a “cultura legítima” à “alta cultura”, leitura essa que leva à conclusão de que a ausência de qualquer associação significativa entre o consumo da “alta cultura”, de um lado, e o pertencimento às classes superiores, de outro, indicaria a irrelevância do capital cultural na produção de desigualdades e na construção de fronteiras simbólicas e sociais. Holt entende que tal argumento confunde os aspectos abstrato e particular do capital cultural. Para ele, enquanto o aspecto abstrato é produzido pela incorporação das estruturas sociais condicionadas pelas classes, o particular é específico do campo em que o capital cultural é articulado. Dessa forma, o que os agentes incorporam não é exatamente um gosto pela “alta cultura”, mas uma condição específica de julgamento do mundo social que se manifestará como distintivo em objetos diferentes em cada campo social. Não haveria nada, portanto, de essencial no domínio da “alta cultura” para Bourdieu, sendo isso apenas um capital particular relevante para o estudo da sociedade francesa, mas que pode não importar para outros tempos ou outras sociedades. Ao invés de pressupor, deve-se, então, encontrar qual o capital específico que importa em cada contexto. É por isso que, para Holt (1997), mais importante é o estado incorporado do capital cultural, pois é ele que criará as condições para que os agentes possam ocupar posições dominantes em diferentes campos e neles controlar seus capitais específicos. Para dar um exemplo simples, é o capital cultural incorporado que permite a membros da elite ocuparem posições dominantes em campos tão distantes como o acadêmico e o financeiro, fazendo valer esse capital abstrato para o domínio dos capitais específicos. Na mesma linha, seguiram Prieur e Savage (2013). Sem adentrarem em discussão sobre campo, eles diferenciam a visão sobre o conceito de capital cultural em flexível e fixo. Segundo eles, o fixo seria a visão que atrela o capital cultural a um objeto específico - por exemplo, à “alta cultura”. Com esse olhar, “é fácil descartar a análise de Bourdieu como obsoleta e irrelevante” (Prieur e Savage, 2013, p. 249). Contudo, para eles, Bourdieu entendia o capital cultural como flexível, ou seja, uma forma de poder de qualidades exclusivas e relacionais, que se forma em objetos específicos de acordo com a relação que eles possuem com outros objetos. Assim, se a “alta cultura” não seria mais a concretização (ou, para voltar a Holt, a particularização) do capital cultural, outros objetos o são, devendo o pesquisador identificar quais. Na próxima seção voltaremos a esse debate, apresentando o que os autores chamam de “capital cultural emergente”. Não entendemos, contudo, que devemos descartar de maneira tão radical a “alta cultura” como forma de distinção. Isso se dá por dois motivos. Um primeiro motivo se refere ao que encontramos em algumas pesquisas, mas destacamos aqui Omar Lizardo (2006). O autor estuda a relação de conversão entre capital cultural e capital social. Sua tese central é inverter a noção clássica de que capital social se converte em cultural, para mostrar que o cultural se converte, com mais frequência, em social. Entretanto, o que mais nos interessa aqui é notar que, em diferentes redes de relacionamento, há a operação de diferentes conhecimentos culturais. Segundo o autor, a cultura popular tem um “valor generalizado de conversão”. Ou seja, a cultura popular pode ser convertida em diferentes redes de relacionamento, produzindo, inclusive, redes amplas de laços fracos. Já a “cultura de elite (highbrow) […] tem um valor restrito de conversão: ela deve mais provavelmente sustentar redes de laços fortes” (Lizardo, 2006, p. 783), que permitirão maiores vantagens para seus integrantes. Em outras palavras, o ecletismo cultural da elite lhe permite formar diferentes redes de socialização, sendo essas redes dependentes do conhecimento cultural mais amplo, mas também do reconhecimento das hierarquias culturais. Essa ideia se aproxima tanto à de repertório, de Michèle Lamont, quanto de variações intraindividuais de Bernard Lahire. Para ambos os autores, os agentes mobilizam diferentes conhecimentos em contextos específicos. A diferença, contudo, é que a ideia de Lizardo, e esse é o ponto aqui, nos permite vislumbrar a permanência da relevância da “alta cultura” como forma de distinção. Esforço similar foi empreendido em artigo recente (Ábile et al., 2021), em que se argumentou que a perda da relevância da “alta cultura” foi observada em pesquisas que relacionaram a “alta cultura” ao campo propriamente artístico. O texto propõe olhar como a “alta cultura” é operada em outros campos para produzir distinções. Assim, demonstra-se que os capitais valorizados no campo artístico são mobilizados pelos campos da gastronomia e da moda para produzirem diferenciações. Estilistas e cozinheiros que se aproximam de artistas (e mesmo querem ser considerados artistas) se diferenciam dos outros, e seus produtos se tornam distintivos. Sendo práticas que recebem reconhecimento social (especialmente por programas de televisão), mas, ao mesmo tempo, exclusivas de uma elite, elas produzem distinção e operam como capital cultural. Dessa forma, argumenta-se que a “alta cultura” pode ser vista ainda operando como capital cultural, mesmo em domínios que não o artístico. Do gosto à prática: de “o quê” para “como” Uma outra forma de se pesquisar o capital cultural, mal captada especialmente por pesquisas baseadas em preferências, é a diferenciação entre “o que” se consome e o “como” se consome. Essa preocupação com a modalidade das práticas está bem exemplificada em um estudo de Vegard Jarness (2015), autor que pesquisou formas de consumo cultural e estratificação social na cidade de Stavanger, na Noruega. Segundo ele, as críticas direcionadas à noção de capital cultural ignoram a distinção entre opus operatum e modus operandi, ou seja, entre um conjunto de preferências (mais ou menos volumosas e “ecléticas”) e os esquemas de avaliação e apreciação subjacentes às escolhas. No contexto da ampliação da produção, difusão e consumo de bens simbólicos e das possibilidades de estetização da vida cotidiana, é provável que “gostar das mesmas coisas” signifique cada vez menos “ter os mesmos gostos” (Idem, p. 67). Na verdade, “quando os mesmos bens culturais comuns são apreciados de modos diferentes, isso pode tornar a prática ainda mais distintiva” (Idem, p. 77). Dessa forma, se indivíduos de diferentes classes ou frações de classe declaram preferências similares em gosto (por exemplo, musical), é possível que o modo como ouvem música ou mesmo a justificativa que dão para suas preferências possam se diferenciar, manifestando diferentes habitus incorporados e produzindo fronteiras que separam as classes e geram distinção. Formas emergentes de capital cultural e novas formas de distinção? Retornando à visão sobre capital cultural flexível ou à diferença de capital cultural abstrato e particular, alguns autores argumentam a favor da emergência de formas emergentes de capital cultural. Mike Savage e Annick Prieur argumentam que, em um contexto em que se ampliam os universos de possíveis escolhas estéticas e em que o valor do domínio da “cultura erudita tradicional” se reduz a mercados de concorrência social cada vez mais restritos, é provável que os agentes equipados com mais capital cultural privilegiem um tipo de apropriação “reflexiva”, distanciada e irônica, sustentada por uma capacidade de explicitar as razões da escolha. “Irônico” aqui implica que os agentes (re)conhecem os significantes do gosto e são capazes de associar diferentes significados a práticas mainstream. Além disso, tais agentes são capazes de se posicionar para além de certos enquadramentos nacionais, regionais ou locais, adotando uma orientação cosmopolita. Esses aspectos da prática - apropriação irônica, “reflexiva” e distanciada, a partir de um enquadramento cosmopolita - teriam um “novo” valor distintivo e, por isso, os autores utilizam o conceito de formas emergentes de capital cultural para apreendê-los (Prieur e Savage, 2011, 2013). Em suma, esse conceito apreende possíveis mudanças no gosto dominante, sobretudo nas gerações mais novas, indicando a operação de “novos” modos de distinção social não mais baseados na estética do desinteresse, que, nos trabalhos de Bourdieu, constituía o princípio subjacente à apropriação legítima das formas culturais “sérias” (Friedman et al., 2015) Por outro lado, outros estudos questionam a suposta novidade dessa modalidade de consumo que combina elementos do “tradicional” e do “contemporâneo”, argumentando que as “formas emergentes” de capital cultural ou as “novas” formas de distinção não pressupõem nada além do domínio do simbólico aplicado em novos contextos sociais (Flemmen; Jarness e Rosenlund, 2018; Atkinson, 2017). Um outro conjunto de estudos busca perceber outras formas de capital. Trata-se também da emergência de capital, mas não necessariamente cultural. É o caso mais frequente de pesquisas que se focam na aparência ou na beleza. Um conjunto de autores (Vandebroek, 2015; Anderson, Grunert, Katz e Lovascio, 2010; Holla e Kuipers, 2015) considera que tais características, ao serem avaliadas como distintivas por certos grupos, operam como um capital que denominam estético. Da mesma maneira que outras formas de capital, a condição de sua acumulação é predisposta pela posição do agente no espaço social. Uma variação dessa visão percebe que esse capital estético é mais importante para as mulheres (elas são mais frequentemente avaliadas por critérios estéticos). Contudo, mesmo a elas, esse capital é de pouca vantagem, pois é mobilizado pelos homens. Em outras palavras, o capital estético acumulado por uma mulher serve, no mais das vezes, como distinção para os homens. Ashley Mears (2015) mostra “os usos do capital corporal feminino por homens que se apropriam de mulheres como um recurso simbólico para gerar lucro, status e laços sociais num mundo exclusivo de homens de negócio” (Mears, 2015, p. 22). Seus estudos se focam na relação entre homens e mulheres em feiras e eventos internacionais de produtos. Contudo, isso pode ser relacionado com aquilo que Randall Collins chama de “trabalho goffmaniano” das mulheres. Seu foco é mostrar que, seja em casa ou em suas profissões, as mulheres tendem a se focar em trabalhos que produzem status. O diálogo com Mears é que esse status também é apropriado no mais das vezes pelo homem, seja ele o chefe, seja ele o marido. Essas duas análises colocam um ponto importante para a própria teoria dos capitais. Em geral, as pesquisas se focam na posse de capitais por agentes de acordo com suas posições sociais. Contudo, pouca atenção é dada à possibilidade de os agentes se apropriarem de capitais acumulados por outros. Ou seja, ainda que capitais sejam acumulados por determinados agentes de acordo com suas condições, esses mesmos capitais podem ser apropriados por outros em melhores condições sociais. Nas análises citadas, é o caso de capitais acumulados por mulheres e mobilizados em proveito de homens. Podemos estender esse raciocínio para outros campos, como a relação entre as altas classes e a cultura popular etc. Distinção e classe social no mundo contemporâneo O estudo da distinção nos coloca, como vimos, inúmeros desafios de natureza teórica. Ao mesmo tempo, existem dificuldades propriamente metodológicas no estudo desse tema. O conceito de distinção, tal como empregado por Bourdieu, supõe diferença e hierarquia. Há muitas evidências empíricas de que as práticas culturais são estratificadas e diferenciadas socialmente. Mais fundamentalmente, a hipótese da homologia - da correspondência estrutural entre o espaço social e o espaço dos estilos de vida - encontra sustentação empírica em estudos realizados em diversas sociedades, indicando que os estilos de vida são estruturados não apenas pelo volume de capital possuído pelos agentes, mas também por sua composição (Flemmen, Jarness e Rosenlund, 2019; Atkinson, 2017; Pereira, 2005)6. É possível, assim, não apenas diferenciar as classes superiores das classes médias e inferiores, mas também, como já demonstrado n’A distinção, diferenciar frações das classes superiores em função do peso dos diferentes recursos pertinentes a um dado universo social (Börjesson et al., 2016). E a mesma diferenciação interna pode ser encontrada para as demais classes, considerando os recursos específicos e modalidades de estilização da vida típicas a essas regiões do espaço social (Pereira, 2005). Por outro lado, uma parte importante desses estudos voltou-se para a investigação de um aspecto da distinção, aquele referente à produção, acumulação e transmissão de capital cultural7. Consequentemente, é pouco comum a utilização de uma ampla variedade de indicadores para mensurar as práticas dos agentes em diferentes domínios da vida social, restringindo-se frequentemente ao consumo da cultura entendida em um sentido bastante restrito (em parte devido às limitações decorrentes do uso de fontes secundárias). Ademais, a operacionalização da noção de espaço social, a partir da construção de diversos indicadores de formas de capital e de trajetórias sociais, tem recebido relativamente pouca atenção nos estudos de classe recentes inspirados pela tradição bourdieusiana8. Se, apesar das ressalvas anteriores, é possível dizer que o aspecto da distribuição diferencial das propriedades das práticas está, de alguma forma, bem documentado, o outro elemento da distinção, qual seja, a hierarquia, parece menos explorado nos estudos que se debruçam sobre essa temática. A mera evidência estatística da raridade de uma prática ou gosto não implica necessariamente que ele hierarquize os agentes. Os instrumentos geralmente utilizados para “mapear” os gostos e as práticas culturais não são suficientes para responder a esta questão. Os dados produzidos por meio de surveys são muito úteis (sobretudo quando produzidos a partir da problemática da pesquisa), porque possibilitam evidenciar a ocorrência empírica de homologias entre as práticas dos agentes em diferentes domínios e suas posições relativas no espaço social. É necessário, no entanto, dar alguns passos adicionais para apreendermos a problemática da distinção em sua totalidade. Como a hipótese da homologia sugere haver correspondências entre as hierarquias operantes nos diversos campos sociais, por um lado, e entre elas e as hierarquias vigentes no espaço social, por outro, uma primeira tarefa consiste em situar as práticas em seus campos específicos e reconstruir a estrutura desses campos (suas instâncias de legitimação, suas hierarquias e seus agentes, os valores que os orientam, os objetos em disputa), além das relações entre eles9. Há muitos estudos desse tipo na sociologia no Brasil e alhures10. Ademais, é preciso avançar na investigação dos aspectos subjetivos de como “as pessoas explicitamente avaliam, estimam e julgam os estilos de vida dos outros (Sølvberg e Jarness, 2019, p. 180). Como produzir dados desse tipo? Como apreender empiricamente os modos pelos quais as pessoas categorizam e hierarquizam os estilos de vida? Que técnicas de observação podemos empregar para investigar as disputas em torno do valor das propriedades dos estilos de vida e o reconhecimento pelos agentes dessas hierarquias? Essa é uma tarefa fundamental, uma vez que, para que possamos considerar determinadas práticas ou gostos como distintos e distintivos, é essencial evidenciar o amplo reconhecimento da legitimidade de tais práticas ou gostos. Como argumentam Sølvberg e Jarness, os estudos de Lamont sobre as fronteiras sociais e simbólicas nos ajudam a avançar nessas indagações. Fronteiras simbólicas são “distinções conceituais feitas pelos atores sociais para categorizar objetos, pessoas, práticas, e, até mesmo, o tempo e o espaço. São ferramentas pelas quais os indivíduos e grupos lutam para chegar a definições da realidade compartilhadas” (Lamont e Molnár, 2002, p. 168). Por sua vez, fronteiras sociais são “formas objetivadas de diferenças sociais manifestadas no acesso desigual e na distribuição desigual de recursos (materiais e imateriais) e de oportunidades sociais” (Idem, ibidem). Mapear as fronteiras simbólicas, retornando aos argumentos de Sølvberg e Jarness (2019), pode ser bastante útil para investigar empiricamente “se e como as diferenças de estilos de vida baseadas em classe estão, de fato, ligadas a processos de exclusão e inclusão” (p. 180). Em Money, morals and manners (1992), Lamont investigou o processo de construção de fronteiras de diferentes tipos (cultural, econômica e moral) com base em entrevistas em profundidade com informantes norte-americanos e franceses. O modo como as pessoas falam de si e dos outros, as categorias que mobilizam, em seus discursos, para nomear, definir, avaliar suas próprias ações e as dos outros constituem dados importantes a partir dos quais podemos apreender como as fronteiras sociais e simbólicas são construídas e reconstruídas na vida social. Ao mesmo tempo, há uma tendência quase incontornável por parte dos indivíduos de idealizar seus comportamentos em situações sociais. Por isso, em situações de entrevista, é provável que os informantes recorram à produção de narrativas “honoráveis”, por meio das quais buscam transmitir uma imagem de si como indivíduos tolerantes, minimizando as diferenças de classe e evitando julgamentos ou o uso de categorias que impliquem hierarquização ou estigmatização. Mais: para os membros das classes superiores, apresentarem-se como pessoas tolerantes, “decentes”, igualitárias contribuiria, intencionalmente ou não, para a reprodução da legitimidade cultural e das fronteiras de classe (Sølvberg e Jarness, 2019, p. 23). Para que a situação de entrevista não se transforme em uma mera instância de produção de discursos complacentes ou condescendentes, é essencial que adotemos técnicas que permitam “extrair” as chamadas narrativas “viscerais”, aquelas carregadas de sentimentos de desgosto, julgamentos morais e estéticos, de categorias que produzem hierarquias entre grupos de pessoas11. A probabilidade de produção de tais narrativas “honoráveis” ou “viscerais” pode variar conforme o contexto: onde, com quem, de quem, do que se fala. Nos estudos de Sam Friedman sobre a estruturação social do gosto por comédia, por exemplo, seus informantes de frações superiores mais dotados de capital cultural construíam, em suas falas, fronteiras simbólicas baseadas na percepção da inabilidade de certas audiências de entenderem “formas mais elevadas” de comédia. Aparentemente, quando as pessoas falam sobre “o que as faz rir”, elas se sentem menos constrangidas em marcar distância com quem não compartilham seus gostos: “a comédia parece ter um poder único para definir fronteiras simbólicas, enraizado em sua conexão às propriedades sociais do humor…” (Friedman, 2014, p. 148)12. Neste sentido, tem sido cada vez mais relevante o emprego de múltiplas técnicas de pesquisa, que captem a complexidade das relações entre classe e distinção. Muito além de buscar saber as práticas raras e comuns, as que caracterizam mais o gosto de uma classe do que de outra, essas técnicas buscam nos ajudar a responder quais as práticas e os gostos mobilizados para a produção de fronteiras simbólicas. Em uma pluralidade de práticas e gostos que caracterizam a vida dos sujeitos, quais aqueles que se tornam, para usar outra expressão de Lamont, o repertório das diferentes classes nas lutas sociais. Ao fazer esse tipo de pergunta, deslocamos o capital cultural de seu aspecto distintivo para a temática do poder. Isso significa que o interesse recai na esfera da legitimidade de gostos e práticas. E, dessa forma, importa perguntar sobre as novas e antigas instâncias de legitimidade que marcam a esfera cultural. A legitimidade cultural na França de Bourdieu era altamente marcada pelo controle do Estado (operando nas escolas, nos museus, nas salas de concerto etc.), pelo gosto burguês e pela separação de alta e baixa culturas. O que ocorre com essas instâncias com o desenvolvimento da indústria cultural, da cultura produzida por empreendimentos privados e, em especial, pelos novos meios de comunicação, como a internet? A busca de respostas a perguntas como essa e outras que fizemos aparecem nos textos reunidos neste dossiê. A temática de novas configurações do capital cultural e formas de definição das fronteiras simbólicas são observadas no texto “Consumo e capital informacional nas lógicas de distinção entre os grupos dominados”, de Ana Lúcia de Castro. A autora leva o debate sobre a distinção para as classes populares e, nelas, a cultura de consumo. Seu objeto privilegiado de análise é o movimento hype, que envolve a adoção por jovens das classes populares de um consumo de bens restritos típicos do universo do luxo, mas ao mesmo tempo um afastamento das práticas mais legítimas desse universo e da classe dominante. A autora nota como nesse movimento o capital cultural é mobilizado não a partir de seus elementos tradicionais (como a “alta cultura”), mas a partir de um conhecimento da cultura digital que produz um capital informacional. Assim, é pela mobilização desse capital que os agentes do movimento hype são capazes de traçar as fronteiras simbólicas que os diferenciam de outros membros das classes populares. O capital cultural, ela argumenta, continua operando, mas sob formas não antevistas por Bourdieu. Mas se o capital cultural continua operando, sob novas formas, também deve haver instâncias que sejam fonte desse capital na contemporaneidade. Não é estranho à obra de Bourdieu observar o papel da escola e da língua nesse contexto. Contudo, a contemporaneidade exige que repensemos a escola, em especial em relação ao processo de globalização. A isso se dedica Miqueli Michetti no texto “Bilíngues, bilíngues de verdade e global citizens: distinção e disposições no mercado educacional”. O foco agora se volta para as classes altas e sua tentativa de buscar manter o valor do capital cultural que detêm. Para tanto, a inserção dessas classes em uma suposta cultura cosmopolita produz o efeito desejado. Os filhos da elite vão estudar em escolas em que não apenas aprendem uma língua estrangeira (o inglês, em geral), mas incorporam uma disposição cosmopolita e, com ela, a noção de que uma vida desterritorializada, voltada para o mundo, é superior. Dessa forma, em torno de noções que supõem o “bem”, como diversidade cultural, a valorização da diferença, a tolerância etc., o que na verdade se produz é um capital cultural, marcado pela disposição cosmopolita, que, mais uma vez, apenas a elite é capaz de adquirir. Ainda sobre o campo educacional brasileiro, Carlos Moris, Fernando Casselato, Matheus Nascimento, Gabriela Agostini e Luciana Massi mostram outro lado da atuação do capital cultural através de uma excelente aplicação do método de análise de correspondências múltiplas, que demonstra o efeito muito forte do capital cultural nas chances de sucesso no Enem e, portanto, nas chances de acesso à universidade, remetendo aos estudos bourdieusianos clássicos sobre o tema. O tema da distinção ligado ao capital cultural das elites muda de ares e nos leva ao Chile, onde Modesto Gayo e María Luisa Méndez mostram, através de métodos quantitativos e qualitativos, a existência de uma fragmentação ideológica na elite chilena, em contraposição a teorias que pressupõem um conservadorismo inerente a qualquer grupo no topo da hierarquia social. Aproveitando-se do momento de alta tensão e conflitos na sociedade chilena, o artigo estabelece correlações que sugerem uma clivagem entre grupos de elite que apoiam a mudança constitucional e querem um papel protagonista nesse processo, e outros que temem e gostariam de impedir mudanças profundas. Esses grupos, por sua vez, podem ser correlacionados a atitudes opostas no espectro político e ideológico. Do Chile, passamos para a Argentina e o texto de Alexandra Tedesco, um trabalho de sociologia histórica centrado na figura de Victoria Ocampo, escritora fundamental para a formação do campo intelectual argentino no século XX. Através de uma análise cuidadosa de sua trajetória, percebemos também a operação do habitus e do capital cultural incorporado na formação e reprodução de mecanismos de distinção da elite cultural argentina. A relação entre classe, cultura e política reaparece no artigo de Alana Meirelles Vieira, “Entre cultura e política: a distinção da produção de opinião na mídia”. Mobilizando de modo bastante frutífero os conceitos bourdieusianos de espaço social, habitus, campo e capital, a autora problematiza as tomadas de posição no mercado de produção política, centrado na mídia, considerando as homologias das posições e das trajetórias sociais dos agentes nos campos político, jornalístico, econômico e, mais amplamente, no espaço das classes sociais. Com base na análise de dados primários produzidos a partir de entrevistas em profundidade e de pesquisa documental, o trabalho contribui para dar corpo a uma vertente da Sociologia da Cultura que não se furta aos desafios de apreender os determinantes de classe, pela mediação do habitus, nas tomadas de posição política e ideológica. O texto de Michel Nicolau Netto e Bárbara Venturini Ábile propõe a tematização das homologias das hierarquias no campo da moda e no espaço das classes sociais, a partir da investigação empírica de dois eventos de colaboração criativa entre marcas de luxo e fast fashion, entendidos como instâncias empíricas do encontro entre o “sagrado” e o “profano”. Com base em dados produzidos por meio de pesquisa de material visual e de entrevistas em profundidade, os autores argumentam que tais colaborações pressupõem (e também reproduzem) o reconhecimento pelos agentes das hierarquias simbólicas e, portanto, do valor das marcas enquanto signos de distinção nesse subespaço simbólico. Por isso, os eventos de colaboração criativa servem também como uma instância de observação da luta de classes em torno da imposição dos modos legítimos de viver, luta em que as classes superiores quase sempre detêm os recursos necessários para a preservação da raridade relativa em que se assentam seus privilégios. Fechando o dossiê, apresentamos uma entrevista realizada por e-mail com o pesquisador norueguês Johannes Hjellbrekke, que nos traz observações muito interessantes sobre o uso da metodologia bourdieusiana para a produção de projetos de pesquisa no século XXI e a relevância contínua do conceito de capital cultural em nossas sociedades, já tão distantes da França das décadas de 1960 e 70 que Bourdieu investigou. Referências Bibliográficas Ábile, B. V.; Ferreira, T. A.; Miraldi, J. C. & Nicolau Netto, M. (2021), “A arte entre estilistas e chefs: os repertórios da arte e a delimitação das fronteiras na gastronomia e na moda”. CSOn-line: Revista Eletrônica de Ciências Sociais Anderson, Tammy L.; Grunert, Catherine; Katz, Arielle & Lovascio, Samantha. (2010), “Aesthetic capital: A research review on beauty perks and penalties”. Sociology Compass, 4: 564-575. Atkinson, Will. 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Corporeidades silenciadas: reflexões sobre as narrativas de mulheres violadas Corporealities silenced: reflections about the narratives of violated women Jane Felipe Beltrão Camille Gouveia Castelo Branco Barata Mariah Torres Aleixo Sobre os autores » Resumo » Abstract » Text» De traduções olvidadas e diálogos “surdos” » Os segredos da escuta » O veneno da dor » As categorias sobre violência: enredamentos na narrativa das mulheres » As categorias relativas à agência: a resistência das/entre mulheres » Entre oitivas e traduções » Por diálogos e justiças » Referências bibliográficas » Datas de Publicação » Histórico Resumo Refletir sobre as formas de narrar as violências enfrentadas por indígenas e quilombolas mulheres/mulheres indígenas e quilombolas é a proposta do texto para discutir a possibilidade de tradução etnográfica das categorias nativas em confronto com as categorias acadêmicas para referir as mulheres em situação de violência, identificando as agências das protagonistas. indígenas; quilombolas; violência Abstract Reflect about the ways of narrate the violence faced for indigenous and maroons women/women indigenous and maroons is the propositions of the article to discuss the possibility of ethnographic translation of native categories in confrontation with the academic categories to refer women in violence situations, identify the agencies of the protagonists indigenous; maroons; violence De traduções olvidadas e diálogos “surdos” No ensaio que hoje pode ser considerado clássico para o que se convencionou chamar Antropologia Jurídica ou Antropologia do Direito2 , Geertz (2013) enuncia que o Direito é construído à luz de saberes e artesanatos locais, isto é, tem a ver com a cultura na qual ele tem vida, onde “funciona.” Segundo o autor, há diversos sentidos de direito e justiça – o que ele denomina de sensibilidades jurídicas – as quais, no contexto contemporâneo, são obrigadas a conversar, em suas palavras, “... uma iluminando o que a outra obscurece.” (2013, p. 237) De acordo com essa afirmação, o estudo e a prática do Direito devem ser feitos por meio da tradução cultural, buscando compreender as sensibilidades jurídicas que estão em jogo nas contendas, seja aquelas levadas à justiça estatal, seja as que são discutidas e resolvidas à luz das normas comunitárias e, principalmente, as que caminham na fronteira entre tais normatividades. Partimos desse pressuposto para compreender as maneiras pelas quais mulheres indígenas e quilombolas/indígenas e quilombolas mulheres3 da Amazônia paraense resistem às violências do cotidiano e perscrutar suas sensibilidades em meio às situações de violência. Não se trata aqui de analisar estratégias de movimentos de mulheres indígenas e/ou quilombolas para conseguir alcançar suas reivindicações políticas, o que não deixaria de ser importante objeto de reflexão, mas sim de entender as próprias corporeidades das protagonistas como estratégias de resistência. Esta última, que pode parecer mais individualizada e circunstancial num primeiro olhar, ganha contornos coletivos quando se observa o compartilhamento de histórias, as redes de ajuda e solidariedade criadas pelas mulheres, entre outras agências, como veremos a seguir. Temos em conta que esse diálogo entre noções de justiça não ocorre com paridade de armas, pois o Estado brasileiro se constituiu olvidando etnicidades e engendrando políticas de homogeneização e integração dos grupos diferenciados à “sociedade nacional.” A conversa entre as sensibilidades jurídicas no país ocorre na forma do que Yrigoyen Fajardo (2011) denomina pluralismo jurídico subordinado colonial, isto é, de modo a não reconhecer noções de direito que não sejam as provenientes do Estado. Quando se pensa em questões relativas às mulheres etnicamente diferenciadas a questão se complexifica. A promulgação de leis específicas às mulheres, que consideram a violência como crime4 , fruto de anos de reivindicações e estudos promovidos por organizações e coletivos feministas, diz pouco sobre diferenças de ordem cultural, étnica e racial. Diante disso, compreender noções de violência bem como as estratégias de resistência das protagonistas se impõe. Os segredos da escuta Assim, nosso objetivo é refletir sobre as formas de narrar a violência que atinge os corpos das interlocutoras que pertencem a povos indígenas e coletivos quilombolas e debater acerca das possibilidades de tradução etnográfica a partir da identificação das categorias nativas que compõem a enunciação das interlocutoras, considerando as diferenciadas noções de justiça presentes entre as mulheres que emprestam seus depoimentos às autoras do texto. Para alcance dos objetivos, procura-se compreender como se dá a construção da corporeidade entre as mulheres indígenas e quilombolas/indígenas e quilombolas mulheres, pela possibilidade de demonstrar como o corpo se apresenta entre elas