AS ENTRANHAS DO GIGANTE E A SOCIOGÊNESE DO GOLPE

POR SYLVIA ROMANO APOIADA POR Thiago Panica Pontes Não permita que as questões públicas em sua formulação oficial, ou as dificuldades da maneira em que são experimentadas em âmbito privado, determinem os problemas que você acolhe em suas investigações. Sobretudo, não abdique de sua autonomia moral e política pela aceitação, nos termos de outrem, da praticalidade iliberal do ethos burocrá tico ou da praticalidade liberal da fragmentação moral (C. Wright Mills, The sociological imagination, p. 226). RESUMO O propósito desse ensaio consiste em reconstituir a sociogênese do golpe de Estado desfechado em 2016 no Brasil a partir de sua dinâmica de classes e das marcas do processo modernizador que encarna. Num primeiro momento, vi sando evitar o simplismo interpretativo bastante comum em eventos dessa magnitude, será realçada a complexidade da configuração sistêmica e insti tucional envolvida – que enfeixa, por exemplo, o espaço objetivo de possíveis e os efeitos não previstos da ação do Estado, assim como os limites que comprimem a “ascensão” popular numa economia periférica de serviços. Assim, estaremos em melhores condições de compreender que o movimento conservador que progressivamente emerge, com nítidos aspectos reacionários e autoritários, deriva sua força e a natureza transfigurada da consciência que paulatinamente assume, menos de uma ‘manipulação’ artificial do que do real compartilhamento de condições existenciais mais amplas que os solidariza em momentos de crise. Por fim, serão tecidas algumas consi derações sobre as classes populares, e o sentido de sua condição dominada diante do desenlace dos acontecimentos, assunto habitualmente omitido nas a nálises sobre a recente ruptura institucional. Palavras-chave: Golpe de Estado. Modernização conservadora. Classes sociais. Crise estrutural. Introdução Os esforços para a compreensão da emergência e da natureza histórica dos processos de modernização con servadora e autoritária, típicos mas não exclusivos das formações sociais periféricas, como é o caso do Brasil, estão longe de serem novos nas ciências sociais brasileiras, com muitas dessas contribuições se revelando inestimáveis. O atual momento histórico, contudo, não recoloca apenas antigas questões sob novas formas, como que sempiternamente reproduzindo, sob mudança apenas de aparência, uma suposta essência ahistórica. Com efeito, a ruptura do ordena mento democrático testemunhada em 2016, classificada algumas vezes c omo “golpe parlamentar” (e.g. SANTOS, 2017), “branco” (BOITO JR., 2016), “brando” (o soft coup de Chomsky), “institucional”, “jurídico-midiático” (em oposição ao clássico golpe pela via militar), mas sobretudo o tecido sociocultural mais amplo no seio do qual essa ruptura institucional encontra o solo vivo do qual emana, revelam que o caráter conservador e autoritário de nossa modernização está longe de se resumir ao escopo do Estado, dos grupos e classes dominantes (e.g. a hegemonia do patronato rural em relação ao urbano-industrial, a dependência deste em relação ao Estado), ou mesmo – aquilo que é sociologicamente mais sofisticado – do nexo sistêmico estabelecido entre ambos. Melhor dizendo, a origem deste caráter de nossa modernização, politicamente autoritária, cul turalmente conservadora e economicamente desigual, na 29 Esse artigo é fruto de apresentação realizada no seminário “O golpe de 2016 e o futuro da democracia no Brasil”, em Junho de 2018, na UFPE. Agradeço às organizadoras do seminário, professoras Fatima Cruz e Liana Lewis, assim como ao Comitê contra o fascismo e pela demo cracia-UFPE, a coragem pela iniciativa em face ao neo-obscurantismo que emerge do “Brasil profundo”, tornando o país vanguarda do neoconser vadorismo global que se expande de leste a oeste, das Filipinas aos EUA.35 verdade, não pode ser compreendida sem a indispensável consideração de sua sociogênese escravagista – evocada na provocativa mas heurística classificação do golpe como um “slavers’ coup” feita pelo historiador Greg Grandin (2016) –, não enquanto “sobrevivência& amp;rdqu o; passadista ou “atraso” disfuncional a bloquear a via para o moderno, e sim, o que é decisivo, na medida em que ela se entranha enquanto força sistêmica funcionalmente catalizadora da dinâmica expansiva e conformadora da fisionomia assumida por nosso processo modernizador ao longo de todo o decurso do séc. XX. E assim o faz de maneira pervasiva em nossa formação social, lhe atravessando desde as instituições tidas como as mais autônomas em seu universo procedimental (e.g. a esfera jurídica ou mesmo a policial) até a experiência vivida mais ‘natural’, estruturando nossa sociabilidade cotidiana, colonizando as distintas tradições culturais que per meiam nosso imaginário nacional (com tudo aquilo que ele inclui explicitamente, sublima transfiguradamente e repele sub-repticiamente), não se reproduzindo sistemicamente, portanto, sem deixar sua marca nos aspectos mais íntimos de nossa constituição subjetiva. Essa sedimentação de nossa história, tanto em seu aspecto objetivo sob a forma de padrões institucionais e es truturais, como em sua manifestação subjetiva enquanto experiência vivida sob a forma de estruturas de percepção da vida, classificação do mundo e avaliação tácita do que é belo, bom e justo, do que é “ideológico” e do que é “natural”, se dá de forma transfigurada, no sentido próprio a Freud, Elias e Bourdieu, i.e. enquanto denegação irreconhecível em suas conexões originárias, o que é condição absoluta de sua eficácia e perpetuação. Isso se reflete, por exemplo, no profundo desconforto nas ocasiões em que tais conexões históricas sã ;o simplesmente tematizadas, desconforto interpessoal que arrisca, quando assume a esfera pública, erodir o imaginário socioafetivo que cimenta nosso senso comum – lembremos de sua origem etimológica enquanto sensus communis, no sentido de “senso comunitário” – e a constelação de valores que estrutura nossa identidade nacional, razão pela qual elas são regularmente recalcadas pela história oficial (jurídica, parlamentar, militar, religiosa,...), no limite silenciadas com força de lei (pelo alastramento de projetos regionais batizados insidiosamente de “Escola sem partido”, pela intervenção do Ministério Público ar ticulado ao investimento persecutório policial nas universidades, etc.), ou dito de forma mais clara, pela lei da força. Ora, os momentos de crise, principalmente quando ela não é apenas conjuntu ral, como & eacute; o caso do atual momento histórico, ancorado que se encontra num realinhamento conservador e autoritário constituído pelo (re)encontro entre velhas e novas forças sócio-históricas, se manifestando, por conseguinte, num âmbito estrutural, indissociavelmente econômico, político, social, estético e moral, em suma, esses momentos são justamente os mais profícuos à tentativa de diagnósticos que desemaranhem os fios sócio-históricos que a desencadeiam, fios cujas conexões e tensões consti tutivas é preciso clarificar caso não queiramos continuar a encarnar Sísifo diante de nossa própria história.30 Essa crise pode, e deve, ser investigada a partir de um conjunto de perspectivas articuladas e complementares (histórica, econômica, política, inserindo o Brasil no contexto dos recentes golpes e realinhamentos latino-americanos estruturalmente homólogos, ou ainda como instância particular da atual fisionomia neoconservadora da mundialização, com o crescimento e fortalecimento da extrema direita sendo indissociável da chamada “crise de representatividade” contemporânea,31 ou enfatizando o papel de atores como o judiciário – não somente a judicialização da política como a politização da justiça –, a atuação dos meios de comunicação de massa, da virulência afetiva e em grande medida irracional presente nas redes sociais, etc.). E o que pretendemos nesse artigo sobre o golpe de Estado de 2016, prin cipalmente a partir do tecido social no qual se insere, é reconstituir sua sociogênese da perspectiva particular, mas 30 Esta proposta vai ao encontro da colocação de Wanderley G. dos Santos (2017, p. 46) , nos termos da qual “trata-se de investigar os me canismos operadores do processo substancial que, embora suscetíveis aos eventos de conjuntura, seriam capazes de funcionar em contextos con tingentes alternativos. As tentativas de 1954 e 1964, essencialmente estruturadas de maneira semelhante, se precipitaram em circunstâncias que, fortuitas em grande parte, condicionaram o fracasso em uma e a vitória em outra. Abstratamente, é possível classificá-las como exemplares do mesmo tipo de fenômeno, não obstante o desfecho diferente nos dois casos.” 31 Ou do que alguns classificam de “Estado pós-democrático” (CASARA, 2017).36 particularmente importante, de sua dinâmica de classes, justamente por nos remeter à significação ao mesmo tempo histórica e estrutural subjacente ao profundo tensionamento nas relações de força materiais e simbóli cas dos anos que , não por acaso, antecederam a crise econômica, social, cultural e política cujo golpe não representa senão a culminância institucional. Ação estatal, “ascensão” popular e espaço objetivo de possíveis32 Boa parte dos pesquisadores que se debruçam sobre a ruptura institucional ocorrida em 2016, com a consequente assunção do poder de um candidato que representa e simboliza um regresso às forças sociais e morais hegemônicas no país durante a maior parte do séc. XX, delimita como escopo, ao mesmo tempo histórico e analítico, as mobilizações de 2013 como marco inicial de tal momento e as eleições de 2018 como seu resultado, ainda que certamente não pre visto e não necessariamente contido naquele início, dada a heteromorfia de forças que ali se apresentavam. Embor a de inegá vel importância, esse marco temporal se restringe a uma compreensão meramente conjuntural desse feixe de acontecimentos. Outro reducionismo que se mostra corriqueiro é o de cunho institucionalista – para não dizer ‘esta docêntrico’ – em grande parte das análises que restringem seu olhar ao período em que o Partido dos Trabalhadores ocupou o poder, pelo que se assume implicitamente que o único agente relevante, e por conseguinte o único movimento e força social em jogo, tenha sido o Estado. Desconsidera-se assim os limites objetivos que se antepõem ao alcance e às margens de ação do poder estatal enquanto injunções estruturais condicionantes de suas possibilidades, assim como aqueles desencadeados pelas consequências não previstas de suas ações, a fortiori em formações sociais complexas, contem porâneas, e crescentemente entrelaçadas ao processo de mundialização. É, com efeito, sobre essa condição histórico-estrutural que incide, e a partir de suas próprias contradições e desenvolvimentos cumulativos que emerge, uma confluência de inflexões, de força e temporalidade relativamente autônomas, mas que constituem o espaço de possíveis no seio do qual é preciso ressituar, em sua significação históri ca e em seus limites objetivos, o conjunto de reformas conduzidas pela ação estatal a partir das eleições de 2002. Se por um lado é preciso ter em conta que essas inflexões não representam de modo algum uma ruptura com o padrão conservador de modernização predominante no país, originando-se, pelo contrário, das contradições inerentes à su a dinâmica e xpansiva, por outro, é