Zona de tatuagem: um carimbo do estado no corpo do favelado
Zona de tatuagem: um carimbo do estado no corpo do favelado
por sylvia romano apoiada por Juliana Farias
Tendo como combustível de criação os acontecimentos da 1ª Guerra Mundial, surge uma ficção literária sobre a construção e a utilização de uma máquina estatal que tatuava no corpo do condenado o texto da sua sentença até que as perfurações o levassem à morte. Escrita por Kafka, a ficção
Na colônia penal (1919) mostra uma máquina tatuadora enquanto aparelho judiciário, cuja operação ficava nas mãos de um único agente de Estado. Tal ficção foi lida por Clastres (2003) como um anúncio da mais contemporânea das realidades. Compartilhando do mesmo entendimento, encaminho a discussão tomando como referência o aparelho judiciário da ficção para refletir sobre a produção da zona de tatuagem nos corpos dos moradores de favelas. Aciono para a elaboração do debate as reflexões de Pierre Clastres (2003) sobre a tríplice aliança entre a lei, a escrita e o corpo e de Letícia Ferreira (2009) sobre a trajetória burocrática de corpos
A operação foi pouco dolorosa e extremamente rápida: colocaram-nos numa fila e, um por um, conforme a ordem alfabética dos nossos nomes, passamos por um hábil funcionário, munido de uma espécie de punção com uma agulha minúscula. Ao que parece, esta é a verdadeira iniciação: só “mostrando o número” recebe-se o pão e a sopa. Necessitamos de vários dias e muitos socos e bofetadas, até criarmos o hábito de mostrar prontamente o número, de modo a não atrapa-lhar as cotidianas operações de distribuição de víveres; necessitamos de semanas e meses para acostumarmo-nos ao som do número em alemão. E durante muitos dias, quando o hábito da vida em liberdade me levava a olhar a hora no relógio, no pulso aparecia-me, ironicamente, meu novo nome, esse número tatuado em ma rcas azuladas sob a pele.Primo Levi, É isto um homem?Dentre as marcas produzidas por instituições estatais nas peles de populações sobre as quais eram/são exercidos controles variados, o número tatuado no bra-ço esquerdo dos judeus ao chegarem nos campos de concentração nazistas in-tegra o conjunto de versões contemporâneas mais aterrorizantes dessa prática. Formatos variados de inscrições produzidas contra a vontade daqueles cuja pele estava sendo marcada atravessam a história da humanidade e oferecem pistas importantes para as reflexões sobre processos de identificação, de classificação e de separação de populações em diferentes contextos políticos envolvendo julgamentos morais, criminalização e genocídio.Na Grécia Antiga, pessoas criminalizadas e escravizadas eram marcadas a través de uma inscrição na pele conhecida como stigmata1 – prática que depois foi transmitida pelos gregos aos romanos, que a desenvolveram enquanto me-KEYWORDSState Violence, Favelas, Summary Execution, Powder Tattooing, BodiesPowder Tattooing: A State Stamp on the Favelado’s BodyABSTRACTTaking the events of World War I as a creation fuel, comes up a literary fiction about the construction and use of a state machine that tattooed on the body of the condemned the text of his sentence until the perforations took him to the death. Written by Kafka, fiction In the penal colony (1919) shows a tattoo machine as a judicial apparatus, whose operation was in the hands of a single agent of state. Such fiction was read by Clastres (2003) as an announcement of the most contemporary of the realities. Sharing the same understanding, I bring the discussion about the fictional judicial apparatus as a reference to reflect on the production of the powder tat to oing on the bodies of favelas dwellers. For the elaboration of the argument, I operate the ideas by Pierre Clastres (2003) about the triple alliance between law, writing and the body and the ideas by Letícia Ferreira (2009) about the bureaucratic trajectory of bodies.1Em seu estudo sobre estigma e tatuagem na antiguidade greco-romana, Christopher Jones (2000) explica que a inscrição stigma(ta) foi difundida de forma equivalente ao branding (técnica de escarificação, caracterizada pela realização de desenhos através de queimaduras na pele), ao invés de ser relacionada ao conceito atual de tatuagem, que seria o mais adequado de acordo com o historiador.
