A Importância da Criação de um Estatuto do Tráfico de Pessoas na Legislação Brasileira
POR SYLVIA ROMANO IN COMENTARIOS A PROPOSTA DE
Adolfo Borges Filho*
GRANDE CONTRIBUIÇÃO
1 1. Introdução. 2. Primeiro Tópico: a evolução da legislação internacional acerca do tema tráfico de pessoas [...]. 2. Segundo Tópico: A Legislação Brasileira sobre o Tema. I – DA PREVENÇÃO (Criminalização de Condutas). II – DA PERSECUÇÃO (repressão aos crimes). III – Da Proteção às Vítimas (Investimento Prioritário do Estado nos Direitos Humanos Fundamentais). 3. Conclusão. Introdução Este singelo artigo resulta da palestra que proferi, a convite do Centro Loyola de Fé e Cultura, no auditório da Arquidiocese do Rio de Janeiro, pouco tempo depois do lançamento da Campanha da Fraternidade da CNBB de 2014, cujo tema foi o Tráfico de Pessoas. Coube-me, naquele evento, abordar a questão sob a ótica jurídica e, partindo do lema Conscientizar p ara Combater, tive um insight que reputo providencial, em termos de conteúdo desta conscientização, no âmbito da legislação brasileira: a importância da criação do Estatuto do Tráfico de Pessoas que consolidaria, num único diploma legal, todas as modalidades do tráfico humano, tipificando os ilícitos penais e apresentando regras de prevenção desses crimes e de proteção as suas vítimas. A Convenção de Palermo de 2000 foi um grande marco internacional para que o assunto tomasse o vulto que merecia no cenário das nações, traçando medidas preventivas, punitivas e protetivas às pessoas das vítimas. O Brasil ratificou a Convenção, mas a nossa legislação infraconstitucional se espalhou por diplomas diversos, concentrando-se, principalmente, no Código Penal e avançando em leis extravagantes, deixando de frisar a expressão “tráfico” como denominadora comum das diversas modalidades de tráfico humano. Relevante ressaltar, também, que a matéria não é exclusiva do Direito Penal, adentrando a área multidisciplinar dos direitos humanos que, no Estado democrático, integram a Constituição como direitos impostergáveis, como cláusulas pétreas irremovíveis. Direitos humanos é expressão que engloba direito à educação, direito à saúde, direito à moradia, direito a julgamentos dignos. Essa responsabilidade com o Outro é muito mais abrangente e significa, na verdade, amor ao próximo. Nos dizeres do grande filósofo Emmanuel Lévinas (defensor da Ética da Alteridade): * Procurador de Justiça do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, Pr ofessor Adjunto do Departamento de Direito da PUC-RJ e pós-graduado em “Filosofia e Existência” pela UCB. 18 | Revista do Ministério Público do Rio de Janeiro nº 58, out./dez. 2015 Adolfo Borges Filho A responsabilidade pelo próximo é, sem dúvida, o nome grave do que se chama amor do próximo, amor sem Eros, caridade, amor em que o momento ético domina o momento passional, amor sem c piscência. Não gosto muito da palavra amor, que está gasta e adulterada. Falemos duma assunção do destino de outrem. Daí a importância da criação de um “Estatuto do Tráfico de Pessoas”, de conteúdo multidisciplinar, englobando todas as modalidades de tráfico humano. Primeiro Tópico: a evolução da legislação internacional acerca do tema tráfico de pessoastem início com a repress&atild e;o ao tráfico de negros e, no decorrer do tempo, a preocupação com a “coisificação” do ser humano, em geral, vai se alargando, em termos de modalidades de tráfico até chegarmos, já com a existência da ONU, à Convenção de Palermo, em 2000. O Tratado de Paris entre Inglaterra e França (1814) regulou, pela primeira vez na história, o tráfico de negros, objeto de comércio para a escravidão. Abrindose um parênteses, o grande holocausto da história brasileira foi, a nosso sentir, a escravatura que só veio a ser abolida oficialmente em 13 de maio de 1888. Mais adiante na história mundial, surge a Convenção firmada pela Sociedade das Nações em 1926 e ratificada, posteriormente, pela ONU em 1953. Segundo aquela Convenção o tráfico de escravos “compreende todo ato de captura, aquisi& ccedil;ão ou cessão de um indivíduo para vendê-lo ou trocá-lo; todo ato de cessão por venda ou câmbio de um escravo, adquirido para vendê-lo ou trocá-lo, e em geral todo ato de comércio ou de transporte de escravos”. Observe-se que a “coisificação” ou “objetificação” do