preciso reconhecer que seus efeitos são de grande importância, além de indissociáveis do que ocorre no conjunto das formações sociais periféricas na atual intensificação do processo de mundialização. É nessa dinâmica mais ampla que se torna inteligível o movimento, não de contrarrevolução, e sim, mais propriamente, de contrarreforma total, que atravessa os domínios cultural, econômico e político, cada um retroalimentando sua força de todos os outros aos quais, por sua vez, imprimem sua própria ‘contribuição’ específica. É assim que a bem documentada, embora mal compreendida, “ascensão” popular registrada desde então ocorre ancorada numa reestruturação produtiva do capitalismo mundial em cuja estrutura ocupac ional passa a predo minar, em detrimento do setor industrial que continua transferindo-se para o sudeste asiático, cada vez mais uma economia de serviços, mais heterogênea em sua constituição, precarizada tanto em seus vínculos como em sua regulação, fragmentada em suas experiências laborais como individualizante em seu horizonte de expectativas. Não por acaso, a geração da historicamente inédita e gigantesca massa de postos de trabalho que se seguiu ao governo do Partido dos Trabalhadores 32 Esse tópico tem como base alguns aspectos discutidos em minha tese doutoral (PONTES, 2015) onde os argumentos aqui em questão são desenvolvidos, em seu terceiro capítulo, com mais pormenor. Não há espaço, e não é o caso, de reproduzir aqui a massa de dados bibliográficos, históricos e estatísticos em que se apoia, e que de t odo modo se encontra , em caso de interesse do leitor, extensamente detalhada na referência indicada.37 ocorreu, sobretudo, entre os assalariados do comércio e dos serviços, que juntos empregaram consideravelmente mais, por exemplo, do que a construção civil. Isso significa que, se do nacional-desenvolvimentismo aos estertores da crise econômica e fiscal do regime militar, prevalecia o que se convencionou chamar nos estudos de estratificação social de composição estrutural no padrão de mobilidade, vinculada essencialmente à transição para uma economia urbano- -industrial e à expansão do leque ocupacional que lhe corresponde, por outro lado, a partir da década de 1980 quando se inicia a transição para um capitalismo cujo núcleo dinâmico é impulsionado pelos serviços, processo intensificado pelo projeto neoliberal da décad a seguinte, passa a s e verificar um aumento relativo da chamada composição circular (ou de fluidez) no padrão de mobilidade em comparação à antiga composição estrutural, que lhe cede gradualmente o passo. Não obstante as mobilidades moleculares que ocorrem no interior dos próprios meios populares e de suas fron teiras, e sobre cujo dinamismo erigiu-se o impulso nacional-desenvolvimentista, continuarem como o padrão objetivo estruturante dos movimentos de nossa formação social ainda na atualidade, intensifica-se com essa inflexão – o que é deveras importante para a crise que atravessa nossa formação social – o caráter agonístico presente na cultura e na estrutura do mundo do trabalho. A outra razão que concorre para a intensificação desse caráter agonístico se vincula à expansão da institucio na lidade escolar, imp ulsionada pela combinação de imperativos estatais (compulsoriedade crescente tanto em termos de precocidade como de longevidade) e de mercado (competitividade do mercado laboral contemporâneo e seus requisitos funcionais intrínsecos), inclusive de maneira crescente, e crescentemente prolongada, nos meios populares – a despeito de seus inúmeros e conhecidos problemas estruturais –, desde pré-escolas, incluindo a tendência à universalização do acesso ao ensino fundamental e o considerável aumento da participação no ensino médio no decurso da década de 1990, até a significativa entrada no ensino superior a partir dos anos 2000. A significação sociológica de uma tal inflexão se dá por seu incontornável impacto, enquanto matriz institucional de socialização (irredutível e no mais das vezes conflitante ante a experiência vivida familiar e comunitária), na conformação subjetiva e no alargamento dos horizontes ascensionais próprios às novas gerações populares, contribuindo, ademais, para a formação de uma narrativa identitária meritocrática e de uma nova atitude perante a vida que, não mais restritas às condutas do cinturão médio e dominante, são indissociáveis do novo papel desempenhado pela escolarização enquanto capitalização concorrencial de classe, além de possuírem profundas afinidades com a expansão do capitalismo de serviços e da transição ao men cionado padrão de mobilidade que se lhe encontra objetivamente inscrito. Ora, o alargamento desses horizontes e aspirações ascensionais, processo tanto mais perceptível quanto mais novas as gera ções popu lares, embora vinculado sobretudo à participação no ensino superior, é em grande medida co letivamente frustrado em razão da correlativa, e compensativa, intensificação dos investimentos escolares nas frações médias e grupos dominantes, pelo que se verifica, em termos estruturais, não uma diminuição mas um deslocamento das desigualdades iniciais para um patamar superior, efeito da inflação de diplomas em todas as categorias ocupacionais (das altas funções diretivas e gerenciais às trabalhadoras domésticas e trabalhadores rurais). Assim, na consolidação desse novo capitalismo de serviços periférico (com sua especialização regressiva associada à desindustrialização), a conjunção entre, por um lado, a maior apropriação de capitais econô mico e cultural pelas ge rações populares mais jovens, e, por outro, a massiva geração de postos de trabalho na primeira década dos anos 2000, longe de significar o soerguimento de uma “nova classe média” – alarido oficial, de mercado e difundido pela “opinião pública” (a afa mada “classe C” nos termos do marketing que infelizmente também colonizou acriticamente o discurso de muitos cientistas sociais) –, resultou na expansão, adensamento e complexificação da própria massa assalariada que constitui a base da estrutura social, razão pela qual foi ocupada, em sua grande maioria, pelas categorias historicamente mais vulneráveis: negros e mulheres.38 Em suma, estes estritos limites objetivamente inscritos no espaço de possíveis ascensionais para além dos meios populares, cujo peso se faz sentir conforme nos aproxima mos das ocupaç&oti lde;es concentradas nas camadas médias e do poder emanado pelas posições dominantes, sinalizam o alcance, mas também os limites, do afastamento da privação material impulsionado pelos programas de transferência de renda, pela expansão do crédito, e, em medida estatistica mente muito mais impactante, pela política de valorização do salário mínimo (que, por sua vez, serve de empuxo aos auxílios previdenciário e de assistência social) articulada à volumosa geração de postos de trabalho formais no seio das categorias ocupacionais na base da estrutura social –principalmente de 2004 a 2010. E, como veremos adiante, sinalizam também o alcance e os limites da reorientação da política econômica em particular, e da economia política em geral, por meio da qual tanto o PIB como a ren da per capita cresceram no mes mo passo em que se descomprimia a desigualdade econômica, tanto aquela verificada no interior dos rendimentos (oriundos do trabalho) como de sua distribuição funcional (que distingue estes rendimentos daqueles provindos do capital), movimento não verificado em meio século de registros estatísticos até então e que apontava para a possibilidade, rapidamente desfeita por meio do golpe, de desvinculação estrutural entre a expansão do capitalismo periférico daquilo que havia sido, historicamente desde sempre e até então, a principal “vantagem comparativa” para sua inserção na economia mundial, i.e., a subpro letarização de suas classes populares numa dimensão e duração endêmicas. Das fissuras ao abalo na “ordem”: uma secular comunidade de desiguais Se, por um lado, essa “ascens& atilde;o popular”, no sen tido acima caracterizado, ocorre tendo como pano de fundo uma transição histórico-estrutural mais ampla a qual, englobando politicamente a recondução do aparelho de Estado a partir do governo do Partido dos Trabalhadores, o ultrapassa sob a forma de injunções estruturais que limitam o sen tido e o alcance de suas ações, ela lhe ultrapassa também quantos aos seus efeitos não previstos, e por conseguinte no subsequente desencadeamento de forças, contraforças e realinhamentos que, tanto em si mesmos quanto pelo choque de sua diversidade, não correspondem com exatidão ao planejamento de nenhum agente individual ou coletivo par ticular, precisamente por resultarem da infinita complexidade de suas interações. Não incidindo sobre uma estrutura social vazia, essa nova condição popular tensiona relacionalmente o sedimentad o e naturalizado amálgama de cliva gens (econômicas, de oportunidades, educacionais, raciais, de gênero, etc.) inerente a nosso processo modernizador.39 É nesse sentido que a “reforma gradual” por meio do “pacto conservador” – conquanto incluísse seu momento de confrontação no que diz respeito ao rentismo (SINGER, 2015) – vigente sob a égide dos anos de governo do Partido dos Trabalhadores engendrou, para além do controle de sua agenda institucional, o despertar e a emergência de novos anseios, uma ampliação quantitativa e qualitativa do leque de expectativas não apenas econômicas como políticas e culturais (como o fortalecimento da política identitária vinculada às relações raciais, de gênero e sexualidade) e suas reivindicações de reconhecimento social e participação na esfera p ública, inclusive legisla tiva. Esses fatores, em maior ou menor medida conforme o caso, levaram gradualmente ao estranhamento e ao incômodo não somente das clases médias tradicionais33 (cf. Figura 1) como, na verdade, também de imensa e cada vez maior parcela dos próprios segmentos populares34 cujas forças institucionais de conformação narrativo-identitária foram, em grande medida, apropriadas pela religiosidade “evangélica” (mais ampla que o neopentecostalismo) assim como pela socialização e investimento escolares, numa tendência proporcionalmente inversa à crescente corrosão da capacidade do novo mundo do trabalho em fornecê-las (com a permanência de sua baixa filiação sindical e suas altas taxas de rotatividade, estas últimas expansivas inclusive durante o governo do Partido dos Trabalhadores). 