277artigo | Juliana Farias | Zona de tatuagem: um carimbo do estado no corpo do faveladoRev. antropol. (São Paulo, Online) | v. 62 n. 2: 275-297 | USP, 2019canismo de controle do Estado (Gustafson, 2000). O potencial de visibilidade da tatuagem na Roma Antiga é explorado no estudo de Gustafson (2000) através da identificação de três tipos de penal tattoos2: 1) a inscrição do nome do crime no corpo da pessoa considerada criminosa; 2) a inscrição do nome do imperador que liderava o governo sob o qual o crime foi cometido; e 3) a inscrição do nome da punição sofrida pela pessoa condenada.Ainda que a lista de circunscrições políticas às quais a República Federativa do Brasil está submetida materialize conjuntos normativos que demarquem o afastamento entre os estilos penais (Foucault, 1987)característicos do antigo Estado romano e do Estado bras ileiro, o presente debate pode se alimentar das possibilidades interpretativas trazidas a partir da reflexão de Gustafson (2000) sobre as tatuagens de punição.No centro desse debate, reside a tríplice aliançaentre a lei, a escrita e o corpo so-bre a qual nos fala Clastres (2003) em seus escritos sobre tortura nas sociedades ditas primitivas. A reflexão se tece em função da relação de interdependência entre a dureza da lei e a escrita: sendo dura, a lei é ao mesmo tempo escrita. A escrita existe em função da lei, a lei habita a escrita; e conhecer uma é não poder mais desconhe-cer a outra (2003: 195). Clastres faz menção às colônias penais da Moldávia, onde essa dureza da lei sobre a qual ele se refere encontrava o próprio corpo do culpado-vítima como meio para se enunciar – há relatos de prisioneiros sovié t icos que foram tatuados na face e na testa com os textos: os comunistas sugam o sangue do povo, ou Comunistas = Carrascos, ou ainda escravos de Kruchtchev. O ponto enfatizado a partir da dureza da lei é que há uma diferença crucial entre as marcações realizadas nos rituais de iniciação analisados por Clastres e esse tipo de marcação sobre os corpos presos em colônias penais: o autor argu-menta que enquanto a primeira demarca pertencimento ao expressar uma lei que a sociedade dita a seus membros, a segunda corresponde a uma lei separada, distante, despótica, que – garantida pela escrita – seria a lei do Estado, cujo objetivo da inscrição seria divulgar que o prisioneiro está inteiramente fora da lei e quem o diz é o seu corpo escrito (Clastres, 2003: 197).As inscrições feitas nos corpos durante os rituais de iniciação corresponde-riam, sob es sa perspectiva, a uma conjuração a essa lei separada, que institui e ga-rante desigualdade. Nas sociedades contra o Estado que habitam a obra de Clastres, a marca é igual sobre todos os corpos e enuncia Tu não terás o desejo do poder, nem desejarás ser submisso. E contendo tal enunciado, essa lei não-separada só poderia ser inscrita no próprio corpo, esse espaço não-separado. (Clastres, 2003: 204).Ao trazer para a discussão aqui implementada as reflexões de Gustafson (2000) sobre as tatuagens de punição e a tríplice aliançaentre a lei, a escrita e o corpo explorada por Clastres (2003), não pretendo produzir aproximações entre mar-cações realizadas para serem exibidas de forma exemplar e uma inscrição num 2Nessa reflexão o termo aparece, em tradução livre, como tatuagens de punição . 278artigo | Juliana Farias | Zona de tatuagem: um carimbo do estado no corpo do faveladoRev. antropol. (São Paulo, Online) | v. 62 n. 2: 275-297 | USP, 2019corpo já morto, que após a passagem pelo IML, será enterrado (e que mesmo que seja autorizada a sua exumação, poucos serão aqueles que vão gravar em suas retinas tal imagem). Aciono tais referências, distantes no tempo e no espa-ço, para pensar sobre os enquadramentos políticos atribuídos a essas popula-ções cujos corpos eram/são marcados por forças de Estado.Os três exemplos trazidos de marcações produzidas pelo Estado contra a vontade de quem estava sendo marcado (judeus nos campos de concentração nazistas, escravos e criminosos na Roma Antiga e prisioneiros na colônia penal na Moldávia), dizem respeito a populações cuja existência estava send o conde-nad a, cujos corpos foram contados como peças (Levi, 1988), populações escra-vizadas, consideradas fora da lei, populações que em função de alguma regra inventada enquanto poder de Estado, estavam sendo punidas – e a inscrição na pele fazia parte dessa punição, fazia parte de determinada economia do castigo, segundo Foucault (1987). Analisando diferentes tipos de marcas corporais, Le Breton (2004) enfatiza o potencial de determinadas práticas em relação ao isolamento de pessoas: para o autor, determinadas inscrições no corpo são capazes de projetar a pessoa para um limbo social entre a vida e a morte, conferindo-lhe uma existência sob o olhar permanente dos outros (Le Breton, 2004: 31)3. Importa ressaltar, ainda, o fato de se tratarem de marcações definitivas sobre esses corpos – independente da técnica predominante (se utilizaram agulha, ferro em brasa4, ou outro artefato), tratam-se de marcas impressas por forças estatais que modificaram aqueles corpos, tendo os mesmos assim permanecido até suas mortes. Nesses casos, no entanto, as marcas não estavam diretamente relacionadas às mortes daquelas pessoas. Há outros casos em que estão. Neste texto, discuto a produção da zona de tatuagem no corpo de pessoas executadas por agentes de es-tado nas favelas, explorando a relação entre tal marcação corporal e as mortes em questão. Construo essa discussão a partir da análise de um laudo cadavérico – en-tendido aqui enquanto plataforma de registro indispensável para a movimentação da engrenagem da gestão governamental das mortes dos moradores de favelas.Entendendo o momento da efetuação do disparo da arma de fogo que atinge o morador de favela como ma rco inicial para se produzir um recorte analítico do processo de gestão dessas mortes que incluísse também papéis e registros oficiais, elegi o laudo cadavérico como documento a partir do qual são acionadas outras movimentações (burocráticas ou não) que compõem o inqué-rito policial e o processo judicial de um caso de homicídio ocorrido durante uma intervenção militar na favela5. Construo essa análise tomando como referência a execução de Emanuel, morto durante incursão da Polícia Militar no Morro do Russo, em 20086. Assim sendo, as situações e a documentação acionadas neste texto se referem a encontros e a papéis que constituem esse caso específico. 4Dentre as diferentes marcações produzidas através dessa técnica, destaco não só a estigmata, j&aacut e; citada, c omo também as marcações produzidas pela Coroa Portuguesa em seus escravos (sec. XV): com ferro quente produzia-se uma marca vermelha no ombro ou no peito do escravo, o identificando como propriedade do Rei de Portugal (Thomas, 1997). Thomas (1997) também informa que a mesma marcação a ferro em brasa era produzida no peito direito de escravos da Royal Africa Company, enquanto a South Sea Company utilizava ouro ou prata em brasa para produzir uma marca relativa aos portos do Império espanhol para onde os escravos estavam sendo enviados (Cartagena, Caracas ou Veracruz, por exemplo).5As reflexões apresentadas neste texto foram desenvolvidas em minha tese de doutorado, intitulada Governo de Mortes: Uma etnografia da gestão de populações de favelas no Rio de Janeiro, realizada no Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPG SA/IFCS/UFRJ) , sob a orientação de Luiz Antonio Machado da Silva, com apoio do CNPQ e da FAPERJ.6Durante incursão da Polícia Militar realizada no fim3Sobre os limites contemporâneos para esse tipo de marcação de identificação/controle/isolamento de corpos, Le Breton (2004) cita uma proposta elaborada por políticos de extrema direita (não localiza onde, mas são extrema direita), para que pessoas infectadas pelo vírus HIV fossem marcadas na fronte com um sinal identificador.