como território privilegiado de resistência e luta. A marca do presente trabalho são as reflexões que ressaltam e problematizam as categorias que integram a epistemologia e o olhar nativo sobre corpo e violência. Para os limites da reflexão proposta, é importante esclarecer que os depoimentos oferecidos pelas interlocutoras foram ditos às pesquisadoras em diversos momentos, os quais compreendem um lastro de 15 anos de pesquisa, sem que estas tivessem a intenção de trabalhar especificamente violência e violação de corpos, entretanto, os depoimentos foram como que aflorando pela impossibilidade – estatal e/ou comunitária – de oitiva das mulheres em situação de violência. Selecionou-se depoimentos de mulheres indígenas pertencentes aos povos Tembé Tenetehara5 , hoje moradores do município de Santa Maria do Pará, Xipaya6 e Kuruaya7 que vivem no médio Xingu e, no caso das quilombolas, selecionamos as interlocutoras moradoras das diversas comunidades localizadas no arquipélago do Marajó, também no estado do Pará. Destacam-se trajetórias e memórias que marcam de modo indelével o etnocídio praticado via colonização (Beltrão, 2012), que até o presente atinge os corpos e as vidas de pessoas indígenas e quilombolas via colonialidade.8 Nesse sentido, é latente na narrativa das interlocutoras a referência ao processo de expulsão territorial, sequestro de crianças indígenas e quilombolas pela ação missionária e/ou do Estado, tentativas reiteradas e violentas de genocídio, em face da tentativa de homogeneização e apagamento das pertenças. Vale, porém, ressaltar que a colonialidade incide de forma específica e brutal necessariamente sobre os corpos das mulheres, pois esta, segundo Lugones (2008) , se instituiu também como colonialidade gênero, que instituiu o sistema de gênero colonial/moderno, baseado nas dicotomias homem/mulher e público/privado, como o padrão. Isso ocultou sistemas de organização dos “mundos sexuais” nativos, em que muitas vezes as fronteiras entre masculino e feminino eram fluídas e as mulheres exerciam papéis importantes na vida coletiva. Não tratamos aqui de perscrutar esses sistemas “originais” e nem acreditamos que, hoje, isso seja possível. Porém, importa ter isso em consideração para um olhar etnográfico mais apurado. O ponto nevrálgico, locus em que os caminhos etnográficos se tornam mais “nebulosos”: ter o corpo marcado, como é o caso de indígenas e quilombolas mulheres/mulheres indígenas e quilombolas, pela violência física e sexual, muitas vezes infringida pelos próprios “parentes”, ou ainda por pessoas não indígenas e quilombolas, fato que mobiliza sentimentos como dor, sofrimento e vergonha. A possibilidade de ouvir (com tudo o que o ato da escuta representa para a Antropologia) implica em cuidados9 redobrados na interpretação de atos e falas que não são ditos a qualquer pessoa, nem em qualquer lugar. Os processos de violação dos corpos, vividos como eventos devastadores, segundo as interlocutoras, também formam seus modos de narrar, de liderar e de agir politicamente. De alguma forma, somos “ouvintes” privilegiadas, considerando a confiança com a qual fomos brindadas, portanto nosso compromisso com a ocultação das identidades é fato. O veneno da dor Veena Das (2008a), em seus escritos, problematiza a correlação entre dor e linguagem. Segundo a autora, por meio da expressão da dor, é possível sair da privacidade sufocante que ela produz na vítima. De acordo com Das (2008a), eventos devastadores produzem um tipo de conhecimento que só é alcançado pela experimentação do sofrimento, um conhecimento venenoso. Portanto, violências extremas não seriam apenas responsáveis pela destruição de vidas e corpos. Atuam, também, na construção de sujeitos e linguagens da dor. A enunciação da dor pede, portanto, admissão e reconhecimento, o que nem sempre ocorre. Trata-se, nos termos da autora, de sentir a dor no corpo do outro. Essa é a proposta ao fazer antropológico, requisitado de forma envergonhada, mas insistente por nossas interlocutoras. De acordo com Michael Taussig (1993), a reprodução da imagem dos povos indígenas como selvagens, irracionais e violentos é o que possibilita a propagação do terror colonial. E no caso dos coletivos quilombolas a estratégia de resistência e luta dos negros é imperdoável ao mundo colonial, afinal, os africanos são equiparadamente considerados, como os indígenas, pessoas desprezíveis. Trata-se uma operação mimética por parte do colonizador, que conduz a atos de extrema violência, não importando se esse imaginário é verdadeiro ou não. As culturas do terror criam, desse modo, o que o autor denomina como espaços de morte, nos quais indígenas, africanos e brancos viram nascer o Novo Mundo. Segundo Taussig (1993) o terror é o mediador por excelência da hegemonia colonial e acrescenta-se da discriminação presente em nossa sociedade. O autor afirma ainda que “... as culturas do terror são nutridas pelo entremesclar do silêncio e do mito.” (Taussig, 1993, 30) Os efeitos paralisantes e silenciadores do terror encontrariam na narrativa sua primeira possibilidade de cura. Quando decidiram falar sobre as violências que marcaram de forma mais ou menos severa suas trajetórias, nossas interlocutoras começaram a vencer a primeira imposição do terror, o silêncio. Como diz Maria Aparecida, quilombola, que por ser estudante universitária, escreveu seu depoimento: “não vou falar e também nunca escrevi, mas faço [o texto] porque não consigo explicar porque aconteceu comigo, talvez não haja explicação, e mesmo que tivesse jamais iria me fazer esquecer aquele homem imundo que me rasgou e tudo que aconteceu comigo. Neste caso, a forma de prevenção pra que não possa acontecer com outras mulheres é contar e contar do massacre que sofri. Mas para isso tenho que ter coragem para dar o testemunho, mas tenho muita vergonha por isso escrevo. Peço que a senhora conte, leve adiante, o massacre não pode continuar.” Para compreender o que diz Taussig (1993), traz-se à consideração e em complemento à Maria Aparecida, o depoimento de Maria Dolores, de pertença Kuruaya, que narra seu pânico no dia da violação, praticada dentro de sua casa, na frente do marido e das filhas, que à época tinham respectivamente oito anos e dois anos: “Dormi, como todas as noites, com meu marido e minhas filhas na minha cama. De madrugada acordei e levei o maior susto da minha vida, me deparei com um homem passando da sala pra cozinha, pois a porta do quarto ficava entre aberta durante a noite, então no primeiro momento imaginei que pudesse ser alguém de fora, pensei que fosse meu marido, então olhei na cama e vi as meninas e ele, percebi que tinha alguém na casa e não era o meu marido, ele dormia com as crianças. Logo depois minha filha de oito anos acordou e percebeu que eu estava bastante assustada e nervosa, então falei que tinha alguém na casa, pedi que ela não fizesse escândalo. Na hora, eu só pedia a Deus proteção pra minha família e, ao mesmo tempo, sem saber o que fazer e como agir naquela situação de angústia e muito muito medo.” Na sequência dos acontecimentos, Dolores se apercebe do perigo e evoca Deus: “... com toda Tua sabedoria me traz tranquilidade e, nas minhas orações, pedi que Deus fizesse aquela pessoa ter compaixão e não fizesse nada com meu marido e com as minhas filhas, eu coloquei minha vida nas mãos Dele. Eu dizia: Deus coloco minha família em suas mãos me proteja e me ilumine nesta noite, pois sei que corro perigo, me abençoe, te peço em amém. Dona a senhora já teve medo?” Dolores prossegue a narrativa, ofegante, e esclarece, “... agradeço todos os dias a Deus, eu esqueci parcialmente o fato, só que por mais que os anos passem, eu não consigo falar com as pessoas sobre o assunto, por medo e até mesmo vergonha.” O relato foi adiante, entrecortado pelo choro às vezes discreto, outras vezes convulsivo a ponto de interromper a narrativa. Ela segurava as minhas mãos10 com força, de certo ainda sentia pânico e as marcas corporais que se apresentavam vivas, intensas! O relato é bastante longo, mas importante para compreensão da dor, silenciada pelas circunstância e sobretudo pela vergonha. Diz a Kuruaya: “... trabalhei o dia inteiro, sou professora no bairro dos índios, local tomado pela violência. Nunca tive medo de nada. A casa é pequenininha. Toda noite eu tenho o costume de verificar portas e janelas, e nesse dia não foi diferente, entretanto nunca imaginei que alguém pudesse entrar na casa de alguém pelo telhado, por onde entrou o bandido. Quando me dei conta do perigo fingi que estava dormindo e observei por baixo do travesseiro que ele [o bandido] se aproximava e logo entrou no quarto meio agachado, ficando em volta do berço da minha filha. Chegou perto da cama e pôs a faca no meu pescoço, daí eu gritei e ele se debruçou em cima da cama fazendo ameaças, dizendo pra não gritar se não iria matar todo mundo caso eu não trepasse [mantivesse relações sexuais] com ele.” Dolores informou que ele estava visivelmente muito perturbado andando de um lado para o outro, parecia não saber o que fazer, aparentando transtornos. Tinha aparência de drogado, exalava mal cheiro, mas não parecia bêbado e nem cheirava a álcool. Ela continua: “... depois da ronda pela casa, ele saiu um momento do quarto e eu disse ao meu marido finge que dorme e cuida das meninas, pois ele vai voltar. Minha filha que estava acordada chorava muito e falei pra ela ficar bem caladinha como se estivesse dormindo foi o que ela fez, ficou quietinha abraçada à irmã e ao pai. Ele voltou e me obrigou a manter relações sexuais com ele. Sem saber o que fazer, pedia ajuda a Deus. Aquilo foi uma humilhação muito grande, na minha cama, com o meu marido vendo tudo e as minhas filhas então? Até hoje não sei “transar” como antes, a lembrança me perturba, tenho problemas, passo mal, meu marido não se conforma, reclama. Temo que me abandone por isso. Com os olhos distantes, como se voltasse à cena do crime, Dolores informa: “... pela conversa dele, percebi que ele não falava coisa com coisa, às vezes parecia tranquilo, daí a pouco se exaltava e com a faca na mão, junto do meu pescoço. Que medo! Quando ele falou que iria fazer sexo comigo, tornei a me apavorar e, na hora, pensei na família e o quanto seria pior se fossem com as minhas filhas, pensei que era melhor eu ceder do que ele fazer algo pior conosco, ele sentou na cama e falou que não era pra eu gritar, era melhor pra mim. Ele se serviu de mim duas vezes e perguntava, gostou cachorra, tu foste pega no dente, índia é tudo assim ... Eu desesperei, além de me usar me humilhava e minhas filhas e meu marido assistindo, acho que a pequena não acordou, nem sei ... quando percebi que ele tinha saído da minha casa parece que o mundo caiu sobre mim, não tinha reação de nada lembro que peguei o celular, mas não tinha condições de ligar pra ninguém, acho que ainda não tenho mundo.” Abalada, Dolores confessou que teve dificuldade de identificar o criminoso, mas o fez. Ele respondeu processo e foi condenado, o fantasma à época era a saída do agressor da cadeia. Ela ainda vive aos sobressaltos, pois se aproxima o final do cumprimento da pena. As categorias sobre violência: enredamentos na narrativa das mulheres Nos diálogos estabelecidos com as interlocutoras é possível detectar em seus depoimentos e mesmo discurso de indígenas e quilombolas, uma série de categorias a respeito de eventos que, do ponto de vista antropológico, poderiam ser definidos analiticamente como situações de violência, embora dificilmente nossas interlocutoras tenham usado explicitamente o termo violência, as protagonistas referiram-se a todo momento a situações que atingiam seus corpos individual e coletivamente. Os corpos são atingidos de forma coletiva na medida em que a corporeidade e construída socialmente e as violações são estruturais e não individuais, além de engendrarem dor e resistências. Os fatos narrados aproximam-se da definição de violência proposta por Paula Lacerda (2015) que a entende como: [...] um amplo conjunto de situações que poderiam ser percebidas, de outro ponto de vista, como ‘causadoras de sofrimento’, pessoas se apresentam como ‘vítimas de violação de direitos’, o que as transforma em sujeito e potencializa o alcance de suas reivindicações.” (2008, 28) A primeira categoria que se refere a tais processos diz respeito a violência enfrentada coletivamente pelo povo Tembé Tenetehara na Colônia Santo Antônio do Prata, educandário que recebia as crianças indígenas sequestradas de suas comunidades e apartadas de seus parentes para serem educadas, catequizadas e “civilizadas” com base na pedagogia cristã dos missionários Capuchinhos. Posteriormente, a Colônia foi transformada em Leprosário e a ameaça de contrair a doença afastou ainda mais os Tembé Tenetehara do território que tradicionalmente ocupavam. No período de instalação do Leprosário, conforme conta Dona Maria Joana, circulava na região o boato de que era possível curar a hanseníase se o doente comesse o fígado de uma pessoa saudável. Na época chegaram a ser encontrados na mata cadáveres com o fígado retirado, o que reforçava ainda mais o temor de que uma das pessoas a serem mortas pudessem ser Tembé Tenetehara. É desse cenário que emerge a categoria massacre: as interlocutoras constantemente reafirmam, ao dizer dessas memórias que “o nosso povo foi muito massacrado no Prata”. A noção de massacre parece elucidar mais enfaticamente os acontecimentos que a categoria violência, uma vez que as violações enfrentadas coletivamente pelos Tembé Tenetehara – ditos de Santa Maria – incluem espoliação territorial, epistemicídio, quebra dos laços de parentesco e, em última instância, o adoecimento e a morte dos membros do povo. O mesmo ocorre com as mulheres Xipaya e Kuruaya que, expulsas de seus territórios no médio Xingu, vieram à cidade e vivem presas a espaços, onde sequer podiam, há 10 anos, se declarar indígenas. Eram, como referem algumas das interlocutoras, impedidas de falar a língua materna, enfrentaram o massacre da discriminação, produzida pelo racismo que se apresenta em estratégias de dominação de ordem material e ideológica, utilizada pelas estruturas coloniais para manter status privilegiado de membros do grupo dominante, produzindo a perene subalternidade dos povos etnicamente diferenciados (Moreira, 2016 ), não fosse a luta que empreendem diuturnamente. No caso das quilombolas o massacre foi/é pesado e reproduzido nas diversas narrativas. A segunda categoria que diz de processos de violência é a de escravidão. Conforme explica Maria da Paz: “os antigos do nosso povo tratavam a mulher como escrava. Ela só servia para ter filho, cuidar da casa e da roça, ser usada pelo marido e trabalhar pro pai. Hoje não pode mais ser assim, mas muitos homens no nosso povo e de fora querem tratar as mulheres nessa escravidão.” A categoria escravidão parece dizer respeito a crítica que as mulheres indígenas fazem sobre a condição feminina dentro das diversas comunidades. O entendimento de que as mulheres eram e são tratadas como escravas, guarda em seu interior a reivindicação de que sejam entendidas como sujeitos, dotadas de direitos, vontades e voz. Tal categoria diz respeito a forma como as interlocutoras pensam a mulheridade e a crítica que fazem por não serem reconhecidas de tal forma. Entre as quilombolas a condição de escrava é mencionada por conta das avós e das bisavós, entretanto, algumas vezes, a condição passada é negada para não comprometer a luta e favorecer a discriminação. A terceira categoria nos parece a que possui maior tensão ao ser utilizada analiticamente: trata-se da categoria maldade. Durante muito tempo do percurso das pesquisas que apontavam para as categorias nativas, evitou-se conjecturar sobre a mesma, por receio de que escrever sobre o assunto pudesse “dar munição” para os antagonistas em relação aos povos tradicionais. Entretanto, ao buscar as noções de justiça que permitem a luta política das mulheres, a maldade atravessou o percurso da problematização. As interlocutoras com quem se dialogou nomeiam como “homens maus” aqueles que agridem seus corpos, física e/ou sexualmente. E, a essas agressões, as mulheres indígenas dão o nome de maldades. As quilombolas, algumas vezes referem-se às violações dos homens maus, como malinesas. Denominam malinesas às penas impostas, pelos encantados, a homens (e também à mulheres) que vivem fora das normas tradicionais, malinesas que trazem como consequência efeitos deletérios às relações sociais. Malinos são os encantados que castigam os transgressores com o mal, tornando-os perniciosos ao convívio social. Os encantados que “jogam a malinesa” vivem nas matas e nos cursos d’água e por serem donos dos espaços, exigem reverências e cumprimento de obrigações, nem sempre observadas pelos homens maus que terminam “malinando” com as mulheres (ou mulheres que malinam com homens). No caso da maldade ou da malinesa entre indígenas e quilombolas, uma e outra não integram a essência dos humanos, são tomadas pelas interlocutoras como condição que, dependendo do comportamento, pode ser afastada dos humanos, sempre que, arrependidos, voltem a cumprir as obrigações com os encantados. A tensão reside no fato de que muitas vezes os homens maus ou malinos podem ser companheiros das mulheres indígenas e quilombolas ou lideranças dos referidos coletivos. Duas situações parecem ilustrativas de como a categoria maldade é posta em ação. A primeira delas diz respeito a história contada por Maria Laura, que teve a filha Maria Conceição sequestrada por um homem que circulava na comunidade. A menina passou oito dias em cativeiro submetida a violência física e sexual pelo agressor. Por fim, depois de espancá-la quase até a morte, o criminoso abandonou-a sozinha na casa onde a escondia. Embora Maria Conceição tenha sido encontrada com vida e acolhida sob o modo Tembé de cuidar do corpo, a marca da violência permanece para o resto da vida e o fato de o agressor ter muito dinheiro, à época, assegurou-lhe a impunidade. Ao contar a história de sua filha, Maria Laura referiu-se ao criminoso como um “anjo mau”, aproximando-o do mito bíblico que conta a história de Lúcifer. A mesma categoria foi utilizada pela filha de Maria da Paz, Maria Lídia, para referir-se ao seu pai. Na época ele se encontrava doente, com desmaios e fraquezas constantes, e as causas não puderam ser identificadas pelos médicos que a família procurou. Maria da Paz, desde que a conhecemos, narra as agressões cometidas pelo marido, que espancava ela e os filhos e dizia constantemente a todos palavras duras, que “machucavam” quem as ouvia. Conversando com Maria da Paz e Maria Lídia, a filha afirmou que a doença do pai era um “castigo por todas as maldades que ele fez com a gente”, com o que Maria da Paz concordou. A noção de maldade parece ter um sentido diferenciado para as mulheres indígenas se comparada aos usos que assume na sociedade dita ocidental. Enquanto no ocidente a maldade é frequentemente tomada como propriedade de pessoas perversas, entre as protagonistas indígenas a categoria parece se aproximar do que a Antropologia e os movimentos de mulheres tem chamado de machismo ou violência de gênero. Atentar para o uso diferenciado do termo pelas interlocutoras só foi possível em função do envolvimento etnográfico no contexto em que estas se inserem e por meio do diálogo e inflexão mantida pelas autoras. Por fim, a última categoria percebida como o sinônimo nativo para a violência é a de machucar. Frequentemente usada na sociedade ocidental para designar ferimentos físicos, sejam acidentais ou infringidos, machucar entre as mulheres indígenas refere-se ao ato de dizer palavras ofensivas e duras, que atacam a honra e o caráter das pessoas atingidas. Nos relatos de violência dentro das relações com os maridos – sejam eles indígenas ou não – as interlocutoras afirmam que as palavras duras são tão dolorosas e machucam tanto quanto agressões físicas. Tendo em conta a lei brasileira sobre violência doméstica, temos que o “machucar” talvez possa ser compreendido como violência psicológica11 , uma entre as possibilidades de violência contra a mulher, deslindadas nesse diploma legal. Entre as quilombolas há narrativas que informam que as palavras ofendem mais que serem marcadas por paus, chicotes e outros instrumentos de agressão. As marcas físicas podem ser tratadas, curadas, mesmo que levem tempo, mas as marcas dos machucados ferem a alma (para além do corpo) e permanecem na memória das interlocutoras e nada nem ninguém faz desaparecer. Abaixo as correspondências relativas às categorias éticas e êmicas. Thumbnail Quadro 1 : Categorias éticas e êmicas sobre violência As categorias relativas à agência: a resistência das/entre mulheres Uma das principais questões que se tornaram visíveis no diálogo com as interlocutoras diz respeito ao fato de que as violações que atingem os corpos das mulheres jamais foram aceitas de forma passiva, elas não se deixam paralisar. Os processos de agência – aqui utilizada no sentido atribuído por Pierre Bourdieu (1983) e Anthony Giddens (1984) – e resistência, sempre estiveram presentes nas trajetórias das indígenas e quilombolas. O silenciamentos via etnocídio atingiu seus corpos e vidas, mas não se consolidou na medida em que as protagonistas sempre estiveram dispostas a buscar alternativas e resisitir. É com o intuito de romper com o etnocídio e a destituição da memória de seus coletivos que as mulheres indígenas ou quilombolas contam histórias de extrema violência no contexto da pesquisa; supomos que elas acreditam que por meio do registro na produção antropológica, as interlocutoras mantém a expectativa de que as memórias não sejam esquecidas nem apagadas, mas que, pelo contrário, permaneçam vivas na luta por direitos coletivos e por reconhecimento. Relatar as estratégias de agência e resistência e o protagonismo das interlocutoras frente a situações de poder assimétricas coaduna-se com o objetivo de “contar para prevenir”, como disse Maria dos Anjos, há anos, quando em uma roda de conversa aconselhou as jovens presentes: “... não guardem segredos, eles envenenam a vida. Não façam como eu que evitei contar as malinesas, daí não consegui domei os maus [homens] da minha vida. Nem os de casa, nem os da rua e ninguém deve machucar nossas almas, somos pessoas, [e olhando firme as meninas moças da roda] devemos reagir, assim as malinesas vão pra longe da comunidade.” De fato, contar a história parece uma das principais categorias que distinguem a agência das mulheres diante da violência sofrida. O trabalho das autoras, membros da equipe de antropólogos do Grupo de Pesquisa Cidade, Aldeia & Patrimônio só teve início a partir do convite dos membros da comunidade para que os pesquisadores escrevessem a história do povo Tembé Tenetehara e de outros povos indígenas e quilombolas, como informamos à partida. Quando na comunidade, muitos pesquisadores foram “intimados” a entrevistar os membros mais velhos da comunidade, para garantir que as histórias que estes se lembravam fossem registradas antes que se perdessem com seu falecimento. Maria Laura, com o início das pesquisas na comunidade, decidiu começar a escrever diários, onde poderia registrar suas memórias pessoais e coletivas e repassar para os pesquisadores do grupo. Outra categoria importante nos processos de agência das mulheres indígenas, especialmente as Tembé, é a do cuidado. Conforme elucida Maria Laura: “... o nosso povo foi muito massacrado no Prata. Morreu muita gente. A gente jamais podia dizer que era índio, até hoje nós vivemos discriminados. Hoje tá muito melhor, a gente vive junto, faz nossas festas, cuida uns dos outros e o nosso povo se alegra. Mas vive com a discriminação. Não podemos usar uma roupa, que já dizem que nós não somos índios. Eu vou dizer que eu sou uma portuguesa, sendo que eu não sou? Até tem gente que diz, mas eu não digo. Eu digo o que eu sou, eu sou Tembé. Mas tem que viver com a discriminação.” Ao contrário da visão de cuidado amplamente discutida na literatura produzida na área da Enfermagem, pautada na atenção e medicalização de pessoas com doenças, ou deficiência, o cuidado tembé e das demais etnias é holístico e alimenta o corpo de forma completa, por meio do sistema tradicional de ação para saúde, que contempla não apenas o cuidado com o corpo, mas a proteção espiritual, e as lutas políticas por uma vida melhor, que acarretam uma corporeidade saudável. E esse corpo não se estrutura desconectado do ser indígena, com toda a carga política e epistemológica que a identidade enseja para as tembé, xipaya e kuruaya. Cuidar de si e dos seus implica em se proteger de violações e fortalecer o grupo para que as lutas políticas possam ser continuadas. Nesse sentido, o cuidado de si constitui um empreendimento que conforma resistências políticas, materiais e epistemológicas, em um contexto no qual o corpo vem à cena tanto como território de lutas e afirmações identitárias, quanto como alvo de opressões e estigmas. Com as mulheres quilombolas a situação é semelhante, sempre que alguém se machuca a cura vem via sistema tradicional de ação para saúde, mesmo que a pessoa machucada e violada receba atendimento dentro do sistema ocidental de ação para saúde. Outra categoria percebida como forma de agência das mulheres nas tensões que envolvem os maridos diz respeito a educação dos filhos. Segundo Maria Laura: “... a mulher é que educa o filho. Se ela não mandar ele ir lá, tomar a bença do pai, fazer um carinho no pai, ele não vai, não, fica na dele. Foi por causa de um dos meus filhos que meu marido parou de me bater. Um dia, ele era novinho, magro, magro... Ele virou pro pai e falou: “O senhor nunca mais vai bater na mamãe, hoje foi o último dia”. O pai perguntou: “E o que tu vai fazer?”. E ele disse: “Eu não sei, mas o senhor não encosta mais um dedo nela”. Depois disso, nunca mais ele me bateu.” Uma das filhas de Maria Laura, ao ver o pai com outras mulheres na rua: “... fazia um escândalo, batia nela. Uma vez enchi as coisas da mulher de areia, ficou tudo sujo. Depois ele metia a porrada em mim quando chegava em casa, mas eu nunca deixava barato.” Atualmente as crianças que na infância enfrentaram os pais em defesa de suas mães, criam redes de apoio e acolhimento das indígenas mulheres em situação de violência, seja recebendo-as em suas casas, rezando por elas ou conversando com os maridos e, muitas vezes constrangendo-os perante os demais parentes. Maria José, quilombola da comunidade Maria me ajude constrangia o marido, mostrando de casa em casa os ferimentos produzidos pelas surras que levava, porque teimava em estudar. A peregrinação de casa em casa produzia o recolhimento do agressor que, alcoolizado, tinha produzido as maldades, malinado a protagonista. Por fim, a última categoria percebida como característica da agência empreendida pelas mulheres tembé em relação a violência diz respeito ao processo de fechar o corpo. Prática também verificada entre as quilombolas. Em um contexto em que as violações de direitos ocorridas em hospitais são reais e prováveis, fechar o corpo contra coisas ruins é essencial. Entre as práticas frequentes, temos: rezar na cabeça de criança com febre; ministrar ervas medicinais para pessoas que adoecem ou são envenenadas; manter a gravidez ou interrompê-la quando as vidas da mãe e da criança estão ameaçadas; são exemplos de saberes e fazeres acionados no agenciamento de situações consideradas de risco, em que se sabe que o acesso ao sistema ocidental de ação para saúde não responde satisfatoriamente ou há dificuldades em acessá-lo. Fechar o corpo entre os povos tradicionais implica proteger as pessoas da comunidade tanto no plano físico quanto no espiritual. Os rituais podem ou não estar relacionados à alguma forma de religiosidade indígena afro-brasileira ou ocidental. Uma das interlocutoras, reconhecida “por ser uma das mais antigas dos nossos antepassados”, entre os Tembé, relata que nos tempos antigos, quando houve grande incidência de hanseníase na região, ela conseguiu paralisar o avanço da doença no corpo de uma das pessoas da comunidade utilizando as propriedades do mucuracaá, uma planta medicinal que também é utilizada entre os tembé para combater o mau-olhado. Outras indígenas afirmam que uma mulher grávida que estivesse sob os cuidados de Maria Carmen estaria em boas mãos, uma vez que ela acompanhava a gestação desde os primeiros meses até a hora do parto, no qual a mulher era virada de lado e dava a luz enquanto a interlocutora rezava em sua barriga. Despois do parto, a profissional de saúde permanecia na casa da parturiente até o resguardo terminar, portanto eram quarenta dias de cuidados diferenciados. Durante uma das idas a campo, a mãe de uma criança que havia nascido há pouco tempo encontrava-se aflita, pois o bebê não parava de chorar e não costumava ser assim. Nesse momento, Maria Carmen, sogra da mãe da criança, entrava na casa e, ao se dar conta da situação, perguntou se a menina havia ido tomar banho de igarapé. Como a resposta foi afirmativa, a interlocutora disse: “... minha filha pegue alho, amasse e misture com álcool e deixe um tempo. Depois passe com o dedo na palma da mão da neném, na sola do pé, no braço e na coxa, em forma de cruz. Vai ficar um cheirinho ruim, mas não tem problema, ela vai melhorar. Ela deve ter visto alguma coisa no igarapé, criança é muito sensível, parece um pintinho novo. Quando eu era pequena, minha tia levava a gente pro igarapé, mas ela entrava primeiro, pedia licença pra mãe da água pra gente entrar e jogava o alho na água, aí o banho era sossegado.” O alho é antídoto (combate o veneno) para os encantados que “jogam malinesa” quando as pessoas não reconhecem as regras, que não se referem apenas aos espaços de domínio dos mesmos, mas às horas proibidas do dia e da noite. A paçoca de gergelim preto “pisada” com hortelã é utilizada para “botar pra fora” (as indígenas não utilizam o termo “aborto”, as quilombolas usam expulsar), principalmente quando a gravidez ameaça a vida da mãe ou quando o parto é de risco. Para mulheres grávidas que sentem dores, ministra-se chá de gengibre. Para inflamações, especialmente em casos de problemas de próstata, o caroço de abacate mostra-se eficaz. Crianças, quando morrem antes do batismo, segundo os católicos, choram durante sete dias e precisam ser batizados para que “descansem”. A última prática mostra-se elucidativa da forma tembé de pensar a construção da “pessoa”, a partir do ato de batizar a criança morta. Para os Tembé Tenetehara não se deve negar às pessoas mortas, quando oriundas de famílias cristãs, o direito ao ritual de batismo que as forma e legitima. As situações acima descritas, integrantes das observações de campo, revelam que mesmo enfrentando situações de precariedade e violência, as mulheres exercem seu protagonismo, instituindo o “ser sujeito” e encontram alternativas para agenciar situações de violência. O corpo e as múltiplas corporeidades que coexistem entre as interlocutoras são territórios privilegiados da resistência de indígenas e quilombolas mulheres e das formas de cuidar de si mesmas. Thumbnail Quadro 2 : Categorias êmicas e éticas sobre agência Entre oitivas e traduções Os diálogos em campo demonstram que os atos e falas das interlocutoras são ferramentas importantes para a compreensão de suas realidades. Ao mesmo tempo, analisar o discurso no contexto das relações antropológicas passa a ser um desafio, na medida em que aponta para a necessidade de proceder o controle das dificuldades de tradução etnográfica, dos etnocentrismos ocidentais e do viés da colonialidade vigente. Em trabalho de grande influência e repercussão, Gayatri Spivak (2010) questiona criticamente a (im)possibilidade de fala de determinados grupos. A autora constata que os subalternos em geral, e o sujeito historicamente emudecido, a mulher subalterna em particular, foram e são, ao longo da história, mal compreendidos ou mal representados pelo interesse pessoal dos que têm poder para representar. A proposição instigante de Spivak (2010), além de elucidar silenciamentos, colonialismos e violências, também aduz escutas anti-hegemônicas, epistemologicamente desobedientes, pós-coloniais. Inspirada pela reflexão provocativa da filósofa indiana, Lacerda (2014) considera que em meio a tentativas de silenciamento, os grupos e sujeitos subalternizados – e esse é um deslocamento analítico fundamental para que a subalternidade não seja entendida como lugar paralisante e intransponível – estão falando. Superando a perspectiva colonialista que pretende “dar voz” aos grupos subalternizados por meio da pesquisa, Lacerda (2014) tensiona a questão que orienta Spivak (2010): como o não subalternizado, o privilegiado, pode escutar? As posições teórico-epistemológicas (que também possuem caráter político) adotadas na presente discussão objetivam favorecer a escuta etnográfica mais responsável, capaz de superar estereótipos de passividade e compreender indígenas e quilombolas como sujeitos de suas próprias histórias. A estruturação do olhar antropológico sobre o campo, em diálogo com os conceitos e categorias referidas, foi essencial para compreensão das interlocutoras como protagonistas de suas próprias histórias, não como vítimas passivas, desagenciadas e paralisadas diante de violações. Qualquer procedimento em sentido contrário seria uma prática etnocêntrica. Atentar para as narrativas das mulheres indígenas e quilombolas, a partir do que foi explicitado, é um esforço que vai além de retomar o protagonismo de vozes subalternizadas. Trata-se de uma tentativa de constituição de possibilidades de outra epistemologia, outras referências e sensibilidades, diferentes das que o pensamento colonial afirma serem as únicas dignas de serem aprendidas e respeitadas. A partir das falas desses sujeitos, confrontamos a tentativa histórica de epistemícidio (Santos, 2010) e assimilação que incide sobre os povos indígenas e quilombolas, e, mais especificamente sobre mulheres indígenas e quilombolas/ indígenas e quilombolas mulheres. Trata-se de uma opção metodológica que abriga dimensões e responsabilidades políticas, de contemplar enunciações ditas e tomadas como periféricas e arbitrariamente alijadas pelo pensamento ocidental e colonial. Por diálogos e justiças A diversidade das agências e possibilidades de justiça nos permite esterçar para diferentes lados saindo dos limites de nossos axiomas, verdades que consideramos inquestionáveis e supostamente válidas universalmente. Axiomas estes que muitas vezes são utilizadas como princípios que mantém privilégios de uns em detrimentos de outros secularmente subalternizados. Não se trata de atribuir valor superior aos conhecimentos tradicionais ou mesmo de aderir a eles, mas de considerá-los em diálogo para produzir a melhor justiça, sem diluí-los na ciência desenvolvida na academia. A importância das reflexões que se faz é tentar indicar que as agências das mulheres e modos diversos de conhecimentos, é indicar também que se pode pensar de outro modo e que os variados sistemas de justiça precisam, de fato, dialogar. Sabemos que os estudos acerca da violência de gênero no país muitas vezes utilizam o termo violência sem muita precisão, como se violência doméstica, violência intrafamiliar, violência contra a mulher, entre outros, fossem capazes de abarcar reflexões sobre realidades diversas. Fazer o esforço de compreender noções êmicas do termo afasta o perigo da reificação e induz a “diálogos ouvintes”, que postulamos aqui, em contraposição aos “diálogos surdos.” Ainda sobre a questão dos termos utilizados para abordar a violência, contemporaneamente tem se preferido falar em mulheres em situação de violência ao invés de violência contra a mulher, para indicar que a violência é transitória e não um destino que as mulheres devem cumprir (Campos, 2011). Além disso, a mudança de termo e, por conseguinte, de enfoque, impele a pensar a questão fora do molde algoz versus vítima, possibilitando compreender que, mesmo sendo vítima, especialmente num sentido jurídico-estatal, não significa não ter poder e força de resistir. As narrativas e corporeidades de mulheres indígenas e quilombolas/ indígenas e quilombolas mulheres desafiam compreensões do senso comum sobre situações de violência e nos fazem compreender que vítimas são sujeitos. Dessa forma, como sujeitos que são, devem poder acionar sistemas tradicionais de justiça ou mesmo a “justiça dos brancos”, como dizem algumas. Porém, a colonialidade, especialmente a de gênero (Lugones, 2008 ) cria contextos em que os dois lados olvidam as demandas pelo fim de maldades e malinesas. Referências bibliográficas ALEIXO, Mariah Torres. 