Política, religião e gênero nas Ilhas Maldivas: a construção de uma nação insular
Política, religião e gênero nas Ilhas Maldivas: a construção de uma nação insular
por Sylvia Romano apoiada em Fabiano de Souza
Ilhas Maldivas, há um nítido contraste entre, por um lado, o turismo organizado geralmente por agências internacionais de viagem voltado para ilhas ocupadas por hotéis luxuosos ou resorts, até pouco tempo a única forma de turismo permitida no país, e por outro, o turismo independente, recentemente permitido para a visitação de ilhas habitadas basicamente por pescadores. Uma legislação específica regulamenta as atividades nas ilhas-resorts, de cunho liberal, diferente daquela mais conservadora e baseada em preceitos islâmicos que regulamenta as relações sociais no restante do país. Essa dualidade – um país, duas legislações – pode ajudar a compreender a configuração histórica particular das relações de poder, assim como as interpretações das formas da experiência da religiosidade e as expressões de gênero, que estão na base da legitimação de ideologias conflituosas de elaboração da identidade nacional maldívia.cristalinas cheio de peixes coloridos, praias de areia branca cingidas de coqueiros e vegetação luxuriante, refrescantes daiquiris e caipiri-nhas servidos por garçons filipinos, frutos do mar frescos no cardápio do almoço, além de pratos orientais à base de carne de porco preparados por algum cheftailandês, corais exuberantes para serem contemplados durante um mergulhoverspertino na companhia de uma bióloga indiana, pôr-do-sol ao som de chill out oferecido por algum disk jockey holandês num deck sobre o mar de águas cristalinas cheio de peixes coloridos, um mundo de horizontalidade relaxada...1Agora, num mundo da verticalidade estafada, imagine-se na cidade mais densamente povoada do planeta, com 160 mil pessoas se apertando em uma ilha de 2 km², marcada por um incessante vai-e-vem barulhento de barcos que conectam as demais ilhas à cidade-capital adicionando-se ao também incessan-te vai-e-vem barulhento de motos e carros de fabricação chinesa que transitam apressadamente pelas ruelas sem calçadas espremidas entre arranha-céus de-sengonçadamente pintados, em meio a estandes de vendas de frutas, verduras e legumes tropicais, barraquinhas de brechós empoeiradas, carrinhos frenéticos de vendedores ambulantes, mulheres trajando niqab2 pretos, imam ostentan-do barbas tingidas de vermelho e thobe brancos3, crianças animadas saindo da escola e indo diretamente para a (poluída) única praia pública da ilha, homens enegrecidos pelo sol do Equador carregando atuns frescos nas costas, políticos de sarongue discorrendo com empresários engravatados da indústria do turis-mo na frente de alguma casa de chá, tudo isso ao som de buzinas e mais buzinas ) pelas inúmeras dicas e pela companhia durante a viagem e também ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, CNPq, pela bolsa de Produtividade em Pesquisa que proporcionou a realização desse trabalho. 2Niqab, abaya e hijab são vestimentas femininas exigidas e/ou recomendadas em alguns países de tradição islâmica (a primeira, só deixa à vista os olhos).3 O imam é o sacerdote encarregado das atividades nas mesquitas, os templos islâmicos, e o thobe é o vestido branco que costuma usar em alguns países.