279artigo | Juliana Farias | Zona de tatuagem: um carimbo do estado no corpo do faveladoRev. antropol. (São Paulo, Online) | v. 62 n. 2: 275-297 | USP, 20191 inscrições de morte em pele, carne e papel[Outubro de 2010, 2º andar do prédio da Defensoria Pública Geral do Estado do Rio de Janeiro] Achei que estivesse atrasada para uma reunião que familiares de Emanuel (no caso, Alexandra e seu irmão, João Luiz) marcaram com ante-cedência com Frederico Chagas7, com o objetivo de apresentar ao defensor um perito legista aposentado da Polícia Civil que havia concordado em realizar novo estudo – com estatuto de parecer técnico-científico – sobre o homicídio em ques-tão: tratava-se de Dr. Saul. Como o defensor ainda não tinha podido atendê-los, Alexandra e João Luiz aguardavam na recepção do NUDEDH, junto com Dr. Saul. Em pouco tempo, a secret& aacu te;ria informou que poderíamos entrar, que Dr. Frederi-co Chagas já poderia nos receber. Mal entramos na sala, o defensor perguntou: Temos uma audiência, né?! Familiares, defensor e perito conversaram bastante sobre essa próxima audiência e sobre a possibilidade da utilização do parecer técnico-científico no desenrolar do processo. Defensor e familiares aproveitaram o encontro para tirar dúvidas com o perito a respeito de alguns detalhes da do-cumentação produzida pelo IML no dia seguinte da morte de Emanuel. Chagas perguntou: Pelo laudo, o tiro teria sido disparado a curta distância, vê se não é isso Dr. Saul? O perito respondeu afirmativamente, mas fez questão de anunciar uma série de críticas à forma como o laudo cadavérico havia sido preenchido. Pegou a cópia das folhas do processo do caso nas quais encontrava-se o laud o de Ema-nuel, e realizou uma leitura em voz alta de um trecho da descrição da necropsia:INSPEÇÃO EXTERNA: Cadáver de um homem de cor parda, que mede cerca de 166 cm de altura, em rigidez muscular generalizada com livores violáceos nas regiões posteriores do corpo; é de compleição física boa, bom estado de nutrição e cerca de 42 anos de idade; cabelos pretos, curtos e anelados; olhos com córneas transparentes, íris castanhas, escleróticas esbranquiçadas; barba e bigode por fazer; dentes naturais em regular estado de conservação; genitália externa masculina normal; apresenta ferimento de bordos regulares e invertidos, com características de entrada de projétil de arma de fogo (PAF), localizado na região occipital, assinalado no esquema 2 pela letra E; apresenta ferimento de bordos irregulares e evertidos, sangrantes, com cara cter& iacute;sticas de saída de PAF. Locali-zado em região fronto-parietal, assinalado no esquema 1 pela letra S; apresenta orla de tatuagem no membro superior esquerdo, acometendo parte do braço e toda a extensão ao antebraço nas faces Antero-lateral posterior, assinalados nos esquemas 1 e 2 pela letra T; os demais segmentos corporais estão normais.Uma das marcas encontradas no corpo de Emanuel, registrada nessa parte da necropsia como orla de tatuagem, tomou um bom tempo da conversa entre da tarde de um dia de semana no Morro do Russo, alguns dos agentes que participavam da operação se esconderam em um dos becos da favela e ali permaneceram. Ao sairem do esconderijo, os policiais, encapuzados, executaram sete moradores, dentre eles, Emanuel Cardoso da Conceição. Outros moradores contam que Emanuel chegou a levantar os braços, dizendo que estava voltando do trabalho, pedindo para mostrar os docum entos, mas os policiais o levaram ao chão e atiraram na sua cabeça. Os familiares de Emanuel acompanharam a investigação desde o início, entraram em contato com a Comissão de Direitos Humanos da OAB-RJ e com a Rede de Comunidades e Movimentos contra Violência, para a continuidade dos encaminhamentos. Quatro policiais militares foram denunciados pelo Ministério Público, acusados pelo homicídio de Emanuel