2015. Indígenas e quilombolas icamiabas em situação de violência: rompendo fronteiras em busca de direitos Dissertação de mestrado, Programa de Pós-Graduação em Direito, UFPA. (Inédita) BELTRÃO, Jane Felipe. 2012. Histórias ‘em suspenso’: os Tembé ‘de Santa Maria’, estratégias de enfrentamento do etnocídio ‘cordial’. Revista História Hoje, São Paulo, v. 1, no 2, p. 195-212. BOURDIEU, Pierre. 1983. Esboço de uma teoria da prática In: ORTIZ, Renato (Org.). Pierre Bourdieu: sociologia São Paulo: Ática, p.46-81. BRASIL. 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ADVOCACIA E LUTAS EMANCIPATORIAS:O QUE HA DE POLITICO NA ADVOCACIA? SYLVIA ROMANO 13 DE AGOSTO DE 2022 | BASES DA LEGITIMIDADE DEMOCRATICA Advocacia e lutas emancipatórias: o que há de político na advocacia?Sylvia Romano ter., 17 de ago. de 2021 08:40Responderpara mimAdvocacia e lutas emancipatórias: o que há de político na advocacia?Advocacy and emancipatory struggles: what is the politics in advocacy? Resumo Abstract TextIntrodução 1. A advocacia frente à luta abolicionista da escravatura na justiça do Brasil imperial 2. A advocacia frente às lutas emancipatórias no período republicano contemporâneo Conclusão Referências bibliográficas Datas de Publicação HistóricoResumoO estudo aborda o que há de político na advocacia e seu papel nas lutas emancipatórias. O objetivo é explorar mais do que uma atuação técnica da advocacia, mas sobretudo realizar um estudo comparado em diferentes momentos de dois períodos históricos brasileiros: no Império (1822-1889) e na República (1889-). Por um lado, com documentos oficiais do arquivo público sobre a advocacia frente à luta abolicionista da escravatura na justiça do Brasil imperial; por outro, com testemunhos de advogados frente às lutas emancipatórias no período republicano. O tema da mobilização de direitos é trabalhada dialogando com Charles Tilly e as ideias da teoria da ação coletiva e da política contestatória. A conclusão é que mobilização de direitos pode ser entendida como uso político do direito para a transformação social.advocacia; mobilização de direitos; movimentos sociaisAbstractIt’s a study of what’s there of political in lawyer or about lawyer in emancipatory struggles. The objective is to explore more than technical performance of lawyer, with a comparate study at different moments of two Brazilian historical periods: in the Empire (1822-1889) and in the Republic (1889-). On the one hand, with official documents from the public archive on lawyer in the face of the abolicionist struggle of slavery of Brazilian Empire justice; On the other hand, with testimony of lawyers regarding the emancipatory struggles in the republican period. The issue of rights mobilization is worked out in dialogue with Charles Tilly and the ideas of collective action theory and contentions politics. The conclusion is that rights mobilization is a political use of law to social transformation.lawyer; rigths mobilization; social movementsIntroduçãoFinda a escrita das teses e passado algum tempo de sua depuração, chega o momento de colocar em debate seus argumentos em perspectiva comparada – menos no sentido da tradição das Ciência Sociais, mas segundo o entendimento mais amplo de confronto ou contraste de ideias e fatos com o objetivo de construir argumentação que procura enfatizar igualdades ou diferenças. Ricardo Falbo (2004) trata em sua tese Contradições e ambiguidades no Brasil imperial: o dilema dos advogados na justiça da advocacia frente à luta abolicionista, do momento da instalação da Família da Real no Brasil (1808) à promulgação da Lei do Ventre Livre (1871). Os dilemas consistem em posturas ora liberais, ora conservadores, ora abolicionistas ou ora escravocratas. Aqui, ela é apresentada basicamente quanto à descrição de situações históricas, com o objetivo de garantir a identificação de elementos que ajudem a identificar o político como dimensão da advocacia imperial e problematizar esta mesma dimensão quanto ao período republicano.Luiz Otávio Ribas (2015) em Direito insurgente na assessoria jurídica de movimentos populares no Brasil pesquisa a advocacia profissional frente às lutas emancipatórias, no momento do Golpe civil-militar de 1964 à atualidade. Especialmente, posições marginalizadas como a de advogados de perseguidos políticos e de movimentos populares. Seus dilemas também são explorados, no que são ora contestadores, ora legitimadores do sistema; ou então ora democráticos, ora revolucionários. São referências de períodos complexos, mas que observadas em contraste podem evidenciar suas diferenças e semelhanças, para responder sobre o que há de político na advocacia.O objetivo deste texto é refletir sobre a advocacia no contexto de lutas políticas emancipatórias. Neste sentido, pensar a opressão/emancipação junto com a advocacia comparativamente nos contextos históricos do Brasil Imperial e atual. O sentido é usar fragmentos de uma situação histórica passada para pensar questões mais contemporâneas e demonstrar que estas não são só de hoje. O argumento é de que a advocacia não é uma atuação meramente técnica-jurídica, mas vai além disto. Mas, uma luta por dentro e por fora da advocacia, com recursos nem sempre jurídicos, mas politizados, ou politizáveis, desqualificados por vezes em função disto.Uma das questões centrais no estudo da sociologia jurídica permanece sendo seu objetivo e metodologia, no contexto mais amplo das ciências sociais aplicadas. As relações mais complexas seguem sendo as que envolvem o direito e a sociedade, uma sociedade que produz o direito e um direito que regula a sociedade. Neste sentido são construídas propostas metodológicas que carregam múltiplos objetivos, como as visões internalistas, as externalistas, ou as que busquem ir além dos posicionamentos do olhar sobre estas relações. Busca-se aprofundar o estudo daquelas abordagens que tenham como objetivo a crítica. Esta é necessária na produção e criação do conhecimento das relações sociais também no âmbito da crítica ao Direito. Por outo lado, repensar o direito requer também a autocrítica sobre sua teoria – o problema no âmbito tradicional da Dogmática Jurídica tem sido confundir o direito com a lei. A sociologia jurídica propõe a interpretação das normas jurídicas no contexto das relações sociais.Parte-se da ideia segundo a qual a sociologia jurídica é a tradução de um projeto interdisciplinar, de criação solidária de um conjunto de práticas científicas e de modelos analíticos (FALBO, 2011). Esta é a condição para superar a especialização e a ideia de que toda disciplina se constitui e se desenvolve com referência a uma unidade de objeto, já que sequer pode dizer tudo de seu objeto. Neste sentido, “A sociologia jurídica como projeto interdisciplinar se caracteriza pelo fato de rejeitar os limites considerados excessivamente restritivos da sociologia e do direito e de buscar a superação destes mesmos limites” (2011, p. 14).Ao problematizar o que há de político na advocacia, enfrentam-se questões tais como a maneira pela qual as mobilizações por direitos instrumentalizadas pela advocacia podem restringir a amplitude da luta política. Ou então como a percepção dos advogados sobre as desigualdades sociais influencia no funcionamento da advocacia num determinado período histórico. Isto é válido principalmente para a advocacia no Brasil referida ao período republicano.Na justiça do Brasil imperial, as questões estão referidas às contradições e ambiguidades da sociedade que tinham por fundamento as desigualdades socialmente hierarquizadas e que se manifestavam através do dilema que os advogados revelavam quando defendiam os direitos e interesses de senhores e escravos. Este dilema traduzia a contradição ou a dificuldade que os advogados enfrentavam para harmonizar o ideal da liberdade e a realidade da propriedade. Eles afirmavam que o homem era livre por natureza e que a escravidão era um fato histórico consagrado pelo direito. Porém, este dilema não era vivido e percebido pelos advogados da mesma forma. Os advogados dos senhores reconheciam que a escravidão era odiosa na mesma medida em que viam a libertação dos escravos como sendo perigosa para o País. Os advogados dos escravos ressaltavam que a escravidão atingia a dignidade do homem, porém eles defendiam a liberdade em referência ao direito de propriedade. Aqueles pensavam a libertação dos escravos de forma gradual e transferiam para um legislador futuro o fim da escravidão. Estes consideravam legítimo o fim imediato do cativeiro em função da história dos povos civilizados e usavam a justiça como meio de libertação dos escravos.Uma das primeiras lições sobre advocacia popular veio justamente na defesa de pessoas escravizadas. Quando além de um dever, observa-se o engajamento em uma causa por considerá-la justa, embora a função do advogado não fosse defender a causa do cliente como sendo a sua própria causa. Este fora um pressuposto da advocacia no século XIX, que se perde como regra geral com a profissionalização no século XX.Estas ideias dialogam com a noção de mobilização de direitos. Na chave da sociologia histórica e dos elementos mediadores da ação coletiva e da política contestatória, Charles Tilly, na obra From Mobilization to revolution (1978), aborda o processo revolucionário, a linha que vai desde a organização para mobilização, da ação coletiva para a revolução, especialmente a mobilização para a revolução. Assim, é preciso aproximar a ideia de emancipação da de revolução.Tilly preocupa-se com duas questões, a partir de Karl Marx. Primeira: como os interesses compartilhados, a organização geral e a mobilização atual de um acordo afetam a capacidade dos membros agirem juntos. Segunda: como estas relações atuais para o governo e para os poderes afetam os cursos e retornam em cada oportunidade para agir em aspirações comuns. Em relação aos interesses, a linha marxista trata a mutável organização da produção que cria e destrói classes sociais, com que são definidas por diferentes relações para significados básicos da produção. Fora da organização da produção surgem diferenças fundamentais de classe de interesses. Uma classe age junta para estender o que é extensivo da organização interna e para estender o que é de interesse acordado (p. 59-60).O estudo da ação coletiva seriam algumas considerações dos meios que as pessoas agem juntas na perseguição de interesses compartilhados. Seus componentes seriam interesse, organização, mobilização, oportunidade e ação coletiva propriamente ditos. Na maior parte, os interesses dizem respeito aos nossos ganhos e perdas resultantes de interações num grupo com outros grupos. A organização diz respeito ao incremento na identidade comum e/ou estruturas unificadores de um grupo que diretamente afetam a capacidade de agir sobre estes interesses. Mobilização é o processo em que um grupo adquire controle coletivo sobre os recursos necessários para ação (poder de trabalho, coisas, armas, votos, entre outros). Oportunidade concerne ao relacionamento entre um grupo e o mundo em volta dele. Ação coletiva consiste em pessoas agindo juntas e perseguindo um interesse comum – resulta da combinação de interesses, organização, mobilização e oportunidade (TILLY, 1978: 7).Neste sentido, programas de mobilizações de grupos envolvem os componentes de acumular recursos; incrementar as reivindicações coletivas para reduzir competição, alterar o programa de ação coletiva e mudar a satisfação de participação no grupo. Mobilizações vitoriosas reúnem estas ideias, podem ser grupos defensivos ou ofensivos de preparação para mobilização. Mobilização refere-se à aquisição de controle coletivo sobre recursos, mais do que um simples acréscimo de recursos (TILLY, 1978: 73-78).Fazer a costura da crítica ao direito com a da ação política e a da política contestatória é o objetivo deste trabalho, que busca realizar esta aproximação com base na ideia de mobilização de direitos.Para justificar o uso desta expressão é preciso abrir um breve diálogo com o ramo dos estudos sobre mobilização legal ou mobilização do direito e mobilizações do direito ou ativismo de direitos. Abordam-se dois estudos que também apresentam preocupação em relacionar o tema com as profissões jurídicas, seja o Ministério Público, seja a advocacia. A preocupação comum é da mobilização política do direito e tribunais, em demandas de ampliação ou reconhecimento de direitos.Cristiana Losekan (2013) aborda a mobilização do direito, ou mobilização legal, em relação ao redesenho das instituições de justiça, como repertório de ação coletiva e de sua relação com as instituições participativas. Neste sentido, observa aumento da judicialização dos conflitos socioambientais no Brasil, ao analisar a percepção dos atores de que a arena judicial pode ser acionada, como enforcement (ameaça) ou um efeito simbólico. Considera que as janelas de oportunidade podem possibilitar o surgimento de uma ação coletiva que se torna um repertório, a abertura dessas janelas oferecem incentivos à mobilização legal, articulando distintas performances de ação coletiva. Como exemplo, cita a ampliação do acesso com a criação da lei de Ação Civil Pública, no final dos anos 1980, que permite que associações civis de proteção ambiental entrem diretamente com ação judicial, assim como o Ministério Público. Conclui que a mobilização legal gera efeitos que redesenham as próprias instituições de justiça.Débora Maciel (2011) estuda mobilizações do direito, ou ativismo de direitos, nos tribunais e normas jurídicas, como estratégia de mobilização de movimentos sociais e organizações civis. Busca responder quando, por que e como ativistas tomam normas jurídicas e tribunais como recurso e estratégia de mobilização. O trabalho apresenta o mapeamento dos grupos de defesa de direitos no Brasil, ou ativismo de direitos. Também levanta algumas características como a diversificação de formas organizacionais, crescente inserção de advogados nas redes de mobilização e internacionalização do ativismo com conexões com redes e instituições globais. Um dos focos de seu estudo foi o caso Maria da Penha, que, na sua visão, exprime dois fenômenos sócio-políticos: “primeiro, o uso dos tribunais, nos âmbitos global e nacional, como estratégia política de grupos e movimentos sociais; segundo, a expansão do direito, em particular do direito penal, como instrumento de resolução de conflito e de mudança social” (2011, p. 97). Assim como Losekan, Maciel também percebe uma estrutura de oportunidades políticas, desde os anos 1990, com incentivos e recursos para a mobilização política do direito e dos tribunais. A ênfase está na pergunta sobre como as mobilizações de direito alcançariam uma mudança social.As autoras baseiam-se em Charles Tilly (1978) para analisar a relação entre política de confronto, direitos e justiça. A definição de movimento social implicaria em manifestações públicas que desafiam o Estado movidas pela demanda de ampliação ou de reconhecimento de direitos por parte da população. Ademais, citam o trabalho de Sidney Tarrow (2009), com sua reflexão sobre ciclos de ação política quanto a oportunidades e restrições políticas. Para ele, os movimentos sociais estariam mais intimamente relacionados com as oportunidades para a ação coletiva, e mais limitados pelas restrições sobre esta, que com as estruturas sociais ou econômicas subjacentes. A luta por reformas não seria uma fatalidade, quando muitos ativistas de movimentos sociais exigem mudanças sociais fundamentais, reconhecimento de novas identidades, incorporação ao sistema político e a derrocada de uma ordem social, por exemplo. Outras referências são a sociologia das profissões, de Talcott Parsons (1968), assim como a advocacia de causa, de Austin Sarat e Stuart Scheingold (1998).Assim, a opção pela expressão mobilização de direitos está conectada com o que pode vir a ser uma agenda de pesquisa sobre teoria política do direito. Especificamente, o uso político do direito para a transformação e os processos de pulverização das causas políticas e jurídicas nos diversos períodos da história brasileira.1. A advocacia frente à luta abolicionista da escravatura na justiça do Brasil imperial1.1 Advocacia, política e contradiçõesA investigação do dilema dos advogados será realizada no nível local da justiça onde eram iniciados os processos de liberdade no império do Brasil. Serão analisados processos de liberdade originários das diferentes regiões do País e que foram julgados no período que se estendeu da instalação da Família da Real no Brasil (1808) à promulgação da Lei do Ventre Livre (1871). A compreensão das ambiguidades ou contradições na defesa dos advogados será analisada com base na distinção existente na realidade entre advogados formados e advogados provisionados. Como arena conflituosa da aplicação e contestação do direito, a justiça será considerada como campo não limitado e não regulamentado da política quanto às visões de liberdade dos advogados.Na caracterização da defesa dos advogados, o termo política será empregado para designar toda manifestação de valor geral cuja concretização pudesse importar a realização de um projeto político que, viabilizado pelo direito, traduziria preservação ou mudança nas relações entre senhor e escravo. Nestes termos, a política estará referida a valores fundamentais no funcionamento da sociedade e do Estado. Será definida como liberal a visão política do advogado que puder ser considerada como compromissada com ideais abolicionistas, e como conservadora, aquela visão que permitir identificar os advogados com interesses escravocratas. Como o dilema dos advogados reunia dimensões que definiam elementos tanto de mudança quanto de conservação da estrutura social escravagista, todo advogado seria visto, então, como sendo liberal e conservador ao mesmo tempo, a despeito da distinção entre formados e provisionados e das funções que desempenhavam na justiça. Assim, a definição do caráter liberal ou conservador da atuação dos advogados levará em consideração tanto o modo como os advogados concebiam o fim da escravidão quanto o fato de que havia advogados, de senhores e de escravos, que possuíam escravos. Revelado ao longo das acusações que os advogados trocavam entre si na justiça, este fato será considerado como um elemento a mais na compreensão do dilema dos advogados e permitirá analisar o caráter liberal ou conservador dos mesmos em função do modo como eles dispunham da propriedade sobre seus escravos.As Ações de Liberdade processadas na justiça do Brasil imperial organizavam e revelavam o funcionamento do campo jurídico como campo de força. Elas eram o meio de sustentação da defesa dos interesses e direitos tanto de senhores como de escravos. Condicionando-se mútua e reciprocamente, a argumentação dos advogados de senhores e escravos terminava por definir a liberdade dos escravos em referência à política. A justiça era transformada em campo de lutas políticas através da advocacia que defendia ou a liberdade dos escravos ou a propriedade dos senhores. A “batalha judicial (…) [era] a ocasião para medir armas e provar forças”.1Como campo de força, o campo jurídico pode ser descrito como sendoo lugar de concorrência pelo monopólio do direito de dizer o direito, quer dizer, a boa distribuição (nomos) ou a boa ordem, na qual se defrontam agentes investidos de competência ao mesmo tempo social e técnica que consiste essencialmente na capacidade reconhecida de interpretar (de maneira mais ou menos livre ou autorizada) um corpus de textos que consagram a visão legítima, justa, do mundo social (BOURDIEU, 2003: 212).Na defesa pela libertação dos escravos ou pela manutenção da escravidão, a argumentação dos advogados constituía e revelava seus dispositivos e mecanismos de natureza retórica na atuação na justiça. Com base na ampliação da concepção marxista, reconhece-se aqui a realidade descrita por Bourdieu através do conceito “capital”, em sua dimensão cultural, como expressão de todo recurso ou poder presente e manifesto nas atividades sociais. Envolvendo mecanismos de reprodução das condições sociais e ao mesmo tempo supondo a dinâmica da mudança na sociedade, o caráter paradoxal do conceito “capital” permite analisar as ambiguidades e contradições que caracterizam a sociedade e o período histórico aqui estudados. No vocabulário de Charles Tilly, são “repertórios [que] pertencem a conjuntos de atores em conflito” (1995:30).Afirmara José Maria Correa de Sá e Benevides, curador de Fabiana e outros escravos:Refletindo que um curador que no exercício de seus deveres recua pelo receio de comprometer-se com as pessoas adversas dos direitos de liberdade que tem sua curatelada não pode bem providenciar sobre os mesmos direitos, pois que lhe falta a independência necessária para isso2.A argumentação dos advogados frequentemente levantava o problema da ameaça da ordem pública e da desestabilização econômico-social em face da libertação dos escravos.A análise empírica da relação que articula a dimensão subjetiva e o comportamento dos advogados, de um lado, e a estrutura e os condicionamentos sociais, de outro lado, pode ser feita segundo o conceito habitus, que existe em relação com o conceito “capital”:[…] um sistema de disposições duráveis e transponíveis que, integrando todas as experiências passadas, funciona a cada momento como uma matriz de percepções, de apreciações e de ações – e torna possível a realização de tarefas infinitamente diferenciadas, graças às transferências analógicas de esquemas […] (BOURDIEU, 1983: 65).A análise da importância do papel dos advogados na luta abolicionista da escravatura na justiça do Brasil imperial depende da definição e caracterização dos tipos de encaminhamento do fim do cativeiro existentes no País. Eles correspondem a quatro modalidades reveladas nas Ações de Liberdade: 1) iniciativa dos escravos; 2) iniciativa dos senhores; 3) disposições jurídicas e 4) disposições testamentárias3.A iniciativa dos escravos revelava tanto as pessoas às quais os escravos recorriam para defender sua liberdade como os meios de que eles dispunham para comprar a liberdade na hipótese de venda judicial ou por ocasião do inventário de seus senhores ou para arcar com as custas das ações judiciais. Autoridades públicas e eclesiásticas, escravos forros e homens livres, parentes de escravos e senhores, advogados formados ou provisionados eram as pessoas que os escravos frequentemente procuravam em busca de orientação e representação na justiça, quando eles não compareciam ou peticionavam por conta própria. As economias que os escravos realizavam como resultado do aluguel de seu trabalho e o dinheiro de que eram os escravos credores constituíam meios materiais na obtenção da liberdade. Além da morte que libertava naturalmente o escravo do cativeiro, a fuga também representava meio de alcançar a liberdade.A iniciativa dos senhores mostrava, sobretudo, os motivos e os modos pelos quais eram passadas as cartas de alforria, ou de liberdade. Quanto aos modos de concessão, a liberdade podia ser condicional ou incondicional segundo o escravo ficasse obrigado, ou não, à prestação de serviços aos herdeiros do senhor. Bons serviços prestados pelos escravos traduziam, geralmente, o principal motivo da concessão da liberdade, fosse ela condicional ou não, ao lado da filantropia e da caridade cristã dos senhores. Contudo, o caráter condicional da liberdade, através de seu aspecto contratual, revelava a dimensão da liberdade e da humanidade dos escravos.As disposições do direito quanto à libertação dos escravos levavam em consideração duas ordens de fatos. Primeiro: o caráter lento e gradual com que se processava o fim do cativeiro no País de acordo com as leis abolicionistas. Segundo: a compreensão dominante do direito no século XIX constituía brechas para que os advogados dos senhores e dos escravos politizassem o exercício da advocacia. Assim, as orientações e interpretações que os advogados faziam do direito na defesa da propriedade e da liberdade revelavam não apenas o que entendiam como sendo o direito, mas também o problema político-administrativo da construção do Estado brasileiro na base da separação dos poderes. Direito romano e direito natural, leis e tratados, avisos e portarias, sentenças e jurisprudências, Constituição brasileira e Ordenações portuguesas, provisões e cartas, costumes jurídicos e sociais, lições e doutrinas de praxistas representavam dimensões concretas do direito segundo a defesa que faziam os advogados, diplomados ou não.Como manifestação da vontade dos senhores, as disposições testamentárias caracterizavam as atitudes dos senhores como sendo mais ou menos conservadoras ou liberais na medida em que eles dispunham da sorte dos escravos segundo fosse a liberdade concedida mediante condição de trabalho obrigatório aos herdeiros do senhor ou não. Assim, a vontade dos senhores costumava preservar o status do escravo, quer como coisa que os herdeiros recebiam em herança, na hipótese da vontade conservadora, quer como pessoa que poderia exercer o direito de ir-e-vir de acordo com sua vontade, no caso da vontade liberal.A iniciativa dos escravos nos processos de libertação permite a categorização dos agentes do direito segundo o papel que eles desempenhavam na Justiça e a identificação das etapas do processo de libertação onde se reconhecia a presença do curador dos escravos na primeira instância da justiça, instância essa onde os fatos eram conhecidos pela primeira vez. Qualquer homem livre, por vezes denominado particular, caso não fosse advogado diplomado ou provisionado, podia solicitar a conciliação entre o senhor e o escravo. Etapa no processo de encaminhamento das desavenças entre o senhor e o escravo, e apresentada ao juiz de paz ou ao juiz municipal, a conciliação, fosse ela levada a bom termo ou não, precedia à instauração da ação de liberdade na Justiça e constituía motivo de anulação da ação caso não fosse realizada. O curador, cujo papel inicial era o de assinar o requerimento pelo qual o escravo peticionava, podia ser não apenas advogado diplomado ou provisionado, mas também qualquer outro homem livre. Nomeado o curador pela justiça, e também o tutor, na hipótese de o escravo ser menor, era expedido mandado de apreensão e depósito do escravo. O depositário, que podia ser o curador, precisava revelar condições de ser fiel ao mandado que lhe era confiado, no sentido de salvaguardar a propriedade que representava o escravo. O requerimento de citação do senhor como réu e das testemunhas, bem como o requerimento da primeira e demais audiências, era feito pelo curador. As primeiras razões do escravo, apresentadas sob a forma de libelo cível, eram assinadas pelo curador. Porém, advogados, diplomados ou não, e solicitadores poderiam ser constituídos pelo curador como seus bastantes procuradores, da mesma forma que solicitadores, na falta de advogados ou sob a orientação dos mesmos, poderiam ser licenciados pela justiça no sentido de assinar alegações e fazer defesas, atos típicos dos advogados e, por vezes, também realizados por curadores. As contrariedades e alegações do senhor poderiam ser assinadas por ele próprio ou por seu advogado, geralmente bacharel em direito. Após a inquirição das testemunhas, e encaminhados os autos para o juiz, a sorte do escravo dependia da sentença. Geralmente, a