612artigo | Fabiano de Souza Gontijo| Política, religião e gênero nas Ilhas Maldivas: a construção de uma nação insularRev. antropol. (São Paulo, Online) | v. 62 n. 3: 610-651 | USP, 2019e do muezzin que ecoa dos minaretes das inúmeras mesquitas a aliciar os fiéis muçulmanos para uma das cinco orações obrigatórias diárias. Esses dois “mundos” – o apolíneo e horizontal das espreguiçadeiras proposto pelas agências de turismo e o dionisíaco e vertical dos arranha-céus deposto pelas agências de desenvolvimento – compartilham oficialmente uma mesma nação no Oceano Índico, a República de Maldivas. Mas, os sujeitos que partici-pam do primeiro mundo – os turistas e empregados estrangeiros dos resorts – , parecem não demonstrar interesse (e estavam proibidos até bem pouco tempo) em participar do segundo; e os sujeitos que participam do segundo, os cidadãos maldívios de Male’, a ilha-capital, parecem demonstrar pouco interesse (e esta-vam proibidos até bem pouco tempo) em participar do primeiro. Tentar-se-á compreender a síntese, aparentemente paradoxal, que surge desse contraste em uma nação submetida às leis islâmicas, cuja maior fonte de rendas vem do turismo estrangeiro em ilhas concedidas para a instalação de lu-xuosos resorts – embora os recursos captados com o turismo não sejam redistri-buídos, nem gerem riquezas para todos os cidadãos, nem tampouco se revertam em benefícios gerais. O contraste foi consolidado pelas relações bem particula-res, nas Ilhas Maldivas, entre a configuração política local, o turismo de massa e a discursividade das ciências humanas, de que tratarei num primeiro momento. Em seguida, apresentarei a narrativa de minha própria experiência – em forma de diário de viagem (de campo?) – oriunda de uma curta estadia realizada em abril de 2017 em três pontos do arquipélago: na caótica capital, Male’; numa tra-dicional ilha habitada por pescadores maldívios e recentemente aberta para o turismo independente4, Ukulhas; e numa paradisíaca ilha-resort, Velidhu. Enfim, tratarei, em forma de considerações finais ou esboço de questionamentos, da síntese considerada como uma marca das tensões que estão na base do proces-so de construção da identidade nacional local, em meio a um mundo balizado pela expansão global do capital financeiro, pelas negociações incessantes de diferenciações (de fronteiras físicas e simbólicas) e pelas inúmeras formas de resistência cultural. Algumas fotografias de nossa autoria (com duas exceções) complementarão o texto. maldivas: a formação A República de Maldivas compreende um emaranhado de pouco mais de 1.190 ilhas coralíneas agrupadas em 26 atóis no Oceano Índico, numa extensão de 850 km que cruza de norte a sul a linha do Equador. A superfície terrestre total das ilhas não passa de 300 km². De acordo com o recenseamento da população de 2014, menos de 410 mil pessoas viviam em 128 ilhas-cidades (além de 109 ilhas-resorts e 128 ilhas industriais e/ou agrícolas). Quase 160 mil pessoas viviam 4O turismo independente é aquele em que o visitante pode transitar pela área com certa autonomia, contrariamente ao turismo sob medida, em que o visitante compra de uma agência de viagens um pacote de prestações que geralmente incluem passagens para o deslocamento, hospedagem, recepção e transporte entre os aeroportos ou estações e os locais de hospedagem, programação de atividades e passeios, refeições etc. – no turismo independente, todas ou quase todas essas prestações são organizadas pessoalmente pelo turista.