e, aproximadamente um ano após sua morte, foi marcada a primeira audiência de instrução e julgamento do caso, dando o seguimento esperado pela família ao processo judicial, que passou a correr na 2ª Vara Criminal da Comarca da Capital.7O processo relativo à execução de Emanuel vinha sendo acompanhado pelo NUDEDH, o Núcleo de Direitos Humanos da Defensoria Pública do Rio de Janeiro e, durante o período de realização do trab alho de ca mpo, o profissional desse núcleo responsável pelo caso era o defensor público Frederico Chagas. Tive acesso aos documentos do caso através da autorização da família de Emanuel, que solicitou a Frederico Chagas o empréstimo das pastas do processo para eu fazer uma cópia. A todos eles deixo registrado, mais uma
280artigo | Juliana Farias | Zona de tatuagem: um carimbo do estado no corpo do faveladoRev. antropol. (São Paulo, Online) | v. 62 n. 2: 275-297 | USP, 2019familiares, perito e defensor. Respondendo à pergunta feita anteriormente por Frederico Chagas, Dr. Saul explicou que essa marca, cujo termo correto seria zona de tatuagem, “é necessariamente produzida a tiro de curta distância”, ratificando a afirmação através de uma espécie de demonstração sobre como, a partir de um tiro que atingiu a cabeça, foi possível a formação da zona de tatuagem no braço da vítima. Dr. Saul solicitou que João Luiz se posicionasse de joelhos no chão, com as duas mãos na cabeça, como se estivesse rendido – posição na qual provavelmente encontrava-se Emanuel, no momento em que foi atingido, como argumentava o perito. A explicaç&a tild e;o técnica teve sequência a partir da simulação da posição na qual se encontrava o fuzil: Dr. Saul demonstrou como a extremi-dade final do cano deveria estar próxima à parte de trás da cabeça, lembrando que os fuzis utilizados pelos policiais militares possuem eventos laterais, através dos quais, no momento do disparo, são expelidos grânulos da pólvora que, em contato com a superfície da pele, produzem a marca caracterizada como zona de tatuagem. Daí a dedução de que Emanuel deveria estar com as mãos na cabe-ça, pois essa é a posição sugerida pela presença da zona de tatuagem no braço esquerdo da vítima. Após essa espécie de ‘reconstituição da cena do crime’ ali na sala do defensor Chagas, João Luiz deixou a posição de joelhos na qual perma -nece u durante toda a explicação, sentou-se novamente na cadeira que ocupava e a conversa seguiu. Ao final do encontro, perito, defensor e familiares já haviam chegado a um acordo quanto à anexação do parecer técnico-científico ao processo.Trago para esta reflexão o mesmo destaque que teve durante o encontro entre os familiares, o perito e o defensor essa marca específica encontrada no corpo de Emanuel: registrada na descrição acima como orla de tatuagem (mas tratada como zona de tatuagem nos estudos sobre traumatologia médico-legal), tal marca “é produzida pelos grânulos de pólvora, queimada ou não que, par-tindo com o projétil, percutem o contorno do orifício de entrada e se incrustam mais ou menos profundamente na região atingida.” (Fávero, 1991)8. No caso de Emanuel, a zona de tatuagem aparece assinalada nos esquemas que c omp&ot ilde;em o laudo cadavérico através da anotação da letra “T”, realizada à mão.Ressalto que a importância atribuída a essa marca durante a reunião na Defensoria Pública está diretamente conectada aos encaminhamentos do caso que ela tem o poder de determinar. A justificativa do NUDEDH, por exemplo, para solicitar ao delegado responsável pelas investigações que fossem colhidos depoimentos de todos os policiais militares que participaram da operação foi também a presença da zona de tatuagem no esquema de lesões do laudo:Conforme consta do Laudo de Exame de Necropsia IMLRJ[inscrição], a vítima foi atingida mortalmente por PAF na região occipital, apresentando “ORLA DE TATUAGEM” no membro