ser humano já se destacava nessas definições, tanto assim que a escravidão é definida como sendo o “estado ou condição de um indivíduo sobre o qual se exercitam os atributos do direito de propriedade ou de alguns deles”. Paralelamente a essa preocupação com a escravidão, surge a necessidade de se combater o tráfico de mulheres brancas para a prostituição. A Dra. Ela Wiecko V. de Castilho, no seu artigo “Tráfico de pessoas: da Convenção de Genebra ao Protocolo de Palermo”, faz um resumo dessa evolução: À preocupação inicial com o tráfico de negros da África, para exploração laboral, agregou-se a do tráfico de mulheres brancas, para prostituição. Em 1904, é firmado em Paris o Acordo para a Repressão do Tráfico de Mulheres Brancas, no ano seguinte convolado em Convenção. Durante as três décadas seguintes foram assinados: a Convenção Internacional para a Repressão do Tráfico de Mulheres Brancas (Paris, 1910), Revista do Ministério Público do Rio de Janeiro nº 58, out./dez. 2015 | 19 A Importância da Criação de um Estatuto do Tráfico de Pessoas na Legislação Brasileira a Convenção Internacional para a Repressão do Tráfico de Mulheres e Crianças (Genebra, 1921), a Convenção Internacional para a Repressão do Tráfico de Mulheres Maiores (Genebra, 1933), o Protocolo de Emenda à Convenção Internacional para a Repressão do Tráfico de Mulheres e Crianças e à Convenção Internacional para a Repressão do Tráfico de Mulheres Maiores (1947), e, por último, a Convenção e Protocolo Final para a Repressão do Tráfico de Pessoas e do Lenocínio (Lake Success,1949). Esta sucessão histórica pode ser dividida em duas fases: antes e depois da Convenção de 1949, ou seja, no contexto da Liga das Nações e no âmbito da ONU, com expressa anulação e substituição das normas anteriores. De fato. Partindo-se para a Convenção de 1949, percebe-se que ela adentrou, de forma mais explícita, o âmbito dos direitos humanos, ressaltando a dignidade da pesso a humana, deixando claro que a vítima pode ser qualquer pessoa, independentemente de sexo e idade. O artigo 1º da Convenção de 1949 reza que as Partes se comprometem em punir toda pessoa que, para satisfazer às paixões de outrem: “aliciar, induzir ou descaminhar, para fins de prostituição, outra pesssoa, ainda que com seu consentimento” bem como “explorar a prostituição de outra pessoa, ainda que com seu consentimento”. E o artigo 2º especifica as condutas de “manter, dirigir, ou, conscientemente, financiar uma casa de prostituição ou contribuir para esse financiamento; de dar ou tomar de aluguel, total ou parcialmente, um imóvel ou outro local, para fins de prostituição de outrem.” A preocupação internacional com o tráfico de pessoas foi se tornando cada vez mais acirrada e já se constatava não ser apenas a exploração sexual, principalmente relacionada à mulher, como sendo o objetivo fulcral da proteção. Passo importante, também, foi a elaboração do Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, em 1998, promulgado, aqui no Brasil, pelo Decreto nº 4388, de 25 de setembro de 2002. O artigo 7º do Estatuto tipifica os crimes contra a humanidade, destacando-se a escravidão, entendendo-se, como tal, “o exercício, relativamente a uma pessoa, de um poder ou de um conjunto de poderes que traduzam um direito de propriedade sobre uma pessoa, incluindo o exercício desse poder no âmbito do tráfico de pessoas, em particular mulheres e crianças”. Segue-se, então, a deliberação da Assembleia Geral da ONU no sentido de se criar um comitê intergovernamental para a feitura de uma convenção global contra o crime organizado a nível tran snacional, buscando-se mecanismos que possibilitassem o tratamento concomitante de todas as espécies relativas ao tráfico 20 | Revista do Ministério Público do Rio de Janeiro nº 58, out./dez. 2015 Adolfo Borges Filho de pessoas, mormente o tráfico de mulheres e de crianças. O comitê propôs, depois de muito debate, ocorrido no ano de 1999, uma convenção que acabou sendo aprovada e conhecida como Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional (Palermo, 2000). A Convenção de Palermo passou a ser o grande divisor de águas nessa espinhosa questão do TRÁFICO DE PESSOAS. Na verdade, ela se constitui num marco internacional que engloba, no seu âmbito, três providências: A primeira é a