Gringas ricas”: Viagens sexuais de mulheres europeias no Nordeste do Brasil

por SYLVIA ROMANO IN COMENTARIOS A lAdriana Piscitelli “Gringas ricas”: Viagens sexuais de mulheres europeias no Nordeste do BrasilAdriana Piscitelli1Universidade Estadual de CampinasRESUMO:Nestetexto,analisoasexperiênciassexuaiseafetivasdeviajantes,prin-cipalmenteeuropeias,emdoislugarestransnacionaisnolitoraldoestadodoCeará, baseando-meemumapesquisaantropológica.Exploroosaspectosenvolvidosnos relacionamentosintensamenteerotizadosqueelasestabelecemcomhomenslocais racializadosesexualizados,percebidoscomocorporificaçãoda“masculinidadebra-sileira”.Analisandocomoasinterseccionalidadespermeiamessesrelacionamentos, meuprincipalargumentoéqueosprivilégiosestruturaisassociadosaoestatuto econômico,racialenacionaldessasmulheressãodesestabilizadosquandoelasse tornammigrantes.Noprocessodeabandonaroestatutodeturistas,afluidezdos intercâmbiossexuaiseeconômicosdesaparece,comparticularcrueldadenocaso dasmulheresmaisvelhas,paraquemareconfiguração doscódigosdegênerodese-quilibraosprivilégiosdequeanteriormentedispunham. PALAVRAS-CHAVE: gênero, interseccionalidades, sexualidade, turismo sexual feminino.Introdução Chegamos a Jericoacoara quase a meia-noite... Nos indicaram uma lan-chonete. Fernanda, minha assistente de pesquisa, com vinte e poucos anos, estava animada, alegre. E eu, esgotada. Fiz o pedido no balcão e paguei. Em uma mesa ao lado alguns homens nativos nos observavam. Um deles se aproximou e me pediu um cigarro. Estava descalço, vestia Adriana Piscitelli- 80 -apenas uma calça branca, como de capoeirista, parecia próximo dos 30 anos. Seu corpo era magro, mas muito musculoso. Tinha o cabelo longo, alourado, rastafári e a pele queimada pelo sol. O tipo físico, os olhos um pouco puxados, o rosto arredondado, de “caboclo”, pareciam destoar do penteado. Ele abriu um sorriso para mim e movendo-se com um gingado corporal perguntou se íamos à disco. Devolvi o sorriso dizendo que não nessa noite, pois acabávamos de chegar. Ele me deu um beliscão suave no braço, passando a mão nele, quase uma carícia. Fiz um esfor-ço para manter meu sorriso inalterado, imaginando que era um “caça-gringas”, talvez um potencial entrevistado. Nem olhou para a Fernanda, que é novinha. Centrou toda sua atenção em mim, bem mais velha e cansada, mas estrangeira. Ele foi embora, mantendo o gingado ao andar. Co mentei o episódio com Fernanda, dizendo que a atenção talvez se de-vesse ao fato de eu estar na idade “certa”, associada ao meu sotaque. Ela me chamou a atenção para o fato de que também paguei a conta, sendo evidentemente eu quem tinha dinheiro.Diário de campo, Jericoacoara, novembro de 2008Esse trecho de diário de campo remete às interações entre mulheres es-trangeiras e homens nativos em um lugar turístico do Nordeste do Brasil. Neste artigo2analiso essas interações considerando os relacionamentos sexuais e amorosos que têm lugar em duas cidades do litoral do estado do Ceará: Canoa Quebrada e Jericoacoara. Nos dois lugares é frequente observar casais formados por mulheres estrangeiras, de diferentes idades, e jovens nativos. Esses relacionamentos, marcados por desigualdades produzidas no en-trelaçamento de diferenças de nacionalidade, cla sse social, gênero e “raça” frequentemente envolvem intercâmbios sexuais e econômicos. Ao com-binar esses aspectos, eles remetem a um dos temas mais pesquisados em Revista de Antropologia :Nestetexto,analisoasexperiênciassexuaiseafetivasdeviajantes,prin-cipalmenteeuropeias,emdoislugarestransnacionaisnolitoraldoestadodoCeará, baseando-meemumapesquisaantropológica.Exploroosaspectosenvolvidosnos relacionamentosintensamenteerotizadosqueelasestabelecemcomhomenslocais racializadosesexualizados,percebidoscomocorporificaçãoda“masculinidadebra-sileira”.Analisandocomoasinterseccionalidadespermeiamessesrelacionamentos, meuprincipalargumentoéqueosprivilégiosestruturaisassociadosaoestatuto econômico,racialenacionaldessasmulheressãodesestabilizadosquandoelasse tornammigrantes.Noprocessodeabandonaroestatutodeturistas,afluidezdos intercâmbiossexuaiseeconômicosdesaparece,comparticularcrueldadenocaso dasmulheresmaisvelhas,paraquemareconfiguraçãodoscódigosdegênerodese-quilibraosprivilégiosdequeanteriormentedispunham. PALAVRAS-CHAVE: gênero, interseccionalidades, s exualidade, turismo sexual feminino.IntroduçãoChegamos a Jericoacoara quase a meia-noite... Nos indicaram uma lan-chonete. Fernanda, minha assistente de pesquisa, com vinte e poucos anos, estava animada, alegre. E eu, esgotada. Fiz o pedido no balcão e paguei. Em uma mesa ao lado alguns homens nativos nos observavam. Um deles se aproximou e me pediu um cigarro. Estava descalço, vestia Adriana Piscitelli- 80 -apenas uma calça branca, como de capoeirista, parecia próximo dos 30 anos. Seu corpo era magro, mas muito musculoso. Tinha o cabelo longo, alourado, rastafári e a pele queimada pelo sol. O tipo físico, os olhos um pouco puxados, o rosto arredondado, de “caboclo”, pareciam destoar do penteado. Ele abriu um sorriso para mim e movendo-se com um gingado corporal perguntou se íamos à disco. Devolvi o sorriso dizendo que não nessa noite, pois acabávamos de chegar. Ele me deu um beliscão suave no braço, passando a mão nele, quase uma carícia. Fiz um esfor-ço para manter meu sorriso inalterado, imaginando que era um “caça-gringas”, talvez um potencial entrevistado. Nem olhou para a Fernanda, que é novinha. Centrou toda sua atenção em mim, bem mais velha e cansada, mas estrangeira. Ele foi embora, mantendo o gingado ao andar. Co mentei o episódio com Fernanda, dizendo que a atenção talvez se de-vesse ao fato de eu estar na idade “certa”, associada ao meu sotaque. Ela me chamou a atenção para o fato de que também paguei a conta, sendo evidentemente eu quem tinha dinheiro.Diário de campo, Jericoacoara, novembro de 2008Esse trecho de diário de campo remete às interações entre mulheres es-trangeiras e homens nativos em um lugar turístico do Nordeste do Brasil. Neste artigo2analiso essas interações considerando os relacionamentos sexuais e amorosos que têm lugar em duas cidades do litoral do estado do Ceará: Canoa Quebrada e Jericoacoara. Nos dois lugares é frequente observar casais formados por mulheres estrangeiras, de diferentes idades, e jovens nativos. Esses relacionamentos, marcados por desigualdades produzidas no en-trelaçamento de diferenças de nacionalidade, cla sse social, gênero e “raça” frequentemente envolvem intercâmbios sexuais e econômicos. Ao com-binar esses aspectos, eles remetem a um dos temas mais pesquisados em Revista de Antropologia, São Paulo, USP, 2010, v. 53 nº 1.- 81 -termos das relações entre sexualidade e turismo internacional em regiões pobres do mundo e em torno do qual se criou um campo de estudos marcado pelo dissenso, o “turismo sexual”.3As divergências sobre a pro-blemática se acentuam quando se trata de viagens de mulheres de países do Norte a regiões pobres do mundo. As pesquisas sobre essa problemática mostram quatro posições cen-trais. Na primeira, considera-se que as viajantes de países “ricos” tiram partido dos privilégios conferidos pela articulação entre nacionalidade, classe social e raça para consumir sexo, permeado por fantasias racializa-das do exotismo, oferecido por homens de lugares pobres (Kempadoo, 2001; O’Connell Davidson, 1999). No marco dessas interseções, as tu-ristas de países ricos s& atilde;o consideradas, de maneira análoga aos homens desses países, turistas sexuais que objetificam e exploram sexualmente os homens locais porque utilizam seus privilégios para obter vantagens se-xuais (Sanchez Taylor, 2006).Nasegundaposição,avalia-sequeasconfiguraçõesdegênerotêmoefei-todenuançaressesaspectos.Oscódigos“Ocidentais”degênerofazem comqueasmulheresprocuremromanceerelacionamentosduradourose, comoviajantes,busquemumcontatomaispróximocomaculturanativa, interessadasemenriqueceraexperiênciadeviagematravésdaaproximação comela.Essasmulheresseenvolvememviagensde“turismoàprocurade romance”,cujaparticularidadeéqueosprivilégiosdessasmulhereslhes permitemoensaiodenovospapéis,emrelacionamentosquepossibilitama assertividadeeocontrolefemininos(PruitteLafon,1995). Essas duas posições, embora divergentes, ch amam a atenção para as ambiguidades presentes em relacionamentos nos quais as mulheres pre-ferem apagar ou ignorar os intercâmbios econômicos neles presentes, um aspecto presente também na terceira posição, que se desloca da oposição entre “turismo sexual” e “turismo romance”. Enfatizando a diversidade de Adriana Piscitelli- 82 -relacionamentos entre estrangeiras de países ricos e homens de regiões po-bres, essa posição observa que o foco dos relacionamentos pode estar no sexo, no romance, em uma combinação de ambos ou, ainda, na procura de companheirismo (Herold, Garcia e DeMoya, 2001). Essas abordagens não negam os imaginários racializados e as vantagens estruturais dessas viajantes, mas sublinham a fluidez presente em relacionamentos nos quais desejo e controle são permanentemente negociados, no espaço da intimi-dade (Frohlick, 2007). Finalmente, a quarta posição se diferencia das anteriores, porque con-sidera que as desigualdades de gênero são englobantes. A ideia é que as configurações de gênero situam as mulheres, apesar de seus privilégios estruturais, necessariamente em posições subordinadas (Jeffreys, 2003). Neste texto dialogo com e ssas discussões tomando como referência as experiências sexuais e emocionais de mulheres heterossexuais, predomi-nantemente europeias. Presto particular atenção às relações entre noções de viagem, liberdade, escolha e prazer sensual que, em suas percepções, tornam os lugares visitados verdadeiros “paraísos”. A escolha de homens locais como parceiros sexuais e amorosos, permeada por noções racia-lizadas e sexualizadas de etnicidade/nacionalidade, está associada a esse conjunto de conceitualizações. Meu principal argumento é que a atração exercida por essas mulheres nesses lugares, vinculada à sua posição privi-legiada, produto do entrelaçamento entre classe, “raça” e nacionalidade, se vê profundamente alterada quando elas abandonam o status de turistas e passam a residir nas co munidades como mulheres “de fora”.4Nas primeiras partes do artigo descrevo os cenários nos quais foi rea-lizada a pesquisa e as interações entre viajantes estrangeiras e homens na-tivos. Analiso depois as experiências sexuais e amorosas das entrevistadas. Finalmente, traço um contraponto entre esses relacionamentos e as dis-cussões sobre “turismo sexual” feminino, considerando como as interse- Revista de Antropologia, São Paulo, USP, 2010, v. 53 nº 1.