parte perdedora interpunha embargos no sentido de modificar a sentença. Sentença nova significava aceitação dos embargos. A apelação da sentença poderia ser feita pelo advogado do senhor, caso a sentença nova fosse favorável à liberdade, ou ex-officio pelo juiz, se contrária à liberdade.A iniciativa dos senhores permite repensar os obstáculos que os escravos enfrentavam de modo geral na justiça, os quais retardavam o processo de libertação dos mesmos, e os obstáculos que comprometiam de modo particular a independência de certos curadores que advogavam a causa da liberdade. A falta de advogados e curadores para promover e encaminhar as ações de liberdade e a recusa de muitos deles em aceitar ou prosseguir nestas mesmas ações eram dimensões práticas que definiam tanto os limites da liberdade profissional de determinados advogados como os limites da esperança de libertação de muitos escravos. De um lado, o medo do compromisso com aqueles que tinham interesse na escravidão explicava, ao menos em parte, a existência de um foro negativo. De outro, a prestação de fiança de jornais exigida pelos senhores expressava menos a chicana que tumultuava a ordem do processo do que as contradições que penalizavam os escravos com a ameaça de substituição do depósito pela cadeia, fato esse que exasperava os curadores diante do poder econômico dos senhores. Se, por vezes, o depositário do escravo era questionado quanto às suas posses e à sua nacionalidade, o curador também o era quanto a seu papel e à sua necessidade na defesa do escravo. Porém, as ideias liberais da época e a consciência da necessidade da libertação dos escravos – que possivelmente serviam de inspiração para que muitos senhores passassem carta de liberdade a seus escravos, ainda que sob a forma de condição – permitem explicar a determinação dos defensores da liberdade dos escravos em face do poder econômico dos senhores.As disposições do direito traduziam o tipo de defesa que faziam os advogados dos senhores e dos escravos segundo eles se referissem à propriedade e à liberdade situadas entre a ordem e a mudança socioeconômicas constituídas ao longo da história. A defesa dos agentes do direito na Justiça pode ser classificada de acordo com a concepção que os mesmos possuíam da história. Ela é considerada como conservadora na hipótese em que a escravidão é definida como legado da história e que o direito constitui fonte de proteção da propriedade. Ela é considerada como liberal segundo a ideia de que cabe à história o papel de libertar os escravos através de mudanças futuras e de que o direito constitui instrumento de realização deste fim. Ela será considerada como sendo liberal e conservadora ao mesmo tempo na hipótese segundo a qual a história revelaria período de transição, caracterizado por dimensões tanto conservadoras quanto liberais. Neste sentido, como processo que se desenvolveria entre o passado e o futuro e que passaria pelo presente, a concepção de história presente nas Ações de Liberdade mais parece revelar o problema da razão de Estado, em uma sociedade em mudança, como problema político referido à distinção necessária, de um lado, entre o poder que fazia as leis (legislativo) e o poder que aplicava as leis (judiciário) e, de outro lado, entre governo e administração.Nas Ações de Liberdade, as disposições testamentárias permitem pensar tanto em relação aos senhores como em relação aos advogados a ideia de liberdade com base nas categorias empíricas “coisa” e “pessoa”. Segundo fossem os escravos partilhados no todo ou em parte, ou alforriados com a cláusula de trabalho ou sem esta condição, a liberdade, como realidade concreta, dependia tanto da visão que os senhores pudessem ter dos escravos quanto do interesse daqueles em alforriar ou não seus escravos. Eram o interesse e a visão senhoriais que podiam sem vistos como fundamento dos motivos que levavam certos senhores a não disporem da faculdade de libertar seus escravos em testamento, de fazê-lo de modo condicional ou até mesmo de não fazerem testamento, deixando, neste caso, que os escravos fossem inventariados e partilhados como todos os demais bens que possuíssem os senhores. Por outro lado, como condição da liberdade do escravo, o trabalho traduzia não apenas o caráter processual, gradual e lento da libertação dos escravos, como também a medida em que o escravo participava do seu próprio processo de libertação. Assim, a passagem do estatuto de coisa do escravo à condição de pessoa livre, ou a negação da liberdade do escravo como condição da afirmação da propriedade dos senhores, revelava como os interesses dos senhores eram condicionados e condicionavam, de modo circunstancial, a ideia que eles faziam dos escravos. Estes interesses e visões permitem classificar a construção dos argumentos dos advogados dos senhores e dos escravos segundo estes agentes do direito reconhecessem ou sugerissem que a riqueza do País se fazia com base na ordem que protegia a propriedade e reconhecia a escravidão ou que a mão-de-obra livre era necessária para a realização de ofícios em uma sociedade em mudança. Na defesa da ordem e da mudança, os advogados dos senhores e dos escravos entendiam a liberdade diferentemente. Para estes, a liberdade era um fato natural, que dependia da natureza do homem e do direito natural; para aqueles, um fato positivo, que dependia da história e do direito vigente. Porém, segundo a visão natural, de acordo com a qual o escravo passava a ser considerado como indivíduo que fazia parte do universo dos homens e das pessoas, a liberdade encontrava seu fundamento na igualdade dos homens, enquanto a liberdade positiva, definidora de quem era livre e de quem era escravo, e de acordo com a qual o escravo era visto e tratado como coisa, possuía por fundamento as desigualdades sociais historicamente constituídas. Neste sentido, entre a ordem e a mudança, entre a propriedade e a liberdade, entre a coisa e a pessoa, é possível pensar a liberdade como categoria retórica que definia a advocacia dos senhores e dos escravos como atividade jurídico-política que fazia a mediação entre interesses inconciliáveis de setores da sociedade da época e que traduzia as relações conflituosas que articulavam o Estado e a sociedade.1.2 Advocacia, política e profissãoAs Ações de Liberdade na justiça do Brasil imperial revelam ainda o papel da defesa na definição da advocacia e a natureza da relação dos advogados com seus clientes. O fato de que os advogados existentes no Império do Brasil não aceitassem o patrocínio na causa do escravo permite pensar não apenas a defesa como função que definia de modo essencial a advocacia, e que constituía a ordem judiciária, mas também a natureza da relação dos advogados com seus clientes e os motivos que os levavam a aceitar ou a recusar determinada causa.Em qualquer hipótese, é possível pensar a defesa na justiça, oral ou escrita, em termos da liberdade dos advogados e a independência dos advogados em função dos direitos e deveres que organizavam o exercício da advocacia segundo normas de disciplina (KARPIK, 1995). Esta perspectiva, no entanto, não implica o reconhecimento da advocacia como profissão segundo os advogados se estruturassem e se orientassem pela formação ou representação dos advogados, ou pela negociação ou regulamentação da advocacia, nem mesmo dependeria da advocacia como profissão segundo o reconhecimento das aspirações e lealdades dos advogados (BURRAGE, 1990).Os advogados só estariam obrigados a aceitar causas justas, e o critério definidor da justiça implicava a busca da verdade com base no conhecimento e domínio do direito. A verdade, portanto, orientava de modo racional a justiça e constituía para os advogados um duelo que se caracterizava pela produção de provas (documentais e testemunhais) comunicada com antecedência à parte contrária. Dessa forma, toda defesa poderia preparar-se e escapar às possíveis surpresas de seu adversário. Assim, as diferenças quanto à natureza e ao peso dos argumentos, e quanto à produção e ao valor das provas, eram compensadas pela situação de igualdade formal em que se encontravam os advogados quanto à garantia do procedimento do contraditório. Este procedimento lhes possibilitava lutar contra a verdade produzida pela parte contrária por meio da verificação e discussão das provas produzidas.Assim, orientando a organização da justiça no País, e favorecendo a formação dos advogados, a realização da defesa definia a intervenção dos advogados não como representantes de seus clientes – em relação aos quais manteriam distância e guardariam liberdade -, e sim como detentores do monopólio da produção da verdade em nome de uma justiça que se pretendia impessoal e neutra. Porém, ao constituir um espaço supostamente neutro – tal qual o município neutro da Corte, onde a administração, centralizada ou descentralizada, preocupada em manter a hierarquia e não gerar a igualdade, não neutralizava a política, onde a política era realizada como diretriz para a administração das províncias que ameaçavam o Império com rebeliões e insurreições (VISCONDE DO URUGUAI, 1862) -, a verdade constituiria a justiça como espaço político onde os advogados poderiam revelar tudo aquilo que fosse condenado socialmente como perturbador da ordem e que impedisse a realização da justiça e do bem comum, ou da justiça como bem comum, na defesa da verdade e na denúncia da falsidade. A ordem em questão tinha como referência tanto a Europa da civilização e da iluminação quanto a América da barbárie e da escravidão, tanto os fundadores quanto os consolidadores do Império. Independentemente do caráter monárquico ou imperial, essa advocacia respondia por relações com o Estado e com a sociedade através da credibilidade que reclamava a justiça dos tribunais e dos foros locais em função da administração de conflitos de interesses e da restauração da ordem.Nestes termos, os advogados realizavam a política na chave da verdade-falsidade como elemento moral da ordem do Estado e da sociedade (CANECA, 1976), assim como fundamento ético do próprio funcionamento da advocacia. Operando assim a associação entre política e moral, os advogados dos senhores e dos escravos não negociavam a propriedade e a liberdade como forma de fazer política no espaço que o Estado abrira à participação da sociedade através dos juízes de paz. Os próprios libelos de liberdade dependiam da impossibilidade de transigência entre os senhores e os escravos. Este fato traduzia, sobretudo, a distinção constitucional entre cidadãos e não cidadãos e o reconhecimento de que os escravos – aos quais a Constituição de 1824 não fez qualquer alusão -, em função da propriedade e da liberdade, estavam excluídos da sociedade civil enquanto membros capaz de negociar e pactuar. A não conciliação no juizado de paz se reproduzia na justiça dos municípios e dos tribunais e, assim, não se fazia substituir pela formulação de pactos entre os advogados, muito embora a argumentação de muitos advogados revelasse a ideia de contrato como fundamento da produção ou preservação da liberdade e da propriedade como direitos legítimos e concretos em face tanto do direito natural como da Constituição. A despeito do poder que pudesse expressar a justiça, segundo fosse ela municipal ou não, os advogados interpretavam de modo particular e individualizado – e, portanto, circunstancial – o direito que se afigurava como sendo universal e comum (Constituição, legislações particulares). Assim, apenas de modo relativo à defesa específica que realizavam, os advogados operavam com a ideia de pacto social como fundamento do direito que interpretavam, pois o direito concreto e individualizado que defendiam importava a ruptura com a ideia do direito como expressão da vontade geral e a definição da liberdade, de senhores e escravos, contra o direito de propriedade.Como elemento definidor do positivismo da época e da notoriedade e prestígio social, a verdade constituía a defesa como atividade típica do advogado e formulava o problema quanto ao título que autorizaria alguém a ser advogado. Ninguém poderia ser advogado senão em função do reconhecimento e autorização do poder do Estado, independentemente de ser bacharel em direito. Daí a possibilidade de definição da advocacia como profissão segundo os limites do monopólio que estabeleciam a advocacia como atividade do advogado e o advogado como portador de autorização e reconhecimento tanto do poder público quanto do poder social, tal como ocorria em relação aos advogados provisionados quanto à competência e à moralidade, quanto ao juramento e à fidelidade dos mesmos. Assim, as condições de acesso à advocacia e as exigências para ser advogado condicionavam não apenas a organização da advocacia como também definiam uma certa concepção quanto ao tipo de justiça (a verdade dos advogados implicando a imparcialidade dos juízes) de que dependiam e precisavam tanto o Estado quanto a sociedade em transformação.Por um lado, é possível pensar a autonomia dos advogados em relação ao Estado e à sociedade em função tanto do grau das restrições que definiam o monopólio da advocacia exercida nos foros locais como do processo de racionalização e autonomização do direito no País em relação ao direito via Portugal. Quanto àquelas restrições, o poder público se mostrava amplamente liberal. Quanto a este processo, ao menos no que dizia respeito ao elemento servil, as mudanças se mostravam graduais e lentas. Assim, na justiça local, onde se verificavam a falta constante de advogados, provisionados ou diplomados, e a recusa dos mesmos em aceitar determinadas causas, o exercício da defesa e o funcionamento da justiça quanto aos processos de liberdade se inscreviam em um universo cuja complexidade do direito não exigia um corpo de especialistas. Daí o papel do juramento e da moral dos advogados no contexto dos pedidos para advogar.Por outro lado, a prática da defesa com base na verdade permite pensar a autonomia dos advogados – e certa liberdade para os escravos – segundo o espaço da contestação fosse efetivamente usado como espaço onde os escravos e os advogados dos mesmos contestassem a palavra dos senhores. Sem implicar a abolição das leis sociais, a contestação dos advogados pode ser vista como sendo o espaço de liberdade onde a defesa assumia função crítica quanto à necessidade de mudança no direito. Sem que jamais tenha suscitado a prática do crime de lesa-majestade, a liberdade de defesa resultava em forma de questionamento da legitimidade e legalidade da propriedade dos senhores, transformava a justiça em espaço de luta por garantia e ampliação de direitos, provocava escândalos e revelava segredos e intimidades dos senhores e constituía para os advogados fonte de atrito tanto pessoal quanto profissional. Daí não ser estranho que a hierarquia social oferecesse resistência diante do que poderia ser interpretado como sendo ausência de certo respeito decorrente da forma como os advogados revelavam maior ou menor distância entre eles próprios e entre os escravos e senhores4.Assim, a proibição da injúria manteria certa distância entre os advogados e entre estes e seus clientes, embora os advogados nem sempre deixassem de ceder às suas próprias paixões e às de seus constituintes. A moderação, portanto, deveria tornar-se o sinal da autonomia dos advogados, e entre eles. Esta autonomia deveria, ainda, traduzir a virtude da brevidade da defesa contra a verborragia dos advogados chicaneiros que poderia retardar o andamento dos processos e provocar até mesmo a desordem dos mesmos. Afinal, os processos jurídicos de liberdade eram de natureza sumária. Nos termos do processo de autorização para advogar, e para escapar à pena de suspensão, os advogados deveriam fazer com que a prudência dialogasse com a astúcia. Neste sentido, a própria defesa da liberdade dos escravos na justiça poderia ser vista como resultante desse mesmo diálogo através do uso estratégico de outro procedimento jurídico que não a ação de liberdade, porém com o objetivo de discutir o objeto desta mesma ação.Se a liberdade de certos advogados pode ser concebida em função da gratuidade da defesa que faziam em relação aos escravos, a divisão tanto informal quanto formal do trabalho existente no campo da defesa traduzia o grau de autonomia entre os advogados segundo a clivagem existente entre eles sugerisse missões e atividades específicas na justiça. Porém, em face de circunstâncias particulares quanto à existência, disponibilidade e capacidade dos advogados – diplomados, provisionados, licenciados ou nomeados -, nenhuma racionalidade técnica respondia, integralmente, pela partilha de diversas e distintas tarefas entre os advogados e pelo modo como os advogados eram socialmente valorizados. Assim, em relação aos escravos, por exemplo, não correspondia ao quotidiano da justiça atribuir toda a esfera da defesa e condução das ações de liberdade aos advogados bacharéis e o acompanhamento das formalidades processuais aos advogados provisionados ou procuradores. A importância do papel dos advogados provisionados se situava entre a ausência quase total de advogados bacharéis nos foros locais e a presença de muitos advogados diplomados em posições superiores dentro da justiça e fora dela. Assim, a organização judiciária, relativamente independente da hierarquia e da estrutura político-social, como que estruturava e explicava a divisão do trabalho entre os advogados e a própria divisão entre os advogados. Do ponto de vista político-social, era aquela dupla conjuntura que definia a advocacia como espaço de mobilidade social e de prestígio profissional e social, tanto para advogados formados como para advogados provisionados, e de modo relativamente independente do caráter venal que caracterizava a concessão de licença para o exercício da advocacia. O pagamento de imposto não constituía obstáculo de acesso à advocacia nem excluía os advogados do acesso aos cargos públicos. Na verdade, a advocacia significava, no Brasil do século XIX, excelente oportunidade para os advogados menos aquinhoados para participar de negócios e transações envolvendo compra, venda e locação de bens imóveis e semoventes como expressão de meio de vida.A independência dos advogados como profissionais pode ser ainda analisada do ponto de vista do autogoverno e de estratégias comuns dos advogados em face do poder público; porém, esta perspectiva supõe que os advogados se encontrassem formalmente organizados quanto a seus objetivos e meios de atuação. Esta situação não apenas repõe a classificação dos advogados no Brasil entre diplomados e provisionados, quando se considera a criação do Instituto dos Advogados Brasileiros no País, em 1843, como também o problema de ser a advocacia uma profissão. Ser bacharel era condição necessária de ingresso no Instituto. Porém, não detendo poder disciplinar para regular o exercício da advocacia – foi por decreto do Governo Provisório da República que, em 1930, fora criada a Ordem dos Advogados do Brasil como órgão de disciplina e seleção de classe dos advogados -, o Instituto exercia apenas controle interno sobre seus membros5. Sua “preocupação” com a Ordem surgiu com o marasmo nas sessões e mesmo com a ausência destas no ano de 1866. A justificativa das faltas era o quanto bastava. A situação se agravava com aquilo que fora denominado de “inúmeros abusos no foro”, como referência explícita à atuação dos advogados, e disto constituiu demonstração o fato de que muitos advogados emprestavam seu nome aos escritos de procuradores e provisionados. Isto para não falar do descontentamento de muitos sócios do Instituto para com a situação de colegas que não exerciam a advocacia e que, além disto, ou por isto mesmo (para não dizer que muitos não evitavam o elevado número de causas) desempenhavam outras funções públicas (juiz municipal, presidente de província). Daí a dúvida quanto à natureza pública ou privada da advocacia. A certeza era que somente a criação da Ordem poria fim aos abusos dos advogados e que o Instituto precisava ser reformado e que dependia de um presidente de prestígio para realizar sua missão e elevar-se à nobreza da advocacia. A reforma dependeria da aprovação de projeto pelo poder legislativo, mas a eleição de Nabuco de Araújo, então Conselheiro de Estado, em pleito unânime pelos membros efetivos residentes na Corte, como presidente efetivo do Instituto, dependia apenas da exoneração do presidente em exercício.Quanto ao problema da acumulação de cargos, reconheceu publicamente o novo presidente não existir qualquer incompatibilidade entre a profissão de advogado e o cargo de Conselheiro de Estado, já que a remuneração deste não chegava a se constituir como vencimento e não passava, por lei, de gratificação, acessório, como tal, de outra profissão. O problema da incompatibilidade de cargos e funções fazia parte também das experiências dos provisionados. Porém, projeto da Assembleia Geral Legislativa reconhecera a incompatibilidade da advocacia com cargos públicos ocupados através de eleição popular. Em proposta enviada ao Legislativo, Nabuco de Araújo defendera, ainda, a independência da advocacia em face do poder público como resultante da criação da Ordem, cuja jurisdição disciplinar considerara como garantia dos princípios sobre os quais se assentava a honra do advogado. A confusão sobre a liberdade profissional prosseguiu com a dúvida gerada pela interpretação do texto constitucional de 1891, que exigia o diploma para o exercício de profissão intelectual e outras equiparadas. Membros do Instituto defenderam ser ampla a liberdade profissional, sem dependência de diplomas científicos, o que poderia significar que os advogados não eram nem intelectuais nem cientistas ou que as profissões intelectuais e científicas não eram liberais. Bem provável, no entanto, era que esse liberalismo não fosse despropositado e ajudasse a recuperar e elevar o prestígio social do Instituto ao reforçar a distinção de seus membros como bacharéis em ciência jurídica. Esse quadro se reproduzira na hipótese em que esse liberalismo assumia ares ou vocação de assistencialismo público de inspiração moral e igualitária. Tal fora o caso da proposta de Nabuco de Araújo de encarregar algum membro do Instituto para dar consultas aos pobres ou nomear advogados para acompanhá-los em causas cíveis ou criminais. No entanto, presidente anterior ao Conselheiro, em ofício à justiça, já havia solicitado as providências necessárias ao desempenho dessa missão, e outro não era o fundamento senão o dever humanitário. Era como se a advocacia se apresentasse como instrumento moral no enfrentamento das desigualdades sociais que pudessem servir de obstáculo ao acesso à justiça. Porém, essa advocacia humanitária, pretensa guardiã do acesso à justiça como direito de todos em um País que ainda não conhecia a lei de assistência judiciária para os pobres, era a advocacia do Instituto, dos bacharéis em direito. Assim, a gratuidade profissional poderia conferir duplo rendimento ao Instituto. Por um lado, distinguiria e honraria os advogados formados em direito. Por outro lado, reforçaria o elitismo da Instituição ao rebatizar seu corporativismo com o nome de assistencialismo.Se a advocacia no Brasil imperial não conheceu a possibilidade de autogoverno nem formulou projeto capaz de enfrentar o Estado como ator coletivo, ela também não enfrentou o problema do rigor da compatibilização de exigências aparentemente contraditórias que decorriam da organização da advocacia como profissão em uma “ordem”: a liberdade individual dos advogados devendo ser respeitada pela autoridade, de modo a não inviabilizar a defesa, e a atuação dos advogados devendo ser eficaz, de modo a garantir a realização de um trabalho comum. Porém, a ausência da “ordem” dos advogados não significou a existência de uma advocacia desorganizada, quanto a regras e princípios de natureza jurídico-legal, e desorientada, quanto a princípios e ideias de natureza político-social, nem tampouco implicou a primazia do individual sobre o social e a do econômico sobre o político ou a existência de uma ideologia espontânea sem ator racional. A ordem interna da advocacia, exercida por bacharéis e provisionados, curadores e procuradores, era formada por regras e princípios de natureza diversa que podiam ser considerados como expressão da cultura própria da advocacia como profissão, da qual a verdade como regra das ações dos advogados desempenhava papel fundamental. Como atividade porosa e permeável às mudanças e conflitos por que passavam o Estado e a sociedade da época, a advocacia dependia de uma ordem própria na ausência do rigor da disciplina de uma ordem externa coletiva, e desta ordem faziam parte os “inúmeros abusos no foro”. Daí a possibilidade de suspensão por mau caráter ou por rabulice. De acordo com o Aviso de 1814 do Príncipe Regente, também seriam suspensos os advogados que não possuíssem provisão passada pela Mesa do Desembargo do Paço. Os advogados dependiam ainda da aprovação comum e geral tanto dos magistrados como das populações locais, e as intrigas entre os próprios advogados, decorrentes da possível concorrência entre eles, como que funcionavam também como mecanismo de controle profissional.Assim, a advocacia se tornava sua própria referência e se referia a uma espécie de tradição de conteúdo normativo variável e diverso, segundo a qual a dimensão profissional da advocacia era definida em função da habilidade e capacidade técnica do advogado em não defender a causa do cliente como sendo a sua própria causa. Porém, o problema da verdade como fundamento da defesa é também o problema da autonomia do advogado em relação ao cliente e ao processo histórico de mudança social. Fazendo também parte da cultura em que se fundava a ordem dos advogados, e voltadas para influenciar a decisão final de juízes e tribunais, as meias verdades e mentiras que revelavam os processos de liberdade na justiça, quando confrontadas com o princípio da verdade que deveria orientar os advogados em diálogo com a impessoalidade, traduziam a existência de certo tipo de entendimento ou aliança entre os advogados e seus clientes. Da mesma forma que segredos e intrigas, externos e anteriores aos processos na justiça, a apropriação histórica da liberdade e da propriedade, como sendo um bem ou um mal, também orientava e organizava a defesa de muitos advogados.Em contexto de mudança no Estado e na sociedade, que reclamava mudança no direito e através do direito, o fato de que os advogados se orientavam por valores que não se harmonizavam na prática traduzia a atuação de uma advocacia que se orientava por ideias políticas e sociais e que não recorria apenas de modo racional a estas ideias como forma de legitimar o direito e ideias jurídicas quanto ao direito e que tampouco se mostrava politizada apenas em razão da politização da sociedade. Em uma situação de dúvida quanto à liberdade como direito ou de inexistência de lei que reconhecesse este direito, os advogados dos escravos revelavam atuação política através da linguagem do direito não positivado, segundo a realidade da liberdade já fizesse parte das experiências de vida dos escravos, e eles assim procediam de modo apaixonado através do uso de expressões consideradas como injuriosas. Daí porque o objetivo dos mesmos poderia ser menos a vitória da verdade do que a vitória do cliente enquanto indivíduo e a sua própria vitória de acordo com princípios, regras e ideias de caráter político ou de uso contestador. No entanto, considerada como fundamento da justiça geral, a advocacia precisava ser disciplinada, e os advogados precisavam atuar moderadamente nos limites da prudência e da ironia, como homens de bem, o que não significava uma advocacia necessariamente desinteressada, ainda que, do ponto de vista econômico, existissem advogados formados que trabalhassem gratuitamente para os escravos.Se a dimensão política que relacionava os advogados com seus clientes, e que tornava a advocacia dependente desta mesma realidade, era revelada em função da inexistência de uma ordem externa capaz de garantir para os advogados a realização da defesa de modo independente, era essa mesma relação que revelava as condições de consolidação da autoridade dos advogados como profissionais do direito em face da confiança que neles depositavam tanto os senhores quanto os escravos em relação à defesa de suas pretensões, direitos ou ideais. Porém, a relação existente entre aqueles que defendiam e aqueles que eram defendidos não implicava obediência voluntária dos advogados em relação aos clientes quanto ao modo de realização da defesa. O que respondia pela legitimação das funções dos advogados na justiça era o fato de como os advogados se revelavam ou eram vistos como sendo capazes em razão de seus conhecimentos jurídicos6. Por outro lado, as ações na justiça produziam e revelavam o resultado de diversas interações rotineiras entre os distintos agentes que tomavam parte no processo de habilitação dos advogados. É essa cadeia de interações de diálogos que revelava e produzia para os advogados capital cultural, aumento ou diminuição de energia emocional, identidade e reputação social (COLLINS, 1988).2. A advocacia frente às lutas emancipatórias no período republicano contemporâneo2.1 Advocacia como profissão versus trabalho com movimentos popularesNo contexto do período imperial, analisado no ponto anterior, havia uma certa unidade em torno da luta pelo fim do regime escravista, com o apoio de advogados. Pode-se dizer que a mobilização de direitos neste período tinha uma centralidade em algo que poderia causar a desestabilização do poder instituído, caso das ações de liberdade. A advocacia abolicionista ilustra a ideia de que as mudanças sociais acontecem quando há luta social, que efetivamente provoca a desestabilização, já que o jurídico somente acompanha estes processos de mudança, porque não teria uma lógica própria. Isto é, a advocacia influencia no campo jurídico uma disputa que o extrapola, por meio de usos políticos. Desta forma, um caráter transformador do direito poderia ser observado nos usos políticos de mobilizações de direitos em lutas emancipatórias.Enquanto que no período republicano, as pautas são muito diversificadas, não há uma unidade entorno da mobilização de direitos pelo fim do capitalismo, por exemplo. Porém, houve uma certa centralidade na luta contra a ditadura; assim como entre os movimentos populares houve uma certa unidade no período pós-ditadura na luta pela democracia e por mais direitos. Entre democracia e direitos haveria então uma relação de fortalecimento: quando os direitos estão ameaçados é a democracia que está em jogo, quando direitos são mobilizados é a democracia que sai fortalecida.Neste segundo tópico, a delimitação temporal abarca o período mais recente, que compreende desde o golpe militar de 1964 até a atualidade. Justamente pela possibilidade de comparação por semelhança daquela advocacia abolicionista do período imperial, com uma advocacia em defesa de perseguidos políticos, que mobiliza direitos contra o regime político-econômico então vigente, a ditadura, é possível aproximar a advocacia com perseguidos políticos do contexto da advocacia abolicionista, uma vez que ambas trabalham com ações de liberdade e representam mobilizações que desestabilizam o poder constituído. Nestas, a contestação política é uma característica comum das lutas que repercutem no campo judicial por meio da advocacia. A posição liberal estaria aqui identificada com quem protagoniza as ações de liberdade, enquanto que os conservadores seriam os defensores da ditadura. No período pós-ditadura, com a Constituição Federal de 1988, existem especificidades que serão tratadas numa comparação por diferenças. Onde fica mais difícil delimitar as posturas liberal e conservadora. Seria próprio de sociedades em mudança a presença de dilemas, como o dos advogados ora conservadores na defesa da ordem constitucional e democrática, ora liberais na defesa de direitos contra o poder instituído. Importante destacar que, a defesa da ordem e da mudança, da mesma maneira do período imperial, são entendidas no período republicano de maneiras nem sempre coincidentes entre advogados e perseguidos políticos, entre advogados e movimentos populares. Assim como na advocacia abolicionista, a advocacia com perseguidos políticos colocava quem defendia no papel de contestador da ordem, num espaço de liberdade, onde a defesa assume função crítica quanto à necessidade de mudança no direito. Ademais, a discussão presente na advocacia abolicionista, de que advogados só deveriam aceitar causas justas, persiste na posição marginal de uma advocacia emancipatória, de direitos, com perseguidos políticos e movimentos populares.Como linha condutora para estas comparações utilizam-se as perguntas: Como a mobilização de direitos instrumentalizada pela advocacia pode restringir a amplitude da luta nas instituições políticas clássicas da sociedade ocidental? Como pode ampliar uma via alternativa e emergente encarnada pelos movimentos populares? Haveria um fator desmobilizador na esperança, na crença de que as soluções podem ser alcançadas juridicamente? As medidas legais dos advogados podem inibir a ação política tradicional?Ainda sobre as semelhanças da advocacia de perseguidos políticos na ditadura com a advocacia abolicionista no império, destaca-se a atuação seletiva em causas que o advogado patrocina por considerar justas.Para ilustrar estas causas são trazidos testemunhos de advogados que atuaram no período da ditadura e também após, inclusive com envolvimento nos movimentos de luta armada. A metodologia dos testemunhos pode contribuir para a construção de uma representação da memória coletiva sobre este momento da história do país. Para Edson Telles, o Estado autoritário da ditadura impôs uma transição, onde a anistia entra como marco da transição da ditadura para o estado de Direito, visando silenciar o drama vivido diante da violência estatal, limitando ou eliminando a possibilidade de superação. Para ele,a memória é um dos temas centrais nas democracias contemporâneas, e um dos modos como é empregada são as batalhas de memória, nas quais se busca a hegemonia do discurso coletivo nacional sobre o passado traumático (2015, p. 58).