PREVENÇÃO: a própria descrição das práticas delituosas con stante do texto já é uma forma de conscientizar potenciais infratores e potenciais vítimas para as consequências danosas acarretadas pelo tráfico. No que tange ao infrator, a punição severa; e, quanto à potencial vítima, o temor de que a submissão ao tráfico poderá levá-la à morte. Prevenção, também, no sentido de que serviu de impulso para que os países ajustassem a sua legislação, a fim de compatibilizá-las com os termos da Convenção. A segunda providência é a PERSECUÇÃO (prosecution, em inglês), abrangendo a fase investigatória e a fase judicial propriamente dita, entrando em cena a denominada organização criminosa ou crime organizado. Sim, porque o tráfico, seja interno, seja internacional, demanda uma estrutura especializada tanto do lado dos infratores como do lado da polícia e do Ministério Público. A terceira é a PROTEÇÃO que deve ser dada às vítimas desses crimes hediondos. Pomos em relevo alguns artigos da Convenção de Palermo: Artigo 3 Definições Para efeitos do presente Protocolo: a) A expressão “tráfico de pessoas” significa o recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de pessoas, recorrendo à ameaça ou uso da força ou a outras formas de coação, ao rapto, à fraude, ao engano, ao abuso de autoridade ou à situação de vulnerabilidade ou à entrega ou aceitação de pagamentos ou benefícios para obter o consentimento de uma pessoa que tenha autoridade sobre outra para fins de exploração. A exploração incluirá, no mínimo, a exploração da prostitui&c cedil;ão de outrem ou outras formas de exploração sexual, o trabalho ou Revista do Ministério Público do Rio de Janeiro nº 58, out./dez. 2015 | 21 A Importância da Criação de um Estatuto do Tráfico de Pessoas na Legislação Brasileira serviços forçados, escravatura ou práticas similares à escravatura, a servidão ou a remoção de órgãos; b) O consentimento dado pela vítima de tráfico de pessoas tendo em vista qualquer tipo de exploração descrito na alínea a do presente Artigo será considerado irrelevante se tiver sido utilizado qualquer um dos meios referidos na alínea a; c) O recrutamento, o transporte, a transferência, o alojamento ou o acolhimento de uma criança para fins de exploração serão considerados “tráfico de pessoas” mesmo que n&atil de;o envolvam nenhum dos meios referidos da alínea a do presente Artigo; d) O termo “criança” significa qualquer pessoa com idade inferior a dezoito anos. Artigo 5 Criminalização 1. Cada Estado Parte adotará as medidas legislativas e outras que considere necessárias de forma a estabelecer como infrações penais os atos descritos no Artigo 3 do presente Protocolo, quando tenham sido praticados intencionalmente. Artigo 6 Assistência e proteção às vítimas de tráfico de pessoas 1. Nos casos em que se considere apropriado e na medida em que seja permitido pelo seu direito interno, cada Estado Parte protegerá a privacidade e a identidade das vítimas de tráfico de pessoas, incluindo, entre outras (ou inter alia), a confidencialidade dos procedimentos judiciais relativos a esse tráfico. ....................................................................... ....................................................... 3. Cada Estado Parte terá em consideração a aplicação de medidas que permitam a recuperação física, psicológica e social das vítimas de tráfico de pessoas, incluindo, se for caso disso, em cooperação com organizações não governamentais, outras organizações competentes e outros elementos de sociedade civil e, em especial, o fornecimento de: a) Alojamento adequado; b) Aconselhamento e informação, especialmente quanto aos direitos que a lei lhes reconhece, numa língua que compreendam; c) Assistência médica, psicológica e material; e d) Oportunidades de emprego, educação e formação. 