- 83 -ções entre diferenciações operam no processo mediante o qual as viajantes estrangeiras se tornam residentes nos locais contemplados. MétodosA pesquisa, realizada em uma abordagem antropológica, teve lugar em diferentes momentos, entre 2000 e 2008 e é parte de um estudo mais amplo sobre os impactos do turismo internacional nas escolhas sexuais e afetivas da população nativa do Estado de Ceará (Piscitelli, 2007; 2004).5Nesteartigo,centro-menosrelatosde19mulheresestrangeirasque mantiveramrelacionamentossexuaiseafetivoscomhomenslocais.São mulheresconsideradasbrancas,comidadesentreos20eos60anos.Entre elas,16sãoouforamresidentesemCanoaQuebradaou,sobretudo,em Jericoacoara,ondeconcentreiaobservaçãoepermaneceramnesseslugares porperíodosquevariamentre2mesese16anos.Asrestantessãoturistas passandoapenasdi asousemanasemumadasduasvilas.Duasentrevista-dassãolatino-americanaseasdemaissedividementreitalianas(5);alemãs (3);suíças(3);espanholas(2);francesas(2)eholandesas(2).Algumastêm educaçãosuperior(6),masamaioriacompletouoensinomédioedesem-penhavanaEuropaocupaçõesnosetordocomérciooudeserviçoscom saláriosmédiosoubaixos.Trabalhavamcomoprofessoras,maquiadoras,se-cretárias,emcooperativas,comovendedorasemlojasderoupas,nosetorde turismooucomoinstrutorasdeesportes.Aoinstalar-senoBrasil,amaio-riasededicouaempreendimentosturísticos,montandoouadministrando pousadas,restaurantesebares.PoucastiveramfilhosnoBrasile,entreas maisvelhas,foramfrequentesosrelacionamentoscomhomensentre5e20 anosmaisnovos.TodasasqueseestabeleceramnoBrasilfizeramesforços paraadquirirnoexteriorocapitalnecessárioparainiciarseusempreendi-mentosnoBrasil,inclusivevendendoseusbensnoexterior. Adriana Piscitelli- 84 -A maior parte das entrevistas foi realizada em português, e as demais em inglês e espanhol. É importante observar que, embora seja latino-americana, não sou brasileira. Minha condição de estrangeira marcou vá-rias das interações e diálogos. CenáriosNo estado do Ceará, ainda são escassas as turistas estrangeiras que viajam sós ou sem companhia masculina. A presença de estrangeiras, particu-larmente daquelas à procura de encontros sexuais com homens nativos, porém, é recorrente nas narrativas sobre “Jeri”, denominação que local-mente recebe Jericoacoara, e também sobre Canoa Quebrada. Esses re-lacionamentos devem ser situados no âmbito das alterações nas relações sociais vinculadas ao veloz e intenso desenvolvimento do turismo. Nesse sentido, é importante ter em conta os efeitos do processo de comerciali-zação das relações sociais e da transnacionalização por ele promovidos nos códigos locais de gênero e sexualidade. Os dois lugares, Canoa, no litoral nordeste e Jeri, no litoral oeste do Ceará, compartilham alguns aspectos. Em um passado recente, foram vi-las isoladas, de difícil acesso, cujas principais atividades econômicas eram a pesca, a criação de pequenos animais e, no caso de Canoa, também o artesanato, a produção de rendas. Nos relatos de nativos e residentes, em Jeri, duas décadas atrás, a economia ainda operava na base da troca. As duas vilas foram “descobertas” por turistas “alternativos” que passaram a hospedar-se nas casas dos habitantes locais. Em um processo que rapidamente as levou a serem integradas nos circuitos turísticos organizados, passaram a ocupar a lista dos principais lugares procurados pelos turistas no estado, fora do litoral de Fortaleza (Molina, 2007). Durante esse processo, parte significativa das ativida- Revista de Antropologia, São Paulo, USP, 2010, v. 53 nº 1.- 85 -des econômicas tradicionais foi abandonada e substituída pelos serviços voltados para o turismo. As pessoas locais se integraram no mercado de trabalho informal ou formal de serviços turísticos, em situações frequen-temente pouco igualitárias em relação a pessoas “de fora”. E, nos dois lugares, houve relevantes alterações na ocupação do espaço e na produção de desigualdades nas comunidades. Os relatos sobre o passado recente dessas vilas assinalam a existência de distinções sociais anteriores ao turismo, mas mostram a percepção de que ele contribuiu para intensificar a distância social entre a população nativa, marcando a diferença entre os que enriqueceram por meio dos empreen-dimentos turísticos e aqueles q ue se tornaram mão de obra. As narrativas também aludem, como em outras vilas de pescadores do nordeste que se tornaram lugares turísticos, à rápida comercialização das relações sociais (Robben, 1982), no sentido em que passaram a ser vendidas práticas que, no passado, eram realizadas em benefício de outras pessoas, como parte da inserção em circuitos de reciprocidade. Nos dois lugares, os estrangeiros fizeram parte dos primeiros hóspedes “de fora”. Ao longo do processo de intensificação do turismo, os dois lugares atraíram proporcionalmente mais estrangeiros que outras partes do estado (Molina, 2007). Muitos passaram a ser residentes, tornando-se proprietários de empreendimentos turísticos. Os “nativos mesmo”, nasci-dos nas vilas, convivem continuamente com os estrangeiros que, residen-tes ou turistas, fazem parte do seu mundo do trabalho, como patrões ou clientes, e também das atividades de lazer e da sociabilidade. No processo de intensificação do turismo, as antigas vilas de pescadores se tornaram espaços transnacionais. Uma série de laços sociais e econômicos, criados a partir dos investimentos e da migração de estrangeiros envolvidos em empreendimentos turísticos e, às vezes, relações matrimoniais e de paren-tesco, as conectam com diversos países. Adriana Piscitelli- 86 -Canoa e Jeri, porém, atraem estilos de turismo distintos. A “desco-berta” turística de Canoa, que remete ao final da década de 1960, foi anterior a de Jeri. De acordo com Dantas (2003), nas décadas de 1970 e 1980, o lugar se tornou internacionalmente conhecido pela liberdade em uma diversidade de práticas, incluindo o consumo de drogas, a prática do nudismo e os relacionamentos sexuais. A partir da década de 1980, houve um aumento significativo do turismo e um crescimento veloz e de-sorganizado do lugar. Canoa passou a ser considerada um lugar de elevada incidência de Aids e, a partir de finais da década de 1990 de “turismo sexual” internacional. Na metade da década de 2000, a população estável tinha aumentado. Nos circuitos de turismo alternativo se considerava que tinha “acabado”, perdido a “magia”. O lugar, porém, integrado nos cir-cuitos turísticos organizados que partem de Fortaleza, passou a viver uma nova intensificação do turismo. Hoje ele recebe visitantes com diferentes capacidades de consumo. Nessa heterogeneidade, ainda persistem os es-trangeiros que procuram beleza natural e algo de “primitivismo”. Jeri, com pouco mais da metade de população estável que Canoa, foi “descoberta” um pouco mais tarde. No início da década de 1980, o turis-mo era basicamente “alternativo”. A energia elétrica só chegou ao lugar no final da década de 1990, quase paralelamente aos investimentos turísticos voltados para os esportes náuticos. O lugar entrou no roteiro internacio-nal “dos ventos”, no circuito de windsurfe e kitesurf, esportes custosos que contribuíram para atrair um tipo de turismo estrangeiro com maior poder aquisitivo. O “clima” de Jeri hoje é cosmopolita, criado pela in-tensa circulação de pessoas de diferentes nacionalidades, os restaurantes com comida de diversas partes do mundo e os cyber-cafés. Muitas pessoas nativas falam duas ou mais línguas e várias têm viajado ao exterior através dos contatos viabilizados pelos esportes náuticos e dos relacionamentos com estrangeiros/as. Revista de Antropologia, São Paulo, USP, 2010, v. 53 nº 1.- 87 -Nesse processo, o crescimento do lugar foi relativamente mais organi-zado do que em Canoa. Jeri é um lugar de ruas de areia, que apresenta um ar cuidado, com construções em um estilo predominantemente rústico-chique. As pousadas que estão na praia são sofisticadas e caras. O estilo das construções, os fios elétricos subterrâneos, as lojas e os restaurantes requintados e a intensa circulação de estrangeiros imprimem em boa par-te do lugar o ar de um resortinternacional e algo de artificialidade. Essas impressões foram registradas no diário de campo:Nestaépocadoano,compoucosturistasbrasileiros,impressionaa quantidadedeestrangeiros,homensemulheres.Hánórdicos,louros, altos,depernascompridas.Háestrangeirostambémtrabalhandonas pousadaserestaurantes...Osnativospobresestãoqu asesegregados, afastados,naNovaJeri.Atravessandoaruadoforró,nofinaldetar-de,vejoumacasademoradorcomluzacesa.Emboradigna,acasa épobre.Nãoháquasenadadentro:umsofá,umarede.Naporta conversamsenhorascomaspectosimples,batasdealgodão,coques grisalhos,peleenrugadaequeimadapelosol.Amisturaentreesse tipodecasas,pousadasebaresécomumnasruelasdeCanoa.Mas, emJeri,aluzacessadessaúnicacasinha,umalâmpadapendurando deumfio,nomeiodepousadaserestaurantes“chiques”,pareceilu-minaraartificialidadedetodooresto.Diário de Campo, novembro de 2008Os escassos estudos sobre Jeri apontam para os problemas sociais acar-retados pelo turismo: especulação imobiliária, perda de identidade da po-pulação local em função da invasão de turistas, tensões entre nativos e “adventícios” (Fontenles, 1998), difusão do uso de drogas, principalmen-te o crack, e, embora não seja considerado um lugar de “turismo sexual” Adriana Piscitelli- 88 -como