33 Como no caso de eventos como o “rolezinho” a parti r de 2013 que, não nos enganemos, é um desafio juvenil-popular lançado a um am biente experienciado como hostil, razão essencial de seu caráter ao mesmo tempo coletivo e provocador; da maior proximidade residencial – in clusive pela ‘gentrificação’ resultante da especulação imobiliária – associada à saturação dos meios de transporte público; da coexistência maior em espaços antes exclusivos e ‘familiares’ – reverberada visceralmente nos infindáveis comentários compartilhados em redes sociais sobre o cres cente incômodo em aeroportos, mas também no trânsito, em universidades, cinemas, restaurantes, hotéis, hospitais particulares, etc.; do relativo deslocamento de seu secular protagonismo simbólico para novos agentes sociais que passam a ser alvo de cresc ente atenção pol&iac ute;tica, midiática, da indústria cultural, e da proliferação de nichos comerciais e agências de marketing especializadas; do aumento da importância do nordeste no cenário nacional, assim como de um afastamento do alinhamento geopolítico “natural” aos EUA se refletindo numa atuação mais autônoma nas relações exteriores e no deslocamento da ênfase diplomática para as chamadas relações “sul-sul” (e o fortalecimento das agências multilaterais entre os países latino-americanos ou emergentes), etc., etc. 34 Como, por exemplo, diante das famosas cartilhas do MEC de combate à homofobia (classificadas pejorativamente como “kit gay”), da chamada “ideologia de gênero”, da percepção do que seria um ataque aos valores cristãos como a “fam&iacut e;lia”, o “casamento” e a “vida” (em contra posição à defesa dos “direito dos mano”, i.e. de “bandidos” e “criminosos”), do fortalecimento do resgate político-identitário da afrodescendên cia, inclusive em sua dimensão religiosa, associado à expansão da atuação política pró, e por, minorias com os leques de valores e reivindicações que lhes são próprias, via de regra consideravelmente mais “à esquerda” do que a própria atuação governamental embora com ela associada no imaginário reativo que daí emerge. E, consoante às inflexões sistêmicas a que fizemos referência, essa reatividade também se revela na cada vez mais contundente condenação de políticas de transferência de renda pelas gera&cced il;ões populares mais jovens e e scolarizadas, interpretadas como “esmola” para quem “não corre atrás” (inclusive no seio da própria família), em contraposição à valorização do “esforço”, do “suor” e do “mérito” individuais que se entrelaçam, não sem agudas tensões, à ampliação da constelação de valores pautados no florescimento das relações familiares e comunitárias (PONTES, 2015).40 Figura 1 – O deslocamento material e simbólico da “velha classe média” “Pensem no trauma que vem sofrendo a velha classe média” O estranhamento ante a emergência de novas forças sociais, intensificado pela percepção da perda do monopólio do acesso aos bens e oportunidades materiais e ao protagonismo si mbólico, é expresso de for ma bastante heurística, tanto em sua denegação eufemizada como no indisfarçável ressentimento de classe que emana da combinação entre condescendência e sarcasmo, na coluna de um tradicional jornalista de O Globo, que torna-se tão mais significativa por haver sido publicada em 2012, atestando um sentimento de mal-estar que, em conjunção com outros fatores, esteve na base do rumo que assumiram as manifestações de 2013 e os anos seguintes. Os grifos são nossos. Baú do Xexéo “Não gosto de axé. Nem de pagode. Nem mesmo de sertanejo universitário. Por isso, não custa nada perguntar: dá para tocar outra coisa? Como qualquer brasileiro, me orgulho muito da nova classe média e dos oito milhões de conterrâneos que chega ram à sociedade de consumo nos últimos tempos. Con sumo para todos! Mas, veja bem, para todo s, o que inclui a velha classe média. É democrático o fato de voos comerciais poderem ser pagos em 17 vezes. Mais gente viajando, mais gente fazendo turismo, nem me incomodo com os aeroportos superlotados. Mas, vem cá, dá para variar o cardápio? Ou vou ser obrigado a comer barrinha de cereal para o resto da vida? Alguém já perguntou se a velha classe média gosta de barrinha de cereal? Eu não gosto. Dá pra sair um sanduíche de queijo com suco de laranja? Pela primeira vez na história deste país, a classe média representa mais da metade da população. Foi preciso a ascensão da classe C para que isso acontecesse. Políticas de pleno emprego, aumento de salário, facilitação do cré dito, projetos sociais – tudo deve ser saudado, mas, por favor, pensem no trauma que vem sofrendo a velh a classe média. Cresci aprendendo q ue profissão para valer era engenheiro, médico ou advogado. Se o sujeito não tivesse aptidão para uma dessas três categorias, tentava um concurso para o Banco do Brasil ou para a Caixa Econômica. Agora, todos gritam no meu ouvido: empreendedorismo! O certo seria ter aberto um salão de beleza, um serviço de comida pronta, uma padaria... Tarde demais! Ensinaram-me a fechar o mês sem contas a pagar. Agora, o governo me alicia: Crédito! Crédito! Crédito! E eu não quero comprar uma TV de plasma, nem um segundo telefone celular, nem quero passar férias em Porto Seguro. Na verdade, estou pensando em vender o meu freezer, o meu forno de microondas e a minha secretária eletrônica. Tornei-me um estranho no ninho. Sou da velha classe média. A nova classe média virou objeto de pesquisa de tudo aqui no Brasil. Tem marca de eletr&ocir c;nicos que produz apare lhos especialmente para os novos consumidores. A tal marca descobriu que “o consumidor da classe C ama música em alto volume. O lazer se concentra nos churrascos de fim de semana, onde ocorre a confraternização. O aparelho de som é o elo entre os familiares e os amigos. Nasceu assim o primeiro minisystem para a classe C, cuja caixa de som tem potência três vezes superior à de um aparelho de som comum.” Tá puxado. Sejam bem-vindos ao paraíso os que ganham entre R$ 1.200 e R$ 5.174 por ano. Mas tem que ter lugar para todo o mundo. Eu quero de volta o meu filme legendado na TV e torço pela possibilidade de passar um intervalo comercial inteirinho sem assistir a um anúncio do Supermarket. Onde foi parar a televisão da velha classe média? Sempre fui noveleiro, nunca tive vergonha disso. Assisti às novelas de Ivany Ribeiro em versão original. Mas n&at ilde;o aguento mais tramas ambientadas na c omunidade, sambão na trilha sonora, mocinha cozinheira e galã jogador de futebol. Eu quero de volta a minha novela de Gilberto Braga!” Fonte: O Globo, Coluna da Revista O Globo, de 15/04/2012. Sendo o movimento de uma classe necessariamente relacional, ele inflete a correlação de forças objetivas e o poder de apropriação diferencial de bens escassos em disputa. Nesse sentido, a própria atenuação dos índices de desi gualdade no decorrer da primeira década dos anos 2000 não ocorre sem uma correlativa maior apropriação do volume global de rendimentos pelas classes populares, tanto maior conforme nos aproximamos de seus segmentos e ocupações mais vulneráveis. E esse movimento ascensional popular envolve, o que é mais significativo em termos estruturais, a intensificação do agonismo concorrenci al intrínseco à disputa de pos ições no mercado laboral, seja no âmbito privado ou público (por meio de concursos), assim como na competição por vagas nas universidades (a fortiori com as polí ticas de ação afirmativa). Já mencionamos a inflação de diplomas daí engendrada (no ensino médio e cada vez mais no superior), assim como a frustração de expectativas das gerações mais jovens de maneira mais ou menos generali zada. Essa é a razão pela qual as próprias mobilizações de 2013 representam, dentre sua miríade de forças motrizes, não somente o ressentimento das classes médias e dominantes como, em medida bastante significativa, também o de setores populares mais jovens e escolarizados (SINGER, 2013). O próprio movimento e o deslocamento de sentido dessas manifestaç ões representam uma metáfora do golpe que ocorrerá três anos mais tarde. Não é o caso de analisá-las em pormenor nos limites desse artigo, mas tão somen-41 te sublinhar que o mal-estar social difuso mas intenso, gerado pelos sucessivos deslocamentos materiais, políticos e simbólicos que se seguiram ao governo do PT, encontra as ruas como palco de disputa, ruas que são transformadas, da perplexidade e condenação midiáticas iniciais, em autêntico locus de expressão da “cidadania” e “patriotismo”. Em seu desenvolvimento, se iniciando como um micromovimento de esquerda protestando contra o aumento das tarifas de transporte em São Paulo, essas manifestações desencadeiam forças que seus agentes (Movimento Passe Livre) não anteviam nem controlavam. Elas contribuem, elas mesmas, para despertar esse mal-estar, intensificado p ela eferves cência emanada pela abrupta irradiação de um evento de escala local para nacional. Alastrando-se rapidamente, as centenas de manifestações por todo o país passam a exprimir uma multiplicidade de pautas, tão heterogêneas quanto os segmentos que passam a se entrecruzar nas ruas e cujos sentidos, diversos e conflitantes, são alvo de disputa pelo monopólio da interpretação legítima, e sua subsequente apropriação, pelos diferentes agentes políticos e pelos meios de comunicação. No caminho de mediação das experiências pessoais (quanto ao modo como são vivenciadas) e pes soalizadas (quanto ao sentido narrativo que assumem, com seus “heróis” e “vilões”) em representações coletivas, os meios de comunicação de massa paulatinamente as colonizam, contribuindo com sua pr ópria eficácia na conforma&cced il;ão de um imaginário coletivo e na irradiação de uma narrativa centrada, cotidiana e ininterruptamente, na criminalização da política e na percepção do Estado como antro da corrupção, do vício e da ineficiência em contraposição à consagra ção das virtudes do mercado, num movimento polissêmico e polimorfo no qual, conforme analisa Jessé Souza (2016), o ressentimento ganha então forma e força narrativas. Aos poucos, a política institucional e partidária e os ‘políticos’ em geral gradualmente canalizam, como alvo palpável e facilmente intelectível, a insatisfação que era até então mais afetivamente compartilhada do que discur sivamente elaborada e unificada, o que resulta, por exemplo, na brusca emergência de uma onda de rejeição a ent&atild e;o presidenta Dilma Rousseff.35 Se tomarmos São Paulo, capital com maior clareza na relação estatística entre esses mani festantes e os posteriores pró-impeachment, temos uma nítida transição de seu perfil e de suas reivindicações, ainda em 2013, e do encontro da direita com as ruas.36 Em seu apogeu, as manifestações, extirpadas de seu sentido progressista inicial e da imensa heterogeneidade de sentidos em disputa conforme se proliferava por diversos segmentos sociais, são progressivamente dominadas por setores e pautas conservadoras, delineando um desenvolvimento que, longe de fortuito, vai da esquerda para a direita, do MPL ao MBL, em síntese, de 2003 a 2016. Não esqueçamos que esse tensionamento estrutural se expressa também no mercado de bens políticos como resultado da consagração de u m quase monopólio do poder executivo, ele tamb&e acute;m crescentemente contestado e des gastado. Esse desgaste se manifesta principalmente no poder legislativo, onde há historicamente uma sobrerrepresen tação das camadas dominantes – e não apenas através da delegação de seu poder a representantes de seus interesses, e sim direta e organicamente na própria composição e linhagem familiar de seus integrantes. Apesar do “condomínio” no poder e da conciliação de interesses assentada no arranjo próprio ao presidencialismo de coalização (LIMONGI; FIGUEIREDO, 1998), a agenda reformista do Partido dos Trabalhadores, sua pauta de prioridades, está longe de ser a mesma do Congresso, lhe sendo em muitos sentidos antagônica, para não mencionar o crescente descontentamento dos maiores partidos de oposição (como PSDB e DEM) com as sucessivas derrotas eleitorais em âmbito nacion al – que 35 Disponível em: . 