22 | Revista do Ministério Público do Rio de Janeiro nº 58, out./dez. 2015 Adolfo Borges Filho No Brasil, o Presidente da República, u sando das atribuições conferidas pelo artigo 84, IV, da CF promulgou, através do Decreto nº 5.017, de 12 de março de 2004 o Protocolo Adicional à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional relativo à Prevenção, Repressão e Prevenção do Tráfico de Pessoas em especial Mulheres e Crianças. Segundo Tópico: A Legislação Brasileira sobre o Tema A Convenção de Palermo acabou impulsionando, ainda que parcimoniosamente, no Brasil, o aperfeiçoamento de dispositivos penais que se compatibilizassem com as espécies de tráfico de pessoas. I – DA PREVENÇÃO (Criminalização de Condutas) No Código Penal Brasileiro, o legislador tratou dos seguintes delitos: TRÁFICO PARA A EXPLORAÇÃO SEXUAL: O artigo 231 trata do Tráfico internacion al de pessoa para fim de exploração sexual: Promover ou facilitar a entrada, no território nacional, de alguém que nele venha a exercer a prostituição ou outra forma de exploração sexual, ou a saída de alguém que vá exercê-la no estrangeiro. Pena – reclusão, de 3 (três) a 8 (oito) anos. § 1º Incorre na mesma pena aquele que agenciar, aliciar ou comprar a pessoa traficada, assim como, tendo conhecimento dessa condição, transportá-la, transferi-la ou alojá-la. § 2º A pena é aumentada da metade se: I – a vítima é menor de 18 (dezoito) anos; II – a vítima, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato; III – se o agente é ascendente, padrasto, madrasta, irmão, enteado, cônjuge, companheiro, tutor ou curador, preceptor ou empregador da vítima, ou se assumiu, por lei ou outra forma, obrigação de cuidado, proteção ou vigilância; ou IV – há emprego de violência, grave ameaça ou fraude. § 3º Se o crime é cometido com o fim de obter vantagem econômica, aplica-se também multa. Revista do Ministério Público do Rio de Janeiro nº 58, out./dez. 2015 | 23 A Importância da Criação de um Estatuto do Tráfico de Pessoas na Legislação Brasileira E o artigo 231-A, do Tráfico interno de pessoa para fim de exploração sexual: Promover ou facilitar o deslocamento de alguém dentro do território nacional para o exercício da prostituição ou outra forma de exploração sexual. Pena – reclusão, de 2 (dois) a 6 (seis) anos. O legislador repete, com os mesmos termos, o qu e consta dos parágrafos 2º e 3º do artigo anterior. EXPLORAÇÃO DO TRABALHO (ou trabalho escravo): No tocante ao trabalho escravo, ocorreu, recentemente, importantíssima modificação do artigo 243 da Constituição Federal, com a entrada em vigor da EC 81/2004: Art. 243 As propriedades rurais e urbanas de qualquer região do País onde forem localizadas culturas ilegais de plantas psicotrópicas ou a exploração de trabalho escravo na forma da lei serão expropriadas e destinadas à reforma agrária e a programas de habitação popular, sem qualquer indenização ao proprietário e sem prejuízo de outras sanções previstas em lei, observado, no que couber, o disposto no art. 5º. Parágrafo único. Todo e qualquer bem de valor econômico apreendido em decorrência do tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins e da exploração de trabalho escravo será confiscado e reverterá a fundo especial com destinação específica, na forma da lei (grifamos). O que poderá atrasar a aplicação – que deveria ser imediata – desse dispositivo constitucional, no tocante ao trabalho escravo, é a necessidade de normatização infraconstitucional, como se pode observar com o uso da expressão “na forma da lei”. Si et in quantum, em termos de ilícitos penais, constam do Código Penal pátrio, os seguintes: O artigo 149 tipifica o delito de Redução a condição análoga a de escravo: Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho, quer restringindo , por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto: 24 | Revista do Ministério Público do Rio de Janeiro nº 58, out./dez. 2015 Adolfo Borges Filho Pena – reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência. § 1º Nas mesmas penas incorre quem: I – cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho; II – mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho. §2º A pena é aumentada de metade, se o crime é cometido: I – contra criança ou adolescente; II – por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem. Parece-nos, a princípio, que o conceito de trabalho escravo está bem delineado neste dispositivo penal acima transcrito, fato que dispensaria a expressão “na forma da lei” que o artigo 243 recém alterado da CF/1988 acrescentou. O Código Penal abriga, também, dois outros artigos que dizem respeito ao trabalhador. O artigo 206 trata do Aliciamento para fim de emigração e o artigo 207, do Aliciamento de trabalhadores de um local para outro do território nacional, estabelecendo