Canoa, o aparecimento de uma prostituição ainda “não explícita” (Molina, 2007). A percepção desses problemas faz com que alguns residentes “de fora” lembrem com nostalgia o passado recente. Eles sentem falta da vida co-munitária, da natureza quase intacta, do ritmo de vida em harmonia com o ciclo cotidiano do dia e da noite. Essa visão nostálgica, porém, não é unívoca. Muitos residentes percebem as mudanças atribuídas ao turismo como positivas. Parte da população local considera a época na qual a sub-sistência dependia da pesca como um período difícil, de trabalho pesado e penúria econômica. Os mais jovens valorizam o turismo, considerado fonte de oportunidades econômicas, e as vinculações com o exterior por ele viabilizadas e sentem orgulho de viver em lu gares que, em suas percep-ções, são “uma esquina do mundo”. Nessas leituras, o turismo é visto como fonte de oportunidades eco-nômicas com efeitos benéficos em termos do aumento no grau de es-colaridade e na qualificação da população nativa e também no que se refere a transformações nos códigos de gênero e sexualidade. Os aspectos mais destacados são o relativo aumento no igualitarismo nas relações en-tre homens e mulheres, a menor visibilidade da violência doméstica e o aumento da idade em que as jovens engravidam, em relação às gerações anteriores. O relato de um proprietário de pousada de Jeri, no qual o sis-tema de emprego gerado pelo turismo opera à maneira de controle social sobre a violência contra as mulheres, dá um exemplo dessas percepções:No passado, aqui, as mulheres apanhavam dos maridos... Quando co-meçou o turismo internacional... a patroa sabia que o homem bate na mulher, então dispensava ele. E eles começaram a perceber que tinha uma sociedade que cobrava isso deles. Hoje você é raro ver uma mu-lher apanhar... As pessoas aqui sempre transaram cedo. As mães dessas Revista de Antropologia, São Paulo, USP, 2010, v. 53 nº 1.- 103 -procedimentos utilizados é traduzir as desigualdades como “diferenças culturais”. Nos termos de uma italiana, relatando o relacionamento com um homem local: “A diferença cultural era grande, grande, porque é uma pessoa daqui, né? Mal sabe ler, mal sabe escrever, né? Nasceu num lugar assim bem pobre”. Outro desses procedimentos é considerar o investi-mento de recursos materiais e simbólicos na promoção dos parceiros ou nos negócios do casal com o “ajuda”. Essa noção envolve o pagamento das viagens dos namorados a Europa para que as visitem e conheçam suas famílias; a organização de suas tournées no exterior, procurando patroci-nadores; hospedá-los, vesti-los, alimentá-los e lutar para obter para eles vistos de residência e trabalho. Quando elas se instalam em Jeri, a ideia de “ajuda” envolve a compra de propriedades, de bens como buggies ou motocicletas e a montagem de empreendimentos turísticos. De acordo com uma italiana de 60 anos elegante, sofisticada e muito articulada, proprietária de pousada, lembrando seu tumultuado e sofrido relaciona-mento com um artista local: Eu ralei na Itália para poder comprar aqui. Era 92... Economizava o má-ximo para juntar dinheiro para investir em Jeri. Quando conheci ele, eu estava com 44 anos. Ele era 11 anos mais novo. Ajudei ele muito. Vendi os quadros dele na It&a acute;lia. Por três vezes abri um barzinho para ele. Ele muito envolvido com drogas fazia dívidas. O meu, era um amor angéli-co, aquele de ficar dando sem esperar nada de volta. Nas narrativas das mulheres mais jovens, as desigualdades nos posicio-namentos sociais em relação aos parceiros e os intercâmbios econômicos são apagados pela ideia de um intenso amor que converte assimetrias em complementaridade. Esses relatos de namoros duradouros e de casamen-tos recentes aproximam à ideia de aliança, no sentido em que eles intro- Adriana Piscitelli- 104 -duzem cada integrante do casal na rede de parentesco e relacionamentos do outro integrante. As histórias dessas jovens apaixonadas remetem a relacionamentos nos quais a combinação entre seus privilégios estrutu-rais, o fato de que elas ainda mantêm fortes laços sociais no exterior, se deslocam com facilidade e estabelecem laços com as redes de parentesco e de relacionamento locais possibilitam que elas enfrentem os aspectos que percebem como desagradáveis do “machismo”. Essas mulheres con-sideram ter tido sucesso na tentativa de estabelecer relações igualitárias com os parceiros brasileiros, no âmbito doméstico, reeducando homens acostumados pelas mães e irmãs a serem servidos e também no âmbito laboral, fazendo que eles compartilhem diferentes aspectos do trabalho realizado no lugar. Nos termos de uma espanhola de 24 anos:Se han aco stumbrado a que la mujer le haga todo. Aparte de que ella trabaje, ella lava la ropa, le cocina, le sirve el plato en la mesa, le quita el plato de la mesa ¿entiendes? Se acostumbran así en casa... y yo... dije basta. Si no te vas con tu madre y con tu hermana, pero conmigo no. Porque a mí también me gusta que me sirvan el plato en la mesa, o sea por igual. Eso está solucionado, pero son muy machistas... Es que es la vida de aquí. Todavía están un poco en otra época. As narrativas das entrevistadas mais velhas delineiam um quadro di-ferente, dramático, no qual o intercâmbio econômico envolvido nos re-lacionamentos que tiveram com os homens locais é evidente para elas. Essas mulheres não se integraram nas redes de parentesco e sociabilidade dos parceiros locais, ao contrário, em alguns casos foram deliberadamente distanciadas delas. Nem sequer o nascimento dos filhos que tiveram com os parceiros nativos parece ter a potencialidade de “criar” parentesco, no sentido de estabelecer relações entre consanguíneos e afins. E os relatos Revista de Antropologia, São Paulo, USP, 2010, v. 53 nº 1.- 105 -dessas mulheres, que namoraram ou casaram com homens entre 10 a 15 anos mais novos, aludem a exploração econômica e a experiências de violência, física ou simbólica. Essas narrativas remetem a um processo no qual os estilos de mascu-linidade dos homens locais operaram como bem erótico no qual se con-centraram os desejos dessas mulheres. Os homens, porém, se deslocaram do lugar de serem “consumidos” para o da dominação. Nesse movimento, elas foram posicionadas em situações de extrema desigualdade, apesar de seus privilégios estruturais. Nesses relatos, após terem se instalado em Jeri, elas descobriram que os parceiros lucraram, enganando-as, no processo de compra de terrenos e buggies, construção de casas e pousadas. Além disso, enfrentaram sozinhas a carga de trabalho d os empreendimentos turísticos, sustentando os parceiros brasileiros, seu consumo de álcool e, às vezes, de drogas e, alguma, também os filhos que tiveram com eles. Elas relacionam a exploração econômica da qual foram objeto ao pro-cesso mais amplo de mercantilização das relações sociais na comunida-de, que afeta principalmente às mulheres estrangeiras que deixam de ser turistas. No relato de uma italiana de 54 anos, miúda, loura, de olhos verdes, corpo bem torneado e estilo juvenil, também proprietária de pou-sada, que teve dois filhos em Jeri: Não sabia falar português, fiquei logo grávida num lugar como Jeri, complicado pra qualquer coisa, com estas pessoas meio machistas que tentavam de qualquer maneira me isolar do resto da comunidade. Pas-sei bastante tempo sem ter muitos contatos com as outras pessoas. Ele sempre se punha no meio querendo assim ser o &uac ute;nico [contato com] o exterior. Criou toda uma situação de isolamento... [Ele] chegava em casa, quebrava tudo. Uma vez me fechou dentro do quarto, pegou todas as chaves dos quartos e jogou fora. Outra vez chegou querendo me ba- Adriana Piscitelli- 106 -ter... Ele virou uma coisa muito violenta. Um amigo de infância da Itália chegou pra cá, ele ficou assustado com o que viu. Daí ele ligou pro meu pai e minha mãe quando voltou pra Itália e falou que praticamente eu estava aqui refém daquela pessoa... Daí meu pai e minha mãe chegaram aqui, ficaram aqui 6 meses. Até conseguir ele sair daqui... Nesse processo, códigos de gênero assimétricos parecem englobá-las com uma crueldade associada ao fato delas serem “gringas “ricas” e sem inserção nas redes sociais locais. Algumas atribuem essa crueldade tam-bém à disparidade de idade com os namorados/maridos. Uma francesa de 49 anos, instrutora de esqui na Europa e velejadora, que namorou um homem local 10 anos mais novo, lamentando o dinheiro e a dignidade perdidos nos anos que passou em Jeri, exemplifica essa percepç&atil de;o: Comprei a casa muito rápido, conheci ele, e queria lhe ajudar. Ele era gentil, mas mentia muito, havia coisas que eu não sabia... Como ele não tinha muito trabalho, comprei um buggy para ele, mas disse que não era presente. Tem que trabalhar para pagar esse buggy com o seu trabalho... Jamais tinha dinheiro para a gasolina, para consertar, eu que paguei. Ele trabalhava dois dias na semana e não tinha dinheiro, gastava tudo em droga, roubava minha casa, meu dinheiro... Perdeu o buggy, foi atrás de mim, queria que comprasse uma moto... Como se eu na França colhesse o dinheiro em árvores. Depois de 2 meses, me disse que era drogado, e que queria fazer uma cura, se eu podia ajudar. E o ajudei... Agora estou triste por tudo o que aconteceu... Porque fui estúpida, perdi dinheiro, tempo, sinto vergonha. Na França não aconteceria isso comigo, porque só vou com pessoas como eu socialmente... Aqui o lugar mudou [de modo] radical, com o turismo. Eles [os nativos] dizem: tem que pagar... Como sou uma gringa, todo mundo acha que tenho que pagar... E não Revista de Antropologia, São Paulo, USP, 2010, v. 53 nº 1.