36 Em 20 de Junho de 2013 mais de um milhão de pessoas foram às ruas de todo o país (incluindo todos os estados e capitais, a cidade do RJ registrando a maior participação com cerca de 300 mil pessoas nas ruas). Com dados do Datafolha, é possível apreender que o caráter progressista das pautas iniciais, encabeçado pelo MPL e expandido para “Saúde” e “Educação”, gradualmente perdeu força. Metade dos participantes passaria a mencionar a “Corrupção” como causa principal de estar nas ruas (a queda nas tarifas, pauta inicial, caía para 32% por exemplo), que passavam a ser ocupadas majoritariamente por homens (61%) com ensino superior (72%) e descrentes da política (72% sem partido de preferência). Dispo nível em: e . Aces so em Junho de 2018.42 viria a se tornar desespero com a derr ota de 2014, quando, impulsionados pelos meios de comunicação de massa e pela pressão de seu eleitorado mais uma vez derrotado nas urnas, começariam a retomar a tradição do velho liberalismo brasileiro. Gestava-se gradualmente, com o benefício da visão retrospectiva, as condições sociais e institucionais para o golpe, as quais ainda não se faziam presentes, por exemplo, no “escândalo do mensalão”, por resultaram justamente do conjunto de deslocamentos e tensionamentos na “ordem” material e simbólica historicamente sedimentada ocasio nado tanto pela ação política timidamente reformista como também, e na verdade principalmente, pelos mencionados efeitos cumulativos para além das intenções, previsões e controle governamental. Que amadurecessem as cond ições de possibilidade para a deposiç&ati lde;o do governo sucedida pela completa e explícita reversão de suas pautas (das reformas neoliberalizantes na economia e na legislação trabalhista ao realinhamento nas relações internacionais) não significa dizer que o golpe já estivesse inscrito nas manifestações de 2013, tampouco na derrota eleitoral do PSDB em 2014. Pelo contrário, esses fatores contribuíram, com sua própria força, à gestação daquelas condições. Crise estrutural e realinhamento conservador Não apenas indivíduos mas também sociedades podem regredir a um clima mental pregresso se um grupo representativo é substituído por outro que preservou uma orientação social anterior (Karl Mannheim, Sociologia da cultura, p. 62). A mudança na correlação de for&c cedil;as na condução do aparelho de Estado, a despeit o das tentativas de controle burocrático-gerencial (respirando o new management como o ar de seu tempo) da atenuação das clivagens de classe, e do caráter bastante estrito do escopo de suas reformas, trouxe consigo, ou melhor, despertou consigo e em grande medida a despeito de si, um novo e estranho mundo em relação ao qual toda a história do país, suas forças, valores, e inclusive estética (racial, regional, de classe) predominantes, são em si refratários e ante o qual se veem, em todos os âmbitos da vida social (da política institucional à visibilidade pública, do protagonismo cultural e moral à intensifi cação da concorrência universitária e laboral), deslocados. Essa dinâmica modernizadora, em termos históricos fun cionalmente impulsionada pela transmiss&at ilde;o e reprodução de um nexo inextricável de clivagens econômicas, sociais, raciais e simbólicas, e em termos estruturais comprimida nos limites objetivos à mobilidade inerentes à (semi)periferia dos principais núcleos de acumulação do centro do capitalismo mundial, ao ser assim tensionada, irá se transfigurar no domínio simbólico em cruzada moral do bem contra o mal, da nação (de verde e amarelo) contra a corrupção (os “corruPTos” e sua bandeira vermelha), do todo cívico espontâneo (o “Brasil” nas ruas) contra as facções e grupelhos aparelhados (sindicatos, movimentos sociais, partidos), da Pátria contra a ameaça do “Comunismo”, revivificando a tradição histórica pré-64 (SANTOS, 2017, p. 33-4). A lógica dessa denegação de classe protagoniza da pelas ca madas médias e dominantes, se por um lado se rela ciona à identidade nacional afetivamente cimentada na negação e recalcamento de toda forma de conflito (racial, de classe, religioso, regional, nacional), por outro opera de modo protofascista (como nos violentos ataques a militantes e bandeiras de todo e qualquer partido nas jornadas de Junho de 2013), negando a normalidade da pluralidade política (“meu partido é o Brasil”) e, no limite, a legitimidade da pró pria existência da diferença. Extirpados do campo democrático, os adversários passam de alternativa a ser derrotada pela via político-eleitoral a inimigos a serem expurgados pela via jurídico-policial (esta última situada pelos meios de comunicação de massa e pelo senso comum na esfera apolítica das leis e da técnica) – como a proposta de um se nador vinculado ao patronato ru ral de colocar o PT na ilegalidade, ou ainda a transformaç&ati lde;o de movimentos sociais 43 em “grupos terroristas” –, ou, em última instância e de forma cada vez mais aberta, pela via militar. Nessa autêntica sociodiceia, qualquer posicionamento dissonante torna-se “ideologia” (quando não “comunismo”), a política identitária patologia, o domínio das artes perversão, e a escola, a ciência e a universidade, “doutrinação”. Com efeito, conforme prenunciavam as manifestações de Junho de 2013, é justamente no âmbito do sistema simbólico que, por meio do encadeamento de uma série de afinidades eletivas entre forças relativamente heterogêneas em sua composição, se expressa inicialmente uma crise que pode ser definida, por suas conexões históricas e seu caráter mul tissistêmico (social, cultural, econômico, político), d e estrutural e não apenas conjuntural (como fora o caso, por exemplo, com o processo de Impeachment do ex-presidente Collor em 1992). Nesse contexto proliferam fundações, organizações, encontros, fóruns, grupúsculos e jovens lideranças de uma “nova direita” como fato novo e expressão de um fenômeno mais amplo após a retomada da democracia no Brasil (AVRITZER, 2016), qual seja, a assunção da direita como posicionamento político para si, autojustificado narrativamente, assumido identitariamente e organizado institucionalmente. A emergência dessa nova direita como alternativa política perante o senso comum mais amplo só é possível, por sua vez, na medida em que este se apoia num solo dóxico prévia e internacionalmente sedimentado por padrões de percep ção e classificação associados ao capitalismo c ontemporâneo mundial – não por acaso seu patrocí nio advém, em grande parte, de fundações ligadas a multibilionários norteamericanos –, inteiramente naturalizados e disseminados diuturnamente pelos meios de comunicação de massa, e que reduzem o espaço de possíveis políticos entre, de um lado e como registro de valor positivo, os agentes e práticas políticas de “perfil técnico” (“gestão”, “ra cionalidade”, “eficiência”, “responsabilidade”, obediência às regras do mercado, aumento do nível de “confiança” dos investidores), e, por outro e sob uma aura negativa, os agentes e práticas classificados como “populistas” (todo aquele que, de maneira evidentemente irracional e irresponsável, contrarie a “racionalidade” do mercado, a umentando o risco da “irresponsabilidade fiscal” – e a conotação moral dos conceitos empregados é aqui como alhures insofismável – e da deterioração do “clima de negócios” assim como da perda da “confiança” dos investidores e, no limite, do “grau de investimento”, sendo, nesse imaginário revestido de ciência, o Estado reduzido ao mero peso da “carga tributária”, além de intrinsecamente impregnado pela “ineficiência” e pelo “desperdício de recursos”). No que possui de mais profundo, essa verdadeira cosmologia elevada ao nível de crença enquanto grade reificada de leitura do mundo e da vida representa uma crescente deterioração dos fios que unem o capitalismo contemporâneo às cham adas democra cias representativas em forma de negação e corros& atilde;o da legitimidade da própria atividade política, da ascensão de movimentos neonazistas, e da extrema direita na Europa, nos EUA, e atualmente no mundo. É importante observar, como se revelou prenhe de consequências no imediato governo pós-golpe, que o estilo autoritário de manifestação política (o crescente apelo por intervenção militar, selfies com policiais militares, ataques a minorias) enraizado em nosso legado escravocrata e na maneira como ele plasmou nossa modernidade possui uma mórbida afinidade eletiva com esse ideário neoliberal hayekiano. De todo modo, após 2013, esse senso comum caracterizado pela ojeriza ao Estado e à política como reinos do vício e da corrupção em geral se canaliza progressivamente para o “antipetismo” em particular, este cada vez mais elevado a signo-mor de uma corrupção que é ; indissociavelmente política e moral, por meio da construção, irradiação e sedimentação afetivo-irracional de uma constelação imagética na qual perfilam lado a lado, atados à vilania pela força dos afetos e com a velocidade dos novos meios de comunicação: “PT”, “corrupção”, “comunismo”, “ideologia”, “bolsa-família”, “bolsa-bandido”, “vagabundo”, “Nordeste”, “ladrão”, “Venezuela”, etc.37 É de decisiva importância aqui o papel desempenhado pelas redes sociais por meio da proliferação da figura do “agitador” (LOWENTHAL & 37 Cf., por exemplo, as expressões vinculadas ao ex-presidente Lula, em levantamento baseado em mais de dois milhões de tweets no dia do julgamento de seus recursos pelo TRF-4, disponibilizadas em forma gráfica pelo Labic - Laboratório de Estudos sobre Imagem e Cybercultura em: .44 GUTERMAN, 1949), que na verdade se torna milhões, todos e cada um em potencial, na urdidura afetivo-irracional feita em grande medida de milhões de “posts”, “tuítes”, meias verdades fragmentadas combinadas a fake news, cujo resultado é a coprodução circular, ao mesmo tempo midiática e coletiva, de uma narrativa cujo poder, longe de resi dir na racionalidade e na complexidade do real, se alimenta, pelo contrário, da simplicidade intelectiva que embala a identificação de um inimigo palpável na maré crescente do ódio coletivo.38 Conflui nessa direção uma orquestração não centralizada, tampouco apenas movida por interesses, mas ant es encadeada por uma coligação plurívoca de valores entre colet ivos, grupos e classes cuja composição, símbolos e iden tidades são, no demais, bastante heterogêneos entre si, setores que de modo algum apenas “serviram” de instrumento ou de massa de manobra passiva para o golpe, nele se identificando a partir da real afinidade de fundo subjacente às diversas particularidades de conservadorismo, cada uma delas se manifestando de forma experiencialmente tão difusa e fragmentária quanto a diversidade e inorganicidade dos segmentos envolvidos. É o caso, por exemplo, da verti ginosa expansão do neonazismo, sobretudo mas não somente na região sul do país (apresentando, o que é bastante significativo, crescimento expressivo em São Paulo)39 em consonância com a expansão registrada mundialmente; de movimentos como o Movimento Vem Pra Rua, Revol tados Online, SOS Forças Armadas, O Sul é o Meu País, Ca recas d o Subúrbio (detidos com explosivos em São Paulo); ou da própria reação conservadora de base “evangélica”, cuja bancada congressual, alimentada por seu eleitorado, foi fundamental, numérica como ativamente, no apoio ao processo de ruptura institucional. Enquanto estrutural, e portanto multissistêmica, a crise impregna o próprio sistema de valores dominantes, que não se restringe ao protagonismo dos grupos e classes dominantes. É por essa mesma razão que a crise não demora a se expressar também no âmbito do