613artigo | Fabiano de Souza Gontijo| Política, religião e gênero nas Ilhas Maldivas: a construção de uma nação insularRev. antropol. (São Paulo, Online) | v. 62 n. 3: 610-651 | USP, 2019nos 2 km² da ilha-capital, Male’, uma das áreas mais densamente povoadas do planeta (National Bureau of Statistics, 2014). Assume-se que não há diversida-de étnica, a não ser pela quantidade de estrangeiros/as que vivem no país (por volta de 16% da população), sobretudo empregados/as dos centros hoteleiros de lazer ou resorts (National Bureau of Statistics, 2014). Uma mesma língua é falada em todo o território, sem variações dialetais significativas, o dhivehi, de origem cingalesa (indo-europeia), com uma escrita própria de inspiração árabe, o taana(Fritz, 2002). Desde a Lei da Unidade Religiosa de 1994, confirmada pela Cons-tituição de 2008, o Islamismo sunita5 é, não somente a religião oficial do país, como a única permitida (Hussain, 2008). O arquipélago teria sido inicialmente habitado por dravidianos oriundos do sul da Índia, seguidos nos séculos VI e V a.C. por povos vindos do Sri Lanka que legaram a língua e, posteriormente, o budismo (Maloney & Munch-Petersen, 1991). Pesquisas arqueológicas empreendidas a partir da década de 1920 trouxeram à tona a cultura material de origem indiana e estruturas de templos budistas, além dos indícios da importância do arquipélago nas rotas de navegação pelo Oceano Índico desde tempos muito remotos (Bell, 1940; Bell, 1992; Forbes, 1987; Heyerdahl, 1986; Mohamed, 2005). Geneticistas abonaram recentemente a origem sul-asiática dos maldívios e confirmaram a rara unidade da população (Pijpe et al., 2013). O islamismo sunita se espalhou pelas ilhas a partir do século XII da nossa era, introduzido em 1153 pelo viajante magrebino Abu’l Barakat Al-Barbari. Ao longo dos séculos seguintes, o arquipélago se tornou um importante ponto de parada no Oceano Índico entre a África, o Oriente Médio e o Sul e o Sudeste Asiá-ticos, até ser submetido violentamente por portugueses no século XVI. Hoje, o herói nacional é precisamente o guerreiro que conseguiu expulsar os lusitanos ainda no século XVI, Muhammad Takurufaanu Al-Azam, e o Dia Nacional cele-bra essa vitória. No final do século XIX, o Sultanato de Maldivas, sob forte pres-são das potências coloniais europeias, tornou-se um protetorado britânico até a conquista da independência ocorrida em 1965. O sultanato foi transformado em república em 1968 sob a presidência de Ibrahim Nasir. Até as décadas de 1960 e 1970, o islamismo sunita vivenciado no país apresentava particularidades que o aproximava mais das experiências religiosas do norte da África do que da Penín-sula Arábica, considerado, logo, mais flexível e aberto aos aportes estrangeiros e às persistências (ou resistências) pré-islâmicas (Koechlin, 1979; Orłowska, 2015; Maloney, 1976; Munch-Petersen, 1982). Ao longo de seu governo, Nasir tentou modernizar o país, abri-lo para as rela-ções internacionais e torna-lo mais liberal, seguindo as tendências (ou incitações?) mundiais. O primeiro centro hoteleiro de lazer de luxo do tipo resort foi inaugura-do em 1972 para receber exclusivamente turistas estrangeiros. Ao longo dos anos seguintes, outros seriam implantados seguindo o princípio “uma ilha, um resort”. 5O islamismo surgiu no século VII na Península Arábica e se expandiu de forma nada homogênea, mas bastante rapidamente, pelos mais distantes cantos do planeta, do Oriente Médio ao Extremo Oriente, à África e à Europa. As diversas interpretações dos discursos de Maomé, profeta fundador do islamismo, e as disputas acerca da liderança religiosa e política após a morte do profeta, levaram ao desenvolvimento de diversas vertentes, dentre as quais as mais numerosas são a sunita (majoritária, ditada hoje em dia principalmente – mas não exclusivamente – pela Arábia Saudita) e a xiita (minoritária, aconselhada hoje em dia pelo governo e a classe eclesiástica iranianos). Desde os ensinamentos do profeta até a atualidade, o islamismo, em quase todas as suas vertentes, advogou pela necessária indissolubilidade da relação entre o religioso e o político (e o Estado e/ou a nação) (Bowen, 2012; Buresi, 2007; Ferreira, 2007; Marranci, 2008; Osella & Soares, 2010; Sonn, 2010).