superior esquerdo, evidenciando disparo à curtíssima vez, um agradecimento sincero por sua interlocu&c cedil;ão e pela confiança depositada em meu trabalho. Para a elaboração deste texto, o nome da favela foi substituído por nome fictício, assim como os nomes das vítimas fatais e de seus respectivos familiares; as datas (mês e ano, especificamente) do episódio também sofreram modificações; por fim, foram substituídos também os nomes dos profissionais ligados a outros órgãos estatais envolvidos com os processos judiciais de cada caso. Registro também meus agradecimentos à Rede contra Violência, movimento social junto ao qual construí o projeto de pesquisa que resultou neste trabalho.8Há variação nas definições da zona de tatuagem em relação à presença de pólvora combusta. Alguns especialistas mencionam apenas o efeito produzido pela incrustação de gr& acirc;nulos de p ólvora incombusta, como é o caso do perito independente que acompanha o caso do Morro do Russo aqui abordado. Tal forma de definição assemelha-se à de Greco (2013), para quem a zona de tatuagem decorre da “incrustação de grânulos e fragmentos de pólvora não combusta pelo disparo na região atingida, não sendo removível”. Já de acordo com o estudo de Eisele e Campos (2003), a zona de tatuagem “é composta por partículas de carvão (pólvora combusta) e de grânulos de pólvora incombusta, dispersas em torno do orifício de entrada, de bordas deprimidas, cujo diâmetro cresce progressivamente até perder-se a energia cinética de cada corpúsculo, assim como a aceleração de que está animado.”
281artigo | Juliana Farias | Zona de tatuagem: um carimbo do estado no corpo do faveladoRev. antropol. (São Paulo, Online) | v. 62 n. 2: 275-297 | USP, 2019distância, o que descaracteriza, de pronto, qualquer possibilidade de confronto entre policiais e supostos traficantes, alegação esta comuníssima por parte das forças policiais quando o objetivo é camuflar execuções.9A anotação “T”, ao indicar a localização da zona de tatuagem, demarca a posição na qual se encontrava a vítima no momento em que foi atingida, encaminhando a investigação do homicídio de Emanuel para uma direção diferente daquela sugerida pelo registro de ocorrência realizado na delegacia da região pelos policiais que participaram da incursão em pauta. No entanto, a crítica do perito independente convocado pela família de Emanuel , enfatizou que a anotação desacompanhada de um correto preenchimento do laudo, ao invés de revelar dados importantes a respeito daquela morte, estaria ocultando-os. Daí a pro-posta de realizar o parecer técnico-científico.Tal parecer começou a ser produzido quando o processo já estava em anda-mento, mas como é permitido que ambas as partes apresentem documentos em qualquer fase do processo, após as negociações entre os familiares de Emanuel, Dr. Saul e Frederico Chagas10, decidiu-se pela juntada do estudo ao processo. Como antecipei anteriormente, todos os presentes na reunião dedicaram aten-ção especial a uma anotação nos esquemas do laudo cadavérico de Emanuel, a tal zona de tatuagem. Sua existência no corpo da vítima e, mais especificamente, seu adequado registro no laudo cadavérico somado às informações acerca da entrada e da saída do projétil, são informações capazes de comprovar que o tiro fatal foi dado pelas costas e à curta distância.Informações que, segundo o perito legista convocado pelos familiares, deve-riam aparecer articuladas na continuidade do preenchimento do laudo cadavé-rico no momento da perícia no IML, através da seção do laudo reservada para as respostas aos quesitos, constituída de cinco perguntas, que reproduzo aqui com as respectivas respostas preenchidas no documento relativo à vítima Emanuel:Houve morte? SIM.Qual foi a causa da morte? FERIMENTO TRANSFIXIANTE DE CRÂNIO COM LESÃO DE ENCÉFALO.3) Qual foi o instrumento ou meio