sistema econômico, cujo alcance objetivo igualmente não se restringe aos grupos e classes economicamente dominantes. A reorientação da polí tica econômica operada pelo PT numa economia inserida na (semi)periferia do capitalismo mundial teria de se deparar, cedo ou tarde, com os limites estruturais acima apontados – dentre o s quais a desindustrialização e sua contrapartida na especialização regressiva, além da dependência do agrobusiness, não são os menores. Esses limites se revelam no paulatino estreitamento das margens distributivas que acompanham o primeiro governo de Dilma Rousseff. Não se trata somente de uma recessão conjuntural – mais ou menos comum em termos de ciclos econômicos nas principais economias mundiais –, pelo que o PIB de 2014 praticamente estagna em 0,5%, decrescendo vertiginosamente (- 3,5%) em 2015 (a construção civil e o próprio setor de serviços, dois dos grandes responsáveis pela incorporação das classes populares ao mundo do trabalho, não foram poupados da queda). Por um lado, esse desempenho recessivo de 2015 é, de fato, indissociável d o movimento de adesão e promoção congressual do golpe, com a subse quente performativi dade política da crise econômica pelo conjunto orquestrado de sabotagens institucionais fartamente conhecidas como “pautas bomba”.40 Por outro lado, se considerarmos alguns indicadores de 2011 a 2015,41 pelos quais é possível “ler” a dinâmica socioeconômica da estrutura de classes do país, verifica-se que, à exceção da estabilidade – na verdade um ligeiro aumento – quanto ao montante da economia nacional apropriado pelo capital financeiro (via aumento da taxa Selic e dos juros para pessoa física e jurídica), há uma tendência vigente já desde 2011 de queda dos rendimentos de capital, que por sua vez se reflete na queda da formação de capital fixo (edificações, equipamentos, máquinas) e, por fim (a partir de 2 014), na queda da própria taxa de investimento: esses índices contrastam c om a permanência no 38 Uma simples pesquisa na seção de comentários de notícias de jornais de grande circulação, envolvendo o impeachment, revelaria um grau tal de irracionalidade, na dupla e entrelaçada acepção de virulência afetiva e desvirtuamento do logos, que há muito pode ser considerado patoló gico da perspectiva das condições de manutenção de alicerces civilizatórios elementares. 39 Disponível em: . Acesso em Junho de 2018. Cf. também: . 40 Cf. . Aces so em Junho de 2018. 41 Cf. os dados disponíveis no Sistema de Contas Nacionais 2010-2015 do IBGE.45 mesmo período de um aumento, ano após ano, da participação da remuneração dos empregados no PIB (inclusive em 2014 e 2015, anos de sua estagnaç&atild e;o e queda), o que apenas seria sustentável pela manutenção de taxa s de crescimento maiores impulsionadas tanto por uma modificação no modo de inserção periférica na economia mundial (a econo mia foi mais uma vez “salva” pelo agronegócio, único setor a registrar crescimento nos anos de crise) como por uma reapropriação do capital financeiro pela economia produtiva. Esses limite já haviam sido compreendidos tardiamente pelo próprio governo (SINGER, 2015), razão de sua aposta na adesão a um projeto neodesenvolvimentista por parte de uma “burguesia nacional” historicamente marcada pela submissão econômica, política, moral e intelectual aos im perativos do mercado internacional, além de, ela mesma, coligada ao capital financeiro a cujo combate a continuação de uma política econômica neodesenvolvime ntista dependia. É assim que, embora se manifestando nos quadros da relativa autono mia de cada domínio numa formação social contemporânea e altamente diferenciada – inclusive consideravelmente mais complexa em termos institucionais e associativos do que aquela palco do golpe de 1964 (SANTOS, 2017) –, a crise se propaga, cada vez mais diretamente e sem mediações, ao sistema político, onde atinge seu ponto crítico. Após um pleito altamente polarizado ao final de 2014 e uma vitória de Pirro do governo, o ano seguinte se inicia com diversas manifestações de rua pelo país, coper formadas pelos meios de comunicação de massa e intensificadas pelas redes sociais, reivindicando sua derrubada – a essa altura já não importando os meios –, ao que sucede a tentativa de sobrevivência do governo tanto por medidas de austeridade fiscal (enfrenta ndo o quadro recessivo pelo “estelionato eleitoral” do velho conhecido programa rival) como pela ampliação da participação de quadros do PMDB no governo. Não se trata apenas de uma crise intraparla mentar explicável por referência a ela mesma; todas as frações dominantes participavam desde o início do governo do PT – com algumas variações no correr dos anos – de sua própria composição ministerial, a fortiori no governo derrubado; menos ainda resultante do desempenho econômico per se (afinal, a guinada “à direita” do governo em nada deixava a desejar em relação ao programa do partido de oposição derrotado). É tão somente na medida em que essa crise enreda toda a trama da vida social que podemos considerar o golpe em sua culminância parlamentar sem o risco de um reducionismo instituciona lista.42 Ora, subjacente a essas retroalimentações sistêmicas (com sua circularidade de causalidades, intensificando-se em forma de espiral até erodir a autonomia de cada âmbito da vida social), está o solo vivo de onde elas emanam e o intenso sentimento de agudez que as caracteriza. Ele é sedimentado pela contextura socioafetiva responsável pela es pécie de “atração irresistível” que arrebata, das panelas nos condomínios de luxo à tomada das ruas e orlas das praias de bairros afluentes pelo país, as principais forças coletivas propulsoras do golpe, engendrada pelo compartilhamento de condições existenciais mais amplas que as aderem num mesmo imaginário histórico e as envolvem no mesmo ressentimento de classe. Cinturão médio e dominante, meios de comunicação de massa e judiciário: os fios de uma conex ão socioafetiva [...] o ponto de vista da intuição conservadora [...] redescobriu uma verdade sociológica profunda, a saber, que há uma afinidade entre todas as hierarquias: quem toca uma hierarquia, toca todas elas (ou poderia fazê-lo) (Bourdieu, Manet : une révolution symbolique, p. 40). 42 E é tão somente assim que se faz compreensível o fato de, apenas cinco dias após as eleições, o PSDB demandar auditoria nos resultados das urnas e, pouco mais de um mês depois, pedir a cassação da candidatura da chapa de Dilma Rousseff e Michel Temer no TSE; que, a partir da perda das eleições para a presidência da Câmara e do controle de sua mesa diretora, procede-se a uma ativa e sistemática construção da ingoverna bilidade, o que contribui decisivamente, como vimos, para aprofundar a crise econômica e fiscal: “armou-se uma co alizão de assalto conservador ao poder envolvendo a sabotagem do Legislativo à ;s ações do executivo. A ingovernabilidade parlamentar não foi razão suficiente para a abertura do processo do impedimento; o impedimento foi a razão teleológica da sabotagem parlamentar” (SANTOS, 2017, p. 180).46 Sabemos que nas formações sociais modernas, a fortiori nas contemporâneas submetidas à mundialização, o processo de diferenciação e relativa autonomização das esferas sociais é bastante avançado. O que se costuma pres tar menos atenção é ao fato de que é justamente nos momentos de crise estrutural que sua contextura socioafetiva de fundo, compartilhada diferencialmente conforme as classes sociais, vem à tona com maior nitidez e intensidade. Essa ressonância de fundo afetivo nas maneiras de agir, pensar e sentir s ignifica que, em casos de crise, as esferas (jurídica, econômica, polític a, midiática, religiosa) não apenas refratam o espaço social mais amplo a partir de suas lógicas es pecíficas, mas se influenciam e interpenetram, embora denegando tal conexão existencial sob a constelação imaginária própria a cada uma, e assim transmitindo a imagem para si mesmas de “boa fé”, de “imparcialidade” em geral, e de obediência às regras do jogo democrático – o que não exclui do jogo o cinismo, no sentido literal do termo, quando a correlação de forças é esmagadoramente favorável. E, na divisão do trabalho do golpe, conforme aponta Jessé Souza (2016), a caixa de ressonância responsável por conferir forma narrativa ao inconsciente de classe dos segmentos médios e dominantes e a seu conjunto socialmente disperso de insatisfações, intensificado pela nova derrota eleitoral de 2014, foi formada pelos meios de comunicação de massa. Sua participação foi central na construção de uma consciência moral a partir de, e para um, inconsciente de classe difuso em sua pulsão em busca de legitimação racional (a seus próprios olhos), consciência-para-si na qual o discurso anticorrupção, em sua forma moral e genérica (“apolítica” e aplicável a todo e qualquer adversário, assim retirado da arena político-democrática e arremessado à esfera criminal), é capaz de materializar uma direção, um “herói” (e.g. bonecos infláveis de Sergio Moro em forma de super-herói) e um inimigo comum a ser combatido (personificado por bonecos e cartazes da presidenta e do ex-pres idente com roupas de presidiários). No entanto, e isso é crucial, os meios de co municação em geral, e o punhado de canais e jornais influen tes em pautar a “opinião pública” em particular, não operam por meio de uma relação manipulativa unilateral (sobre receptáculos amorfos e passivos) – por mais intelectualmente reconfortante que tal interpretação possa ser na medida em que tudo passa a fazer sentido e cada evento e agente encontra suas funções e papéis univocamente determinados como num enredo pré-definido por um poder plenipotenciário –, e mais propriamente como um canal por meio do qual essa ressonância socioafetiva se fortifica coletivamente sob a consolidação de uma mise en forme narrativa no corpo da qual as miríades de variantes de ressentimento de classe se encontram, se amplificam, se difundem, se unific am, e se impõem no tecido social A força oriunda da convergência dessas a&c cedil;ões em sua orientação comum pela ruína a um só tempo política e moral de um governo popular assim como a relativa imprevisibilidade desse realinhamento conservador, com aspectos nitidamente reacionários e autoritários, deriva justamente do sentimento real gerado por essa confluência socioafetiva, e não apenas da “enganação” artificial por parte de elites financeiras (embora essa certamente tenha seu lugar, sobre tudo com a produção e difusão em escala industrial de fake news), razão pela qual, a partir da complexidade interativa das múltiplas forças em jogo, o golpe abriu uma espécie de caixa de Pandora de consequências não previstas por seus próprios protagonistas institucionais – e.g. a enérgica hostili zação de membros do partido de oposição que tentaram participar das mani festações de rua pelo impeachment; declínio dos capitais político e simbólico de diversos dos prin cipais políticos que, de protagonistas no processo, foram submersos pela onda que contribuíram a criar; alastramento da perseguição jurídica aos principais partidos envolvidos na consecução parlamentar do golpe; a polêmica passando a envolver os juízes, bastiões da ordem e da moral, em torno do auxílio moradia (com a foto do apartamento pertencente ao juiz Sergio Moro estampada em destaque em jornal de grande circulação no