614artigo | Fabiano de Souza Gontijo| Política, religião e gênero nas Ilhas Maldivas: a construção de uma nação insularRev. antropol. (São Paulo, Online) | v. 62 n. 3: 610-651 | USP, 2019As ilhas de férias trouxeram recursos importantes para suprir as consequências da crise econômica gerada pela queda na exportação de pescados, sobretudo atum, principal fonte de riquezas do país àquela altura. Em 1978, sob pressão da oposição, Nasir fugiu para Cingapura com vultuosa soma de dinheiro desviada dos cofres pú-blicos e Maumoon Abdul Gayoom assumiu o poder pelos próximos 30 anos. Desde as pesquisas do oficial britânico comumente conhecido como H.C.P. Bell na década de 1920, até a criação e consolidação do Estado nacional nas dé-cadas de 1960 e 1970, nenhum/a pesquisador/a ocidental parece ter-se interes-sado com mais afinco pelo arquipélago (Romero-Frías, 1999, 2015a, 2015b, 2015c; Orłowska, 2015). Em meados da década de 1970, no entanto, os antropólogos Nils Finn Munch-Petersen, dinamarquês, Clarence Maloney, estadunidense, e Bernard Koechlin, francês, são autorizados para empreender trabalhos etno-gráficos nas ilhas. Maloney era um estudioso da história das sociedades do Sul da Índia e, em particular, da língua tâmil, que passou a se interessar pelo arqui-pélago maldívio em busca de subsídios para compreender os efeitos das ativi-dades marítimas no desenvolvimento das sociedades austrais indianas. Em seu livro intitulado People of the Maldive Islands, publicado em 1980, mesclou dados arqueológicos, linguísticos e etnográficos para mostrar as evidências culturais de origem indiana (e budista) persistentes nas Maldivas, apesar do histórico de islamização das relações sociais e da colonização europeia. Descreveu ainda os primeiros impactos da modernização e do turismo nos modos de vida dos ilhéus, sobretudo dos mais jovens e das mulheres (Maloney, 1976). Munch-Pe-tersen (1982), examinando as técnicas artesanais tradicionais e a vida cotidiana dos ilhéus, e Koechlin (1979), tratando da pesca, da fabricação de barcos e da relação com a economia local, relataram as mudanças em andamento acarreta-das pelo incremento do turismo de luxo e pela rápida inserção do país na esfera da economia mundial. Durante o governo de Gayoom, os livros desses autores (e outros mais) desapareceram das estantes das poucas bibliotecas e livrarias do arquipélago não sem surpresa (Romero-Frías, 2015b).Não sem surpresa, pois Gayoom, governando com mãos de ferro, distinguiu-se de seu predecessor ao fortalecer as relações com as lideranças islâmicas sauditas (que comandam a forma mais conservadora do sunismo) e com os chefes locais, tornando o país, de fato, um país baseado em princípios religiosos e submetido à lei islâmica, a xariá (shari’a)6: na narrativa histórica que se estava elaborando sobre esse país islâmico, não caberia a ancestralidade hinduísta ou budista relatada nas obras dos antropólogos e arqueólogos estrangeiros (Amir, 2011; Ramachandran, 2016). Se Gayoom, em seus 30 anos de governo, estabeleceu, por um lado, o sistema educativo universal e instaurou o atendimento à saúde7, baseando-se nos princípios do islamismo sunita saudita, também desenvolveu, por outro, o turismo de massa e fortaleceu a indústria pesqueira, baseando-se 6Ver a Constituição da República de Maldivas de 2008, disponível em inglês em .Acesso em diversos momentos entre março de 2017 e novembro de 2018.7Para uma boa análise da importância do investimento em educação e arte no processo de construção de ideologias nacionais em outro contexto regional, ver Blázquez (2012).