- 107 -faz diferença que tenha muito tempo aqui, gringa, gringa! Eles pensam em sua cabeça estúpida... Esta é uma gringa rica. E só fazem o negócio para o momento, não para o futuro... É muito horrível... Jeri era o para-íso, agora é um inferno. Quando as pessoas só te procuram para te fazer pagar... Eu me perguntava se ele me amava, se ele queria aproveitar de mim. Como estou mais velha, eu não sei, ele podia pensar na sua cabeça que por isso não me amava.10O peso da idade nessas interações não é fácil de avaliar. A juventude feminina é valorizada nas relações entre nativos/as, mas as narrativas lo-cais também remetem a diversos relacionamentos nos quais as mulheres são mais velhas e, no entanto, não são objeto de hostilid ade por parte da comunidade, nem de violência por parte dos parceiros. No âmbito das alterações nos códigos de gênero que têm lugar na particular imbricação entre “local” e “global” que permeia os relacionamentos entre nativos e estrangeiras, porém, as mulheres mais velhas aparecem como particular alvo de hostilidade. Nesse processo, que não pode ser pensando como mera reiteração de códigos locais de masculinidade, o valor positivo con-cedido à “branquidão”, como expressão de liberdade de deslocamentos e de poder econômico associados às nacionalidades dos países do Norte, é neutralizado. E a combinação entre a precariedade dos laços sociais no lugar e a erotização desses relacionamentos contribui para aprisioná-las durante anos nessa dinâmica. Nos termos dessa francesa: “Ele me enga-nou... me roubou... [mas] eu ainda gostava dele, estava apaixonada”. Intercâmbios fluidos? Revisitar as discussões sobre “turismo sexual feminino” considerando as experiências das mulheres entrevistadas conduz a questionar a insistên- Adriana Piscitelli- 108 -cia em delinear tipologias de viagens sexuais. Essas narrativas permitem perceber que prestar séria atenção ao contexto no qual esses encontros se-xuais têm lugar, aos diferentes momentos dos relacionamentos e do pro-cesso de inserção das estrangeiras nos lugares turísticos é mais fértil, em termos analíticos, que as tentativas de classificar esses encontros. Nestescenários,osrelatosdessasmulheresembaralhamastipologias existentes.Elascombinamaspectossupostamentecaracterísticosdo“turis-mosexualfeminino”,comofantasiassexualizadaseracializadasdoshomens locais,comoutrostidoscomomarcantesdo“turismoromance”,comoa forteênfasenoamor/paixãoeapercepçãodessesrelacionamentoscomo aspectocrucialdaimersãoem“outra”cultura.E,seosrelatosdessasestran-geirasremetemaoensaioderepertóriospoucotradicionaisdegênero,em te rmosdeseusestilosdeviajar,daopçãopornamoraroucasarinterrom-pendonormassociaishomogâmicasehomocromâticas/“homoétnicas”e tambémdotipodemigração,ossupostosintercâmbiosfluidosnosquais asmulheresfazemusodeseusprivilégiosestruturaisparanegociardesejoe controlenoâmbitodaintimidade,sevêemseveramentelimitados Nesseslugaresturísticos,nosquaisseforjamnovoscritériosestéticosrela-tivosàcorporalidade,novassubjetividadeseróticasenovosestilosde“intimi-dadestransnacionais”,essafluidezsedesvanecequandoasmulheresdeixam deserturistasparatornarem-seresidentes.Nesseprocesso,asvisõesdo“pa-raíso”dãolugarapercepçõesdo“inferno”,comparticularcrueldadequando setratadasestrangeirasmaisvelhas,emumadinâmicanaqualreconfigura-çõesdosestilosdemasculinidadelocaisdesestabilizamosprivilégiosdessas v iajantes.Nessemomento,asambivalênciasqueconduzemasentrevistadas aconcederaosintercâmbioseconômicospresentesnessesrelacionamentosa conotaçãode“ajuda”desaparecem:elespassamaservistoscomoexploração.Isto não significa, porém, que as desigualdades de gênero sejam sem-pre e necessariamente englobantes. As vantagens estruturais que possi- Revista de Antropologia, São Paulo, USP, 2010, v. 53 nº 1.- 109 -bilitam que essas mulheres viajem e contribuem para torná-las atraentes nesses lugares são preponderantes em uma fase dos relacionamentos. No que se refere às estrangeiras mais velhas, nas fases seguintes, o persistente jogo de negociação é desequilibrado. Nos relatos, nesses momentos, essas vantagens são neutralizadas e essas mulheres aparecem como dominadas pelos parceiros. E, nesse ponto, há uma significativa diferença entre esses relacionamentos e aqueles que envolvem homens brancos europeus e mu-lheres nativas no Ceará (Piscitelli, 2004). Nesses últimos, os privilégios estruturais nunca são desestabilizados.No embate entre os privilégios conferidos por classe social, “cor” e nacionalidade às européias e o lugar ocupado pelos parceiros, valoriza-dos na intimidade mediante uma intensa erotização à qual se adiciona o poder que lhes confere serem homens “da terra” em lugares onde elas têm escassas redes sociais, elas saem desses relacionamentos “roubadas”, humilhadas e magoadas. A dominação que afeta essas europeias, porém, é temporária. Essas mulheres continuam posicionadas como brancas/eu-ropeias e, na maioria das vezes, são as proprietárias dos empreendimentos turísticos. Algumas desistem da ideia de permanecer residindo no lugar, mas outras continuam neles, procurando uma melhor inserção nas re-des sociais. E, desde essa posição, elas estabelecem novos relacionamentos com outros homens locais. Notas1 Pesquisadora do Núcleo de Estudos de Gênero PAGU/ Unicamp e professora no doutorado em Ciências Sociais, da mesma universidade. 2 O texto está baseado em resultados de pesquisa do projeto tem& aacute;tico “Gênero, Corporalida-des”, coordenado pela Profa Mariza Corrêa. A pesquisa de campo realizada em Jericoacoara contou com a colaboração de Fernanda Leão Antonioli. 3 As divergências sobre essa problemática abrangem diversos aspectos, envolvendo princi- Adriana Piscitelli- 110 -palmente os limites dessa noção, inicialmente formulada para analisar o turismo massivo à procura de sexo no Sudeste da Ásia, e as percepções sobre como operam as distribuições dife-renciadas de poder e as dinâmicas de gênero nos relacionamentos entre visitantes e nativas/os (Truong, 1990; Opperman, 1999; Piscitelli, 2007; Fosado, 2004; Cabezas 2009). 4 Este ponto não foi ignorado na produção sócioantropológica sobre a problemática, mas ainda não tem sido analisada. Ver Sanchez Taylor (2001) e Frohlick (2007). 5 O estudo foi desenvolvido durante 18 meses, durante várias “altas temporadas”. O “campo” envolveu um intenso trabalho etnográfico, combinando observações, conversações não estru-turadas e a realização de entrevistas em profundidade com 94 pessoas, inc luindo homens e mulheres estrangeiros/as e homens e mulheres nativos/as envolvidos/as em relacionamentos transnacionais e agentes vinculados pelo seu trabalho ao turismo e à prostituição no Estado do Ceará. A maioria das entrevistas foi registrada com gravador, além disso, nos diários de campo foram registradas as observações e as conversações informais e observações.6 Entrevista realizada em novembro de 2008.7 Entrevista realizada por Fernanda Leão Antonioli, novembro de 2008.8 Entrevista realizada em Fortaleza, em 2002.9 Nos estudos sobre a problemática realizados no Brasil, as dinâmicas de interação entre estrangeiras e homens nativos está começando a ser contemplada em locais de ecoturismo e também em locais de praia, considerando os “caça-gringas” e a sexualização dos corpos mas-culinos negr os, no Nordeste. Vale observar que em Jeri e Canoa o termo “caça-gringas” não faz parte do vocabulário local. Apenas em uma ocasião foi registrada outra expressão, neutra em termos de gênero, aludindo às relações com estrangeiros: “papadólar”. Ver: Antonioli, 2008; Cantalice, 2009 e Lorraine, 2009. 10 Entrevista realizada por Fernanda Leão Antonioli, Jericoacoara, novembro de 2008. BibliografiaANTONIOLI, Fernanda Leão. 2008 Estrangeiras no Brasil: gênero no marco do turismo internacional. Relatório Final de projeto de iniciação científica (processo Fapesp 06/51964-6), vinculado ao projeto temático Gênero, corporalidades.

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Corporeidades silenciadas: reflexões sobre as narrativas de mulheres violadas Corporealities silenced: reflections about the narratives of violated women Jane Felipe Beltrão Camille Gouveia Castelo Branco Barata Mariah Torres Aleixo Sobre os autores » Resumo » Abstract » Text» De traduções olvidadas e diálogos “surdos” » Os segredos da escuta » O veneno da dor » As categorias sobre violência: enredamentos na narrativa das mulheres » As categorias relativas à agência: a resistência das/entre mulheres » Entre oitivas e traduções » Por diálogos e justiças » Referências bibliográficas » Datas de Publicação » Histórico Resumo Refletir sobre as formas de narrar as violências enfrentadas por indígenas e quilombolas mulheres/mulheres indígenas e quilombolas é a proposta do texto para discutir a possibilidade de tradução etnográfica das categorias nativas em confronto com as categorias acadêmicas para referir as mulheres em situação de violência, identificando as agências das protagonistas. indígenas; quilombolas; violência Abstract Reflect about the ways of narrate the violence faced for indigenous and maroons women/women indigenous and maroons is the propositions of the article to discuss the possibility of ethnographic translation of native categories in confrontation with the academic categories to refer women in violence situations, identify the agencies of the protagonists indigenous; maroons; violence De traduções olvidadas e diálogos “surdos” No ensaio que hoje pode ser considerado clássico para o que se convencionou chamar Antropologia Jurídica ou Antropologia do Direito2 , Geertz (2013) enuncia que o Direito é construído à luz de saberes e artesanatos locais, isto é, tem a ver com a cultura na qual ele tem vida, onde “funciona.” Segundo o autor, há diversos sentidos de direito e justiça – o que ele denomina de sensibilidades jurídicas – as quais, no contexto contemporâneo, são obrigadas a conversar, em suas palavras, “... uma iluminando o que a outra obscurece.” (2013, p. 237) De acordo com essa afirmação, o estudo e a prática do Direito devem ser feitos por meio da tradução cultural, buscando compreender as sensibilidades jurídicas que estão em jogo nas contendas, seja aquelas levadas à justiça estatal, seja as que são discutidas e resolvidas à luz das normas comunitárias e, principalmente, as que caminham na fronteira