À guisa de comparação, no período imperial, a transição fora também pensada pelos advogados. Para aqueles que defendiam direitos e interesses dos senhores, a transição deveria ser feita em termos históricos quanto ao surgimento de novas leis, de forma lenta, gradual e pacífica, confirmando assim “o positivismo” entre nós antes mesmo da influência das ideias de Augusto Comte no período da formação da República brasileira. Logo, nada de mudança de natureza revolucionária em ambos os períodos comparados.A pesquisa empírica com documentos históricos e testemunhos pode colaborar para a compreensão do direito na sociedade brasileira. As teorias do direito precisam ser contextualizadas para que tenham aplicabilidade. Conforme Pinguelli Rosa, a ciência e a sociedade estão em interpelação, de tal forma que a ciência dominante é aquela que está formada no contexto social. Isto é,a ciência não se desenvolve de modo autônomo no plano intelectual das ideias. Seus conceitos e teorias tem uma profunda relação com o contexto histórico, tanto nos aspectos intelectual e cultural como nos aspectos econômico, social e político (2005, p. 15-16).Na tese Direito insurgente na assessoria jurídica de movimentos populares no Brasil, Luiz Otávio Ribas (2015) realiza entrevistas com advogados que trabalham com movimentos populares há mais de 20 anos, seja na defesa de perseguidos políticos na ditadura, seja no apoio à movimentos populares na atualidade. A técnica de pesquisa de entrevistas produz documentos orais (documentário), que podem ser compartilhados e debatidos em outros trabalhos. Uma das suas conclusões foi a percepção de uma contradição no trabalho na advocacia com perseguidos políticos. Ao tempo que alguns advogados foram muito além do que era esperado de suas funções como profissionais, houve quem defendeu os perseguidos políticos buscando legitimar sua prática como apoio jurídico profissional. Não houve, necessariamente, o compartilhamento das mesmas causas dos grupos insurgentes, aqueles que se envolveram na luta armada o teriam feito como militantes, e não como advogados (profissionais). Alguns reforçaram nos depoimentos a impossibilidade de assumir uma posição política no trabalho de advogado, sob pena de receber o mesmo tratamento de perseguição. Seria comum que os agentes do regime buscassem atrelar o trabalho dos advogados ao de grupos insurgentes, no sentido de persegui-los. Para sua própria proteção em relação ao Estado autoritário, adotariam uma posição oficial de pertencer à corporação, à Ordem de Advogados do Brasil (OAB), supostamente sem vinculações partidárias e sindicais. Alguns relatam que não havia uma articulação forte entre quem atuava na defesa de perseguidos políticos, embora fossem formados pequenos coletivos em torno de escritórios, com o apoio da igreja, por exemplo. Eram comuns “aglomerações” de advogados para denunciar torturas, sendo que alguns escritórios funcionavam como base para comunicação, com familiares de perseguidos, inclusive com organizações políticas. Como consta na declaração de Idibal Pivetta, sobre o trabalho com perseguidos, no período de 1960 a 1980, no Rio de Janeiro e São Paulo:Às vezes numa tarde, no nosso escritório, estava o representante da ALN7, que tinha ido ver sobre a sua filha que estava presa; estava o representante da VAR-Palmares8, da VPR9, do MOLIPO10, de todas estas entidades, estavam lá a procura de notícias dos seus entes, seus parentes e tal. E também levando informações sobre novas prisões etc. (RIBAS, 2015, p. 54).Ainda conforme Ribas (2015), esta declaração demonstra o quanto que alguns advogados foram além de suas funções profissionais e arriscaram-se no envolvimento com as organizações clandestinas. Ademais, a postura defensiva de não vinculação com as causas dos perseguidos políticos contrasta com o florescimento de inúmeras organizações e redes formais e informais no período ditatorial, especialmente na área trabalhista e agrária. Seriam exemplos, na década de 1970, a Associação Nacional de Advogados dos Trabalhadores na Agricultura (ANATAG); a Associação Nacional de Advogados das Lutas Populares (ANAP); a Associação Brasileira de Advogados Trabalhistas (ABRAT); e, na década de 1980, o Coletivo Jurídico da Central Única dos Trabalhadors (CUT-Jur), entre outros. Estas articulações tiveram desdobramentos nos anos subsequentes, com coletivos de direitos em organizações religiosas, de trabalhadores, organizações não governamentais (ONGs) e movimentos sociais. Como exemplo, estariam na década de 1980 o “grupo de esquerda da OAB”; o coletivo de direitos da Comissão Pastoral da Terra (CPT); a Articulação Nacional dos Movimentos Populares e Sindicais (ANAMPOS); o Instituto Apoio Jurídico Popular (AJUP); e, na década de 1990, o Setor de direitos humanos do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e a Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares (RENAP), entre outros. Pode-se se afirmar, portanto, que há uma mobilização de direitos por grupos de advogados, inclusive articulados para uma ação coletiva de advogados, refletindo sobre sua organização e suas pautas específicas.Ribas (2015) destaca que as justificativas para esta organização passam desde o alto grau de complexidade das ações judiciais, com a realização de cursos e seminários de aprofundamento técnico e político; até a necessidade de apoio a advogados que atuam pela primeira vez, ou então em lugares afastados dos grandes centros. Na descrição das estratégias de atuação em ações complexas e em locais afastados dos grandes centros, Sueli Bellato apresentou duas situações graves. A primeira foi a estratégia do grupo de advogados para atuação em locais com pessoas ameaçadas, ou na defesa dos interesses de pessoas assassinadas. O trabalho coletivo com outros profissionais e organizações, com articulação nacional e até internacional, seria medida obrigatória para este tipo de ação, para preservar a vida do advogado. A segunda questão é relativa a complexidade de causas que supostamente estavam resolvidas na república brasileira, como o trabalho escravo. Conforme pode ser observado no relato da advogada Sueli Bellato, sobre sua atuação no meio rural, em diferentes regiões do país, desde 1980:Na primeira fase era muito trabalho escravo, eram muito aquelas denúncias dos maus tratos, dos contratos de arrendamento que eram feitos de forma leonina, opressora. No segundo momento é o direito à terra, terra, trabalho. Acho que aí forma uma outra associação, que é a RENAP, convidando os advogados das antigas associações (RIBAS, 2015, p. 29).Segundo Ribas (2015), o respaldo de uma articulação nacional, e em alguns casos, internacional, permitiria o confronto com o Poder Judiciário na defesa das causas destes movimentos populares, assim como conferiria mais segurança frente à ameaças e perseguições sofridas – em contextos de extremo autoritarismo e impunidade. A articulação com advogados e organizações foi facilitada com a difusão da internet, que facilitou a comunicação, com a troca de petições e outros documentos essenciais neste tipo de atuação. Mas nestas situações extremas, existiriam relatos de tentativas de envolvimento de pessoas sem formação jurídica para escrever petições e acompanhar audiências no interior, mas até o momento não teria sido possível perceber se foi uma prática comum. Causa estranhamento quando há um advogado defendendo escravos, grevistas, socialistas, anarquistas e outros; quando o defensor não é advogado este estranhamento pode ser ainda maior.Aqui trabalha-se com a ideia de que não há mudança de pensamento sem luta social, de que não é o processo judicial que provoca a mudança social. Mas que toda uma ideia e correspondente realidade de conflitos e crises sociais funcionam como condição de produção de mudança social. Contraditoriamente, no período republicano analisado, a mobilização por mudança, por democracia, por direitos, manifesta-se, por exemplo numa social-democracia trabalhista, que é apoiada por advogados. A justiça do trabalho representa a ideologia trabalhista de conciliação de classe. A luta por direitos, no Brasil, é também um desdobramento disto, não vai além. Há uma distância entre os projetos políticos dos movimentos populares e as causas defendidas pela advocacia na mobilização de direitos. Assim, a pauta dos direitos humanos como uma estratégia de movimentos sociais é restringida pelo horizonte da luta num republicanismo democrático. O próprio conceito de movimentos sociais contemporâneo já aponta para este sentido, o abandono das pautas abolicionistas do capitalismo. Não há projeto político novo sinalizado na pauta dos movimentos sociais e dos direitos humanos. Mas, a novidade encontra-se nos movimentos populares, que possuiriam para além da reivindicação de direitos e contestação do autoritarismo, um projeto político e uma identidade com a classe trabalhadora.Ribas (2015) apresenta alguns casos que escapam destas noções gerais, de quem se envolveu fortemente com a ação coletiva de contestação política. É o caso dos advogados que envolveram-se com a luta armada contra a Ditadura, como Ruy Medeiros, que foi perseguido pelo trabalho como advogado e como militante político. Assim como Carlos Araújo, que envolveu-se na organização política da resistência armada e advogou. Eles fizeram uma politização radicalizada da advocacia, na tentativa de provocar uma desestabilização por meio do engajamento com movimentos populares. Isto porque haveria uma luta ideológica na advocacia, como nos casos de Idibal Pivetta e Sueli Bellato, que fizeram a defesa de sindicalistas nas greves dos metalúrgicos durante a ditadura. Naquele momento, a greve era proibida, a defesa deste direito em juízo provocou uma desestabilização porque existiam greves massivas e organizadas. Há uma discussão se era uma greve política ou econômica, sobre qual a importância desses processos judiciais pelo direito de greve. As greves de metalúrgicos no interior de Minas Gerais e São Paulo, em 1980, são exemplos de uma desestabilização que é provocada pela via da ilegalidade. As greves pioneiras de Betim-MG e Osasco-SP deixaram de ser ilegais num determinado momento pelo governo militar. Estas mobilizações de trabalhadores fragilizaram o regime autoritário, uma vez que demonstravam o esgotamento do plano econômico e a crise social. Eram manifestações pela reposição das perdas salariais, uma pauta econômica, mas veiculadas por meio ilegal, uma vez que as greves estavam proibidas. A permanência da greve, mesmo ilegal, leva a um questionamento desta lei, assim como a contestação do regime político. De uma pauta social, a reposição salarial comprometida pela inflação, passa-se para a liberdade de greve, com forte apoio popular. Foi um dos fatos políticos que influenciou o fim da ditadura, aquele clima de restrição de direitos políticos e civis tornou-se insustentável. As greves eram econômicas, e não políticas. Tinham como consequência a desestabilização do regime porque era um regime autoritário, mas não era este o objetivo. Tanto que encerrado o período da ditadura, não há mais greves com aquela proporção.Além deste “documentário” feito por Ribas, Silvio Tendler (2014) em Os advogados contra a ditadura, apresenta algumas informações sobre as características do regime ditatorial e a necessária e vital indignação dos advogados, exercendo resistência no judiciário. Num primeiro momento, que desde o primeiro dia, pessoas já teriam sido torturadas e outras assassinadas, inclusive no meio rural; e que algumas pessoas já teriam sido presas em Minas Gerais antes da deflagração do golpe. Que o golpe no Brasil inaugurou estádios como campos de concentração na América Latina, quando teriam sido presas milhares de pessoas no Estádio Caio Martins, em Niterói-RJ. Num segundo momento, com os depoimentos de advogados são trazidas algumas das mesmas questões já trabalhadas. Airton Soares, questiona até que ponto a atuação dos advogados legitimava o sistema da ditadura. Uma vez que, conforme Eny Moreira, as auditorias militares teriam sido criadas para dar impressão frente à opinião pública internacional que havia julgamento com direito a defesa. Alguns acreditavam que estavam agindo por dever em virtude da queda do governo legal e constitucional, como Alcione Barreto. Humberto Jansen Machado menciona que mesmo na ditadura, em condições difíceis, poderia haver uma decisão favorável para seu cliente. Embora, como assinala Modesto da Silveira, as condições eram precárias, porque as ações eram encaminhadas para a justiça militar, na sua visão mais manipulável do que a justiça comum. Mas esta questão não está livre de polêmica, quando Técio Lins e Silva afirma que em parte, a justiça militar apresentou características legalistas e garantistas, isto é, teria cumprido um papel inesperado pela ditadura, mantendo uma estrutura de justiça. A função dos advogados seria levar ao conhecimento público o que acontecia com os perseguidos políticos e, em casos extremos, evitar a morte de alguns deles. Mário Simas destaca que havia uma guerra ideológica, com a doutrina da segurança nacional, obrigando os advogados a entender de política, uma vez que esta doutrina desenvolvia-se nos processos – ainda mais que “A opção que ele faz como advogado para este tipo de advocacia ou para este tipo de especialização já é uma opção política”, explicou Simas. Para Omar Ferri, a profissão do advogado desempenhava uma função de luta contra a ditadura, uma inspiração da atividade política e de protestos contra a ditadura.A maior parte dos estudiosos estão preocupados apenas com a visão interna, e buscam compreender apenas como pode o direito regular a sociedade. A análise interna do direito é insuficiente, pois sem luta social não há mudança de ideia no pensamento do direito.No período republicano há uma mudança de perfil nos advogados, pois estes passam a compartilhar das ideologias dos movimentos populares, no caso dos advogados populares, algo que não acontecia no caso dos advogados abolicionistas no período imperial – que embora considerassem justas as causas que defendiam, não as consideravam suas próprias causas. Há, ainda uma mudança do lugar, quando estes estão mais engajados nas lutas populares, como a luta contra a ditadura e a luta por reformas e mais direitos.Na conjuntura atual o dilema sobre o uso político do direito voltado ora para a conversação da ordem social, ora para a transformação, possui contornos dramáticos. São recorrentes reformas pelo Congresso e pelo governo no sentido de flexibilização de direitos, até mesmo de perdas substanciais. Neste sentido, a mobilização de direitos pode estar voltada para a conservação da ordem constitucional, por exemplo. Desta forma, é necessário aprofundar este problema em relação aos espaços de participação.2.2 Espaços de participação e mobilização de direitosNeste último tópico, cabe relacionar o que há de político na advocacia nos espaços de participação e mobilização de direitos e aprofundar mais exemplos de apoios de advogados. Há casos em que houve brechas para que os advogados politizassem o exercício da advocacia, isto é, momentos em que estes não somente expressavam suas orientações e interpretações sobre o direito, mas também o problema político-administrativo da construção do Estado brasileiro democrático. Assim, ao invés de uma advocacia abolicionista ou com perseguidos políticos e a consequente desestabilização pela contestação do regime político vigente, temos hoje uma advocacia com mobilização por direitos, na representação de causas dos movimentos populares. O argumento construído é de que a apropriação dos espaços de participação e a pressão para seu aumento de quantidade e qualidade, seja por vias formais ou informais, legais ou ilegais, qualifica a mobilização de direitos. A advocacia, neste sentido, pode oferecer o apoio jurídico para que esta participação possa estar direcionada aos seus objetivos mais legítimos, com pouca interferência do jurídico sobre a ação política dos movimentos populares. Mesmo que não compartilhe ideologicamente dos projetos políticos em discussão, estes advogados participam da mobilização na defesa de causas.Neste sentido, estão as problemáticas: 1) A percepção dos advogados sobre as desigualdades sociais influencia o funcionamento da advocacia num determinado período histórico?; 2) A percepção sobre o papel do direito na sociedade pode potencializar lutas emancipatórias que passam pelo campo jurídico?; 3) O direito estatal está voltado para a conservação ou a transformação?Estas perguntas, se formuladas de forma específica quanto aos advogados, de senhores e escravos, do Brasil imperial no período estudado, mais do que garantirem respostas do tipo “sim” ou “não”, revelariam um “talvez” como expressão das ambiguidades e contradições da nossa história e da nossa sociedade naquele período. Este “talvez” foi tratado como encarnação de um “dilema” da advocacia imperial. Agora também serão analisadas ambiguidades do dilema da advocacia de direitos.No texto Sociologia do campo jurídico, Fábio Engelmann (2006) aborda este dilema do direito como tecnologia para conservação da ordem social ou então como instrumento de transformação social. Especialmente a partir da década de 1990, quando a nova Constituição teria propiciado uma politização do direito, com a mobilização de repertórios de direitos inserido num contexto de internacionalização dos direitos humanos, com suas redes formais e informais. As abordagens deste estudo vão desde o ensino jurídico até as profissões mais tradicionais, como a magistratura, a advocacia e a promotoria. Mas o destaque está nos usos políticos do direito na advocacia de causas coletivas e a magistratura alternativa. Neste ínterim, coloca a crítica de que estes grupos não se apropriaram do marxismo, mas de um alternativismo, jusnaturalismo, cristianismo e outras vertentes. Estes coletivos, portanto, teriam como características o ecletismo e a heterogeneidade.Alguns exemplos de mobilizações de direitos com participação de advogados podem ser encontrados no trabalho de Luiz Otávio Ribas (2015), em que estas características relacionadas também puderam ser percebidas. Principalmente, a difusão de uma teologia da libertação entre os advogados que militavam na defesa dos movimentos sociais. Um ponto específico que pode ser identificado foi a presença de advogados engajados na burocracia estatal, como os procuradores de Estado, que leva a consideração de que o Estado pós-ditadura abriu espaço para participação destes advogados na administração da justiça. O testemunho dos advogados de movimentos populares demonstrou que o binômio democracia e ditadura é insuficiente para compreender a dinâmica dos direitos, uma vez que vários direitos foram mobilizados na Ditadura e outros negados na democracia.A mobilização pode ser identificada por meios judicial e administrativo, como nos exemplos tratados por Ribas (2015), dos mandados de segurança coletivos revisionais das prestações do Banco Nacional de Habitação (BNH) no Rio Grande do Sul, em 1980; da criação do Núcleo de Terras na Defensoria Pública do Rio de Janeiro, em 2000; da desapropriação e ocupação da Fazenda Annoni, no Rio Grande do Sul, em 1970 e 1980.Como exemplo de mobilização por meio judicial estão os mandados de segurança coletivo para revisão das prestações do Banco Nacional de Habitação (BNH), no Rio Grande do Sul e em todo o país, em 1980, que provocou forte mobilização de direitos. O governo militar impõe, em 1983, altas tarifas para a prestação da casa própria com financiamento público, tornando a maior parte das dívidas impagáveis. A organização popular por bairro articulou o apoio de advogados que a assessorou na estratégia de entrar em juízo para anular os reajustes e garantir o direito de moradia. Embora não existisse a previsão legal do mandado coletivo, ou outros instrumentos de peticionamento coletivo, esta atuação foi precursora para mudanças na política judicial, como a criação da ação civil pública e outras ações coletivas previstas na Constituição Federal de 1988.A lição da advocacia abolicionista foi empregada no contexto do uso estratégico de outro procedimento jurídico, que não a ação de liberdade, com o objetivo de discutir o objeto da mesma ação. Aqui está o uso estratégico de ações individuais repetidas e coletivizadas para discutir casos idênticos.Como exemplo de mobilização por meio administrativo está a criação do Núcleo de Terras na Defensoria Pública do Rio de Janeiro, em 2000. Este foi um desdobramento do coletivo criado na procuradoria do Estado, como estratégia para viabilizar a assessoria jurídica de loteamentos urbanos em regularização. O processo judicial pode ser apenas uma das arenas onde acontecem as disputas pelo poder político. O relato sobre o apoio jurídico à ocupação da Fazenda Annoni, pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), no Rio Grande do Sul, em 1985, elucida este argumento. A desapropriação da Fazenda do uruguaio Annoni iniciou em 1973, incentivada por motivos políticos, uma vez que o proprietário resolveu filiar-se ao partido de oposição ao governo – Partido Democrático Trabalhista (PDT). Os militares teriam iniciado o processo de desapropriação da fazenda por perseguição política, escondida no argumento do descumprimento da função social da propriedade. A ocupação do imóvel com 32 mil hectares durou quatro anos, de 1985 a 1989, e envolveu 3000 famílias. A disputa no campo jurídico não seria decisiva, neste caso, como em muitos outros, mas foi um espaço para que o político pudesse avançar. A direção do MST na época entendia que a crença nas soluções jurídicas poderia ser um fator desmobilizador da ação política mais ampla. Isto levou o movimento, por exemplo, a não ajuizar ações judiciais para negociar a desapropriação das fazendas ocupadas.Esta desconfiança com o Poder Judiciário também pode ser percebido no depoimento dos advogados dos perseguidos políticos e dos sindicalistas grevistas durante o período da ditadura. Havia polêmica sobre a organização de uma defesa em juízo, sob risco de estar legitimando a ordem jurídica do regime militar. Por um lado, acreditava-se que participar dentro das normas legais em vigor era uma chance de denunciar suas arbitrariedades. Por outro lado, alguns escolheram não compactuar com a ordem legal, realizando uma defesa formal. Aqui há uma coincidência com a advocacia abolicionista, que precisava equilibrar-se entre a defesa do contrato e da constituição que preservava o direito de propriedade e a argumentação de um direito à liberdade contra o direito de propriedade. O questionamento da legitimidade e legalidade da propriedade de escravos de outrora, alimenta a posição de contestação do direito de propriedade da terra que não cumpre a função social. Estes exemplos guardam relação com a politização do papel do advogado. Os ideais pela mudança costumam ser qualificados na advocacia como social-democratas (advocacia engajada ou ativista), ou como socialistas (advocacia popular).Sobre advocacia popular, Boaventura de Sousa Santos (2014), em Para uma revolução democrática da justiça, aborda a democratização do acesso ao direito por meio da assessoria jurídica popular universitária, da capacitação jurídica de líderes comunitários e das promotoras legais populares. Estas últimas buscam “socializar, articular e capacitar mulheres nas áreas do direito, da justiça e nomeadamente no combate à discriminação de gênero”. (2014, p. 62). Enquanto que as assessorias universitárias, normalmente são exercidas por estudantes de direito, na articulação de ensino, pesquisa e extensão para redefinição do lugar social da universidade. Por fim, a advocacia popular “acaba por subverter os pressupostos de imparcialidade, neutralidade e despolitização das profissões jurídicas apostando na aproximação, autonomização, organização e mobilização política dos movimentos sociais e organizações populares” (p. 76). Para o autor, esta pode realizar o potencial emancipatório do direito quando pró-ativa e com certa dose de vigilância epistemológica.Nestes momentos analisados sobre o período republicano, alguns advogados estavam participando diretamente das marchas, das ocupações, envolvidos na discussão política, não só judicial, o que seria uma advocacia popular propriamente dita. Estes exemplos podem demonstrar que não há um dualismo entre conservação e transformação, ou entre ditadura e democracia. Mas que são possíveis usos políticos do direito na ditadura que se voltem para a transformação social; assim como os usos políticos do direito na democracia que se voltem para a conservação social. Entre outras combinações possíveis que podem representar de maneira mais comprometida com a realidade a complexidade destas relações sociais. No período atual há um descentramento das lutas populares por democracia. Também há uma busca pela conservação no meio popular, isto é, na luta para a não perda de direitos, uma tentativa de manter tudo como está.Como se fosse a advocacia tradicional, que é aquela envolvida na manutenção da ordem e da ideologia dominante. O discurso dos direitos quando apropriado nas lutas potencializa a advocacia. Mas, a advocacia não serve para representar a multiplicidade de ideologias e concepções de mundo dos movimentos populares. Está um passo atrás da ideologia dos movimentos populares, por mais que participe das discussões. Os advogados só vão até a mobilização de direitos, e não na defesa das causas populares na sua totalidade. No confronto, na busca de semelhanças entre o hoje e o ontem – entre o republicano e o imperial -, entende-se que quanto à atuação dos advogados dos escravos na justiça imperial, a ideia de “causa”, ainda que problemática, aparecia na argumentação daqueles advogados. Em geral, os advogados de direitos no período republicano não conhecem os projetos de sociedade defendidos pelos movimentos, mas restringem-se a uma defesa dos direitos humanos como causa. Um projeto de direitos humanos que no Brasil é de uma sociedade republicana democrática, enquanto que os movimentos populares, em geral, defendem uma sociedade socialista. Desta forma, entende-se que os liberais, ou qualquer outra ideologia política, não detém o monopólio sobre o sentido dos direitos na sociedade.Embora aceite-se o que Ronald Dworkin (2002) entende como a necessária crítica à teoria dominante do direito, o positivismo jurídico na questão sobre o que o direito é; e o utilitarismo econômico no que diz respeito a como o direito deve ser; não perdura a aceitação em relação à defesa de uma teoria liberal do direito. No período republicano, a consideração sobre ideologia dos advogados precisa de graus para o liberal, o conservador, o socialista, entre outros.ConclusãoNum primeiro momento, explorou-se a advocacia frente à luta abolicionista da escravatura na justiça do Brasil imperial. As contradições foram apresentadas no campo jurídico como campo de força, um meio de sustentação da defesa de interesses e direitos tanto de senhores quanto de escravos. O estudo das Ações de Liberdade demonstrou que a Justiça era transformada em campo de lutas políticas através da advocacia que defendia ou a liberdade dos escravos ou a propriedade dos senhores.Demonstrou-se assim, a importância do papel dos advogados na luta abolicionista da escravatura no Brasil imperial e suas contradições. Sobre os pontos atinentes à profissão foi problematizada a questão sobre os motivos que levavam um advogado a aceitar ou recusar determinada causa. Neste sentido, conclui-se que a advocacia precisava ser disciplinada num determinado ponto de vista, uma vez que haviam advogados de escravos que revelavam atuação política através da linguagem do direito não positivado, voltado para caráter político ou de uso contestador.As desigualdades socialmente hierarquizadas do período imperial remetem à luta pela emancipação da escravidão, que tiveram inúmeras contradições numa advocacia que atuava na defesa de pessoas escravizadas. Uma das contradições consistia na defesa da liberdade, em função da escravidão atingir a dignidade humana, ao tempo que mantinham ou defendiam a liberdade expressa no direito de propriedade, inclusive de escravos. Em alguns casos, constata-se a defesa da emancipação por advogados proprietários de escravos.Assim, resta restringida a amplitude de uma luta política que não encontra respaldo para além da atuação profissional. A concepção de Estado e de Direito é em parte liberal, pelo entendimento da igualdade formal e a consequente abolição da escravatura. Mas que não envolvem os advogados no movimento abolicionista para além da defesa individual em juízo, em alguns casos, sequer a alforria dos seus próprios.Instrumento regulado principalmente de modo jurídico para dar tratamento igualmente jurídico às querelas de liberdade entre senhores e escravos, as Ações de Liberdade revelaram, no entanto, natureza heteróclita. Diante de como a argumentação dos advogados levantava frequentemente o problema da ameaça da ordem pública e da desestabilização econômico-social em face da libertação dos escravos, foi possível reconhecer a natureza política da prática da advocacia na justiça do Brasil imperial. As consequências possíveis da libertação dos escravos, discutidas ou apenas mencionadas nas Ações, foram consideradas como forma de revelação da natureza política desses processos na justiça. Porém, foi o modo como estas consequências eram percebidas como verdadeiro problema pelos advogados que permitiu reconhecer não apenas que estes processos judiciais tivessem natureza política, mas também que eles pudessem ter sido usados estratégica e politicamente por muitos advogados como mecanismo de realização ou manifestação de ideias abolicionistas.Num segundo momento, foi estudada a advocacia frente às lutas emancipatórias no período republicano. A abordagem da advocacia como profissão versus trabalho com movimentos populares revelou certa unidade de lutas emancipatórias entre os movimentos na luta pela democracia e por mais direitos, após o final das ditaduras. Além da própria caracterização de uma advocacia por democracia e mais direitos. Em relação à questão das mobilizações por direitos instrumentalizadas pela advocacia poderem restringir a amplitude da luta política, foi respondido que existem semelhanças do período da ditadura com o imperial, pela perspectiva de desestabilização do poder instituído. O que se torna diferente no contexto pós-ditadura, quando assume caráter reivindicatório e de manutenção ou aprofundamento da democracia. Os espaços de participação e mobilização por direitos com apoio de advogados trouxeram à tona a questão do direito como instrumento de conservação ou de transformação social. Neste sentido foi acentuado o quanto que a percepção dos advogados sobre as desigualdades sociais influenciaram no funcionamento da advocacia num determinado período histórico.No período republicano contemporâneo, as lutas emancipatórias multiplicam-se e estão sujeitas a contradições dos que protagonizam sua instrumentalização pela advocacia. Os advogados de movimentos populares percebem as desigualdades sociais em níveis diferentes, assim como as características das lutas sociais apoiadas que variam de acordo com a abertura ou fechamento dos espaços de participação – ora lutas democráticas, ora lutas revolucionárias. Existem ainda mudanças sobre os usos do direito e o posicionamento dos advogados na relação com os movimentos populares. Enquanto alguns seguem a linha da profissionalização e um distanciamento da defesa das causas de mobilização por direitos que patrocinam em juízo – funcionam como apoio – ; outros buscam aproximação na assessoria aos movimentos – como quadros de referência para assuntos do direito e relação com o Estado – ; por fim, outro perfil é de aproximação radical de advogados intelectuais orgânicos de movimentos populares, compartilhando ideologicamente suas causas.Contemporaneamente, o problema da desigualdade ainda é uma marca na sociedade brasileira, onde é possível inclusive encontrar trabalho escravo em proporções incompatíveis com um regime capitalista. A política, operacionalizada também pelo direito, traduz preservação ou mudança nas relações entre proprietários e não proprietários dos meios de produção, num regime de dependência econômica que implica na exploração da periferia pelo centro. A percepção dos advogados sobre estas desigualdades sociais pode mobilizá-los para uma preservação ou mudança destas relações.Importante notar que a advocacia abolicionista foi marginal no seu tempo, tendo hoje um sentido emancipatório, mesmo que com seus dilemas e contradições. O mesmo processo ocorreu com a advocacia de perseguidos políticos, que no seu tempo eram vistos como igualmente perigosos e subversivos. Hoje são símbolos da luta pela liberdade e pela democracia no Brasil. Terão o mesmo destino os advogados de movimentos populares, tidos como defensores da desordem e da ilegalidade?A respeito do debate sobre o potencial emancipatório do direito, restringe-se a argumentar que as mudanças no direito acontecem quando há luta social, deixando dúvidas sobre a qualidade das mudanças sociais impulsionadas pelo direito. A mobilização de direitos implica numa representação jurídica do uso político do direito, ou numa apropriação pelos movimentos populares do discurso dos direitos humanos.Referências bibliográficasADVOGADOS CONTRA A DITADURA: por uma questão de justiça. Direção de Silvio Tendler. Rio de Janeiro: TV Brasil, 2014. 