penas de pequena duração. No que tange ao TRÁFICO DE CRIANÇAS: O Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/1990), conhecido como ECA, dispõe no seu artigo 239 que é crime “promover ou auxiliar a efetivação de ato destinado ao envio de criança ou adolescente para o exterior com inobservância das formalidades legais ou com o fito de obter lucro”. E a pena é agravada “se h&aacut e; emprego de violência, grave ameaça ou fraude”. E, no que diz respeito ao TRÁFICO DE ÓRGÃOS: A Lei nº 9.434/1997 dispõe sobre “a remoção de órgãos, tecidos e partes do corpo humano para fins de transplante e tratamento e dá outras providências”. E os artigos 14, 15 e 16 definem as condutas criminosas relacionadas à remoção, compra e venda e transplante de órgãos. Dessume-se, dos ilícitos penais elencados acima, que a expressão “tráfico” só aparece, de forma explícita, na modalidade de “exploração sexual”. II – Da Persecução (repressão aos crimes) Faz-se mister observar que a prática desses crimes envolve, na grande maioria das vezes, um grupo organizado de indivíduos que acabam dando ensejo Revista do Ministério Públi co do Rio de Janeiro nº 58, out./dez. 2015 | 25 A Importância da Criação de um Estatuto do Tráfico de Pessoas na Legislação Brasileira à figura do crime organizado. Daí a legislação ter criado, com base também na prática internacional, leis extravagantes que tipificam essas condutas coletivas e traçam procedimentos que devem ser utilizados pelos órgãos de investigação, para apuração e processamento dos ilícitos cometidos. Hoje, no Brasil, temos uma lei bem recente, que é a Lei nº 12.850, de 2 de agosto de 2013, a qual define “organização criminosa e dispõe sobre a investigação criminal, os meios de obtenção da prova, infrações penais correlatas e o procedimento criminal”. No artigo 1º, mais precisamente no seu parágrafo 1º, está dit o que: Considera-se organização criminosa a associação de 4 (quatro) ou mais pessoas estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, com objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de infrações penais cujas penas máximas sejam superiores a 4 (quatro) anos, ou que sejam de caráter transnacional. §2º Esta Lei se aplica também: I – Às infrações penais previstas em tratados ou convenção internacional quando, iniciada a execução no País, o resultado tenha ou devesse ter ocorrido no estrangeiro, ou reciprocamente. No tocante à investigação e meios de prova, tem-se a colaboração premiada (art. 4º), a ação controlada – ou retardamento do estado de flagrância – (art. 8º) e a inf iltração de agentes (art. 10). Interessante notar que o artigo 2º desse mesmo diploma legal trata de crime conexo, sem prejuízo das penas correspondentes às demais infrações penais praticadas: Art. 2º Promover, constituir, financiar ou integrar, pessoalmente ou por interposta pessoa, organização criminosa. III – Da Proteção às Vítimas (Investimento Prioritário do Estado nos Direitos Humanos Fundamentais) A Constituição Federal de 1988, no seu artigo 4º, estatui que: A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios: II – prevalência dos direitos humanos. O tema de que ora tratamos está intimamente ligado aos direitos humanos. E, na própria Carta Magna, vamos encontrar, no título que trata “dos direitos e garantias fundamentais”, mais pre cisamente no artigo 5º, dispositivos como: 26 | Revista do Ministério Público do Rio de Janeiro nº 58, out./dez. 2015 Adolfo Borges Filho I – Homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição. II – Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei. III – Ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante. A nossa Constituição de 1988, também conhecida como Constituição Cidadã, destaca, de forma expressa e bastante clara, a importância da EDUCAÇÃO (artigo 205), da ASSISTÊNCIA SOCIAL (artigo 203), da SAÚDE (artigo 196) estatuindo e enfatizando, no seu artigo 227, que É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. A relevância da criação do Estatuto do Tráfico de Pessoas deriva, portanto, da própria Convenção de Palermo, seja no tocante à tipificação dos delitos e de sua repressão, seja no que diz respeito à prevenção e às medidas protetivas a serem propiciadas às vítimas dos delitos. Na verdade, quanto à tipificação dos delitos, seria