entre tais normatividades. Partimos desse pressuposto para compreender as maneiras pelas quais mulheres indígenas e quilombolas/indígenas e quilombolas mulheres3 da Amazônia paraense resistem às violências do cotidiano e perscrutar suas sensibilidades em meio às situações de violência. Não se trata aqui de analisar estratégias de movimentos de mulheres indígenas e/ou quilombolas para conseguir alcançar suas reivindicações políticas, o que não deixaria de ser importante objeto de reflexão, mas sim de entender as próprias corporeidades das protagonistas como estratégias de resistência. Esta última, que pode parecer mais individualizada e circunstancial num primeiro olhar, ganha contornos coletivos quando se observa o compartilhamento de histórias, as redes de ajuda e solidariedade criadas pelas mulheres, entre outras agências, como veremos a seguir. Temos em conta que esse diálogo entre noções de justiça não ocorre com paridade de armas, pois o Estado brasileiro se constituiu olvidando etnicidades e engendrando políticas de homogeneização e integração dos grupos diferenciados à “sociedade nacional.” A conversa entre as sensibilidades jurídicas no país ocorre na forma do que Yrigoyen Fajardo (2011) denomina pluralismo jurídico subordinado colonial, isto é, de modo a não reconhecer noções de direito que não sejam as provenientes do Estado. Quando se pensa em questões relativas às mulheres etnicamente diferenciadas a questão se complexifica. A promulgação de leis específicas às mulheres, que consideram a violência como crime4 , fruto de anos de reivindicações e estudos promovidos por organizações e coletivos feministas, diz pouco sobre diferenças de ordem cultural, étnica e racial. Diante disso, compreender noções de violência bem como as estratégias de resistência das protagonistas se impõe. Os segredos da escuta Assim, nosso objetivo é refletir sobre as formas de narrar a violência que atinge os corpos das interlocutoras que pertencem a povos indígenas e coletivos quilombolas e debater acerca das possibilidades de tradução etnográfica a partir da identificação das categorias nativas que compõem a enunciação das interlocutoras, considerando as diferenciadas noções de justiça presentes entre as mulheres que emprestam seus depoimentos às autoras do texto. Para alcance dos objetivos, procura-se compreender como se dá a construção da corporeidade entre as mulheres indígenas e quilombolas/indígenas e quilombolas mulheres, pela possibilidade de demonstrar como o corpo se apresenta entre elas como território privilegiado de resistência e luta. A marca do presente trabalho são as reflexões que ressaltam e problematizam as categorias que integram a epistemologia e o olhar nativo sobre corpo e violência. Para os limites da reflexão proposta, é importante esclarecer que os depoimentos oferecidos pelas interlocutoras foram ditos às pesquisadoras em diversos momentos, os quais compreendem um lastro de 15 anos de pesquisa, sem que estas tivessem a intenção de trabalhar especificamente violência e violação de corpos, entretanto, os depoimentos foram como que aflorando pela impossibilidade – estatal e/ou comunitária – de oitiva das mulheres em situação de violência. Selecionou-se depoimentos de mulheres indígenas pertencentes aos povos Tembé Tenetehara5 , hoje moradores do município de Santa Maria do Pará, Xipaya6 e Kuruaya7 que vivem no médio Xingu e, no caso das quilombolas, selecionamos as interlocutoras moradoras das diversas comunidades localizadas no arquipélago do Marajó, também no estado do Pará. Destacam-se trajetórias e memórias que marcam de modo indelével o etnocídio praticado via colonização (Beltrão, 2012), que até o presente atinge os corpos e as vidas de pessoas indígenas e quilombolas via colonialidade.8 Nesse sentido, é latente na narrativa das interlocutoras a referência ao processo de expulsão territorial, sequestro de crianças indígenas e quilombolas pela ação missionária e/ou do Estado, tentativas reiteradas e violentas de genocídio, em face da tentativa de homogeneização e apagamento das pertenças. Vale, porém, ressaltar que a colonialidade incide de forma específica e brutal necessariamente sobre os corpos das mulheres, pois esta, segundo Lugones (2008) , se instituiu também como colonialidade gênero, que instituiu o sistema de gênero colonial/moderno, baseado nas dicotomias homem/mulher e público/privado, como o padrão. Isso ocultou sistemas de organização dos “mundos sexuais” nativos, em que muitas vezes as fronteiras entre masculino e feminino eram fluídas e as mulheres exerciam papéis importantes na vida coletiva. Não tratamos aqui de perscrutar esses sistemas “originais” e nem acreditamos que, hoje, isso seja possível. Porém, importa ter isso em consideração para um olhar etnográfico mais apurado. O ponto nevrálgico, locus em que os caminhos etnográficos se tornam mais “nebulosos”: ter o corpo marcado, como é o caso de indígenas e quilombolas mulheres/mulheres indígenas e quilombolas, pela violência física e sexual, muitas vezes infringida pelos próprios “parentes”, ou ainda por pessoas não indígenas e quilombolas, fato que mobiliza sentimentos como dor, sofrimento e vergonha. A possibilidade de ouvir (com tudo o que o ato da escuta representa para a Antropologia) implica em cuidados9 redobrados na interpretação de atos e falas que não são ditos a qualquer pessoa, nem em qualquer lugar. Os processos de violação dos corpos, vividos como eventos devastadores, segundo as interlocutoras, também formam seus modos de narrar, de liderar e de agir politicamente. De alguma forma, somos “ouvintes” privilegiadas, considerando a confiança com a qual fomos brindadas, portanto nosso compromisso com a ocultação das identidades é fato. O veneno da dor Veena Das (2008a), em seus escritos, problematiza a correlação entre dor e linguagem. Segundo a autora, por meio da expressão da dor, é possível sair da privacidade sufocante que ela produz na vítima. De acordo com Das (2008a), eventos devastadores produzem um tipo de conhecimento que só é alcançado pela experimentação do sofrimento, um conhecimento venenoso. Portanto, violências extremas não seriam apenas responsáveis pela destruição de vidas e corpos. Atuam, também, na construção de sujeitos e linguagens da dor. A enunciação da dor pede, portanto, admissão e reconhecimento, o que nem sempre ocorre. Trata-se, nos termos da autora, de sentir a dor no corpo do outro. Essa é a proposta ao fazer antropológico, requisitado de forma envergonhada, mas insistente por nossas interlocutoras. De acordo com Michael Taussig (1993), a reprodução da imagem dos povos indígenas como selvagens, irracionais e violentos é o que possibilita a propagação do terror colonial. E no caso dos coletivos quilombolas a estratégia de resistência e luta dos negros é imperdoável ao mundo colonial, afinal, os africanos são equiparadamente considerados, como os indígenas, pessoas desprezíveis. Trata-se uma operação mimética por parte do colonizador, que conduz a atos de extrema violência, não importando se esse imaginário é verdadeiro ou não. As culturas do terror criam, desse modo, o que o autor denomina como espaços de morte, nos quais indígenas, africanos e brancos viram nascer o Novo Mundo. Segundo Taussig (1993) o terror é o mediador por excelência da hegemonia colonial e acrescenta-se da discriminação presente em nossa sociedade. O autor afirma ainda que “... as culturas do terror são nutridas pelo entremesclar do silêncio e do mito.” (Taussig, 1993, 30) Os efeitos paralisantes e silenciadores do terror encontrariam na narrativa sua primeira possibilidade de cura. Quando decidiram falar sobre as violências que marcaram de forma mais ou menos severa suas trajetórias, nossas interlocutoras começaram a vencer a primeira imposição do terror, o silêncio. Como diz Maria Aparecida, quilombola, que por ser estudante universitária, escreveu seu depoimento: “não vou falar e também nunca escrevi, mas faço [o texto] porque não consigo explicar porque aconteceu comigo, talvez não haja explicação, e mesmo que tivesse jamais iria me fazer esquecer aquele homem imundo que me rasgou e tudo que aconteceu comigo. Neste caso, a forma de prevenção pra que não possa acontecer com outras mulheres é contar e contar do massacre que sofri. Mas para isso tenho que ter coragem para dar o testemunho, mas tenho muita vergonha por isso escrevo. Peço que a senhora conte, leve adiante, o massacre não pode continuar.” Para compreender o que diz Taussig (1993), traz-se à consideração e em complemento à Maria Aparecida, o depoimento de Maria Dolores, de pertença Kuruaya, que narra seu pânico no dia da violação, praticada dentro de sua casa, na frente do marido e das filhas, que à época tinham respectivamente oito anos e dois anos: “Dormi, como todas as noites, com meu marido e minhas filhas na minha cama. De madrugada acordei e levei o maior susto da minha vida, me deparei com um homem passando da sala pra cozinha, pois a porta do quarto ficava entre aberta durante a noite, então no primeiro momento imaginei que pudesse ser alguém de fora, pensei que fosse meu marido, então olhei na cama e vi as meninas e ele, percebi que tinha alguém na casa e não era o meu marido, ele dormia com as crianças. Logo depois minha filha de oito anos acordou e percebeu que eu estava bastante assustada e nervosa, então falei que tinha alguém na casa, pedi que ela não fizesse escândalo. Na hora, eu só pedia a Deus proteção pra minha família e, ao mesmo tempo, sem saber o que fazer e como agir naquela situação de angústia e muito muito medo.” Na sequência dos acontecimentos, Dolores se apercebe do perigo e evoca Deus: “... com toda Tua sabedoria me traz tranquilidade e, nas minhas orações, pedi que Deus fizesse aquela pessoa ter compaixão e não fizesse nada com meu marido e com as minhas filhas, eu coloquei minha vida nas mãos Dele. Eu dizia: Deus coloco minha família em suas mãos me proteja e me ilumine nesta