1 DVD (130 min). BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico 6. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003. BOURDIEU, Pierre.Sociologia (organizado por Renato Ortiz). São Paulo: Ática, 1983. BURRAGE, M., TORSTENDAHL, R. (Eds.). The formation of professions. Knowledge, state and strategy London: SAGE Publications, 1990. CANECA, F. Ensaios políticos. Rio de Janeiro: Ed. da PUC; Documentário, 1976. COLLINS, R. Theoretical Sociology. San Diego: Harcourt Brace Jovanovich, 1988. DWORKIN, Ronald. Levando os direitos à sério. Tradução: Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2002. FALBO, Ricardo Nery. Contradições e ambiguidades no Brasil Imperial: o dilema dos advogados na justiça. TESE – Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (UCAM). Doutorado em Sociologia. Rio de Janeiro, 2004. FALBO, Ricardo Nery.Sociologia e Direito: condições de possibilidade do projeto interdisciplinar. Revista da Faculdade de Direito da UERJ, n. 19, v. 1, 2011. ENGELMANN, Fabiano. Sociologia do campo jurídico: juristas e usos do direito. Porto Alegre : SAFE, 2006.
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A Inconfidência Mineira e Tiradentes vistos pela imprensa: a vitalização dos mitos (1930-1960) Thais Nívia de Lima e FonsecaSOBRE O AUTOR Resumos Este artigo analisa as apropriações, pela imprensa, das representações da Inconfidência Mineira e especialmente de Tiradentes, entre as décadas de 30 e 60 do século XX, quando foi muito intensa a preocupação com a memória do movimento e de seu mais ilustre personagem. A análise da produção jornalística sobre o herói nacional procura identificar os principais elementos constituidores desses textos indicando, por um lado, a vitalidade dos mitos e, por outro, o poder persuasivo das associações estabelecidas entre o sacrifício heróico de Tiradentes e as condutas dos que se colocam como seus herdeiros, buscando no passado a legitimação para as ações do presente. Inconfidência Mineira; imprensa; representações políticas This article shows how Brazilian press appropriates the representations of the Inconfidência Mineira and specially of Tiradentes between the decades of 1930 and 1960. It intends to identify the main elements of these elaborations, such as the vitality of the national hero myth and the persuasive power of the associations between Tiradentes's sacrifice and his modern heirs. The legitimation of present actions is based on past events. Inconfidência Mineira; press; political representations A Inconfidência Mineira e Tiradentes vistos pela Imprensa: a vitalização dos mitos (1930-1960)* Thais Nívia de Lima e Fonseca Universidade Federal de Minas Gerais RESUMO Este artigo analisa as apropriações, pela imprensa, das representações da Inconfidência Mineira e especialmente de Tiradentes, entre as décadas de 30 e 60 do século XX, quando foi muito intensa a preocupação com a memória do movimento e de seu mais ilustre personagem. A análise da produção jornalística sobre o herói nacional procura identificar os principais elementos constituidores desses textos indicando, por um lado, a vitalidade dos mitos e, por outro, o poder persuasivo das associações estabelecidas entre o sacrifício heróico de Tiradentes e as condutas dos que se colocam como seus herdeiros, buscando no passado a legitimação para as ações do presente. Palavras-chave: Inconfidência Mineira; imprensa; representações políticas. ABSTRACT This article shows how Brazilian press appropriates the representations of the Inconfidência Mineira and specially of Tiradentes between the decades of 1930 and 1960. It intends to identify the main elements of these elaborations, such as the vitality of the national hero myth and the persuasive power of the associations between Tiradentes's sacrifice and his modern heirs. The legitimation of present actions is based on past events. Keywords: Inconfidência Mineira; press; political representations. No estudo das representações políticas a imprensa constitui fonte das mais expressivas. Seu papel como uma força política é amplamente reconhecido, e no Brasil, desde o século XIX, ela tem participado ativamente da vida política do País, sendo capaz de exercer influência, expressar posicionamentos, ajudando a construir ou a consolidar opiniões, como ocorreu, por exemplo, em relação à campanha abolicionista1. Há muito tempo os jornais têm dado espaço ao tema da Inconfidência Mineira, quase sempre para a exaltação de Tiradentes como herói e mártir, usando-o como modelo em discursos em geral de natureza nacionalista e/ou moralista. A história de Tiradentes passou a ocupar espaço na imprensa com o crescimento do movimento republicano na segunda metade do século XIX e, mais ainda, com a instalação da própria República. Desde então, artigos, poemas, reportagens, ensaios e outras modalidades de textos têm sido publicados prodigamente, sobretudo no momento da celebração da morte do herói, a 21 de abril. Antes mesmo de tornar-se foco de interesse da historiografia, a Inconfidência Mineira já era tema de uma vasta produção de textos de natureza diversa. Levantamentos já bastante conhecidos indicam expressivo volume de publicações sobre ela ainda no século XIX2. Artigos, conferências, discursos, romances, contos, peças de teatro, óperas e poemas já tomavam a Inconfidência Mineira e seus personagens como tema, na segunda metade do oitocentos, demonstrando a existência de um interesse que não pode ser reputado unicamente a uma construção oficial da memória da conspiração. É verdade que, naquele momento, uma parte do ainda incipiente movimento republicano tinha interesse na valorização da Inconfidência como fundadora da República e, por isso, estimulava sua difusão por diversos mecanismos. Mas creio ser possível perceber também outras formulações, provenientes de tradições culturais de significação mais ampla para uma parte da população, ao menos na região mais proximamente ligada aos episódios do movimento setecentista mineiro. Também é possível considerar as influências de uma cultura política mais enraizada, de caráter autoritário e personalista, derivada de práticas perceptíveis na longa duração, desde os tempos dos mandos dos potentados locais das áreas de mineração e dos sertões da Capitania das Minas Gerais. Se a Inconfidência Mineira tem sido elemento de suporte a uma determinada construção historiográfica e a projetos e posicionamentos políticos desde as últimas décadas do século XIX, Tiradentes desponta como seu símbolo, síntese das idéias das quais o movimento seria o precursor, no Brasil. Ele se tornou, talvez, o personagem mais popular da história nacional, adquirindo contornos heróicos e status de mito político. Apesar de muito marcada pela ação dos republicanos e de seus interesses, a construção desse perfil de Tiradentes não se deveu apenas a eles. Da popularidade presumida à transformação em herói e mito político, Tiradentes percorreu um caminho sulcado pela ambiência cultural de seu próprio tempo e pela herança deixada por ela em tempos posteriores. Muitas de suas representações foram, sem dúvida, construídas e manipuladas, mas em torno de um imaginário social específico, que permitiu seu reconhecimento até certo ponto espontâneo. A ação política, por sua vez, promoveu sua consolidação pela utilização induzida, organizada e intensiva. A criação e o enraizamento de mitos políticos, como é o caso de Tiradentes, devem ser entendidos na concretude das experiências e das referências sociais que "naturalizaram" a sua aceitação, permitindo sua circulação, seu reconhecimento e facilitando sua apropriação. Os elementos que compõem as representações predominantes da Inconfidência e, sobretudo, de seu mártir como as idéias de liberdade, coragem, abnegação, sacrifício, patriotismo são parte integrante das experiências sociais, culturais e políticas da sociedade brasileira, desde o século XVIII. Sem essas experiências coletivas, as tentativas dos republicanos de entronizar Tiradentes como o herói máximo da nação, com as características que o eternizaram, não teriam obtido sucesso, pois não encontrariam ressonância junto à população, ou seja, não estariam imbuídas de referências reconhecíveis por ela. Não se pode esquecer, ainda, que os próprios republicanos também eram parte integrante daquela sociedade, compartilhando das mesmas experiências e, portanto, valorizando-as como referências na construção de sua visão da Inconfidência Mineira. As primeiras obras sobre a Inconfidência Mineira, datadas da segunda metade do século XIX, produziram-se num contexto de disputas entre republicanos e monarquistas quando, sobretudo os primeiros, buscavam afirmação no cenário político brasileiro. É bastante conhecida a obra de Joaquim Norberto de Souza Silva que, em resposta ao movimento de entronização de Tiradentes levado a efeito pelos clubes republicanos, publicou, em 1873, a sua História da Conjuração Mineira3. As polêmicas suscitadas por sua abordagem acusada de depreciar a imagem de Tiradentes produziram outros trabalhos que procuraram demonstrar a "verdadeira" história do movimento e a "verdadeira" face de seu personagem mais conhecido. Um dos mais importantes foi Inconfidência Mineira papel de Tiradentes na Inconfidência Mineira, de Lúcio José dos Santos 4, publicado originalmente em 1927. No rastro desse movimento de reabilitação, ou antes, de defesa da integridade do herói republicano, outras obras vieram somar-se a uma bibliografia que se tornou vasta, porém pouco inovadora, marcada por abordagens de cunho marcadamente tradicional5. Estes textos, escritos em épocas diversas, têm em comum a preocupação com a construção de uma versão para a Inconfidência Mineira na qual se acentua o caráter exaltador, nacionalista e patriótico. Buscando subsídios nos Autos de Devassa, esses autores empenham-se na busca da "verdade" histórica, dissipadora de dúvidas sobre o real significado do movimento setecentista, sobre o papel desempenhado por seus protagonistas e, sobretudo, que reforce a legitimidade da Inconfidência Mineira como movimento precursor da Independência e de Tiradentes, como seu protomártir e herói máximo da nação. Em praticamente todos eles está presente a crítica, muitas vezes apaixonada, da obra de Joaquim Norberto e o cuidado na refutação, ponto por ponto, de sua versão dos fatos. Além disso, em muitos desses trabalhos nota-se uma indisfarçável conotação regionalista que procura, por meio da exaltação da Inconfidência, afirmar uma identidade regional, talvez a chamada "mineiridade". Esta forma de abordagem está fortemente marcada por uma concepção de história de herança tradicional, bem aos moldes do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, sobretudo em sua vertente republicana. São geralmente textos descritivos, fundamentados numa leitura linear nos Autos de Devassa da Inconfidência Mineira, excessivamente preocupados com uma correta cronologia, com a montagem de um perfil pessoal favorável de todos os inconfidentes exceto, é claro, dos delatores , maniqueístas e com discutível estruturação teórico-metodológica. Não obstante, são as matrizes a partir das quais a história da Inconfidência Mineira tem sido predominantemente construída e difundida, especialmente pelos meios de comunicação e pela escola. Curioso é que, mesmo quando provenientes de posicionamentos políticos distintos e, às vezes, opostos, o pano de fundo elaborado nestas obras, com a preocupação de enaltecer o movimento e seu herói, permanece inalterado. A partir da década de 1960, alguns trabalhos mais consistentes dedicaram-se à discussão da Inconfidência em outras dimensões, mais preocupados com suas relações com a crise do Antigo Sistema Colonial, levantando a questão do caráter revolucionário do movimento e de seus limites, analisando as relações sociais presentes na conspiração, procedendo, enfim, a uma reflexão menos linear, menos "apaixonada" da Inconfidência e evitando, ao máximo, concentrar sua atenção na figura de Tiradentes6. Essa vertente demonstrava, evidentemente, uma reação contra a historiografia tradicional sobre o tema. Um desses trabalhos, Idéia de Revolução no Brasil, de Carlos Guilherme Mota7, inovou ao propor uma reflexão dos movimentos anti-coloniais do ponto de vista de suas formulações ideológicas e políticas, sem preocupar-se com a cronologia tradicional dos fatos ou a participação mais marcada dos personagens. Kenneth Maxwell, em seu A devassa da devassa8 verticalizou a análise aprofundando-se na documentação mais conhecida sobre a Inconfidência, articulando-a a outras fontes, propondo uma abordagem inovadora e mais complexa do movimento. Não obstante, cuidou de não negligenciar os indivíduos que dele participaram, na medida em que fixou, na análise da teia de relações sociais estabelecidas entre os grupos atuantes na Inconfidência, um dos alicerces de sua análise. Essa obra tornou-se uma referência fundamental nos estudos sobre a Inconfidência. Mais recentemente, João Pinto Furtado realizou um mergulho na análise relacional das fontes, promovendo uma releitura dos Autos de Devassa9. É mister ressaltar que alguns estudos não propriamente voltados para a Inconfidência Mineira, mas para o conjunto das sedições coloniais em Minas Gerais, muito têm contribuído para o avanço das reflexões sobre a natureza desses movimentos e sua inserção no universo colonial. Entre esses trabalhos merecem destaque os estudos de Laura de Mello e Souza e Carla Maria Junho Anastasia10. A partir dos anos 90, uma reflexão mais crítica sobre o movimento, seu significado e sua historiografia, tem gerado alguns trabalhos inovadores. Debates em eventos acadêmicos, organizados na ocasião das comemorações dos bicentenários da Inconfidência e do enforcamento de Tiradentes (em 1989 e 1992, respectivamente), trouxeram nova luz à discussão. Além de balanços da produção historiográfica sobre o tema, esses encontros provocaram a reflexão sobre a comemoração, suas representações, seus significados simbólicos, sua inserção no imaginário coletivo. Nesse momento foi possível perceber as possibilidades de outras vertentes, de novas abordagens para um objeto tão curtido e repisado, ao mesmo tempo que espinhoso e tratado quase sempre de forma uníssona. Os aportes da História Cultural, os estudos sobre o imaginário, o simbólico e as representações apareceram no cenário sinalizando os caminhos possíveis para a análise da Inconfidência Mineira sem os vícios nacionalistas da historiografia tradicional, e sem as generalizações das análises estruturais. Uma releitura das idéias, das leituras dos intelectuais setecentistas, a reflexão sobre o caráter construído do evento histórico, sobre suas apropriações a posteriori, a discussão sobre o mito e seu papel no cenário político e cultural brasileiro, foram algumas das possibilidades indicadas pelas discussões promovidas a partir do momento comemorativo11. Uma discussão importante, é verdade, apesar de concentrada, ainda, na reflexão teórica. Carecemos, portanto, do mergulho nas fontes. Nas tradicionais, como os Autos da Devassa, e nas menos exploradas, prenhes, no entanto, de potencial elucidativo, principalmente no âmbito da história da cultura, do imaginário e do simbólico. Estas esperam até agora pelo historiador da Inconfidência Mineira. Tiradentes ainda espera ser revelado, sem preconceitos, como o mito vivo que, de fato, é. Alguns poucos trabalhos têm buscado esse manancial e têm aberto as fronteiras para os avanços neste campo. José Murilo de Carvalho já havia indicado alguns caminhos para a pesquisa dessa problemática, discutindo, em A formação das almas12, a construção do mito de Tiradentes pelos republicanos no final do século XIX. Seguindo a trilha traçada por Maurice Agulhon para a França13, Carvalho tratou da apropriação, no Brasil, de um conjunto de símbolos e mitos republicanos de matriz francesa, no processo de estruturação da República brasileira. Inspirados por esse trabalho, temos, já na década de 90, as análises de Eliana Dutra e de Sérgio Vaz Alkmin14, que se preocuparam, especialmente, com o processo de formulação de uma imagem sacralizada e cristianizada da Inconfidência Mineira e de Tiradentes, tomando como base os relatos dos frades que assistiram os inconfidentes em seu período de prisão no Rio de Janeiro15. Esse tipo de abordagem representa, de fato, um retorno aos documentos, a valorização de uma pesquisa empírica mais apurada, a busca de uma nova leitura, de aspectos ainda não tratados nestas fontes que, apesar de já muito utilizadas, ainda têm muito a revelar. Apropriando-se das representações predominantes, sobretudo de Tiradentes, fundadas num perfil sacralizado do alferes mineiro e sedimentado por aquela historiografia tradicional e nacionalista, os jornais produziram, principalmente ao longo do século XX, rico manancial de registros que permitem a análise de alguns dos períodos mais significativos da recente história política do Brasil. Utilizando-se dos mais diversos recursos expressos em textos de natureza bastante variada os jornais tiveram um relevante papel no processo de difusão e de consolidação dessas representações. Foram, além disso, poderosos instrumentos de legitimação de projetos políticos e de ideologias, e entre 1930 e 1960 expressaram de forma intensa as tensões vividas entre os grupos em conflito naquele momento. Em Minas Gerais, uma grande intensidade dessas referências pode ser creditada à importância que o tema assumiu na construção e na manutenção de uma identidade regional, apropriada com bastante regularidade na prática política, desde as primeiras décadas do século XX. Não entrarei aqui na seara, certamente polêmica, da chamada "mineiridade", como elemento daquela identidade. É certo que esse traço identitário trabalhado pelo imaginário não apenas em Minas Gerais, mas também em outras partes do Brasil tem sido fartamente explorado, tanto pela literatura e pelos meios de comunicação quanto pela política. Não raro tem servido de suporte aos discursos sobre Tiradentes e sobre sua posição precursora no processo de independência do Brasil, como evidência de um suposto pioneirismo libertador dos mineiros e, em determinadas épocas, de sua proeminência no cenário político do País. Mas as apropriações das representações de Tiradentes não só ultrapassam, como não se sustentam em uma suposta mineiridade, e é por isso que esta última não constitui, aqui, objeto de reflexão, mesmo que apareça em muitos discursos sobre o tema. Interessa, no momento, acentuar como se produziram os olhares da imprensa sobre a Inconfidência Mineira e sobre a atuação de Tiradentes, especialmente em alguns momentos em que eles foram mais intensamente utilizados como instrumentos de valorização de posições políticas e de projetos de construção nacional. Os textos sobre a Inconfidência Mineira e sobre Tiradentes, publicados nos jornais entre as décadas de 30 e 60, possuíam autoria variada16: historiadores de tendência tradicional, geralmente ligados aos institutos históricos; juristas; diplomatas; políticos; professores; cronistas, romancistas e poetas; jornalistas; não raro intelectuais católicos militantes. Às vezes também clérigos. Isso sem considerar os textos escritos para ou por crianças, em geral publicados nos cadernos destinados ao público infantil. Se havia uma grande variedade de autores, o mesmo não se pode dizer das temáticas. Claro, o tema de fundo é sempre Tiradentes ou a conspiração de uma forma geral. Mas no relevo, uma fastidiosa repetição: sínteses da história da Inconfidência Mineira, geralmente baseadas em obras mais conhecidas na época17; biografias de Tiradentes ou comentários sobre seu perfil e caráter; narrativas sobre a execução de Tiradentes, quase sempre com ênfase na crueldade e insensibilidade das autoridades portuguesas; em menor número, mas não menos enfáticas, as análises sobre a política colonial portuguesa e os abusos cometidos em nome dela. Quando falo da fastidiosa repetição não me refiro apenas à pouca variação, mas à ocorrência de um quase-padrão de abordagem, o que às vezes faz da leitura dessas fontes um exercício de paciência. Por outro lado, é justamente essa repetição que permite perceber o movimento de circulação e de valorização das representações de Tiradentes e dos significados a elas atribuídos, bem como perceber as sutis modificações apresentadas em determinados momentos. Em meio às narrativas bastante previsíveis, destacavam-se as ligações estabelecidas entre os episódios do passado e os problemas e situações vividos no presente. Embora mantivesse seu perfil, Tiradentes podia ser utilizado diferentemente, conforme os interesses e as circunstâncias. Muito raramente, encontram-se vozes dissonantes no concerto laudatório ao protomártir da Independência do Brasil. Mesmo textos satíricos preservavam o herói, enquanto teciam críticas ao governo, a políticos ou a outras figuras de relevo. Poucos se aventuraram a contestar, timidamente que fosse, o conjunto de imagens consagradas, como fez o escritor Eduardo Frieiro, logo refutado por outros ensaístas. Em artigo publicado no jornal Estado de Minas, ele se mostrava incomodado com o tom laudatório predominante: Na Historiografia do Tiradentes, o tom apologético e a inflação verbal, exaltadamente patrióticos, próprios para despertar emoções para adolescentes, tornaram quase temerário o ponto de vista dos que consideram o drama da Inconfidência Mineira com certa frieza realista. Não tem faltado, entretanto, vozes autorizadas que subestimam a importância histórica da conjura larvar de 1789 e reduzam a proporções modestas o papel do homem afoito que pagou com a vida por falar demais e deitou a perder poetas, padres, doutores e militares pelo único crime de terem externado o seu inconformismo político18. Frieiro trabalhou, neste artigo, com as idéias de Joaquim Norberto de Souza Silva e de Capistrano de Abreu, no intuito de demonstrar a existência de outras versões sobre a conspiração e sobre o papel de Tiradentes. Sua intenção ficou explicitada em suas perguntas: Houve na realidade, uma tentativa séria de levante? Foi o Tiradentes verdadeiramente o chefe dessa tentativa?19 Sua preocupação com a "verdade" sobre essa história levou-o a argumentos contrários à exaltação, mas isso não indica que fosse, ele próprio, partidário desses argumentos. Na verdade, ao final do artigo, Frieiro voltou à representação mais aceita que, mesmo considerando a possibilidade de um comportamento atrapalhado de Tiradentes, não alterou sensivelmente sua posição como mártir ou como herói, mesmo quando deixou entrever suas fraquezas: O Tiradentes pagou por falar demais. Pagou mais que os outros porque era um mestiço, de casta inferior, o mais humilde dos indiciados na devassa. Sua mente inflamada, típica do indivíduo impulsivo e generoso que está sempre pronto a fazer justiça por seu próprio arbítrio, comprometeu irremediavelmente os personagens do tenebroso drama urdido pela polícia política do tempo, truculenta e feroz como todas as justiças políticas. Mas a dignidade que conservou na provocação, em contraste com a pusilanimidade de quase todos os indiciados, o holocausto de sua vida, exigido pelo absolutismo liberticida, o redimiram de todas as imprudências e leviandades. Sua sombra legendária de vítima do despotismo merece o respeito da História20. Não obstante o afloramento de uma visão muito próxima ao objeto de sua própria crítica, o artigo de Frieiro não deixou de provocar objeções, publicadas em outro jornal de Belo Horizonte, algumas semanas depois. O autor, conhecido por seus textos e poemas laudatórios, refutava Frieiro: Quem lê o volumoso processo da alçada, pode duvidar de todas as provas ali condensadas, menos das que apontam em Tiradentes o chefe virtual, o condutor popular da conjura "abominável". Tiradentes resistirá sempre à negação dos Capistranos e dos Norbertos, às chamadas restrições eruditas de um ensaísta da força do nosso Eduardo Frieiro. Se o alferes era um baixo e desavisado demagogo, um dementado, como querem os seus restricionistas, por que lhe atribuem os magistrados que o julgaram "função principal" no movimento?21 Nessas posições ficam claros alguns aspectos importantes na construção do perfil heróico de Tiradentes, que acaba por utilizar suas fraquezas, sua situação social inferior, e até mesmo seus supostos erros, como elementos de valorização de sua pessoa e de sua atuação. No fim, todos acabam por concordar que, pela morte, ele superou todas as restrições, qualquer que fosse sua natureza, e fez despontar, postumamente, todas as suas "verdadeiras" qualidades. Não é difícil perceber as possibilidades de aceitação dessa representação e, também, de sua manipulação junto ao público em geral, a partir de uma percepção deste Tiradentes que, apesar de pobre e fraco, poderia simbolizar as conquistas de toda uma nação. Os textos aparecidos na imprensa entre as décadas de 30 e 60 do novecentos, embora perpassados pelo discurso laudatório mais tradicional, podem ser reunidos, basicamente, em três estilos de tratamento do tema, aos quais denominei o historiográfico, o romanesco, e o cristão. Além deles, há ainda a transcrição de discursos proferidos durante as comemorações de 21 de abril, importantes registros acerca das apropriações políticas das representações aqui examinadas. Evidentemente, propor uma "tipologia" é correr o risco de uma certa redução. No entanto, creio poder fazê-lo com o intuito de mostrar tendências que tiveram grande vitalidade, não sendo exclusivas do período em foco neste momento. Ademais, esses textos eram, não raro, o pano de fundo para a expressão de posicionamentos políticos e para o confronto entre eles. O primeiro estilo, mais comum, consistia na reelaboração contínua de sínteses da história da Inconfidência Mineira e de Tiradentes, inspiradas nas obras, na época, mais conhecidas sobre o tema (as de Joaquim Norberto e de Lúcio dos Santos e, mais ao final da década de 50, de Augusto de Lima Júnior). Os jornais não se cansavam de transcrever trechos dos Autos de Devassa, principalmente da sentença da alçada que, certamente, tornou-se muito conhecida por sua intensa reprodução nas páginas desses periódicos. Ao fazê-lo estavam, evidentemente, acentuando o episódio da morte do herói e, não raro, reforçando uma visão negativa da colonização portuguesa no Brasil, que seria culpada, em última instância, pelo drama da Inconfidência. Não há dúvida de que este tipo de texto muito colaborou para a difusão de uma interpretação tradicional da história do movimento e, sobretudo, de uma imagem heróica de Tiradentes, tendência que já podia ser observada desde o início dos anos 30: Faz hoje cento e quarenta anos que a cidade presenciou emocionada a execução de Tiradentes. Era o epílogo do glorioso sonho dos inconfidentes mineiros de 1789. Supliciado o valoroso soldado, dispersos pelos degredos da África os demais conjurados, julgava o governo de Lisboa estar aniquilando no Brasil o anseio de liberdade. Puro engano22. Comemora-se a 21 de abril a passagem do aniversário da morte de Joaquim José da Silva Xavier o Tiradentes bravo mineiro que, em 1792 resgatou com a vida o crime de conspirar contra o domínio português no Brasil, tornando-se o grande precursor de nossa independência política23. Os dois textos, além de ressaltar a dimensão sacrificial, não deixam de externar o peso do domínio português sobre o Brasil. O segundo autor, depois de deter-se longamente na biografia de Tiradentes, na qual enfatiza sua predisposição para a luta, sua indignação com as injustiças e sua coragem ao se rebelar, conclui com o enforcamento de Tiradentes, o fim trágico de uma vida que, ansiosa de liberdade, vibrante de patriotismo, um dia cometeu o crime de se insurgir contra o domínio estrangeiro em sua terra24. Embora não exclusivas da década de 30, as idéias de patriotismo e de nacionalismo tinham nesta época significado mais acentuado e, associadas a um episódio tão valorizado na história brasileira, ganhavam, certamente, em legitimidade. A referência ao domínio estrangeiro em sua terra poderia expressar o entendimento da existência, já no século XVIII, de um sentimento nacional formado, legitimando, pelo passado, as lutas nacionalistas daquele presente. Poderia ainda fazer referências indiretas