615artigo | Fabiano de Souza Gontijo| Política, religião e gênero nas Ilhas Maldivas: a construção de uma nação insularRev. antropol. (São Paulo, Online) | v. 62 n. 3: 610-651 | USP, 2019nos princípios da economia capitalista mundial. Ao mesmo tempo em que o país passou a desconsiderar (totalmente) o seu passado pré-islâmico – donde o banimento nem sempre sutil das publicações de Maloney (1980), Munch-Pe-tersen (1982) e Koechlin (1979), assim como os trabalhos de Romero-Frías (2011) posteriormente (NIAS, 2014) – e a instigar cada vez mais o respeito a preceitos religiosos sunitas conservadores, passou também a facilitar a instalação (inclu-sive, com a isenção fiscal) de empresas multinacionais de turismo de massa ou de luxo (algumas delas, sauditas), através da venda e/ou concessão de ilhas para a acomodação de mega-resorts e a implementação de uma política de vistos ampliada e simplificada para a entrada no país de turistas estrangeiros (endi-nheirados) (Domroes, 2001; Kundur, 2012). Os turistas ficavam proibidos de frequentar as ilhas que não fossem de-signadas para o turismo, com exceção da capital do país, não havendo assim a possibilidade de turismo independente. Os turistas compravam os pacotes junto a agências de viagem em seus países de origem, pousavam no aeroporto internacional de Male’, situado numa ilha em frente à capital e, de lá, reembar-cavam imediatamente para as ilhas-resorts, geralmente situadas no mesmo atol da capital ou em atóis próximos (Ari-Sul e Ari-Norte). Nos resorts, estava permitido o uso de roupas de banhos por homens e mulheres, a comercializa-ção e a ingestão de bebidas alcoólicas e o consumo de carne de porco, enquan-to no resto do país a proibição dessas práticas e produtos era extremamente severa em respeito supostamente à xariá. Os resorts funcionavam com o uso da mão-de-obra quase que exclusivamente de homens estrangeiros, sendo praticamente interditados aos nacionais maldívios em razão do uso do álcool e do consumo da carne de porco (Domroes, 2001; Mihdha, 2008)8. O recensea-mento da população de 2006, por exemplo, realizado ainda durante o gover-no de Gayoom, não quantificou o número de estrangeiros no país, somente aqueles casados com cidadãos maldívios. Já o recenseamento de 2014, realiza-do durante a redemocratização após a queda de Gayoom, deu conta também dos residentes estrangeiros, mostrando que pouco mais de 59% dos residentes de resorts eram estrangeiros, sendo 92% desses residentes, homens9. Um país, duas realidades, duas legislações.Desse modo, a indústria do turismo passou a representar, a partir das déca-das de 1980 e 1990, mais de um terço do produto interno bruto, principal fonte de renda do país (Kundur, 2012), sofrendo impactos pontuais somente após o tsunami de 2004 e as crises políticas de 2006/2008 e 2011/2012 (Carlsen & Hughes, 2004; Sheyvens, 2011). A partir da década de 2010, o turismo se torna a principal fonte de renda, representando diretamente quase 40% e indiretamen-te mais de 70% do produto interno bruto, o que faz do país aquele mais depen-dente do turismo em todo o mundo (World Travel and Tourism Council, 2018). 8Nota-se, ali, um direcionamento do turismo para um modelo considerado mais familiar que se opõe sobremaneira ao turismo que se desenvolveu, quase no mesmo período, no litoral do Nordeste brasileiro, com direcionamento para a prostituição, como apontam Aquino (2015) ou Piscitelli (2010). 9O fato de não quantificar os estrangeiros vivendo em resorts talvez seja uma prova de que, para o governo de Gayoom, era melhor que a população não se inteirasse do que acontecia nos resorts, nem sequer do número de pessoas que viviam ali, como se realmente fosse um outro país.