que produziu a morte?AÇÃO PÉRFURO-CONTUNDENTE.4) Foi produzido por meio de veneno, fogo, explosivo, asfixia ou tortura, ou por outro meio insidioso ou cruel (resposta especificada)? SEM ELEME N TOS PARA RESPONDER POR DESCONHECER A DINÂMICA DO FATO.9Requerimento enviado pelo NUDEDH à DP na qual seguiam as investigações.10Nesta seção refiro-me a Frederico Chagas também como “o defensor”. Por se tratar de um dos defensores que atua enquanto assistente de acusação do caso, não pode ser confundido com o defensor público que atua na defesa dos policiais acusados. Para evitar mal entendidos, utilizo o termo “defesa” para me referir à defesa dos réus, sem apresentá-la através do profissional que a desempenha. Sobre essas atuações da defensoria pública durante o júri, ver Vianna e Farias (2011).
282artigo | Juliana Farias | Zona de tatuagem: um carimbo do estado no corpo do faveladoRev. antropol. (São Paulo, Online) | v. 62 n. 2: 275-297 | USP, 20195) Outras considerações objetivas relacionadas aos vestígios produzidos pela morte, a critério do Senhor Perito Legista.SEM OUTRAS ALTERAÇÕES. (sic)Segundo as explicações de Dr. Saul para os familiares e o defensor, apesar da re-ferência à zona de tatuagem na descrição da necropsia e a indicação da marca no esquema que compõe o laudo cadavérico, a forma como os cinco quesitos foram respondidos prejudicam de forma concreta a investigação do caso, como fica explícito através do trecho do parecer técnico-científico produzido posterior-mente. A crítica desse profissional ao trabalho realizado no IML Afrânio Peixoto acompanha a ideia de que há situaç&a mp;o tilde;es em que o perito não vê e o que vê não descreve (recuperando uma passagem da explicação durante a reunião no NUDEDH). O posicionamento do perito convocado pelos familiares de Emanuel poderia ser resumido com outra frase que anotei no meu caderno de campo – o problema do laudo é que é um somatório de incompetências – no entanto, vale complementar a argumentação com a versão formal (e técnica) da crítica:Quando o perito legista não encontra sinais cadavéricos que expressem o emprego de “veneno, fogo, explosivo, asfixia ou tortura ou outro meio insidioso ou cruel”, resta absolutamente errôneo prejudicar o QUARTO QUESITO, sob a alegação de “PREJUDICADO”, ou “SEM ELEMENTOS DE CONVICÇÃO PARA RESPONDER”, ou “SEM ELEMENTOS POR DESCONHECER A DINÂMICA DO EVENTO&rdquo ;, ou mes-mo, como se pode ler no Laudo de Exame Cadavérico em comento, “SEM ELEMEN-TOS PARA RESPONDER POR DESCONHECER A DINÂMICA DO FATO”. Ora, se o perito quer ter informações sobre a dinâmica do evento, ele poderá solicitar ao delegado de polícia que preside o inquérito policial, ou mesmo ao INSTITUTO DE CRIMINALÍSTICA CARLOS ÉBOLI, informações sobre a Perícia de Local de Crime. E, ainda, quando o cadáver provém de unidade hospitalar, solicitar informações hospi-talares, sobre o atendimento prestado, ou, no caso de morte no ingresso da unidade hospitalar, o que foi evidenciado pelos médicos. E, como vimos, o perito legista inde-pende de informações adicionais, de Local de Crime, para afirmar ou negar se houve emprego de “VENENO, FOGO, EXPLOSIVO, ASFIXIA OU TORTURA OU OUTRO MEIO INSIDIOSO OU CRUEL”. [...] Em suma, “ PREJU DICAR” a resposta ao QUAR-TO QUESITO é pura tergiversação capaz de deixar pairarem dúvidas inaceitáveis sobre os fatos, que obrigatoriamente têm de ser determinados por meio de um Exame Cadavérico corretamente realizado, o que trará prejuízos para o processo penal. Respondê-lo corretamente é dever de ofício do perito legista. (sic)11Nesse parecer técnico-científico, o foco da crítica do perito legista acionado pelos familiares de Emanuel não se prende à maneira de responder o quarto 11Trecho do laudo de exame de necropsia de Emanuel, produzido no Instituto Médico Legal Afrânio Peixoto, no dia seguinte a sua morte.