aos recentes acontecimentos, ligados aos embates com os comunistas, vistos pelo regime como ameaças à integridade e soberania nacionais, resultantes de uma nefasta influência externa25. O segundo tipo de texto, aqui chamado de romanesco, construía, sobre as versões historiográficas existentes, situações idealizadas envolvendo Tiradentes, nas quais suas qualidades excepcionais eram agigantadas, reforçando sua condição heróica. Muitas vezes eram textos da fatura de membros de institutos históricos, além de saírem também da pena de literatos: Tiradentes, a cavalo, com a mão esquerda segurava as rédeas e com a direita abria a porteira do curral da fazenda de Varginha. Apeava-se e era recebido na varanda onde grossas colunas, capazes de sustentar, não o telhado, mas torres de pedra, davam à casa o aspecto de fortaleza tranqüila de sua segurança e inexpugnabilidade26. Nesse texto, o então diretor do Instituto Histórico e Geográfico de Ouro Preto buscava inspiração na narrativa ficcional para falar dos encontros de Tiradentes com seus companheiros, e imaginar situações vividas pelo alferes, que teriam tido influência no desenvolvimento de suas idéias revolucionárias. Aqui, numa fazenda, ele veria o sofrimento dos escravos e refletiria sobre a necessidade da abolição da escravidão no Brasil. Na composição de textos de natureza romântica, a vida pessoal de Tiradentes ganharia maiores atrativos quando alguns autores procuraram explicar sua trajetória até a conspiração em função de suas desventuras amorosas. Um artigo publicado no Diário de Minas, depois de comparar fisicamente Tiradentes aos astros do cinema brasileiro da época, brindava os leitores com uma narrativa que bem poderia se tornar um roteiro para as telas. Vale a pena resgatá-lo, apesar de sua extensão: Aos vinte anos de idade teve a sua grande paixão amorosa. O amor que mudou os rumos de sua vida. O amor que permaneceu na memória do tempo e abriu outros roteiros na jornada do herói. Ele amou como criatura humana. Teve seus sonhos líricos, balbuciou juras de eterno amor, sentiu nos lábios o doce gosto dos beijos que nascem na fonte pura do coração. Tiradentes teve o seu primeiro e grande amor na figura de Maria, uma jovem filha do ourives de São João del Rey. (...) Maria encheu-lhe a vida de ternura e lirismo. Era bela nos seus quinze anos. Dotada sob todos os pontos de vista. O pai, reinol orgulhoso, se opôs ao romance pois não consentiria que sua filha primogênita se casasse com colono, caboclo moreno. E o namoro foi desfeito sob o impacto reacionário do pai cheio de preconceitos. Ficaram apenas as recordações dos encontros secretos nos labirintos da casa da Pedra na cidade de Tomé Pontes e Tancredo Neves. Para esquecê-la sentou praça. Andou pelos matos, pelos sertões, pelas minas, pelas encruzilhadas. Maria, porém, ocupava definitivamente um lugar no largo coração do moço Joaquim José da Silva Xavier, cujos irmãos mais velhos foram sentar praça no invencível Exército de Cristo, tomando hábito. Outras mulheres passaram pela vida do futuro alferes e mártir da liberdade. Nenhuma conseguiu eclipsar aquela doce Maria, de fala doce, olhar suave como estampa de santa, de cabeleira solta aos beijos da brisa vespertina. Apenas uma adorável criatura encheu o claro aberto pela fuga de Maria. Deu-lhe carinho e dois filhos. Deu-lhe a constância de um amor que se projetou na história. Era a companheira do herói, a musa do conspirador, a confidente do sonhador consciente, Eugenia Maria de Jesus é a grande companheira de Tiradentes. Amor nascido nas sombrias e misteriosas noites de Vila Rica. Dizem que era linda, alta, olhos grandes e pretos como aqueles contados no "Gondoleiro do Amor", de Castro Alves. Poderia muito bem ser chamada Eugenia Maria de Jesus, a Marília do Alferes. Foi-lhe fiel. Esperava-o sempre de suas peregrinações audaciosas pelos sítios e veredas. Guardava para o amante o relicário de suas ternuras. Alisava os revoltos cabelos do herói inquieto. Consertava suas camisas, suas vistosas fardas, limpava suas botas, e à noite, solfejava canções de amor, com o travo da melancolia, para o acalanto do bem amado. Eugenia Maria de Jesus, a companheira fiel de Tiradentes, com a morte do herói e o seqüestro de todos os seus bens (...) fugiu de Vila Rica. Sob a proteção do comerciante Belchior Beltrão, amigo do alferes, Eugenia tomou o rumo do Quartel Geral, próximo de Dores do Indaiá, onde viveu alguns anos com os dois filhos cujo pai foi o mártir inigualável da liberdade política do Brasil27. O autor procurava preencher uma lacuna na biografia de Tiradentes, cara às histórias dos heróis: a mulher amada, a companheira. Poucas foram as obras que se detiveram sobre este aspecto da vida de Joaquim José da Silva Xavier. Uma das exceções é o livro Tiradentes, de Oiliam José, que dedicou ao tema o capítulo "Fraquezas de Homem". O autor, depois de uma rápida análise do ambiente moral colonial no qual se inseria Tiradentes, dizendo que ele vivia as liberdades que a sociedade mineira do tempo aceitava ou, pelo menos, tolerava, desculpa o comportamento do herói, pois (...) o amor está presente em toda vida humana, para conduzi-la a um dos dois extremos que se opõem irremediavelmente: os píncaros da santidade e as abjeções do satanismo. E, entre um extremo e outro, colocam-se as gradações mais diversas. Numa dessas, ficaria bem classificar o amor terreno, passageiro de Tiradentes, que, sem atentar em sua condição de cristão, sorveu as volúpias dos sentidos. Felizmente, porém, o Alferes não permaneceu pelo resto da vida nesses declives morais. Redimiu-se corajosamente. Abraçou a virtude. Tornou-se modelo de arrependimento e moralidade. Fez-se herói também no penoso terreno das paixões humanas. Morreu vivendo as severas exigências da moral cristã!28 Mais preocupados com a conspiração e com as idéias revolucionárias do inconfidente, os textos geralmente passavam ao largo de qualquer comentário a respeito do tema, ou simplesmente mencionavam a existência de Eugenia Maria de Jesus, como mãe da única filha de Tiradentes. Evitando o assunto, essas obras tanto poderiam expressar uma real falta de interesse por ele quanto o temor, principalmente dos intelectuais católicos, de reconhecer em Tiradentes práticas e códigos morais diferentes dos aceitos e defendidos por eles. Afinal, o alferes nunca se casou, viveu em concubinato, freqüentava as "casas de alcouce" e poderia ter tido filhos naturais.A abordagem romântica também ancorava-se fortemente no caráter humanitário de Tiradentes, descrito como um indivíduo acima dos demais por ter superado moralmente eventuais desvantagens de natureza material ou social. Este seria o principal traço definidor e mais valorizado de um herói, ou seja, el móvil ético de su acción, fundado éste en un principio de solidaridad y justicia social29, e por isso tomado como modelo por suas ações. Elemento importante na construção da representação do herói, este caráter humanitário serviu à produção de textos de divulgação, publicados nos jornais, que considero importantes na consolidação de uma visão pouco crítica da história. Nesses textos a estratégia estilística mais utilizada, como já foi apontado, era a de romancear informações vindas das obras historiográficas, que nessa época já eram, por si sós, bastante adocicadas. Temos um exemplo em artigo publicado em 1957: Ele costumava ver, nas suas idas de Minas ao Rio, as matas verdes à beira das estradas. Ouvia encantado o gorjeio dos pássaros que pululavam de galho em galho, numa movimentação constante, livres, inteiramente livres... E matutava: Por que só a minha terra essa vastidão de abundância precisa continuar cativa, sem esperanças de uma liberdade a que já tem direito? (...) Joaquim José da Silva Xavier habituara-se a ver a Pátria berço de seus antepassados, subjugada. Mas não se conformava. Ele nascera quando já o povo gemia sob a opressão de impostos altos e acumulados. Perdera cedo os pais. Seus dois irmãos abraçaram a carreira do sacerdócio. Viviam longe, internos, e as irmãs estavam distantes, distribuídas pelas casas de parentes. Nem um vislumbre de afeição sincera. Era de extrema solidão sua existência. Porém compensou-se pelo amor sem limites à Pátria. Analisou-lhe os problemas, apaixonou-se pelo maior deles: a independência. Passou a viver com o povo. Para ele tinha sempre palavras justas e oportunas. Fez amigos entre a gente de Minas, ora no Rio. Criou fama a sua habilidade em tirar e pôr dentes. (...) Entre a classe mais favorecida pela sorte ou entre a população quase mendiga, ia crescendo uma veneração por aquele homem generoso que exercia a sua missão quase de graça, por vezes facilitando os pagamentos, por vezes esquecendo as dívidas de seus clientes. Observador, de olhar triste, calado, ia ouvindo os queixumes daqueles que o procuravam. "Como é infeliz o povo brasileiro", pensava a cada queixume feito. E pensava: "Isto precisa acabar". Silva Xavier cismava com épocas de glória. Cada vez mais querendo estar em relação com todas as classes sociais, foi alternando o seu meio de vida. Se já havia conhecido de perto a gente brasileira, agora podia verificar a riqueza do solo. Que injustiça! Passam fome tantos irmãos, quando a terra tem tesouros para saciar-lhes toda a pobreza, gritava-lhe a consciência cada vez mais alto30. A extensão dessa transcrição justifica-se por já termos aqui, além de um texto de natureza romântica, o esboço do terceiro tipo ao qual me referi, o texto cristão. Impressiona a cristianização dessa "biografia" de Tiradentes: o homem solitário, sofrido e solidário, que teve como principal meta na vida a conquista da liberdade, não para seus compatriotas, mas para seus irmãos. O uso das referências cristãs, tanto nas idéias quanto na linguagem é clara. Considerando as analogias, já conhecidas, entre o drama de Tiradentes e de Jesus, não poderia faltar, num texto dessa natureza, a referência ao traidor, o Judas da Inconfidência, responsável, em última análise, pela derrota do movimento e pela condenação do herói-mártir. Continuemos a explorar esse curioso documento: Ouro Preto a rica terra mineira era lugar de homens ilustres e também idealistas. Começaram eles a traçar planos, fazendo programas, distribuindo missões entre si. Era a conspiração contra os opressores estrangeiros que se formava. E Tiradentes serviria de elo entre as províncias vizinhas. Ninguém percebia porém a chama da liberdade que se inflamaria em breve. Mas... quem nunca ouviu dizer "uma ovelha má põe um rebanho a perder"? Houve uma ovelha má entre os conspiradores. Percebendo que ficaria bem com os que então mandavam na terra, só pensou em si. Traiu os companheiros. Revelou todos os planos. Aquele homem não era brasileiro. Talvez por isso não tivesse entendido a grandeza do movimento e não sentisse anseios de independência. Houve prisões, julgamentos. Tiradentes pagou com a vida, em praça pública, o sonho bom que tivera para a Pátria. Morreu como um justo. Rezava nos últimos momentos. Implorava por certo a Deus que a chama da liberdade, que naquela hora amortecia, nunca extinguisse nos corações de seu povo. Aquele que morreu pela liberdade, viu seus rogos atendidos. Não demorou muito e o próprio Regente das terras opressoras concretizava o sonho de Tiradentes com um grito que reboou pela terra afora: Independência ou Morte31. Além de estar permeado de elementos constituintes da representação sacralizada, este texto indica alguns dos meios pelos quais ela vem se firmando no imaginário, como tem sido apropriada pelas mais variadas formas de discurso, e através de que mecanismos ela tem se perpetuado. Deve-se considerar o significado de textos como o transcrito acima, na medida em que as obras da historiografia tinham como infelizmente ainda têm circulação restrita, mesmo entre a população letrada, ou escolarizada. Os jornais, ainda que de acesso limitado no período do qual estou tratando, poderiam atingir um público maior e ter ampliado seu papel de difusor daquelas representações. Ainda mais quando expressas por meio de textos simples e acessíveis, permeados de referências religiosas facilmente reconhecíveis e construídos com recursos estilísticos próximos do folhetim. Este tipo de texto aparecia também, com bastante freqüência, nas seções dos jornais destinadas às crianças, ainda mais simplificados e romanceados. Vale lembrar, ainda, que a sua difusão era ampliada por meio das transmissões radiofônicas, nas quais eles eram lidos ou dramatizados, geralmente como parte das programações comemorativas de 21 de abril. Este texto, como tantos outros semelhantes publicados nos jornais, não contém o registro de sua autoria. Saídos da imaginação dos jornalistas, editores e colaboradores, eles dividiam espaço com os noticiários sobre a comemoração do 21 de abril e também com as transcrições dos discursos das autoridades convidadas para a celebração. A década de 50 foi particularmente pródiga, não tanto nos discursos que estes, desde o aparecimento desta festa cívica sempre ocorreram mas na sua reprodução nas páginas dos jornais de maior circulação32. A natureza cristianizada dessas falas não tinha exclusividade, estando presente nos discursos de políticos, intelectuais, militares e, claro, clérigos, saltando para as páginas dos jornais em formas diversas, expressando uma apropriação dessa representação de Tiradentes mais generalizada do que poderíamos supor. E, quando associada à exaltação patriótica, de fatura regionalista, produziam-se algumas jóias como esta: Nosso pai Tiradentes é História viva no chão de vulcões mortos de Minas; neste chão ora espraiado em várzeas, onde o milho, a laranja, as "quaresmas" e as "angélicas" sinfonizam coralmente e inouvidamente. Com caraças alpinas de ferro e manganês, com rios volgueanos, com lagoas azuis ou cor de chumbo; no chão desta Província, ora empenado com um eco ameríndio de outras altitudes geofísicas e geopolíticas da Europa matriz dos sonhos que te elegeram, Minas Gerais, a terra amena dos vinhedos de Caldas, dos trigais de Patos; dos pinheiros e dos nevoeiros da Mantiqueira; e das relvas macias e dos rebanhos multicoloridos do Katiavar [do teu sul temperado; e das emas e avestruzes do teu Triângulo ondulado, e dos lobos vermelhos que uivam nas tuas brenhas altas. Fausto destino da cultura da Euro-América, Arcádia morta... Minas Gerais33. Um certo ufanismo regional se é que se pode falar nesses termos votado à exaltação de Minas Gerais pode ser vislumbrado neste poema. Um ufanismo que vê Minas como uma terra predestinada, uma espécie de síntese de várias terras, propícia para a frutificação dos ideais libertadores de Tiradentes. Temos aqui, junto à exaltação patriótica, o apelo cristão. Mesmo mais recentemente, quando se poderia, à primeira vista, imaginar a perda de sentido, ou da força daquela visão, ainda aparecem na imprensa menos profusamente, é verdade textos dedicados à aproximação entre Tiradentes e Cristo, como esta pequena nota, publicada no jornal Estado de Minas, em abril de 2000: Hoje o coração do povo brasileiro vivencia a emoção de dupla cerimônia: uma religiosa e outra cívica, quando celebra-se a Sexta-feira da Paixão e o Dia de Tiradentes, embora as comemorações alusivas a este último tenham sido transferidas para o dia 1º de maio, justamente por causa da Sexta-Feira Santa. Coincidentemente, Cristo e Tiradentes morreram por causas nobres, visando o bem estar do homem. Cristo por pregar a verdade, o amor, a paz, a igualdade, na tentativa de libertar o homem do pecado. Tiradentes, por pregar e lutar pela tão sonhada liberdade do povo brasileiro, explorado e massacrado pela Coroa portuguesa, e por querer fazer deste País uma verdadeira nação. Um na cruz, outro na forca. Cristo após crucificado e sepultado, ressuscitou três dias depois, e hoje, em qualquer parte do planeta onde houver um cristão, o seu nome será aclamado e venerado. Tiradentes, depois de enforcado no Largo da Lampadosa, no ensolarado sábado de 21 de abril de 1792, teve o seu corpo esquartejado e espalhado pelas estradas de Minas, para servir de exemplo. É intrigante. Uma pergunta cuja resposta nunca convence. Por que as pessoas de bem, honestas e dedicadas às causas alheias pagam tão alto por seus nobres gestos?34 Guardadas algumas diferenças estilísticas, este texto poderia ter sido publicado em qualquer momento do período em foco. Sua estrutura é a mesma daqueles datados da segunda metade do século XIX, nos quais a analogia entre Tiradentes e Cristo, entre os mártires cristão e cívico, era mais comum. Ele contém, ainda, um encerramento de fundo moral, com ênfase na idéia do sacrifício, demonstrando claramente sua concepção de história maniqueísta. São textos como esses, publicados há décadas nos jornais, de pequena ou grande circulação, que têm contribuído eficazmente para a manutenção das representações de Tiradentes em foco neste artigo. Além de publicarem textos como os que vimos acima, os jornais reservavam espaço também para os editoriais a respeito das comemorações do 21 de abril e para a transcrição dos discursos pronunciados pelas autoridades nesta ocasião, junto ao noticiário sobre essas festas. Esses textos estavam mais claramente relacionados à conjuntura política da época e podiam expressar os posicionamentos e os confrontos de cada momento: Os tempos, porém, passaram e o Brasil, sob a alvorada da Democracia e da República, tem sabido consagrar à memória do Mártir e dos seus companheiros, mais crescendo ano a ano, o entusiasmo cívico das comemorações. O Brasil Novo, rejuvenescido pela integração em si mesmo, uno, forte, redivivo em todas as suas energias vitais, sob a chefia unida de seu grande vanguardeiro, Presidente Vargas, mais do que nunca tem dado à Glória dos inconfidentes a sagração histórica merecida35. Embora, como os demais textos, os discursos proferidos pelas autoridades não excluam as referências sacralizantes, eles tinham objetivos outros, além da pura e simples exaltação. Há, aqui, uma clara finalidade de interligação entre a comemoração cívica e a atuação política, o que os torna termômetros do cenário político brasileiro e mineiro no período examinado. A inserção desses discursos no campo do confronto político permite identificar algumas de suas características, no que diz respeito, sobretudo, às articulações construídas entre o passado e o presente, como forma de legitimação. Exemplo elucidativo a respeito foi o pronunciamento feito em 1939 pelo general Meira de Vasconcelos, comandante da 1ª Região Militar, lembrando o heroísmo de Tiradentes como modelo para as lutas contra o que se considerava, então, como os principais perigos que pairavam sobre a nação, isto é, o comunismo e a ameaça de guerra: A comemoração do feito de Tiradentes é, pois, uma exaltação de que nos devemos orgulhar, honrá-la e glorificá-la, pela significação moral que marcha, se avoluma e se eleva com os tempos. Ela é o protesto contra o domínio, contra a extorsão, assédio econômico, e nos tempos que vivemos, vendo flutuar o pavilhão das cores deslumbrantes da jornada de 1822, assistimos à renovação multiforme desse cerco, a ameaça de povos contra nós, a política de infiltração perigosa que encontra a seu favor uma coletividade de educação falha de civismo, displicente, vivendo apenas a existência regional e perigosa pela incompreensão dos deveres que enfeixam problemas nacionais. (...) A época traz para nós acréscimos de deveres, eles se multiplicam, exigem que ingressemos toda a nação na política de segurança, educando-a em rumos que permitam à coletividade brasileira se alistar para a batalha dos tempos atuais, onde nenhum deve faltar, para que o patrimônio secular não faça parte da repartição que a truculência internacional premedita, já com pontos de apoio no Continente e pense assim dispor de nossa soberania.(...) Cumpramos o nosso dever prosseguindo a velha e tradicional política do Brasil, dentro do espírito de harmonia, mas conscientes de que podemos impor, mesmo pela força, nossa vontade contra quem quer que ameace a nossa integridade36. Divulgados pela imprensa, esses discursos contribuíam para a consolidação das representações heróicas e sacralizadas de Tiradentes, servindo ainda à legitimação daqueles que delas se apropriavam. Os atos heróicos e sacrificiais do passado encontravam sua continuidade no presente, por meio da ação dos líderes da nação, como ficou claro no pronunciamento de Getúlio Vargas na celebração de 21 de abril de 1954, em Ouro Preto, quando o então presidente da República foi o convidado de honra da cerimônia. Chamando para si a atenção como instrumento dessa luta no tempo presente, Getúlio Vargas apresentou-se quase como um mártir que, como Tiradentes, se sacrificava pelo bem da nação. O presidente não foi sutil nessa comparação e, como uma ironia do destino, parecia antecipar sua entrada próxima no panteão dos mitos políticos brasileiros, no episódio trágico de sua morte, meses depois de ter estado em Ouro Preto: (...) a distância do tempo não afasta a sua atualidade. É ainda a mesma bandeira que estamos empunhando na luta dos nossos dias, é a luta de um governo legitimamente constituído, de base nacionalista e popular, contra a mentalidade negativista, que descrê do nosso futuro, das nossas possibilidades e reservas da capacidade criadora de nossa gente, enfim que não acredita no Brasil. (...) Bem sei como a injustiça, a incompreensão e os processos difamatórios se agregam aos problemas, às dificuldades, às responsabilidades das grandes obras planejadas e empreendidas. (...) Deus é testemunha do quanto tenho feito, vencendo até os impulsos mais íntimos para amainar as paixões, apaziguar os espíritos, desarmar as prevenções, reunir a todos num só esforço pelo progresso do País. Nada me desviará dos rumos que eu tracei, porque as vozes agourentas não conseguem fazer do branco preto, nem convencem de isenção quando só procuram dissensão. Entendo que o governo é escola de humildade, aprendizado de disciplina, que exige a renúncia a si próprio e o domínio dos ressentimentos, para só cuidar dos interesses reais da Nação37. Os afagos de Vargas dirigiam-se, então, para Minas Gerais, cujo governo, sob a batuta de Juscelino Kubitschek, demonstrava, naquele momento, apoio às suas posições. No discurso, o presidente apontava Minas como o lugar ideal para a busca do consenso e da harmonia, exaltando as tradições mineiras que poderiam serenar os espíritos exaltados daquele momento político delicado. Voltava-se, também ele, ao passado, e buscava em Tiradentes, mais uma vez, sustentação e legitimação. Os apelos nacionalistas vinham no momento dos mais duros embates entre Vargas e a oposição, quando ele acirrava seus ataques aos investidores estrangeiros e tentava a ampliação da base econômica estatal. Não permitir que os interesses mesquinhos se sobrepusessem aos interesses da nação seria a tarefa do governo, que deveria (...) garantir a ordem, a liberdade, a coesão, a prosperidade econômica e a justiça social. (...) Para o seu pleno cumprimento não mediremos os sacrifícios. E aqui, neste dia glorioso, devemos renovar e revigorar esse irredutível propósito. O exemplo de Tiradentes e a lição de Minas nos darão força para construir no futuro um Brasil que corresponda aos sonhos do passado e em que se alcancem as esperanças do presente38. Aproveitando o mote dado pelo poema analisado anteriormente e suas referências regionalistas, vejamos um pronunciamento do governador de Minas Gerais, na festa de 21 de abril de 1955, em Ouro Preto, no qual evidencia-se o discurso de exaltação a Minas e a seu papel na política nacional como uma herança advinda dos tempos da Inconfidência Mineira. Naquele momento, Juscelino Kubitschek, já em campanha para a presidência da República, foi o grande homenageado, eclipsando, por um instante, o próprio Tiradentes: Esta cerimônia tem suas raízes aprofundadas no solo ardente das mais severas virtudes públicas da gente mineira e está carregada de um sentido cívico que vive e fulgura nas três dimensões do tempo passado, presente e futuro porque é eterno. Em verdade nesta cerimônia se cultuam duas faces fundamentais do caráter dos mineiros, que constituíram, constituem e constituirão, tempo em fora, os seus cunhos distintivos, a saber: o amor à terra natal e a vocação da liberdade. Essas duas expressões da nacionalidade, que se exigem uma a outra para integrarem-se e completarem-se em unidade autêntica, essas duas projeções da alma coletiva sem as quais não há povo e que só elas criam, nutrem e explicam as nações, porque somente elas são capazes de inspirar a vigilância, o sofrimento e o sacrifício por um bem impessoal esses dois pólos de atração e condensação da vontade de ser e de durar que caracterizara historicamente os grupos sociais coerentes, lúcidos e poderosos, encontraram na imensa figura moral do Alferes Joaquim José da Silva Xavier o seu perfeito instrumento de expressão numa hora densa e aguda do nosso país em fase de penosa formação. (...) Convidando a falar, nas comemorações de hoje, o sr. Juscelino Kubitschek, quis o governo mineiro exprimir de modo público e eloqüente, não só o apreço em que o tem, senão também o apreço com que acolheu a sua bela iniciativa.(...) O meu governo não se limitou a recolher a valiosa herança deixada pelo governo de V. Excia. Exmo. Sr. Dr. Juscelino Kubitschek: deliberou ampliar as comemorações inauguradas em 1952, enriquecendo-as, variando-as, estendendo-as no tempo39. O governador Clóvis Salgado, no cargo devido ao afastamento de Juscelino Kubitschek para a campanha eleitoral, usou deliberadamente a festa de 21 de abril para homenagear o futuro presidente da República. JK, por sua vez, não perderia a oportunidade, em seu discurso, de estabelecer paralelos entre a trajetória de Tiradentes e a sua própria. Nesta última forma de discurso, os exercícios de interligação entre o passado e o presente foram, assim, os mais recorrentes, escritos e pronunciados por pessoas com posições políticas diversas, de diferentes segmentos sociais, com objetivos também diversos. Mesmo quando em muitos desses discursos Tiradentes acabou por ficar em segundo plano, sua condição de precursor da Independência e herói nacional jamais foi questionada. Claro, não se poderia esperar outra posição das falas oficiais, no momento da celebração cívica. Mas analisando todos os tipos de textos publicados nos jornais o que inclui as transcrições de discursos oficiais, mas também outras modalidades, conforme visto anteriormente é inexpressiva a contestação a Tiradentes. O jornal Binômio, conhecido por suas ácidas investidas contra o governo, fartava-se nas críticas às comemorações oficiais, mas sugestivamente mantinha Tiradentes em seu pedestal: Todos os poderes da nação arranjaram as malas para a mudança e sua inauguração é trombeteada aos quatro cantos do mundo, através de desenfreada matéria que o sr. Juscelino Kubitschek distribuiu à imprensa nacional e estrangeira. Não serão, no entanto, fotografias coloridas e a bela arte de Niemeyer e Lúcio Costa que vão provar estar Brasília em condições de ser inaugurada. Trata-se de uma farsa, muito ao gosto de J.K. Um mérito, no entanto, não podemos negar ao Presidente da República: com a "inauguração" de Brasília ele consegue, em 1960, fazer coincidir o 1º de abril com a grande data de Tiradentes40. Assim, as representações de Tiradentes são aceitas quase como uma unanimidade, em épocas diferentes, expressando diferentes posições. Na verdade, a contestação e o questionamento aparecem contra as tentativas de revisão e de relativização, tanto do movimento setecentista, quanto, e principalmente, de seu principal personagem. Promovendo a circulação das representações predominantes de Tiradentes, os jornais tornaram-se veículos de sua consolidação ao longo do século XX. Mesmo considerando-se as limitações do público leitor, inclusive atualmente, não se pode minimizar o poder desse veículo de comunicação na afirmação daquelas representações. No período em que a atenção à memória de Tiradentes foi mais intensa por parte do mundo oficial como ocorreu entre as décadas de 30 e 60 , a imprensa marcou sua participação ampliando os espaços para a publicação de textos os mais diversos e para a cobertura das comemorações, realizadas nos mais diferentes lugares. Especialmente em Minas Gerais, os jornais acabaram por tornar-se porta-vozes de uma versão oficial da história, e de uma posição francamente favorável à exaltação patriótica de Tiradentes. Entre os que foram pesquisados, o único ainda remanescente, o Estado de Minas, mantém essa postura, não obstante publique entrevistas com historiadores da vertente revisionista, em matérias nas quais procura polemizar as divergências historiográficas. Mas a "voz" do jornal se faz ouvir, por meio de editoriais e de algumas colunas assinadas, dos seus quadros fixos. E nelas, não raro, apela-se ainda para os clássicos defensores de uma história da nação: O Brasil é o único país da América em que existe, há mais de um século, uma campanha sistemática de desmoralização do precursor da independência." Essa frase de Waldemar de Almeida Barbosa resume um dos paradoxos da historiografia brasileira. Paradoxo que não chega a ser espantoso porque volta a comprovar o complexo de inferioridade e síndrome de catástrofe que envolvem a cultura nacional41. Esse é o pretexto para o jornalista, ferrenho defensor de uma representação heróica de Tiradentes, retomar sua série de investidas contra o que ele considera paradoxos da historiografia brasileira, ou seja, o revisionismo. Esta análise da produção jornalística sobre o herói nacional procurou identificar os principais elementos constituidores daqueles textos, destacando os que têm evidente enraizamento no universo cultural brasileiro e que, por isso, apresentam uma longevidade considerável. A constatação de elementos que têm se mantido desde o século XIX indica, por um lado, a vitalidade do mito e, por outro, o poder persuasivo das associações estabelecidas, entre o sacrifício heróico de Tiradentes e as condutas dos que se colocam como seus herdeiros. NOTAS * O presente artigo é resultado da pesquisa desenvolvida para a tese de doutorado em História Social, intitulada Da infâmia ao altar da pátria: memória e representações da Inconfidência Mineira e de Tiradentes, defendida em agosto de 2001 no Departamento de História da Universidade de São Paulo e contou com financiamento do CNPq. 1 Sobre o papel da imprensa na política brasileira, e como fonte de pesquisa para o historiador, ver: CAPELATO, Maria Helena Rolim. Imprensa e História no Brasil. São Paulo: Contexto/EDUSP, 1988. CAPELATO, Maria Helena Rolim. Os arautos do liberalismo: imprensa paulista (1920-1945). São Paulo: Brasiliense, 1989; NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das & MOREL, Marco (orgs.). História e imprensa. Anais do Colóquio. Rio de Janeiro: UERJ/IFCH, 1998. Sobre as relações entre a mídia e a política ver: JEANNENEY, Jean-Noël. A mídia. In RÉMOND, René (org.). Por uma história política. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1996. Um panorama das relações entre a imprensa e a política, no Brasil do século XX, está na bibliografia de MORAIS, Fernando. Chatô: o rei do Brasil. 3ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. Ver, também: LINHARES, Joaquim Nabuco. Itinerário da imprensa de Belo Horizonte: 1895-1954; estudo crítico e nota biográfica de Maria Ceres Pimenta S. Castro. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, 1995; SODRÉ, Nelson Werneck. História da imprensa no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966; WERNECK, Humberto. O desatino da rapaziada: jornalistas e escritores mineiros. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. 