noite, pois sei que corro perigo, me abençoe, te peço em amém. Dona a senhora já teve medo?” Dolores prossegue a narrativa, ofegante, e esclarece, “... agradeço todos os dias a Deus, eu esqueci parcialmente o fato, só que por mais que os anos passem, eu não consigo falar com as pessoas sobre o assunto, por medo e até mesmo vergonha.” O relato foi adiante, entrecortado pelo choro às vezes discreto, outras vezes convulsivo a ponto de interromper a narrativa. Ela segurava as minhas mãos10 com força, de certo ainda sentia pânico e as marcas corporais que se apresentavam vivas, intensas! O relato é bastante longo, mas importante para compreensão da dor, silenciada pelas circunstância e sobretudo pela vergonha. Diz a Kuruaya: “... trabalhei o dia inteiro, sou professora no bairro dos índios, local tomado pela violência. Nunca tive medo de nada. A casa é pequenininha. Toda noite eu tenho o costume de verificar portas e janelas, e nesse dia não foi diferente, entretanto nunca imaginei que alguém pudesse entrar na casa de alguém pelo telhado, por onde entrou o bandido. Quando me dei conta do perigo fingi que estava dormindo e observei por baixo do travesseiro que ele [o bandido] se aproximava e logo entrou no quarto meio agachado, ficando em volta do berço da minha filha. Chegou perto da cama e pôs a faca no meu pescoço, daí eu gritei e ele se debruçou em cima da cama fazendo ameaças, dizendo pra não gritar se não iria matar todo mundo caso eu não trepasse [mantivesse relações sexuais] com ele.” Dolores informou que ele estava visivelmente muito perturbado andando de um lado para o outro, parecia não saber o que fazer, aparentando transtornos. Tinha aparência de drogado, exalava mal cheiro, mas não parecia bêbado e nem cheirava a álcool. Ela continua: “... depois da ronda pela casa, ele saiu um momento do quarto e eu disse ao meu marido finge que dorme e cuida das meninas, pois ele vai voltar. Minha filha que estava acordada chorava muito e falei pra ela ficar bem caladinha como se estivesse dormindo foi o que ela fez, ficou quietinha abraçada à irmã e ao pai. Ele voltou e me obrigou a manter relações sexuais com ele. Sem saber o que fazer, pedia ajuda a Deus. Aquilo foi uma humilhação muito grande, na minha cama, com o meu marido vendo tudo e as minhas filhas então? Até hoje não sei “transar” como antes, a lembrança me perturba, tenho problemas, passo mal, meu marido não se conforma, reclama. Temo que me abandone por isso. Com os olhos distantes, como se voltasse à cena do crime, Dolores informa: “... pela conversa dele, percebi que ele não falava coisa com coisa, às vezes parecia tranquilo, daí a pouco se exaltava e com a faca na mão, junto do meu pescoço. Que medo! Quando ele falou que iria fazer sexo comigo, tornei a me apavorar e, na hora, pensei na família e o quanto seria pior se fossem com as minhas filhas, pensei que era melhor eu ceder do que ele fazer algo pior conosco, ele sentou na cama e falou que não era pra eu gritar, era melhor pra mim. Ele se serviu de mim duas vezes e perguntava, gostou cachorra, tu foste pega no dente, índia é tudo assim ... Eu desesperei, além de me usar me humilhava e minhas filhas e meu marido assistindo, acho que a pequena não acordou, nem sei ... quando percebi que ele tinha saído da minha casa parece que o mundo caiu sobre mim, não tinha reação de nada lembro que peguei o celular, mas não tinha condições de ligar pra ninguém, acho que ainda não tenho mundo.” Abalada, Dolores confessou que teve dificuldade de identificar o criminoso, mas o fez. Ele respondeu processo e foi condenado, o fantasma à época era a saída do agressor da cadeia. Ela ainda vive aos sobressaltos, pois se aproxima o final do cumprimento da pena. As categorias sobre violência: enredamentos na narrativa das mulheres Nos diálogos estabelecidos com as interlocutoras é possível detectar em seus depoimentos e mesmo discurso de indígenas e quilombolas, uma série de categorias a respeito de eventos que, do ponto de vista antropológico, poderiam ser definidos analiticamente como situações de violência, embora dificilmente nossas interlocutoras tenham usado explicitamente o termo violência, as protagonistas referiram-se a todo momento a situações que atingiam seus corpos individual e coletivamente. Os corpos são atingidos de forma coletiva na medida em que a corporeidade e construída socialmente e as violações são estruturais e não individuais, além de engendrarem dor e resistências. Os fatos narrados aproximam-se da definição de violência proposta por Paula Lacerda (2015) que a entende como: [...] um amplo conjunto de situações que poderiam ser percebidas, de outro ponto de vista, como ‘causadoras de sofrimento’, pessoas se apresentam como ‘vítimas de violação de direitos’, o que as transforma em sujeito e potencializa o alcance de suas reivindicações.” (2008, 28) A primeira categoria que se refere a tais processos diz respeito a violência enfrentada coletivamente pelo povo Tembé Tenetehara na Colônia Santo Antônio do Prata, educandário que recebia as crianças indígenas sequestradas de suas comunidades e apartadas de seus parentes para serem educadas, catequizadas e “civilizadas” com base na pedagogia cristã dos missionários Capuchinhos. Posteriormente, a Colônia foi transformada em Leprosário e a ameaça de contrair a doença afastou ainda mais os Tembé Tenetehara do território que tradicionalmente ocupavam. No período de instalação do Leprosário, conforme conta Dona Maria Joana, circulava na região o boato de que era possível curar a hanseníase se o doente comesse o fígado de uma pessoa saudável. Na época chegaram a ser encontrados na mata cadáveres com o fígado retirado, o que reforçava ainda mais o temor de que uma das pessoas a serem mortas pudessem ser Tembé Tenetehara. É desse cenário que emerge a categoria massacre: as interlocutoras constantemente reafirmam, ao dizer dessas memórias que “o nosso povo foi muito massacrado no Prata”. A noção de massacre parece elucidar mais enfaticamente os acontecimentos que a categoria violência, uma vez que as violações enfrentadas coletivamente pelos Tembé Tenetehara – ditos de Santa Maria – incluem espoliação territorial, epistemicídio, quebra dos laços de parentesco e, em última instância, o adoecimento e a morte dos membros do povo. O mesmo ocorre com as mulheres Xipaya e Kuruaya que, expulsas de seus territórios no médio Xingu, vieram à cidade e vivem presas a espaços, onde sequer podiam, há 10 anos, se declarar indígenas. Eram, como referem algumas das interlocutoras, impedidas de falar a língua materna, enfrentaram o massacre da discriminação, produzida pelo racismo que se apresenta em estratégias de dominação de ordem material e ideológica, utilizada pelas estruturas coloniais para manter status privilegiado de membros do grupo dominante, produzindo a perene subalternidade dos povos etnicamente diferenciados (Moreira, 2016 ), não fosse a luta que empreendem diuturnamente. No caso das quilombolas o massacre foi/é pesado e reproduzido nas diversas narrativas. A segunda categoria que diz de processos de violência é a de escravidão. Conforme explica Maria da Paz: “os antigos do nosso povo tratavam a mulher como escrava. Ela só servia para ter filho, cuidar da casa e da roça, ser usada pelo marido e trabalhar pro pai. Hoje não pode mais ser assim, mas muitos homens no nosso povo e de fora querem tratar as mulheres nessa escravidão.” A categoria escravidão parece dizer respeito a crítica que as mulheres indígenas fazem sobre a condição feminina dentro das diversas comunidades. O entendimento de que as mulheres eram e são tratadas como escravas, guarda em seu interior a reivindicação de que sejam entendidas como sujeitos, dotadas de direitos, vontades e voz. Tal categoria diz respeito a forma como as interlocutoras pensam a mulheridade e a crítica que fazem por não serem reconhecidas de tal forma. Entre as quilombolas a condição de escrava é mencionada por conta das avós e das bisavós, entretanto, algumas vezes, a condição passada é negada para não comprometer a luta e favorecer a discriminação. A terceira categoria nos parece a que possui maior tensão ao ser utilizada analiticamente: trata-se da categoria maldade. Durante muito tempo do percurso das pesquisas que apontavam para as categorias nativas, evitou-se conjecturar sobre a mesma, por receio de que escrever sobre o assunto pudesse “dar munição” para os antagonistas em relação aos povos tradicionais. Entretanto, ao buscar as noções de justiça que permitem a luta política das mulheres, a maldade atravessou o percurso da problematização. As interlocutoras com quem se dialogou nomeiam como “homens maus” aqueles que agridem seus corpos, física e/ou sexualmente. E, a essas agressões, as mulheres indígenas dão o nome de maldades. As quilombolas, algumas vezes referem-se às violações dos homens maus, como malinesas. Denominam malinesas às penas impostas, pelos encantados, a homens (e também à mulheres) que vivem fora das normas tradicionais, malinesas que trazem como consequência efeitos deletérios às relações sociais. Malinos são os encantados que castigam os transgressores com o mal, tornando-os perniciosos ao convívio social. Os encantados que “jogam a malinesa” vivem nas matas e nos cursos d’água e por serem donos dos espaços, exigem reverências e cumprimento de obrigações, nem sempre observadas pelos homens maus que terminam “malinando” com as mulheres (ou mulheres que malinam com homens). No caso da maldade ou da malinesa entre indígenas e quilombolas, uma e outra não integram a essência dos humanos, são tomadas pelas interlocutoras como condição que, dependendo do comportamento, pode ser afastada dos humanos, sempre que, arrependidos, voltem a cumprir as obrigações com os encantados. A tensão reside no fato de que muitas vezes os homens maus ou malinos podem ser companheiros das mulheres indígenas e quilombolas ou lideranças dos referidos coletivos. Duas situações parecem