país); permanência e aprofundamento da crise econômica, etc. A essa altura, a maquinaria social consolidada pelo processo de realinhamento conservador tornava-se tão avassaladora que nenhum agente particular (coletivo, institucional ou individual) detinha o pleno controle 47 dos rumos do processo, menos ainda de suas c onsequências a curto, médio e longo prazos, a despeito das manifestas intenções. Ela adquiria uma convulsiva objetividade própria. O “Brasil” (na imagem construída pelos meios de comunicação de massa) nas ruas (classes médias, sintomati camente estimuladas e alimentadas gratuitamente na FIESP com filé mignon)43 contra a corrupção (apelo ao judiciá rio e, segunda via, ao retorno dos militares, sendo o imaginário reacionário do “retorno” ou do “quero meu país de volta” fundamental): há aqui uma clara homologia estrutural enredando as frações “à direita” das classes médias (e.g. pequenos empresários, profissionais liberais, administradores e gerentes, cuja origem social, formaç&ati lde;o e inserção os vinculam objetivamente, e predispõe subjetivamente, aos valor es do ‘mercado’), os segmentos dominantes (patrona to rural, industrial e financeiro, sua representação congressual, midiática e seus órgãos representativos de classe), o judiciário enquanto fração dominada das classes dominantes (concentrando alto capital econômico e cultural de tipo predominantemente técnico),44 e os meios de comunicação mainstream como, em sua significação estrutural, meios de produção e difusão simbólica e imagética de uma determinada visão de mundo que consiste menos numa imposição manipulativa do que na própria expressão da autoconsciência desses grupos de si para si mesmos, onde se reconhe cem por intermédio dessa retroalimentação circular, em razão de sua própria diferenciação funcional, produtores e consumidores desses bens sim bólicos.45 Dessa forma, esse inconsciente de classe compartilhado é transfigurado – condição de sua eficácia – em função do jogo próprio a cada uma das forças sociais em questão no desempenho e na crença espontânea em seus respectivos papéis, como vimos, num verdadeiro jogo de espelhos que não faz senão intensificar o poder e a “legitimidade” de cada uma dessas forças (a imprensa como produtora “imparcial” de “fatos” no domínio da “verdade”; as ruas como representando a essência da “democracia”, da “cidadania” e do “bem comum”; e os agentes do judiciário encarnando a “justiça”, compartilhando o “heroísmo” dos militares e m sua busca de resguardar a “ordem” social e moral ameaça da)46: nenhum planejamento centralizado, ou manipulatório, numa formação social altamente complexa seria tão eficaz quanto à espontaneidade com que se co-constitui uma narrativa coletiva a partir das afinidades simbólicas e afetivas erigidas sob um solo de classe compartilhado. A violenta erupção irracional – no duplo sentido de negação da racio nalidade e do vir-à-tona do ressentimento, repulsa e ódio sublimados de classe – ocasionada pela dimensão da crise 43 Em 15 de Março de 2015, assim como em 13 de Março de 2016, dias nos quais ocorreram as maiores manifestações contra o governo federal em todos os estados e capitais do país, e registradas quase simultaneamente em centenas de municípios, os manifestantes da Av. Paulista representam com maior nitidez esse perf il de classe. Cf. dados do Datafolha no documento intitulado “Manifestação Avenida P aulista – 13/03/2016” (disponível em: www.datafolha.com.br).Sobre as manifestações propriamente ditas, cf.: e < http://www1.folha.uol.com.br/poder/2015/03/1603271-paulista-reune-maior-ato- -politico-desde-as-diretas-ja-diz-datafolha.shtml>. Acesso em Junho de 2018. 44 Cf. por exemplo, a pesquisa Ministério Público: Guardião da democracia? coordenada por Julita Lemgruber e realizada entre 2015 e 2016 pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CeSec), com amostra representativa dos mais de doze mil membros dos MPs federais e esta duais do pa&ia cute;s, onde se revela o aristocrático perfil de classe de seus agentes, porquanto enraizado consanguineamente já na própria origem social, cuja atuação foi decisiva para a consecução da ruptura institucional de 2016. Em consonância com esse perfil não é surpresa a constatação de que, em gran de medida desvirtuados de aspectos progressistas inscritos em sua vocação constitucional, hajam incorporado o “combate à corrupção” como principal bandeira de suas atividades. A pesquisa pode ser acessada em: . 45 O que não significa que esses bens assim produzidos não se generalizem por todas as camadas sociais. Pelo contrário, já mencionamos que o sistema de crenças e valores dominantes não se restringem aos grupos e classes dominantes, daí seu poder e eficácia. 46 É nesse sentido que se compreende a a& ccedil;ão concatenada entre agentes como policiais federais (profusão de vazamentos seletivos, espe tacularização das operações igualmente seletivas), OAB (ela mesmo protocolando seu próprio pedido de impeachment), magistratura (lawfare sistemático e seletivo a um partido em particular e perseguição a suas lideranças, coações em forma de prisão preventiva generalizada, produção clandestina de “provas” – como a gravação de advogados de defesa – ou a condenação sem elas, adoção e justificação de procedimentos de “ex ceção”) (VALIM, 2017) e do poder judiciário em todos os seus órgãos e instâncias, além do bombardeio diuturno dos meios de comunicação de massa, todos (de membros do TCU a jornalistas, de juízes de todas as instâncias a policiais federais) revelando abertamente suas posições políticas em redes sociais, quer convocando às manifestações ou delas tomando parte. Transbordam cotidianamente, e cada vez mais às claras a partir do contexto eleitoral de 2014, um infindável número de notícias, inclusive envolv endo agentes diretamente ligados à chamada “Operação Lava Jato”, do tipo: “Delegados da Lava Jato exaltam Aécio e atacam PT nas redes”. Disponível em: . Notícias semelhantes podem ser encontradas à exaustão.48 corroeu as ‘paredes’ de seus respectivos domínios relativamente autônomos de atividade, solidarizando todos em sua origem e condição existencial mais ampla, a qual é, em momentos de ‘normalidade’, obnubilada pela multiplicidade de segmentações funcionais qu e conformam o tecido do cinturão médio e dominante. Mais ainda: por um efeito de afinidade – ao mesmo tempo formal e existencial – entre as diversas formas de dominação que se intersectam numa mesma formação social, é bastante significativo que entre os protagonistas de um movimento de classe de cariz conservador e autoritário predominem estatisticamente homens, brancos, e mais velhos (do que a média populacional), provenientes do Sul e Sudeste,47 encarnando, em metonímia, a significação histórica e sociológica do movimento, a qual lhes escapa tão mais completamente quanto mais o recalcamento e a denegação dessa significação se mostrem necessários enquanto condição da adesão pelos que creem, com toda a “boa fé”, em sua crença. A marca da história, as classes populares e a coaliz&a tilde;o ausente: à guisa de considerações finais Em 20 de Abril de 2016, três dias após a votação do impeachment pela Câmara dos deputados, o famoso rapper Mano Brown discursa à plateia – constituída majoritariamente por jovens de periferia – em nítido tom de censura, durante show realizado no Rio de Janeiro: foi legal, num foi, agora nos últimos dias? Eu vi a população virar as costas pra Dilma. Eu vi. [...] Eu vi o poder de uma televisão dentro de um país de terceiro mundo, o que é um país de terceiro mundo desinformado onde uma televisão manipula um país, elege e derruba quem eles querem... Conforme prossegue, a censura parece abalar o próprio senso de comunhão do artista com seu público, ou do sentido que ali supunha existir: aí eu falei o seguinte: já que o povo escolheu isso, assim seja. [...] F echou um ciclo na minha car reira e na minha vida [...]. Se o povo escolheu derrubar o governo, a responsabilidade é do povo, assim seja, e daqui pra frente é cada um por cada um. Aparentemente pouco compreendido em seu discurso, após a gravidade do dedo em riste a censura passa a as sumir forma sarcástica: vamo chapá? Vamo chapá de n ovela, chapá de Rede Globo e chapá de Jornal Nacional! Vamo chapá de William Bonner, hein?! [...] Enquanto a favela faz silêncio, a elite manipula. [Mas] o carnaval tá chegando hein, [...] vamo falá do que ano que vem? O dia em que o povo se omitiu, o dia em que a favela ficou quieta, em silêncio, e deixou eles tomarem o que a favela conquistou. É isso. Poucos dias antes, na manhã do próprio dia da votação do impeachment na Câmara, uma tradicional produtora e gravadora de bailes Funk do Rio de Janeiro, em conjunto com movime ntos sociais, convocou a “favela” a “descer” 47 Cf. os dados elencados no documento “Manifestação Avenida Paulista – 13/03/2016” (disponível em: www.datafolha.com.br).49 pela manhã para a orla da Praia de Copacabana, tradicional bairro de camadas médias onde as manifestações eram, como s e pode supor, pró-impeachment (como aliás o seriam pela tarde desse mesmo dia). Além do número ser bas tante tímido diante do prometido, a maior parte dos manifestantes, como reconhecido pelos próprios organizadores (lamentando que “a massa não tenha descido em peso como gostaríamos”)48, não era oriunda dos meios populares, mas de estudantes, movimentos sociais, centrais sindicais, e frações médias progressistas. Na verdade, doi s meses antes da votação do impeachment na Câmara, estima-se que dois em cada três brasileiros se declarava favorável ao processo de impedimento.49 Essa estimativa alcança necessariamente – em decorrência da composição de nossa estrutura social – imenso contingente das classes populares.50 Se, por um lado, foi possível, ao contrário da teleologia convencional, constatar uma tomada de consciência de classe dos segmentos que conformam, a partir de sua heterogeneidade interna, o cinturão médio e dominante, daí inclusive a assunção do conservadorismo e da direita enquanto identidade (de modo diferente da ashamed right), ainda que de forma transfigurada (sublimando sua particularidade em forma narrativa de bem contra o mal, da justiça contra o crime, do nacional-universal contra o partidário-particular) enquanto condição de sua efic&aa cute;cia, a situação se revela inversa em relação ao imenso contingente popular que, paradoxalmente, é e con tinuará sendo objetivamente o mais afetado pelas consequências da derrubada do governo (bastando mencionar o teor da reforma trabalhista, os efeitos da PEC do teto de gastos e a proposta de reforma da previdência, para não falar no lawfare sistemático e encarceramento de seu principal agente e símbolo político). Não obstante, na medida em que a vida social é eivada de ambiguidades que lhe são constitutivas, isso não significa necessariamente uma adesão sem reservas à narrativa dominante. A maior parte das pesquisas realizadas na ocasião das maiores manifestações contrárias ao governo converge quanto ao perfil de classe prevalecente, pelo que a grande maioria dos setores populares nelas não se engajou. Embora não haja espaço para desenvolver aqui, as razões dessa conduta se encontram, além de fundamentalmente vinculadas à natureza de nossa modernização, reforçadas pelas suas inflexões histórico-estruturais que, não por acaso, foram indicadas no início deste ensaio, as quais apontam para uma intensificação da heterogeneidade das experiências vividas subjacentes à sua domin ação estrutural e que se fazem presentes na conformação de sua condição existencial, assim como na diversificação dos dispositivos de tradução dessa condição popular em expressão política – ainda que sob a forma, como é cada vez mais o caso, de sua negação enquanto palco intrinsecamente “sujo” de disputa entre agentes do poder e de interesses que não são os seus.51 Ora, a a tuação dos dominados perante um movimento reativo que representa, materializa e consagra, em suas conexões his tóricas e em seus efeitos institucionais, o reforço dessa dominação, é ela mesma resultante de seu enraizamento num processo modernizador historicamente conservador e autoritário; essa atuação, que ocorre seja por meio da adesão 48 Disponível em: . (Observamos que est e número é claramente superestimado pelos organizadores.) Acesso em Junho de 2018. 