616artigo | Fabiano de Souza Gontijo| Política, religião e gênero nas Ilhas Maldivas: a construção de uma nação insularRev. antropol. (São Paulo, Online) | v. 62 n. 3: 610-651 | USP, 2019O avanço do conservadorismo islâmico sunita e da censura religiosa aplicado à população como um todo pelas forças do Estado (Amir, 2011; Ramachandran, 2016), a concentração da renda oriunda do turismo e da exportação de pescados nas mãos da família presidencial e de seus próximos, aos quais não se aplicava (ou se aplicava frouxamente) a repressão por desrespeito aos preceitos conser-vadores (Colton, 1995; Salih, 2003), e a corrupção crescente (Mausoom, 2004; Rasheed, 2013), por um lado, e por outro, a ineficiência do governo para lidar com problemas ambientais, como os efeitos do fenômeno El Niño de 1998 que dizimou vastas colônias de corais e do tsunami de 2004 que devastou ilhas intei-ras (Baer & Singer, 2014; Carlsen & Hughes, 2008; Orłowska, 2015), além do des-contentamento dos jovens diante do incremento das taxas de desemprego e das desigualdades sociais, motivaram grandes protestos, principalmente a partir de 2003. O governo, obrigado a ceder, apoiou o multipartidarismo e a promulgação de uma nova Constituição que previa eleições diretas em 2008 (Hussain, 2008). Confiante na vitória, Gayoom foi derrotado nessas primeiras eleições livres e diretas por Mohammed Nasheed, um jovem jornalista, ativista pró-democracia diversas vezes preso e torturado, conhecido carinhosamente como Anni10. O governo de Nasheed foi marcado por uma reforma radical que tinha por in-tuito alguns desafios, tais como: tornar as Ilhas Maldivas o primeiro país, num fu-turo próximo, a reduzir drasticamente as emissões de dióxido de carbono11; criar um fundo financeiro para comprar terras na Austrália, na Índia ou no Sri Lanka para deslocar os maldívios em caso de inviabilização da vida no país devido à elevação do nível dos oceanos12; proibir totalmente a pesca do tubarão; privatizar empresas estatais que serviam de base para esquemas de corrupção; introduzir uma rede de transportes interligando as ilhas; criar um sistema previdenciário universal; cobrar impostos das camadas sociais mais ricas (aquelas que impu-nham para o resto da população o conservadorismo de base religiosa); e ampliar a diversificação da indústria do turismo com o incentivo ao turismo independen-te nas ilhas habitadas por maldívios e o desenvolvimento do turismo de base comunitária. Nasheed se tornou mundialmente conhecido por sua luta para convencer os maiores emissores de gases de efeito estufa (tais como a China, os Estados Unidos, o Brasil e a Índia) a reconhecer a necessidade de implementação de medidas efetivas para minimizar os impactos das mudanças climáticas plane-tárias, em particular durante os preparativos da Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas, realizada na Dinamarca em 200913. Nasheed ampliou as relações das Maldivas com o resto do mundo, valori-zando a importância do estreitamento dos laços econômicos com o Sul da Ásia e as ancestralidades indiana e cingalesa, com o intuito de buscar novas fontes de renda para que o país não fosse tão dependente do turismo e da pesca de atum (e por conseguinte para minimizar o avanço do fundamentalismo islâmico). A busca 10Usam-se muitos apelidos nas Maldivas. Anni é considerado idiossincrático, cunhado especialmente para o presidente Nasheed (Gnanadesikan, 2014)11Ver Baer (2012), Barnett & Adger (2003) e Dove (2014).12Em média, as ilhas que formam o arquipélago não passam de 1,5 metros de altitude acima do nível do mar. Muitas ilhas estão sendo erodidas em razão das consequências das mudanças climáticas nas últimas décadas (Antrosio & Hans, 2015; Baer & Singer, 2014; Barnett & Adger (2003), Carlsen & Hughes, 2008; Ghina, 2003; Mohamed, 2012). 13Ver a esse respeito o documentário The Island President, lançado em 2011, produzido por Jon Shenk, eme . Acesso em: 18/10/2018. O documentário acompanha o primeiro ano do mandato de Nasheed e sua insistente preocupação com as questões ambientais. O arquipélago das Maldivas se viu particularmente afetado pelas mudanças climáticas globais em curso, com a elevação do nível dos oceanos que erodia e inundava algumas ilhas; com o aquecimento das águas que causava a morte dos corais nos atóis e, por conseguinte, às formas de vida a eles associadas; e com o incremento da poluição causada pelo excesso de lixo que levava à escassez de espécies de peixes que antes faziam parte da dieta cotidiana dos ilhéus.