ilustrativas de como a categoria maldade é posta em ação. A primeira delas diz respeito a história contada por Maria Laura, que teve a filha Maria Conceição sequestrada por um homem que circulava na comunidade. A menina passou oito dias em cativeiro submetida a violência física e sexual pelo agressor. Por fim, depois de espancá-la quase até a morte, o criminoso abandonou-a sozinha na casa onde a escondia. Embora Maria Conceição tenha sido encontrada com vida e acolhida sob o modo Tembé de cuidar do corpo, a marca da violência permanece para o resto da vida e o fato de o agressor ter muito dinheiro, à época, assegurou-lhe a impunidade. Ao contar a história de sua filha, Maria Laura referiu-se ao criminoso como um “anjo mau”, aproximando-o do mito bíblico que conta a história de Lúcifer. A mesma categoria foi utilizada pela filha de Maria da Paz, Maria Lídia, para referir-se ao seu pai. Na época ele se encontrava doente, com desmaios e fraquezas constantes, e as causas não puderam ser identificadas pelos médicos que a família procurou. Maria da Paz, desde que a conhecemos, narra as agressões cometidas pelo marido, que espancava ela e os filhos e dizia constantemente a todos palavras duras, que “machucavam” quem as ouvia. Conversando com Maria da Paz e Maria Lídia, a filha afirmou que a doença do pai era um “castigo por todas as maldades que ele fez com a gente”, com o que Maria da Paz concordou. A noção de maldade parece ter um sentido diferenciado para as mulheres indígenas se comparada aos usos que assume na sociedade dita ocidental. Enquanto no ocidente a maldade é frequentemente tomada como propriedade de pessoas perversas, entre as protagonistas indígenas a categoria parece se aproximar do que a Antropologia e os movimentos de mulheres tem chamado de machismo ou violência de gênero. Atentar para o uso diferenciado do termo pelas interlocutoras só foi possível em função do envolvimento etnográfico no contexto em que estas se inserem e por meio do diálogo e inflexão mantida pelas autoras. Por fim, a última categoria percebida como o sinônimo nativo para a violência é a de machucar. Frequentemente usada na sociedade ocidental para designar ferimentos físicos, sejam acidentais ou infringidos, machucar entre as mulheres indígenas refere-se ao ato de dizer palavras ofensivas e duras, que atacam a honra e o caráter das pessoas atingidas. Nos relatos de violência dentro das relações com os maridos – sejam eles indígenas ou não – as interlocutoras afirmam que as palavras duras são tão dolorosas e machucam tanto quanto agressões físicas. Tendo em conta a lei brasileira sobre violência doméstica, temos que o “machucar” talvez possa ser compreendido como violência psicológica11 , uma entre as possibilidades de violência contra a mulher, deslindadas nesse diploma legal. Entre as quilombolas há narrativas que informam que as palavras ofendem mais que serem marcadas por paus, chicotes e outros instrumentos de agressão. As marcas físicas podem ser tratadas, curadas, mesmo que levem tempo, mas as marcas dos machucados ferem a alma (para além do corpo) e permanecem na memória das interlocutoras e nada nem ninguém faz desaparecer. Abaixo as correspondências relativas às categorias éticas e êmicas. Thumbnail  Quadro 1 : Categorias éticas e êmicas sobre violência As categorias relativas à agência: a resistência das/entre mulheres Uma das principais questões que se tornaram visíveis no diálogo com as interlocutoras diz respeito ao fato de que as violações que atingem os corpos das mulheres jamais foram aceitas de forma passiva, elas não se deixam paralisar. Os processos de agência – aqui utilizada no sentido atribuído por Pierre Bourdieu (1983) e Anthony Giddens (1984) – e resistência, sempre estiveram presentes nas trajetórias das indígenas e quilombolas. O silenciamentos via etnocídio atingiu seus corpos e vidas, mas não se consolidou na medida em que as protagonistas sempre estiveram dispostas a buscar alternativas e resisitir. É com o intuito de romper com o etnocídio e a destituição da memória de seus coletivos que as mulheres indígenas ou quilombolas contam histórias de extrema violência no contexto da pesquisa; supomos que elas acreditam que por meio do registro na produção antropológica, as interlocutoras mantém a expectativa de que as memórias não sejam esquecidas nem apagadas, mas que, pelo contrário, permaneçam vivas na luta por direitos coletivos e por reconhecimento. Relatar as estratégias de agência e resistência e o protagonismo das interlocutoras frente a situações de poder assimétricas coaduna-se com o objetivo de “contar para prevenir”, como disse Maria dos Anjos, há anos, quando em uma roda de conversa aconselhou as jovens presentes: “... não guardem segredos, eles envenenam a vida. Não façam como eu que evitei contar as malinesas, daí não consegui domei os maus [homens] da minha vida. Nem os de casa, nem os da rua e ninguém deve machucar nossas almas, somos pessoas, [e olhando firme as meninas moças da roda] devemos reagir, assim as malinesas vão pra longe da comunidade.” De fato, contar a história parece uma das principais categorias que distinguem a agência das mulheres diante da violência sofrida. O trabalho das autoras, membros da equipe de antropólogos do Grupo de Pesquisa Cidade, Aldeia & Patrimônio só teve início a partir do convite dos membros da comunidade para que os pesquisadores escrevessem a história do povo Tembé Tenetehara e de outros povos indígenas e quilombolas, como informamos à partida. Quando na comunidade, muitos pesquisadores foram “intimados” a entrevistar os membros mais velhos da comunidade, para garantir que as histórias que estes se lembravam fossem registradas antes que se perdessem com seu falecimento. Maria Laura, com o início das pesquisas na comunidade, decidiu começar a escrever diários, onde poderia registrar suas memórias pessoais e coletivas e repassar para os pesquisadores do grupo. Outra categoria importante nos processos de agência das mulheres indígenas, especialmente as Tembé, é a do cuidado. Conforme elucida Maria Laura: “... o nosso povo foi muito massacrado no Prata. Morreu muita gente. A gente jamais podia dizer que era índio, até hoje nós vivemos discriminados. Hoje tá muito melhor, a gente vive junto, faz nossas festas, cuida uns dos outros e o nosso povo se alegra. Mas vive com a discriminação. Não podemos usar uma roupa, que já dizem que nós não somos índios. Eu vou dizer que eu sou uma portuguesa, sendo que eu não sou? Até tem gente que diz, mas eu não digo. Eu digo o que eu sou, eu sou Tembé. Mas tem que viver com a discriminação.” Ao contrário da visão de cuidado amplamente discutida na literatura produzida na área da Enfermagem, pautada na atenção e medicalização de pessoas com doenças, ou deficiência, o cuidado tembé e das demais etnias é holístico e alimenta o corpo de forma completa, por meio do sistema tradicional de ação para saúde, que contempla não apenas o cuidado com o corpo, mas a proteção espiritual, e as lutas políticas por uma vida melhor, que acarretam uma corporeidade saudável. E esse corpo não se estrutura desconectado do ser indígena, com toda a carga política e epistemológica que a identidade enseja para as tembé, xipaya e kuruaya. Cuidar de si e dos seus implica em se proteger de violações e fortalecer o grupo para que as lutas políticas possam ser continuadas. Nesse sentido, o cuidado de si constitui um empreendimento que conforma resistências políticas, materiais e epistemológicas, em um contexto no qual o corpo vem à cena tanto como território de lutas e afirmações identitárias, quanto como alvo de opressões e estigmas. Com as mulheres quilombolas a situação é semelhante, sempre que alguém se machuca a cura vem via sistema tradicional de ação para saúde, mesmo que a pessoa machucada e violada receba atendimento dentro do sistema ocidental de ação para saúde. Outra categoria percebida como forma de agência das mulheres nas tensões que envolvem os maridos diz respeito a educação dos filhos. Segundo Maria Laura: “... a mulher é que educa o filho. Se ela não mandar ele ir lá, tomar a bença do pai, fazer um carinho no pai, ele não vai, não, fica na dele. Foi por causa de um dos meus filhos que meu marido parou de me bater. Um dia, ele era novinho, magro, magro... Ele virou pro pai e falou: “O senhor nunca mais vai bater na mamãe, hoje foi o último dia”. O pai perguntou: “E o que tu vai fazer?”. E ele disse: “Eu não sei, mas o senhor não encosta mais um dedo nela”. Depois disso, nunca mais ele me bateu.” Uma das filhas de Maria Laura, ao ver o pai com outras mulheres na rua: “... fazia um escândalo, batia nela. Uma vez enchi as coisas da mulher de areia, ficou tudo sujo. Depois ele metia a porrada em mim quando chegava em casa, mas eu nunca deixava barato.” Atualmente as crianças que na infância enfrentaram os pais em defesa de suas mães, criam redes de apoio e acolhimento das indígenas mulheres em situação de violência, seja recebendo-as em suas casas, rezando por elas ou conversando com os maridos e, muitas vezes constrangendo-os perante os demais parentes. Maria José, quilombola da comunidade Maria me ajude constrangia o marido, mostrando de casa em casa os ferimentos produzidos pelas surras que levava, porque teimava em estudar. A peregrinação de casa em casa produzia o recolhimento do agressor que, alcoolizado, tinha produzido as maldades, malinado a protagonista. Por fim, a última categoria percebida como característica da agência empreendida pelas mulheres tembé em relação a violência diz respeito ao processo de fechar o corpo. Prática também verificada entre as quilombolas. Em um contexto em que as violações de direitos ocorridas em hospitais são reais e prováveis, fechar o corpo contra coisas ruins é essencial. Entre as práticas frequentes, temos: rezar na cabeça de criança com febre; ministrar ervas medicinais para pessoas que adoecem ou são envenenadas; manter a gravidez ou interrompê-la quando