283artigo | Juliana Farias | Zona de tatuagem: um carimbo do estado no corpo do faveladoRev. antropol. (São Paulo, Online) | v. 62 n. 2: 275-297 | USP, 2019quesito – ao contrário, espalham-se pelas páginas do estudo apontamentos sobre cuidados que não foram tomados e que, da mesma forma que ocorre com a resposta ao quarto quesito, acabam deixando “dúvidas inaceitáveis sobre os fatos”. Dessa lista, destaco mais dois exemplos: 1) a ausência de uma mensura-ção completa das duas feridas por PAF (projétil de arma de fogo) – mensurações imprescindíveis para a estimativa do calibre do projétil (para conferir se o calibre coincidia ou não com os calibres das armas utilizadas pelos policiais durante a “operação”) e que, vale ressaltar, deveriam acontecer através da utilização de ins-trumentos de medição esp ecíficos, como o paquímetro digital ou mesmo uma régua milimetrada; 2) a ausência de descrição da forma da ferida de entrada do projétil – que, segundo o estudo, poderia esclarecer a trajetória do projétil, dado que poderia ser utilizado para inferir em que posições estavam atirador e vítima.Justapondo-se, portanto, à porção “visível” do preenchimento do laudo, per-cebe-se que há uma série de perguntas a serem respondidas pelo perito que não estão impressas no documento (da forma como estão os cinco quesitos citados anteriormente). Se somássemos as perguntas não impressas (e não respondi-das) às perguntas impressas com respostas incompletas, poderíamos compor uma lista considerável de ausências nesse laudo cadavérico – ausências que correspondem a informa & ccedil;ões que não foram registradas no devido documento pelo profissional capaz de fazê-lo, ou seja, informações invisíveis aos olhos dos não especialistas.Esse tipo de produção do laudo cadavérico pode ser entendido, então, como um procedimento orientado por uma espécie de negativo da revelação, não por-que esconde informações, mas porque revela a força de um indizível burocrático, porque explicita a intimidade do especialista com uma economia de palavras em um documento crucial para o prosseguimento de investigações, para o encaminhamento de acusações, para o tratamento jurídico/legal de violações e crimes de estado. Aqui reside, portanto, o caráter de (i)legibilidade dessa docu-mentação, nos termos trabalhados por Das e Poole (2004) em suas reflexões sobre proc essos de construção e de reconstrução do Estado através das suas práticas de escrita – (i)legibilidade que pode ser compreendida, ainda, através da chave interpretativa de que governar é também não fazer, conforme sugerem os trabalhos de Vianna (2002) e Lugones (2012).Seguindo a chave analítica proposta por Das e Poole (2004), o problema da (i)legibilidade da documentação do Estado é encarado como uma das bases de consolidação do controle estatal sobre populações, territórios e vidas. Os opos-tos legibilidade/ilegibilidade abrem espaço para possibilidades de interpretação pautadas por contrastes e/ou escalas do visível e do legível, como no caso dos desdobramentos de leitura do laudo a partir da zona de tatuagem aqui discutida.
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