617artigo | Fabiano de Souza Gontijo| Política, religião e gênero nas Ilhas Maldivas: a construção de uma nação insularRev. antropol. (São Paulo, Online) | v. 62 n. 3: 610-651 | USP, 2019pela sustentabilidade econômica e ambiental foi uma das marcas principais de seu governo, tema caro aos países do Sul da Ásia. Uma nova edição do livro de Maloney (1980), prefaciada pelo próprio Nasheed, foi publicada e amplamente divulgada, revalorizando a continuidade histórica das Maldivas desde o período pré-islâmico. A divulgação de trabalhos de pesquisa críticos produzidos por cien-tistas sociais maldívios (sobretudo em inglês) foi incentivada, com a finalidade de lançar um pensamento reflexivo necessário para a modernização e a sustenta-bilidade da economia e da política nacionais (Mohamed, 2005; Mohamed, 2012) e de alavancar a liberalização das relações sociais, em particular das relações de gênero (Marcus, 2012). No início de 2012, no entanto, Nasheed foi coagido, pelas forças policiais e pelo exército (apoiados por empresários próximos do ex-presidente Gayoom), a renunciar, acusado de não respeitar o islamismo e de ter mandado prender injustamente um juiz. Assumiu o poder o vice-presidente até a realização de eleições no final de 2013. Essas eleições foram marcadas por muitas denúncias de irregularidades: Nasheed venceu, mas a Suprema Corte cancelou o pleito arbi-trariamente; uma nova votação deu a vitória ao meio-irmão de Gayoom, Abdulla Yameen. Num processo amplamente reconhecido alguns meses depois como um golpe de Estado, Nasheed acabou sendo forçado a se exilar na Grã-Bretanha e no Sri Lanka, de onde comandou a oposição até 2018, quando seu partido voltou ao poder em novembro com a eleição de Ibrahim Mohamed Solih14. O governo de Yameen se caracterizou por uma reaproximação com a Arábia Saudita e pelo estreitamento de laços com a China, em detrimento da Índia e do Sri Lanka. Yameen doou, por exemplo, algumas ilhas para a instalação de resorts chineses e sauditas, enquanto empresas chinesas se encarregaram de erigir uma nova cidade para desafogar o crescimento demográfico da capital numa ilha ar-tificial que se estende a partir da ilha onde se localiza o aeroporto internacional, Hulhumale, além de construir uma ponte conectando a capital a essa ilha, dentre diversas outras obras vinculadas à iniciativa expansionista chinesa apelidada de belt and road (“cinturão e estrada”)15. O endividamento com a China estaria com-prometendo sobremaneira o crescimento do país, segundo especialistas16, o que já se tornou o maior desafio para o novo presidente recém-empossado em 2018. Quanto à relação com a Arábia Saudita, esse país vem financiando a constru-ção ou a reforma de mesquitas nas mais remotas ilhas e a formação de líderes religiosos e de pesquisadores do livro sagrado (inclusive, com bolsas de estudo), no que foi chamado de iniciativa de manutenção da religious unity (“unidade religiosa”). Assim, se a China vem inserindo as Maldivas no belt and road, a Arábia Saudita vem obrando, por sua vez, pela religious unity, economia e religião cami-nhando numa mesma direção global, com a facilitação das esferas político-ad-ministrativa e jurídica locais (Amir, 2011; Ramachandran, 2016)17. 14Ver sobre os últimos acontecimentos da carreira de Nasheed em 2018 as reportagens em e . Acesso em: 15/12/2018.15Trata-se de uma iniciativa também chamada de “Nova Rota da Seda”, com a construção de uma série de estradas e ferrovias e a instalação de rotas marítimas comerciais conectando a China à Europa, via Ásia e África. Ver, a esse sujeito, a reportagem investigativa em . Acesso em: 23/10/2018.16Ver, a esse respeito, a reportagem em e . Acesso em: 20/12/2018.17Ver, a esse respeito, a reportagem em . Acesso em: 20/12/2018.
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