2 Ver: GRAVATÁ, Hélio. "Contribuição bibliográfica para a História de Minas Gerais Período Colonial Inconfidência Mineira". In Revista do Arquivo Público Mineiro. Belo Horizonte: Arquivo Público Mineiro, 1978. Neste levantamento, foram compilados 1.093 títulos de obras da mais variada natureza, relativas à Inconfidência Mineira, excluindo-se os documentos manuscritos e obras gerais de História do Brasil, de Minas Gerais e do Rio de Janeiro. Entre as obras levantadas, produzidas entre 1819 e 1976, encontram-se documentos transcritos e publicados, bibliografias, livros, capítulos e referências em outras obras, verbetes em enciclopédias e dicionários, artigos, discursos, conferências, legislação, literatura, teatro, filmes, iconografia e monumentos. Há também outros levantamentos que incluem, além da bibliografia, fontes documentais disponíveis em arquivos brasileiros. Ver: CARNEIRO, Edilane de Almeida & SANTOS, Maria Judite dos. "Fontes documentais mineiras: subsídios para o estudo do movimento inconfidente de 1789". In Acervo Revista do Arquivo Nacional. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, v.4, n.1, jan/jun.1989; FIGUEIREDO, Luciano Raposo de Almeida. "Cortando rente o passado... Fontes para a história da Inconfidência Mineira e o acervo do Arquivo Nacional do Brasil". In Análise & Conjuntura. Inconfidência Mineira e Revolução Francesa Bicentenário: 1789-1989. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, v.4, n.2-3, mai/dez.1989; MATHIAS, Herculano Gomes. "A documentação da Inconfidência Mineira". In Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro, ano 153, n.375, abr/jun.1992; PESSOA, Gláucia Tomaz de Aquino. "O acervo do Arquivo Nacional e a história da Inconfidência Mineira". In Acervo Revista do Arquivo Nacional. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, v.4, n.1, jan/jun.1989. 3 SILVA, Joaquim Norberto de Souza . História da Conjuração Mineira. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1948. 4 SANTOS, Lúcio José dos. A Inconfidência Mineira: papel de Tiradentes na Inconfidência Mineira. Belo Horizonte: Imprensa Oficial de Minas Gerais, 1972. 5 BARBOSA, Waldemar de Almeida. A verdade sobre Tiradentes. Belo Horizonte: Instituto de História, Letras e Arte, s/d; JARDIM, Márcio. Síntese factual da Inconfidência Mineira. Belo Horizonte: Instituto Cultural CODESER, 1988; JOSÉ, Oiliam. Tiradentes. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1974; LIMA JÚNIOR, Augusto de. História da Inconfidência de Minas Gerais. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1955; PERRIN, Dimas. Inconfidência Mineira: causas e conseqüências. Belo Horizonte: Edições Júpiter, 1985; TORRES, Luis Wanderley. Tiradentes: a áspera estrada para a liberdade. São Paulo: Obelisco, 1965; GRIECO, Donatello. História Sincera da Inconfidência Mineira. Rio de Janeiro: Record, 1990. 6 João Pinto Furtado chama a atenção para a pouca disposição da historiografia mais acadêmica em tratar da Inconfidência Mineira, história muito marcada pelo tom tradicional, exaltador e oficial. Ver: FURTADO, João Pinto. Historiografia oitocentista americana como "obra de pensamento" que se faz ação (notas para o estudo dos discursos de fundação sob o ponto de vista da epistemologia histórica). In: SCHMIDT, Rita Terezinha (org.). Nações/Narrações: nossas histórias e estórias. Porto Alegre: ABEA, 1997. 7 MOTA, Carlos Guilherme. Idéia de revolução no Brasil (1789-1801). Petrópolis: Vozes, 1979. 8 MAXWELL, Kenneth. A devassa da devassa: A Inconfidência Mineira: Brasil e Portugal (1750-1808). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978. 9 FURTADO, João Pinto. Inconfidência mineira: crítica histórica e diálogo com a historiografia. São Paulo: FFLCH/Universidade de São Paulo, 2000. (Tese de Doutorado) 10 SOUZA, Laura de Mello e. Norma e conflito: aspectos da História de Minas no século XVIII. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1999; ANASTASIA, Carla Maria Junho. Vassalos rebeldes: violência coletiva nas Minas na primeira metade do século XVIII. Belo Horizonte: C/Arte, 1998. 11 Ver, especialmente: Análise & Conjuntura. Inconfidência Mineira e Revolução Francesa Bicentenário: 1789-1989. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, v.4, n.2-3, mai/dez.1989; ANDRÉS, Aparecida (org.). Utopias: sentidos Minas imagens. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1993; Seminário Tiradentes, hoje: imaginário e política na República brasileira. Anais... Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, 1994; NOVAES, Adauto (org.). Tempo e História. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. 12 CARVALHO, José Murilo de. A formação das almas: o imaginário da República no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. 13 AGULHON, Maurice. Marianne au combat: l'imagerie et le symbolique républicaines de 1789 a 1880. Paris: Flammarion, 1979. 14 DUTRA, Eliana Regina de Freitas. "Inconfidência Mineira: memória e contra-memória". In Varia História. Belo Horizonte: Departamento de História-FAFICH/UFMG, n.12, 1993; ALKMIN, Sérgio Vaz. "Inconfidência Mineira: a vida histórica do acontecimento". In Revista do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais. Belo Horizonte: TCMG, v.21, n.4, out/dez.1996. 15 Memórias do êxito que teve a conjuração de Minas e dos fatos relativos a ela acontecidos nesta cidade do Rio de Janeiro desde 17 até 26 de abril de 1792, atribuída ao frei José Carlos de Jesus Maria do Desterro, e Últimos momentos dos Inconfidentes de 1789, pelo frade que os assistiu em confissão, de frei Raimundo da Anunciação Penaforte. Ambos estão publicados em Autos da Devassa da Inconfidência Mineira. 2ª ed. Brasília: Câmara dos Deputados; Belo Horizonte: Imprensa Oficial de Minas Gerais, 1980, v.9 e em Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Tomo 44, 2º trimestre, 1881. 16 Os jornais utilizados na pesquisa foram o Jornal do Brasil, do Rio de Janeiro, o Estado de Minas, o Diário de Minas e o Binômio, todos de Belo Horizonte. A não ser pelo Binômio, fundado em 1952 por estudantes mineiros e progressivamente identificado com as posições políticas de esquerda, os outros representavam posicionamentos conservadores, próximos das elites e, não raro, defensores de seus projetos. O Estado de Minas integrava os Diários Associados, de Assis Chateaubriand, desde 1929; o Diário de Minas havia sido criado em 1898 ligado ao Partido Republicano Mineiro, e desde 1949 pertencia à família Negrão de Lima, ligada ao Partido Trabalhista Nacional, uma das bases de apoio de Juscelino Kubitschek. O Jornal do Brasil surgiu em 1891, foi ativo nos conflitos entre civis e militares no início da República e sempre defendeu posições conservadoras. 17 Três obras eram as referências básicas para os textos jornalísticos: SILVA, Joaquim Norberto de Sousa. História da Conjuração Mineira. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1948. 2v (a primeira edição é de 1873). SANTOS, Lúcio José dos. A Inconfidência Mineira: papel de Tiradentes na Inconfidência Mineira. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1972 (a primeira edição é de 1927). LIMA JÚNIOR, Augusto de. Pequena história da Inconfidência de Minas Gerais. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1955. 18 FRIEIRO, Eduardo. A sombra de Tiradentes. Estado de Minas. Belo Horizonte, 20 de abril de 1952, p. 5. Este texto foi publicado também no livro O diabo na livraria do cônego, de mesmo autor. 19 Idem. Grifos meus. 20 Idem. 21 FLORENCIO, Fidelis. "Tiradentes vivo". Diário de Minas. Belo Horizonte, 7 de maio de 1952, p. 4. 22 "Tiradentes". Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 21 de abril de 1932, p. 11. 23 MAURICIO, Augusto. A Inconfidência Mineira. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 18 de abril de 1937, p. 15. 24 Idem. 25 Ver: DUTRA, Eliana Regina de Freitas. O ardil totalitário: imaginário político no Brasil dos anos 30. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ; Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1997. 26 RACIOPPI, Vicente. Tiradentes. Estado de Minas. Belo Horizonte, 22 de abril de 1941, p. 5. 27 Os amores do alferes. Diário de Minas. Belo Horizonte, 21 de abril de 1954, p. 8. 28 JOSÉ, Oiliam. Tiradentes. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1974, p. 63. 29 BAUZÁ, H. Op. cit.., p. 5. Ver também AUGÉ, Marc. Heróis. In Enciclopédia Einaudi. Religião-Rito. v.30. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1994. 30 Tiradentes o amigo da liberdade. Diário de Minas. Belo Horizonte, 21 de abril de 1957, p. 4. Suplemento Literário. 31 Idem. 32 Os discursos eram normalmente publicados no órgão oficial do Estado, o Minas Gerais. A maior incidência da publicação de discursos nos jornais privados é um dado importante para se pensar numa maior difusão das idéias neles existentes. É preciso considerar, no entanto, os possíveis vínculos entre estes jornais e o governo, o que poderia fazer deles divulgadores das idéias e dos projetos oficiais. Uma grande incidência de transcrição de discursos pelos jornais durante a década de 50 explica-se pela preocupação, principalmente do governo de Minas Gerais, então sob batuta de Juscelino Kubistchek ou sob sua influência direta, com a comemoração do 21 de abril, festa tornada oficial e permanente a partir desse momento. 33 FLORÊNCIO, Fidelis. Poema derrotista a Tiradentes. Diário de Minas. Belo Horizonte, 20 de abril de 1958, p. 1. Suplemento Literário. 34 A morte de Cristo e de Tiradentes. Estado de Minas. Belo Horizonte, 21 de abril de 2000. 35 As sentenças execrandas contra os Inconfidentes. Estado de Minas. Belo Horizonte, 28 de abril de 1942, p. 6. 36 Tiradentes. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 21 de abril de 1939, p. 7. 37 Não preservam o regime os que engendram ardis para fraudar a vontade do povo. Discurso do presidente Getúlio Vargas. Estado de Minas. Belo Horizonte, 23 de abril de 1954, p. 7. 38 Idem. 39 É uma forma de homenagear também a cidade ilustre. Discurso do governador Clóvis Salgado. Estado de Minas. Belo Horizonte, 23 de abril de 1955, p. 3. 40 1º de Abril. Binômio. Belo Horizonte, 18 de abril de 1960, p. 1. 41 SIQUEIRA, Cyro. Tiradentes, a imagem de um País. Estado de Minas. Belo Horizonte, 28 de abril de 2001, p. 10. Caderno EM Cultura. Artigo recebido em 09/2001. Aprovado em 03/2002. 1Sobre o papel da imprensa na política brasileira, e como fonte de pesquisa para o historiador, ver: CAPELATO, Maria Helena Rolim. Imprensa e História no Brasil São Paulo: Contexto/EDUSP, 1988. CAPELATO, Maria Helena Rolim. Os arautos do liberalismo: imprensa paulista (1920-1945). São Paulo: Brasiliense, 1989; NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das & MOREL, Marco (orgs.). História e imprensa. Anais do Colóquio. Rio de Janeiro: UERJ/IFCH, 1998. Sobre as relações entre a mídia e a política ver: JEANNENEY, Jean-Noël. A mídia. In RÉMOND, René (org.). Por uma história política. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1996. Um panorama das relações entre a imprensa e a política, no Brasil do século XX, está na bibliografia de MORAIS, Fernando. Chatô: o rei do Brasil. 3ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. Ver, também: LINHARES, Joaquim Nabuco. Itinerário da imprensa de Belo Horizonte: 1895-1954; estudo crítico e nota biográfica de Maria Ceres Pimenta S. Castro. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, 1995; SODRÉ, Nelson Werneck. História da imprensa no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966; WERNECK, Humberto. O desatino da rapaziada: jornalistas e escritores mineiros. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. 2Ver: GRAVATÁ, Hélio. "Contribuição bibliográfica para a História de Minas Gerais Período Colonial Inconfidência Mineira". In Revista do Arquivo Público Mineiro. Belo Horizonte: Arquivo Público Mineiro, 1978. Neste levantamento, foram compilados 1.093 títulos de obras da mais variada natureza, relativas à Inconfidência Mineira, excluindo-se os documentos manuscritos e obras gerais de História do Brasil, de Minas Gerais e do Rio de Janeiro. Entre as obras levantadas, produzidas entre 1819 e 1976, encontram-se documentos transcritos e publicados, bibliografias, livros, capítulos e referências em outras obras, verbetes em enciclopédias e dicionários, artigos, discursos, conferências, legislação, literatura, teatro, filmes, iconografia e monumentos. Há também outros levantamentos que incluem, além da bibliografia, fontes documentais disponíveis em arquivos brasileiros. Ver: CARNEIRO, Edilane de Almeida & SANTOS, Maria Judite dos. "Fontes documentais mineiras: subsídios para o estudo do movimento inconfidente de 1789". In Acervo Revista do Arquivo Nacional. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, v.4, n.1, jan/jun.1989; FIGUEIREDO, Luciano Raposo de Almeida. "Cortando rente o passado... Fontes para a história da Inconfidência Mineira e o acervo do Arquivo Nacional do Brasil". In Análise & Conjuntura. Inconfidência Mineira e Revolução Francesa Bicentenário: 1789-1989. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, v.4, n.2-3, mai/dez.1989; MATHIAS, Herculano Gomes. "A documentação da Inconfidência Mineira". In Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro, ano 153, n.375, abr/jun.1992; PESSOA, Gláucia Tomaz de Aquino. "O acervo do Arquivo Nacional e a história da Inconfidência Mineira". In Acervo Revista do Arquivo Nacional. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, v.4, n.1, jan/jun.1989. 3SILVA, Joaquim Norberto de Souza. História da Conjuração Mineira. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1948. 4SANTOS, Lúcio José dos. A Inconfidência Mineira: papel de Tiradentes na Inconfidência Mineira. Belo Horizonte: Imprensa Oficial de Minas Gerais, 1972. 5BARBOSA, Waldemar de Almeida. A verdade sobre Tiradentes Belo Horizonte: Instituto de História, Letras e Arte, s/d; JARDIM, Márcio. Síntese factual da Inconfidência Mineira Belo Horizonte: Instituto Cultural CODESER, 1988; JOSÉ, Oiliam. Tiradentes Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1974; LIMA JÚNIOR, Augusto de. História da Inconfidência de Minas Gerais Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1955; PERRIN, Dimas. Inconfidência Mineira: causas e conseqüências Belo Horizonte: Edições Júpiter, 1985; TORRES, Luis Wanderley. Tiradentes: a áspera estrada para a liberdade São Paulo: Obelisco, 1965; GRIECO, Donatello. História Sincera da Inconfidência Mineira Rio de Janeiro: Record, 1990. 6João Pinto Furtado chama a atenção para a pouca disposição da historiografia mais acadêmica em tratar da Inconfidência Mineira, história muito marcada pelo tom tradicional, exaltador e oficial. Ver: FURTADO, João Pinto. Historiografia oitocentista americana como "obra de pensamento" que se faz ação (notas para o estudo dos discursos de fundação sob o ponto de vista da epistemologia histórica). In: SCHMIDT, Rita Terezinha (org.). Nações/Narrações: nossas histórias e estórias. Porto Alegre: ABEA, 1997. 7MOTA, Carlos Guilherme. Idéia de revolução no Brasil (1789-1801). Petrópolis: Vozes, 1979. 8MAXWELL, Kenneth. A devassa da devassa: A Inconfidência Mineira: Brasil e Portugal (1750-1808). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978. 9FURTADO, João Pinto. Inconfidência mineira: crítica histórica e diálogo com a historiografia. São Paulo: FFLCH/Universidade de São Paulo, 2000. (Tese de Doutorado) 10SOUZA, Laura de Mello e. Norma e conflito: aspectos da História de Minas no século XVIII. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1999; ANASTASIA, Carla Maria Junho. Vassalos rebeldes: violência coletiva nas Minas na primeira metade do século XVIII. Belo Horizonte: C/Arte, 1998. 11Ver, especialmente: Análise & Conjuntura. Inconfidência Mineira e Revolução FrancesaBicentenário: 1789-1989 Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, v.4, n.2-3, mai/dez.1989; ANDRÉS, Aparecida (org.). Utopias: sentidos Minas imagens Belo Horizonte: Editora UFMG, 1993; Seminário Tiradentes, hoje: imaginário e política na República brasileira. Anais... Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, 1994; NOVAES, Adauto (org.). Tempo e História São Paulo: Companhia das Letras, 1992. 12CARVALHO, José Murilo de. A formação das almas: o imaginário da República no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. 13AGULHON, Maurice. Marianne au combat: l'imagerie et le symbolique républicaines de 1789 a 1880. Paris: Flammarion, 1979. 14DUTRA, Eliana Regina de Freitas. "Inconfidência Mineira: memória e contra-memória". In Varia História Belo Horizonte: Departamento de História-FAFICH/UFMG, n.12, 1993; ALKMIN, Sérgio Vaz. "Inconfidência Mineira: a vida histórica do acontecimento". In Revista do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais Belo Horizonte: TCMG, v.21, n.4, out/dez.1996. 17Três obras eram as referências básicas para os textos jornalísticos: SILVA, Joaquim Norberto de Sousa. História da Conjuração Mineira Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1948. 2v (a primeira edição é de 1873). SANTOS, Lúcio José dos. A Inconfidência Mineira: papel de Tiradentes na Inconfidência Mineira. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1972 (a primeira edição é de 1927). LIMA JÚNIOR, Augusto de. Pequena história da Inconfidência de Minas Gerais Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1955. 18FRIEIRO, Eduardo. A sombra de Tiradentes. Estado de Minas Belo Horizonte, 20 de abril de 1952, 21FLORENCIO, Fidelis. "Tiradentes vivo". Diário de Minas Belo Horizonte, 7 de maio de 1952, p. 4. 22"Tiradentes". Jornal do Brasil Rio de Janeiro, 21 de abril de 1932, p. 11. 23MAURICIO, Augusto. A Inconfidência Mineira. Jornal do Brasil Rio de Janeiro, 18 de abril de 1937, p. 15. 25Ver: DUTRA, Eliana Regina de Freitas. O ardil totalitário: imaginário político no Brasil dos anos 30. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ; Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1997. 26RACIOPPI, Vicente. Tiradentes. Estado de Minas Belo Horizonte, 22 de abril de 1941, p. 5. 27Os amores do alferes. Diário de Minas Belo Horizonte, 21 de abril de 1954, p. 8. 28JOSÉ, Oiliam. Tiradentes Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1974, p. 63. 30Tiradentes o amigo da liberdade. Diário de Minas Belo Horizonte, 21 de abril de 1957, p. 4. Suplemento Literário. 33FLORÊNCIO, Fidelis. Poema derrotista a Tiradentes. Diário de Minas Belo Horizonte, 20 de abril de 1958, p. 1. Suplemento Literário. 34A morte de Cristo e de Tiradentes. Estado de Minas Belo Horizonte, 21 de abril de 2000. 35As sentenças execrandas contra os Inconfidentes. Estado de Minas Belo Horizonte, 28 de abril de 1942, p. 6. 36Tiradentes. Jornal do Brasil Rio de Janeiro, 21 de abril de 1939, p. 7. 37Não preservam o regime os que engendram ardis para fraudar a vontade do povo. Discurso do presidente Getúlio Vargas. Estado de Minas Belo Horizonte, 23 de abril de 1954, p. 7. 39É uma forma de homenagear também a cidade ilustre. Discurso do governador Clóvis Salgado. Estado de Minas Belo Horizonte, 23 de abril de 1955, p. 3. 401º de Abril. Binômio Belo Horizonte, 18 de abril de 1960, p. 1. 41SIQUEIRA, Cyro. Tiradentes, a imagem de um País. Estado de Minas Belo Horizonte, 28 de abril de 2001, p. 10. Caderno EM Cultura. * O presente artigo é resultado da pesquisa desenvolvida para a tese de doutorado em História Social, intitulada Da infâmia ao altar da pátria: memória e representações da Inconfidência Mineira e de Tiradentes, defendida em agosto de 2001 no Departamento de História da Universidade de São Paulo e contou com financiamento do CNPq. 1 Sobre o papel da imprensa na política brasileira, e como fonte de pesquisa para o historiador, ver: CAPELATO, Maria Helena Rolim. Imprensa e História no Brasil. São Paulo: Contexto/EDUSP, 1988. CAPELATO, Maria Helena Rolim. Os arautos do liberalismo: imprensa paulista (1920-1945). São Paulo: Brasiliense, 1989; NEVES, Lúcia Maria Bastos Pereira das & MOREL, Marco (orgs.). História e imprensa. Anais do Colóquio. Rio de Janeiro: UERJ/IFCH, 1998. Sobre as relações entre a mídia e a política ver: JEANNENEY, Jean-Noël. A mídia. In RÉMOND, René (org.). Por uma história política. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1996. Um panorama das relações entre a imprensa e a política, no Brasil do século XX, está na bibliografia de MORAIS, Fernando. Chatô: o rei do Brasil. 3ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. Ver, também: LINHARES, Joaquim Nabuco. Itinerário da imprensa de Belo Horizonte: 1895-1954; estudo crítico e nota biográfica de Maria Ceres Pimenta S. Castro. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, 1995; SODRÉ, Nelson Werneck. História da imprensa no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966; WERNECK, Humberto. O desatino da rapaziada: jornalistas e escritores mineiros. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. 2 Ver: GRAVATÁ, Hélio. "Contribuição bibliográfica para a História de Minas Gerais Período Colonial Inconfidência Mineira". In Revista do Arquivo Público Mineiro. Belo Horizonte: Arquivo Público Mineiro, 1978. Neste levantamento, foram compilados 1.093 títulos de obras da mais variada natureza, relativas à Inconfidência Mineira, excluindo-se os documentos manuscritos e obras gerais de História do Brasil, de Minas Gerais e do Rio de Janeiro. Entre as obras levantadas, produzidas entre 1819 e 1976, encontram-se documentos transcritos e publicados, bibliografias, livros, capítulos e referências em outras obras, verbetes em enciclopédias e dicionários, artigos, discursos, conferências, legislação, literatura, teatro, filmes, iconografia e monumentos. Há também outros levantamentos que incluem, além da bibliografia, fontes documentais disponíveis em arquivos brasileiros. Ver: CARNEIRO, Edilane de Almeida & SANTOS, Maria Judite dos. "Fontes documentais mineiras: subsídios para o estudo do movimento inconfidente de 1789". In Acervo Revista do Arquivo Nacional. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, v.4, n.1, jan/jun.1989; FIGUEIREDO, Luciano Raposo de Almeida. "Cortando rente o passado... Fontes para a história da Inconfidência Mineira e o acervo do Arquivo Nacional do Brasil". In Análise & Conjuntura. Inconfidência Mineira e Revolução Francesa Bicentenário: 1789-1989. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, v.4, n.2-3, mai/dez.1989; MATHIAS, Herculano Gomes. "A documentação da Inconfidência Mineira". In Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Rio de Janeiro, ano 153, n.375, abr/jun.1992; PESSOA, Gláucia Tomaz de Aquino. "O acervo do Arquivo Nacional e a história da Inconfidência Mineira". In Acervo Revista do Arquivo Nacional. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, v.4, n.1, jan/jun.1989. 3 SILVA, Joaquim Norberto de Souza . História da Conjuração Mineira. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1948. 4 SANTOS, Lúcio José dos. A Inconfidência Mineira: papel de Tiradentes na Inconfidência Mineira. Belo Horizonte: Imprensa Oficial de Minas Gerais, 1972. 5 BARBOSA, Waldemar de Almeida. A verdade sobre Tiradentes. Belo Horizonte: Instituto de História, Letras e Arte, s/d; JARDIM, Márcio. Síntese factual da Inconfidência Mineira. Belo Horizonte: Instituto Cultural CODESER, 1988; JOSÉ, Oiliam. Tiradentes. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1974; LIMA JÚNIOR, Augusto de. História da Inconfidência de Minas Gerais. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1955; PERRIN, Dimas. Inconfidência Mineira: causas e conseqüências. Belo Horizonte: Edições Júpiter, 1985; TORRES, Luis Wanderley. Tiradentes: a áspera estrada para a liberdade. São Paulo: Obelisco, 1965; GRIECO, Donatello. História Sincera da Inconfidência Mineira. Rio de Janeiro: Record, 1990. 6 João Pinto Furtado chama a atenção para a pouca disposição da historiografia mais acadêmica em tratar da Inconfidência Mineira, história muito marcada pelo tom tradicional, exaltador e oficial. Ver: FURTADO, João Pinto. Historiografia oitocentista americana como "obra de pensamento" que se faz ação (notas para o estudo dos discursos de fundação sob o ponto de vista da epistemologia histórica). In: SCHMIDT, Rita Terezinha (org.). Nações/Narrações: nossas histórias e estórias. Porto Alegre: ABEA, 1997. 7 MOTA, Carlos Guilherme. Idéia de revolução no Brasil (1789-1801). Petrópolis: Vozes, 1979. 8 MAXWELL, Kenneth. A devassa da devassa: A Inconfidência Mineira: Brasil e Portugal (1750-1808). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978. 9 FURTADO, João Pinto. Inconfidência mineira: crítica histórica e diálogo com a historiografia. São Paulo: FFLCH/Universidade de São Paulo, 2000. (Tese de Doutorado) 10 SOUZA, Laura de Mello e. Norma e conflito: aspectos da História de Minas no século XVIII. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1999; ANASTASIA, Carla Maria Junho. Vassalos rebeldes: violência coletiva nas Minas na primeira metade do século XVIII. Belo Horizonte: C/Arte, 1998. 11 Ver, especialmente: Análise & Conjuntura. Inconfidência Mineira e Revolução Francesa Bicentenário: 1789-1989. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, v.4, n.2-3, mai/dez.1989; ANDRÉS, Aparecida (org.). Utopias: sentidos Minas imagens. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1993; Seminário Tiradentes, hoje: imaginário e política na República brasileira. Anais... Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, 1994; NOVAES, Adauto (org.). Tempo e História. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. 12 CARVALHO, José Murilo de. A formação das almas: o imaginário da República no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. 13 AGULHON, Maurice. Marianne au combat: l'imagerie et le symbolique républicaines de 1789 a 1880. Paris: Flammarion, 1979. 14 DUTRA, Eliana Regina de Freitas. "Inconfidência Mineira: memória e contra-memória". In Varia História. Belo Horizonte: Departamento de História-FAFICH/UFMG, n.12, 1993; ALKMIN, Sérgio Vaz. "Inconfidência Mineira: a vida histórica do acontecimento". In Revista do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais. Belo Horizonte: TCMG, v.21, n.4, out/dez.1996. 15 Memórias do êxito que teve a conjuração de Minas e dos fatos relativos a ela acontecidos nesta cidade do Rio de Janeiro desde 17 até 26 de abril de 1792, atribuída ao frei José Carlos de Jesus Maria do Desterro, e Últimos momentos dos Inconfidentes de 1789, pelo frade que os assistiu em confissão, de frei Raimundo da Anunciação Penaforte. Ambos estão publicados em Autos da Devassa da Inconfidência Mineira. 2ª ed. Brasília: Câmara dos Deputados; Belo Horizonte: Imprensa Oficial de Minas Gerais, 1980, v.9 e em Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Tomo 44, 2º trimestre, 1881. 16 Os jornais utilizados na pesquisa foram o Jornal do Brasil, do Rio de Janeiro, o Estado de Minas, o Diário de Minas e o Binômio, todos de Belo Horizonte. A não ser pelo Binômio, fundado em 1952 por estudantes mineiros e progressivamente identificado com as posições políticas de esquerda, os outros representavam posicionamentos conservadores, próximos das elites e, não raro, defensores de seus projetos. O Estado de Minas integrava os Diários Associados, de Assis Chateaubriand, desde 1929; o Diário de Minas havia sido criado em 1898 ligado ao Partido Republicano Mineiro, e desde 1949 pertencia à família Negrão de Lima, ligada ao Partido Trabalhista Nacional, uma das bases de apoio de Juscelino Kubitschek. O Jornal do Brasil surgiu em 1891, foi ativo nos conflitos entre civis e militares no início da República e sempre defendeu posições conservadoras. 17 Três obras eram as referências básicas para os textos jornalísticos: SILVA, Joaquim Norberto de Sousa. História da Conjuração Mineira. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1948. 2v (a primeira edição é de 1873). SANTOS, Lúcio José dos. A Inconfidência Mineira: papel de Tiradentes na Inconfidência Mineira. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1972 (a primeira edição é de 1927). LIMA JÚNIOR, Augusto de. Pequena história da Inconfidência de Minas Gerais. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1955. 18 FRIEIRO, Eduardo. A sombra de Tiradentes. Estado de Minas. Belo Horizonte, 20 de abril de 1952, p. 5. Este texto foi publicado também no livro O diabo na livraria do cônego, de mesmo autor. 19 Idem. Grifos meus. 20 Idem. 21 FLORENCIO, Fidelis. "Tiradentes vivo". Diário de Minas. Belo Horizonte, 7 de maio de 1952, p. 4. 22 "Tiradentes". Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 21 de abril de 1932, p. 11. 23 MAURICIO, Augusto. A Inconfidência Mineira. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 18 de abril de 1937, p. 15. 24 Idem. 25 Ver: DUTRA, Eliana Regina de Freitas. O ardil totalitário: imaginário político no Brasil dos anos 30. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ; Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1997. 26 RACIOPPI, Vicente. Tiradentes. Estado de Minas. Belo Horizonte, 22 de abril de 1941, p. 5. 27 Os amores do alferes. Diário de Minas. Belo Horizonte, 21 de abril de 1954, p. 8. 28 JOSÉ, Oiliam. Tiradentes. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1974, p. 63. 29 BAUZÁ, H. Op. cit.., p. 5. Ver também AUGÉ, Marc. Heróis. In Enciclopédia Einaudi. Religião-Rito. v.30. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1994. 30 Tiradentes o amigo da liberdade. Diário de Minas. Belo Horizonte, 21 de abril de 1957, p. 4. Suplemento Literário. 31 Idem. 32 Os discursos eram normalmente publicados no órgão oficial do Estado, o Minas Gerais. A maior incidência da publicação de discursos nos jornais privados é um dado importante para se pensar numa maior difusão das idéias neles existentes. É preciso considerar, no entanto, os possíveis vínculos entre estes jornais e o governo, o que poderia fazer deles divulgadores das idéias e dos projetos oficiais. Uma grande incidência de transcrição de discursos pelos jornais durante a década de 50 explica-se pela preocupação, principalmente do governo de Minas Gerais, então sob batuta de Juscelino Kubistchek ou sob sua influência direta, com a comemoração do 21 de abril, festa tornada oficial e permanente a partir desse momento. 33 FLORÊNCIO, Fidelis. Poema derrotista a Tiradentes. Diário de Minas. Belo Horizonte, 20 de abril de 1958, p. 1. Suplemento Literário. 34 A morte de Cristo e de Tiradentes. Estado de Minas. Belo Horizonte, 21 de abril de 2000. 35 As sentenças execrandas contra os Inconfidentes. Estado de Minas. Belo Horizonte, 28 de abril de 1942, p. 6. 36 Tiradentes. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 21 de abril de 1939, p. 7. 37 Não preservam o regime os que engendram ardis para fraudar a vontade do povo. Discurso do presidente Getúlio Vargas. Estado de Minas. Belo Horizonte, 23 de abril de 1954, p. 7. 38 Idem. 39 É uma forma de homenagear também a cidade ilustre. Discurso do governador Clóvis Salgado. Estado de Minas. Belo Horizonte, 23 de abril de 1955, p. 3. 40 1º de Abril. Binômio. Belo Horizonte, 18 de abril de 1960, p. 1. 41 SIQUEIRA, Cyro. Tiradentes, a imagem de um País. Estado de Minas. Belo Horizonte, 28 de abril de 2001, p. 10. Caderno EM Cultura.
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A Inconfidência Mineira e Tiradentes vistos pela imprensa: a vitalização dos mitos (1930-1960) Thais Nívia de Lima e Fonseca SOBRE O AUTOR Resumos Este artigo analisa as apropriações, pela imprensa, das representações da Inconfidência Mineira e especialmente de Tiradentes, entre as décadas de 30 e 60 do século XX, quando foi muito intensa a preocupação com a memória do movimento e de seu mais ilustre personagem. A análise da produção jornalística sobre o herói nacional procura identificar os principais elementos constituidores desses textos indicando, por um lado, a vitalidade dos mitos e, por outro, o poder persuasivo das associações estabelecidas entre o sacrifício heróico de Tiradentes e as condutas dos que se colocam como seus herdeiros, buscando no passado a legitimação para as ações do presente. Inconfidência Mineira; imprensa; representações políticas This article shows how Brazilian press appropriates the representations of the Inconfidência Mineira and specially of Tiradentes ...