as vidas da mãe e da criança estão ameaçadas; são exemplos de saberes e fazeres acionados no agenciamento de situações consideradas de risco, em que se sabe que o acesso ao sistema ocidental de ação para saúde não responde satisfatoriamente ou há dificuldades em acessá-lo. Fechar o corpo entre os povos tradicionais implica proteger as pessoas da comunidade tanto no plano físico quanto no espiritual. Os rituais podem ou não estar relacionados à alguma forma de religiosidade indígena afro-brasileira ou ocidental. Uma das interlocutoras, reconhecida “por ser uma das mais antigas dos nossos antepassados”, entre os Tembé, relata que nos tempos antigos, quando houve grande incidência de hanseníase na região, ela conseguiu paralisar o avanço da doença no corpo de uma das pessoas da comunidade utilizando as propriedades do mucuracaá, uma planta medicinal que também é utilizada entre os tembé para combater o mau-olhado. Outras indígenas afirmam que uma mulher grávida que estivesse sob os cuidados de Maria Carmen estaria em boas mãos, uma vez que ela acompanhava a gestação desde os primeiros meses até a hora do parto, no qual a mulher era virada de lado e dava a luz enquanto a interlocutora rezava em sua barriga. Despois do parto, a profissional de saúde permanecia na casa da parturiente até o resguardo terminar, portanto eram quarenta dias de cuidados diferenciados. Durante uma das idas a campo, a mãe de uma criança que havia nascido há pouco tempo encontrava-se aflita, pois o bebê não parava de chorar e não costumava ser assim. Nesse momento, Maria Carmen, sogra da mãe da criança, entrava na casa e, ao se dar conta da situação, perguntou se a menina havia ido tomar banho de igarapé. Como a resposta foi afirmativa, a interlocutora disse: “... minha filha pegue alho, amasse e misture com álcool e deixe um tempo. Depois passe com o dedo na palma da mão da neném, na sola do pé, no braço e na coxa, em forma de cruz. Vai ficar um cheirinho ruim, mas não tem problema, ela vai melhorar. Ela deve ter visto alguma coisa no igarapé, criança é muito sensível, parece um pintinho novo. Quando eu era pequena, minha tia levava a gente pro igarapé, mas ela entrava primeiro, pedia licença pra mãe da água pra gente entrar e jogava o alho na água, aí o banho era sossegado.” O alho é antídoto (combate o veneno) para os encantados que “jogam malinesa” quando as pessoas não reconhecem as regras, que não se referem apenas aos espaços de domínio dos mesmos, mas às horas proibidas do dia e da noite. A paçoca de gergelim preto “pisada” com hortelã é utilizada para “botar pra fora” (as indígenas não utilizam o termo “aborto”, as quilombolas usam expulsar), principalmente quando a gravidez ameaça a vida da mãe ou quando o parto é de risco. Para mulheres grávidas que sentem dores, ministra-se chá de gengibre. Para inflamações, especialmente em casos de problemas de próstata, o caroço de abacate mostra-se eficaz. Crianças, quando morrem antes do batismo, segundo os católicos, choram durante sete dias e precisam ser batizados para que “descansem”. A última prática mostra-se elucidativa da forma tembé de pensar a construção da “pessoa”, a partir do ato de batizar a criança morta. Para os Tembé Tenetehara não se deve negar às pessoas mortas, quando oriundas de famílias cristãs, o direito ao ritual de batismo que as forma e legitima. As situações acima descritas, integrantes das observações de campo, revelam que mesmo enfrentando situações de precariedade e violência, as mulheres exercem seu protagonismo, instituindo o “ser sujeito” e encontram alternativas para agenciar situações de violência. O corpo e as múltiplas corporeidades que coexistem entre as interlocutoras são territórios privilegiados da resistência de indígenas e quilombolas mulheres e das formas de cuidar de si mesmas. Thumbnail  Quadro 2 : Categorias êmicas e éticas sobre agência Entre oitivas e traduções Os diálogos em campo demonstram que os atos e falas das interlocutoras são ferramentas importantes para a compreensão de suas realidades. Ao mesmo tempo, analisar o discurso no contexto das relações antropológicas passa a ser um desafio, na medida em que aponta para a necessidade de proceder o controle das dificuldades de tradução etnográfica, dos etnocentrismos ocidentais e do viés da colonialidade vigente. Em trabalho de grande influência e repercussão, Gayatri Spivak (2010) questiona criticamente a (im)possibilidade de fala de determinados grupos. A autora constata que os subalternos em geral, e o sujeito historicamente emudecido, a mulher subalterna em particular, foram e são, ao longo da história, mal compreendidos ou mal representados pelo interesse pessoal dos que têm poder para representar. A proposição instigante de Spivak (2010), além de elucidar silenciamentos, colonialismos e violências, também aduz escutas anti-hegemônicas, epistemologicamente desobedientes, pós-coloniais. Inspirada pela reflexão provocativa da filósofa indiana, Lacerda (2014) considera que em meio a tentativas de silenciamento, os grupos e sujeitos subalternizados – e esse é um deslocamento analítico fundamental para que a subalternidade não seja entendida como lugar paralisante e intransponível – estão falando. Superando a perspectiva colonialista que pretende “dar voz” aos grupos subalternizados por meio da pesquisa, Lacerda (2014) tensiona a questão que orienta Spivak (2010): como o não subalternizado, o privilegiado, pode escutar? As posições teórico-epistemológicas (que também possuem caráter político) adotadas na presente discussão objetivam favorecer a escuta etnográfica mais responsável, capaz de superar estereótipos de passividade e compreender indígenas e quilombolas como sujeitos de suas próprias histórias. A estruturação do olhar antropológico sobre o campo, em diálogo com os conceitos e categorias referidas, foi essencial para compreensão das interlocutoras como protagonistas de suas próprias histórias, não como vítimas passivas, desagenciadas e paralisadas diante de violações. Qualquer procedimento em sentido contrário seria uma prática etnocêntrica. Atentar para as narrativas das mulheres indígenas e quilombolas, a partir do que foi explicitado, é um esforço que vai além de retomar o protagonismo de vozes subalternizadas. Trata-se de uma tentativa de constituição de possibilidades de outra epistemologia, outras referências e sensibilidades, diferentes das que o pensamento colonial afirma serem as únicas dignas de serem aprendidas e respeitadas. A partir das falas desses sujeitos, confrontamos a tentativa histórica de epistemícidio (Santos, 2010) e assimilação que incide sobre os povos indígenas e quilombolas, e, mais especificamente sobre mulheres indígenas e quilombolas/ indígenas e quilombolas mulheres. Trata-se de uma opção metodológica que abriga dimensões e responsabilidades políticas, de contemplar enunciações ditas e tomadas como periféricas e arbitrariamente alijadas pelo pensamento ocidental e colonial. Por diálogos e justiças A diversidade das agências e possibilidades de justiça nos permite esterçar para diferentes lados saindo dos limites de nossos axiomas, verdades que consideramos inquestionáveis e supostamente válidas universalmente. Axiomas estes que muitas vezes são utilizadas como princípios que mantém privilégios de uns em detrimentos de outros secularmente subalternizados. Não se trata de atribuir valor superior aos conhecimentos tradicionais ou mesmo de aderir a eles, mas de considerá-los em diálogo para produzir a melhor justiça, sem diluí-los na ciência desenvolvida na academia. A importância das reflexões que se faz é tentar indicar que as agências das mulheres e modos diversos de conhecimentos, é indicar também que se pode pensar de outro modo e que os variados sistemas de justiça precisam, de fato, dialogar. Sabemos que os estudos acerca da violência de gênero no país muitas vezes utilizam o termo violência sem muita precisão, como se violência doméstica, violência intrafamiliar, violência contra a mulher, entre outros, fossem capazes de abarcar reflexões sobre realidades diversas. Fazer o esforço de compreender noções êmicas do termo afasta o perigo da reificação e induz a “diálogos ouvintes”, que postulamos aqui, em contraposição aos “diálogos surdos.” Ainda sobre a questão dos termos utilizados para abordar a violência, contemporaneamente tem se preferido falar em mulheres em situação de violência ao invés de violência contra a mulher, para indicar que a violência é transitória e não um destino que as mulheres devem cumprir (Campos, 2011). Além disso, a mudança de termo e, por conseguinte, de enfoque, impele a pensar a questão fora do molde algoz versus vítima, possibilitando compreender que, mesmo sendo vítima, especialmente num sentido jurídico-estatal, não significa não ter poder e força de resistir. As narrativas e corporeidades de mulheres indígenas e quilombolas/ indígenas e quilombolas mulheres desafiam compreensões do senso comum sobre situações de violência e nos fazem compreender que vítimas são sujeitos. Dessa forma, como sujeitos que são, devem poder acionar sistemas tradicionais de justiça ou mesmo a “justiça dos brancos”, como dizem algumas. Porém, a colonialidade, especialmente a de gênero (Lugones, 2008 ) cria contextos em que os dois lados olvidam as demandas pelo fim de maldades e malinesas. Referências bibliográficas ALEIXO, Mariah Torres. 2015. Indígenas e quilombolas icamiabas em situação de violência: rompendo fronteiras em busca de direitos Dissertação de mestrado, Programa de Pós-Graduação em Direito, UFPA. (Inédita) BELTRÃO, Jane Felipe. 2012. Histórias ‘em suspenso’: os Tembé ‘de Santa Maria’, estratégias de enfrentamento do etnocídio ‘cordial’. Revista História Hoje, São Paulo, v. 1, no 2, p. 195-212. BOURDIEU, Pierre. 1983. Esboço de uma teoria da prática In: ORTIZ, Renato (Org.). Pierre Bourdieu: sociologia São Paulo: Ática, p.46-81. BRASIL. 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