49 Disponível em: . 50 Esse distanciamento do perfil popular também pode ser considerado, quer levando em conta a maior manifestação registrada favorável à deposição do governo, quer aquela de resistência, porquanto o número de participantes com rendimentos de até dois salários mínimos não ultrapas sa os 6% no primeiro caso, e os 9% no segundo. Cf. o documento “Manifestação Avenida Paulista – 18/03/2016” (disponível em: www.datafolha. com.br). Lembrando que estamos mobilizando metodologicamente São Paulo, não como exceção, mas como local onde essa tendência se expressa com maior nitidez, embora ela se encontre presente por todo o país, obnubilada por suas diferenças regionais. 51 É nesse sentido que são compreensíveis os relatos de moradores da comunidade Pavão-Pavãozinho sobre as razões de não participarem no maior dia de manifestações registradas reivindicando a deposição do governo, em 13 de Março de 2016, realizada a menos de um quilômetro da comunidade, na orla de Copacabana, zona sul do Rio de Janeiro, num misto de senso comum antipolítico no qual “tod o mundo rouba no Bra sil”, reserva em face à narrativa dominante (“ela [Dilma] está sendo usada como bode expiatório”), e pragmatismo sem adesão programática ou identitária diante de partidos e lideranças políticas que, percebidos em sua distinção entre quem “melhorou a vida dos pobres” e aqueles que “só pensam em ajudar os ricos”, podem ser, na mesma medida em que aderidos eleitoralmente, abandonados politicament e conforme o humor das circunstâncias. Se, portanto, de um lado as camadas populares não aderiram em massa ou protagonizaram às manifestações de rua em defesa do governo, tampouco o fizeram no que diz respeito a uma manifestação percebida em seu caráter elitizado (“eu via no prédio onde trabalho: todos os ricos foram”). Reportagem do Deutsche Welle, disponível em: . Acesso em Junho de 2018.50 explícita (expoentizada pelos segmentos evangélicos), seja no mais das vezes de forma tácita ou pela não adesão aos movimentos de resistência – e lembremos os ensinamentos basilares de Weber nos quais uma ação social, e socialmente significativa, inclui a “omissão” e a “aquiescência” –, embora habitualmente subtematizada nas investigações sobre a deposição do governo, foi fator de impo rtância capital na construção e na deflagração socioinstitucional do golpe. Na verdade, imputar o protagonismo da reação ao cinturão médio e dominante já implica, implicitamente na própria imputação, o reconhecimento dessa necessária relacionalidade. As duras palavras do rapper Mano Brown testemunham esse reconhecimento por um agente organicamente vinculado ao s meios populares. Os dados relativos ao dia das maiores manifestações de resistência contra o processo de impedimento52 indicam, de modo análogo àquelas em prol da derrubada do governo, um volume de capitais econômico e escolar considera velmente mais elevado do que a média populacional, mas que por sua vez envolve as frações médias “à esquerda” da estrutura social, cuja origem, a natureza da formação e o sentido de sua vincula&cced il;ão objetiva as predispõe à defesa e aos valores da ‘res publica’ (proporcionalmente maior presença de professores, estudantes, funcionários públicos, além de sindicatos, movimentos sociais, intelectuais e artistas).53 Se das ruas as forças populares estavam em grande medida ausentes – conforme a possibilidade conferida por seu peso estrutural –, ruas que foram reapropr iadas como arena política por protagonistas “à direita” e “à esquerda” das classes médias, esse fato não deixa de metaforizar um distanciamento mais amplo. Dito de outra maneira, ambas as frações de classe, a despeito de sua polarização que corresponde objetiva e subjetivamente à vinculação aos po los do mercado e da coisa pública na estrutura do cinturão médio, localizam-se, no espectro infinitesimal entre ess es polos, muito mais próximas entre si do que em relação ao imenso contingente popular – ele mesmo extremamente heterogêneo em sua constituição interna – frente aos quais compartilham historicamente um verdadeiro descolamento existencial (não apenas quantitativamente em relação ao conjunto formado por seus recursos patrimoniais, econômicos e escolares, mas, em conex&atil de;o inextricável com essa desigualdade objetiva, qualitativamente em relação aos estilos de vida e aos sentidos que a ela atribuem), descolamento esse que, por sua vez, é igualmente experimentado pelas classes populares, inclusive em seus setores “ascensionais”, e portanto constitutivo deste sentido “evasivo” de suas condutas. Isso não impede a existência de uma real afinidade “teórica”, “discursiva” e “política” com as clas ses populares, inclusive calcada em analogias estruturais – as frações médias “vocacionadas” a res publica como espécies de “primas pobres” de seu polo oposto no cinturão médio –, o que infelizmente não temos espaço para tratar aqui. De todo modo, se os grupos dominantes obtiveram êxito em sua coalização conservadora com as classes m&eacu te;dias tradicionais, é preciso que se coloque a incontornável questão, indissociavelmente teórica e prática, das condições de possibilidade de formação de uma coalizão progressista baseada na homologia entre o polo dominado das classes médias e o polo dominado da estrutura social, evitando tanto a subordinação elitista do último ao primeiro (o líder de partido, o dirigente sindical, o intelectual, o professor, o profeta, o cléri go progressista) quanto o folclorismo populista que idealiza a condição dos subjugados material e simbolicamente numa postura típica dos demagogos que por essa falsa proximidade não fazem senão sublimar (literária, filosófica ou “teoricamente”) seu real distanciamento, e real desconhecimento, da condição popular. Não se trata de produzir as condições pa ra uma espécie de fraterno abraço entre desiguais – em nada dife 52 I.e., aquelas realizadas por todo o país no dia 18 de Março de 2016. Cf. “Manifestação Avenida Paulista – 18/03/2016” (disponível em: www.datafolha.com.br). (Ver nossas considerações acerca da mobilização de São Paulo como referência metodológica nas notas acima.) 53 É nesse sentido que se alastraram, desfechado o golpe, ocupações de órgãos como a Funarte e o IPHAN pelo país, assim como do prédio do Ministério da Cultura (e não o do Trabalho ou da Fazenda) em Salvador, ou atos como o da equipe do filme Aquarius no Festival de Cannes, ou a proeminência do artista Chico Buarque como ícone da resistência à ofensiva conservadora. Tamb&e acute;m emblemático desse perfil de classe predominante no protagonismo dessa resistência é o caso da defensora dos direitos humanos assassinada Marielle Franco, quinta vereadora mais votada nas últimas eleições municipais para o Rio de Janeiro: a zona eleitoral em que recebeu a maior votação de seus mais de 46 mil votos reúne Cosme Velho e Laranjeiras, bairros da Zona Sul (dentre outros da mesma região em que obteve significativa votação) do Rio de Janeiro em que predominam, não os recursos econômicos, mas os culturais. Ap enas nesses dois bairros recebeu mais votos do que na imensa zona eleitoral que inclui o Complexo da Maré onde foi criada, Bonsucesso e Ramos, região periférica da cidade. Disponível em: . Acesso em Junho de 2018.51 rente da comiseração típica do “bom coração” conservador –, mas semear o c aminho para que Sísifo, coletivamente fortalecido, possa reconciliar-se com suas reais possibilidades diante da maciça rocha que, elevada colina acima por alguns palmos, se lhe voltou com o verdadeiro peso e o macabro sorriso da história. Referências AVRITZER, Leonardo. Impasses da democracia no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016. BOITO Jr., Armando. A natureza da crise política. Le monde diplomatique Brasil, Ed. 104, Março de 201 Livre de vírus. www.avast.com.

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Corporeidades silenciadas: reflexões sobre as narrativas de mulheres violadas Corporealities silenced: reflections about the narratives of violated women Jane Felipe Beltrão Camille Gouveia Castelo Branco Barata Mariah Torres Aleixo Sobre os autores » Resumo » Abstract » Text» De traduções olvidadas e diálogos “surdos” » Os segredos da escuta » O veneno da dor » As categorias sobre violência: enredamentos na narrativa das mulheres » As categorias relativas à agência: a resistência das/entre mulheres » Entre oitivas e traduções » Por diálogos e justiças » Referências bibliográficas » Datas de Publicação » Histórico Resumo Refletir sobre as formas de narrar as violências enfrentadas por indígenas e quilombolas mulheres/mulheres indígenas e quilombolas é a proposta do texto para discutir a possibilidade de tradução etnográfica das categorias nativas em confronto com as categorias acadêmicas para referir as mulheres em situação de violência, identificando as agências das protagonistas. indígenas; quilombolas; violência Abstract Reflect about the ways of narrate the violence faced for indigenous and maroons women/women indigenous and maroons is the propositions of the article to discuss the possibility of ethnographic translation of native categories in confrontation with the academic categories to refer women in violence situations, identify the agencies of the protagonists indigenous; maroons; violence De traduções olvidadas e diálogos “surdos” No ensaio que hoje pode ser considerado clássico para o que se convencionou chamar Antropologia Jurídica ou Antropologia do Direito2 , Geertz (2013) enuncia que o Direito é construído à luz de saberes e artesanatos locais, isto é, tem a ver com a cultura na qual ele tem vida, onde “funciona.” Segundo o autor, há diversos sentidos de direito e justiça – o que ele denomina de sensibilidades jurídicas – as quais, no contexto contemporâneo, são obrigadas a conversar, em suas palavras, “... uma iluminando o que a outra obscurece.” (2013, p. 237) De acordo com essa afirmação, o estudo e a prática do Direito devem ser feitos por meio da tradução cultural, buscando compreender as sensibilidades jurídicas que estão em jogo nas contendas, seja aquelas levadas à justiça estatal, seja as que são discutidas e resolvidas à luz das normas comunitárias e, principalmente, as que caminham na fronteira entre tais normatividades. Partimos desse pressuposto para compreender as maneiras pelas quais mulheres indígenas e quilombolas/indígenas e