interessante que fosse adotada, na legislaç& atilde;o brasileira, a expressão “tráfico” em todas as modalidades de comércio de pessoas, como já acontece com o tratamento dado ao tráfico internacional e nacional para fins de exploração sexual. A parte investigatória e judicial da repressão pode ser apenas indicada no bojo do Estatuto, fazendo-se remissão à lei extravagante já existente. E, finalmente, no âmbito da proteção às vítimas, além do que está preconizado no bojo da Convenção de Palermo, seriam apontados os dispositivos constitucionais que mencionamos acima como princípios norteadores dessa proteção. Conclusão: Ação: “Conscientizar para combater”. A ética como princípio fundamental da Justiça Social. O princípio ético deve se constituir como cláusula pétrea gravad a na subjetividade de todos os personagens que compõem a vida pública do país. De nada vale uma ordem jurídica teoricamente estabelecida se aqueles incumbidos de aplicá-la não estiverem atentos à ética como paradigma maior de conduta seja atuando no poder executivo, judiciário ou legislativo. O Outro não se reduz a Revista do Ministério Público do Rio de Janeiro nº 58, out./dez. 2015 | 27 A Importância da Criação de um Estatuto do Tráfico de Pessoas na Legislação Brasileira um único indivíduo mas representa, numa visão abrangente, toda a sociedade. E justamente essa Responsabilidade pelo Outro, como tão bem realçada por Lévinas, seja como indivíduo, seja como sociedade, é que constituirá a base para uma nova concepção de Justiça Social. Entra em cena, obrigatoriamente, o s entimento de bondade que cada ser humano deve cultivar em relação ao seu próximo. Na verdade, é essa bondade que faz brotar naturalmente o desejo de justiça que acaba se espalhando e contaminando todo o corpo social. A visão é aparentemente utópica e parece exemplificar uma típica produção do imaginário. Entretanto, não se pode negar a existência concreta desse sentimento de bondade na vida real de inúmeros sujeitos em situações diversas de seu cotidiano. Ora, se essa bondade é detectável, ela existe no mundo real e, uma vez conscientizada como potencial de justiça, o ideal de humanidade pode ser alcançado. Na Constituição Pastoral “Gaudium et Spes” vamos encontrar, no seu item 16, o conceito de Dignidade da consciência moral: 16. No fundo da própria consciência, o homem descobre uma lei que n&a tilde;o se impôs a si mesmo, mas à qual deve obedecer; essa voz, que sempre o está a chamar ao amor do bem e fuga do mal, soa no momento oportuno, na intimidade do seu coração: faze isto, evita aquilo. O homem tem no coração uma lei escrita pelo próprio Deus; a sua dignidade está em obedecer-lhe, e por ela é que será julgado(9). A consciência é o centro mais secreto e o santuário do homem, no qual se encontra a sós com Deus, cuja voz se faz ouvir na intimidade do seu ser (10). Graças à consciência, revela-se de modo admirável aquela lei que se realiza no amor de Deus e do próximo (11). Pela fidelidade à voz da consciência, os cristãos estão unidos aos demais homens, no dever de buscar a verdade e de nela resolver tantos problemas morais que surgem na vida individual e social. Quanto mais, portanto, prevalecer a recta cons ciência, tanto mais as pessoas e os grupos estarão longe da arbitrariedade cega e procurarão conformar-se com as normas objectivas da moralidade. Não raro, porém, acontece que a consciência erra, por ignorância invencível, sem por isso perder a própria dignidade. Outro tanto não se pode dizer quando o homem se descuida de procurar a verdade e o bem e quando a consciência se vai progressivamente cegando, com o hábito do pecado. Entraria, em cena, também, como conteúdo desta conscientização, mais precisamente no âmbito dos direitos humanos, o próprio Estatuto do Tráfico de Pessoas, preconizado nas linhas acima. A existência de um diploma legal único pode representar um arquétipo psicológico de amplo espectro, em termos sociais, graças 28 | . A iniciativa popular, tanto no sentido amplo, como no sentido estrito do termo (emana ção constitucional da soberania popular), será de grande valia para que essa ideia tome forma e se expanda até que os Poderes da República se sensibilizem e adotem a sugestão apresentada neste artigo.
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