quilombolas mulheres3 da Amazônia paraense resistem às violências do cotidiano e perscrutar suas sensibilidades em meio às situações de violência. Não se trata aqui de analisar estratégias de movimentos de mulheres indígenas e/ou quilombolas para conseguir alcançar suas reivindicações políticas, o que não deixaria de ser importante objeto de reflexão, mas sim de entender as próprias corporeidades das protagonistas como estratégias de resistência. Esta última, que pode parecer mais individualizada e circunstancial num primeiro olhar, ganha contornos coletivos quando se observa o compartilhamento de histórias, as redes de ajuda e solidariedade criadas pelas mulheres, entre outras agências, como veremos a seguir. Temos em conta que esse diálogo entre noções de justiça não ocorre com paridade de armas, pois o Estado brasileiro se constituiu olvidando etnicidades e engendrando políticas de homogeneização e integração dos grupos diferenciados à “sociedade nacional.” A conversa entre as sensibilidades jurídicas no país ocorre na forma do que Yrigoyen Fajardo (2011) denomina pluralismo jurídico subordinado colonial, isto é, de modo a não reconhecer noções de direito que não sejam as provenientes do Estado. Quando se pensa em questões relativas às mulheres etnicamente diferenciadas a questão se complexifica. A promulgação de leis específicas às mulheres, que consideram a violência como crime4 , fruto de anos de reivindicações e estudos promovidos por organizações e coletivos feministas, diz pouco sobre diferenças de ordem cultural, étnica e racial. Diante disso, compreender noções de violência bem como as estratégias de resistência das protagonistas se impõe. Os segredos da escuta Assim, nosso objetivo é refletir sobre as formas de narrar a violência que atinge os corpos das interlocutoras que pertencem a povos indígenas e coletivos quilombolas e debater acerca das possibilidades de tradução etnográfica a partir da identificação das categorias nativas que compõem a enunciação das interlocutoras, considerando as diferenciadas noções de justiça presentes entre as mulheres que emprestam seus depoimentos às autoras do texto. Para alcance dos objetivos, procura-se compreender como se dá a construção da corporeidade entre as mulheres indígenas e quilombolas/indígenas e quilombolas mulheres, pela possibilidade de demonstrar como o corpo se apresenta entre elas como território privilegiado de resistência e luta. A marca do presente trabalho são as reflexões que ressaltam e problematizam as categorias que integram a epistemologia e o olhar nativo sobre corpo e violência. Para os limites da reflexão proposta, é importante esclarecer que os depoimentos oferecidos pelas interlocutoras foram ditos às pesquisadoras em diversos momentos, os quais compreendem um lastro de 15 anos de pesquisa, sem que estas tivessem a intenção de trabalhar especificamente violência e violação de corpos, entretanto, os depoimentos foram como que aflorando pela impossibilidade – estatal e/ou comunitária – de oitiva das mulheres em situação de violência. Selecionou-se depoimentos de mulheres indígenas pertencentes aos povos Tembé Tenetehara5 , hoje moradores do município de Santa Maria do Pará, Xipaya6 e Kuruaya7 que vivem no médio Xingu e, no caso das quilombolas, selecionamos as interlocutoras moradoras das diversas comunidades localizadas no arquipélago do Marajó, também no estado do Pará. Destacam-se trajetórias e memórias que marcam de modo indelével o etnocídio praticado via colonização (Beltrão, 2012), que até o presente atinge os corpos e as vidas de pessoas indígenas e quilombolas via colonialidade.8 Nesse sentido, é latente na narrativa das interlocutoras a referência ao processo de expulsão territorial, sequestro de crianças indígenas e quilombolas pela ação missionária e/ou do Estado, tentativas reiteradas e violentas de genocídio, em face da tentativa de homogeneização e apagamento das pertenças. Vale, porém, ressaltar que a colonialidade incide de forma específica e brutal necessariamente sobre os corpos das mulheres, pois esta, segundo Lugones (2008) , se instituiu também como colonialidade gênero, que instituiu o sistema de gênero colonial/moderno, baseado nas dicotomias homem/mulher e público/privado, como o padrão. Isso ocultou sistemas de organização dos “mundos sexuais” nativos, em que muitas vezes as fronteiras entre masculino e feminino eram fluídas e as mulheres exerciam papéis importantes na vida coletiva. Não tratamos aqui de perscrutar esses sistemas “originais” e nem acreditamos que, hoje, isso seja possível. Porém, importa ter isso em consideração para um olhar etnográfico mais apurado. O ponto nevrálgico, locus em que os caminhos etnográficos se tornam mais “nebulosos”: ter o corpo marcado, como é o caso de indígenas e quilombolas mulheres/mulheres indígenas e quilombolas, pela violência física e sexual, muitas vezes infringida pelos próprios “parentes”, ou ainda por pessoas não indígenas e quilombolas, fato que mobiliza sentimentos como dor, sofrimento e vergonha. A possibilidade de ouvir (com tudo o que o ato da escuta representa para a Antropologia) implica em cuidados9 redobrados na interpretação de atos e falas que não são ditos a qualquer pessoa, nem em qualquer lugar. Os processos de violação dos corpos, vividos como eventos devastadores, segundo as interlocutoras, também formam seus modos de narrar, de liderar e de agir politicamente. De alguma forma, somos “ouvintes” privilegiadas, considerando a confiança com a qual fomos brindadas, portanto nosso compromisso com a ocultação das identidades é fato. O veneno da dor Veena Das (2008a), em seus escritos, problematiza a correlação entre dor e linguagem. Segundo a autora, por meio da expressão da dor, é possível sair da privacidade sufocante que ela produz na vítima. De acordo com Das (2008a), eventos devastadores produzem um tipo de conhecimento que só é alcançado pela experimentação do sofrimento, um conhecimento venenoso. Portanto, violências extremas não seriam apenas responsáveis pela destruição de vidas e corpos. Atuam, também, na construção de sujeitos e linguagens da dor. A enunciação da dor pede, portanto, admissão e reconhecimento, o que nem sempre ocorre. Trata-se, nos termos da autora, de sentir a dor no corpo do outro. Essa é a proposta ao fazer antropológico, requisitado de forma envergonhada, mas insistente por nossas interlocutoras. De acordo com Michael Taussig (1993), a reprodução da imagem dos povos indígenas como selvagens, irracionais e violentos é o que possibilita a propagação do terror colonial. E no caso dos coletivos quilombolas a estratégia de resistência e luta dos negros é imperdoável ao mundo colonial, afinal, os africanos são equiparadamente considerados, como os indígenas, pessoas desprezíveis. Trata-se uma operação mimética por parte do colonizador, que conduz a atos de extrema violência, não importando se esse imaginário é verdadeiro ou não. As culturas do terror criam, desse modo, o que o autor denomina como espaços de morte, nos quais indígenas, africanos e brancos viram nascer o Novo Mundo. Segundo Taussig (1993) o terror é o mediador por excelência da hegemonia colonial e acrescenta-se da discriminação presente em nossa sociedade. O autor afirma ainda que “... as culturas do terror são nutridas pelo entremesclar do silêncio e do mito.” (Taussig, 1993, 30) Os efeitos paralisantes e silenciadores do terror encontrariam na narrativa sua primeira possibilidade de cura. Quando decidiram falar sobre as violências que marcaram de forma mais ou menos severa suas trajetórias, nossas interlocutoras começaram a vencer a primeira imposição do terror, o silêncio. Como diz Maria Aparecida, quilombola, que por ser estudante universitária, escreveu seu depoimento: “não vou falar e também nunca escrevi, mas faço [o texto] porque não consigo explicar porque aconteceu comigo, talvez não haja explicação, e mesmo que tivesse jamais iria me fazer esquecer aquele homem imundo que me rasgou e tudo que aconteceu comigo. Neste caso, a forma de prevenção pra que não possa acontecer com outras mulheres é contar e contar do massacre que sofri. Mas para isso tenho que ter coragem para dar o testemunho, mas tenho muita vergonha por isso escrevo. Peço que a senhora conte, leve adiante, o massacre não pode continuar.” Para compreender o que diz Taussig (1993), traz-se à consideração e em complemento à Maria Aparecida, o depoimento de Maria Dolores, de pertença Kuruaya, que narra seu pânico no dia da violação, praticada dentro de sua casa, na frente do marido e das filhas, que à época tinham respectivamente oito anos e dois anos: “Dormi, como todas as noites, com meu marido e minhas filhas na minha cama. De madrugada acordei e levei o maior susto da minha vida, me deparei com um homem passando da sala pra cozinha, pois a porta do quarto ficava entre aberta durante a noite, então no primeiro momento imaginei que pudesse ser alguém de fora, pensei que fosse meu marido, então olhei na cama e vi as meninas e ele, percebi que tinha alguém na casa e não era o meu marido, ele dormia com as crianças. Logo depois minha filha de oito anos acordou e percebeu que eu estava bastante assustada e nervosa, então falei que tinha alguém na casa, pedi que ela não fizesse escândalo. Na hora, eu só pedia a Deus proteção pra minha família e, ao mesmo tempo, sem saber o que fazer e como agir naquela situação de angústia e muito muito medo.” Na sequência dos acontecimentos, Dolores se apercebe do perigo e evoca Deus: “... com toda Tua sabedoria me traz tranquilidade e, nas minhas orações, pedi que Deus fizesse aquela pessoa ter compaixão e não fizesse nada com meu marido e com as minhas filhas, eu coloquei minha vida nas mãos Dele. Eu dizia: Deus coloco minha família em suas mãos me proteja e me ilumine nesta noite, pois sei que corro perigo, me abençoe, te peço em amém. Dona a senhora já teve medo?” Dolores prossegue a narrativa, ofegante, e esclarece, “... agradeço todos os dias a Deus, eu esqueci parcialmente o fato, só que por mais que os anos passem, eu não consigo falar com as pessoas sobre o assunto, por medo e até mesmo vergonha.” O relato foi adiante, entrecortado pelo choro às vezes discreto, outras vezes convulsivo a ponto de interromper a narrativa. Ela segurava as minhas mãos10 com força, de certo ainda sentia pânico e as marcas corporais que se apresentavam vivas, intensas! O relato é bastante longo, mas importante para compreensão da dor, silenciada pelas circunstância e sobretudo pela vergonha. Diz a Kuruaya: “... trabalhei o dia inteiro, sou professora no bairro dos índios, local tomado pela violência. Nunca tive medo de nada. A casa é pequenininha. Toda noite eu tenho o costume de verificar portas e janelas, e nesse dia não foi diferente, entretanto nunca imaginei que alguém pudesse entrar na casa de alguém pelo telhado, por onde entrou o bandido. Quando me dei conta do perigo fingi que estava dormindo e observei por baixo do travesseiro que ele [o bandido] se aproximava e logo entrou no quarto meio agachado, ficando em volta do berço da minha filha. Chegou perto da cama e pôs a faca no meu pescoço, daí eu gritei e ele se debruçou em cima da cama fazendo ameaças, dizendo pra não gritar se não iria matar todo mundo caso eu não trepasse [mantivesse relações sexuais] com ele.” Dolores informou que ele estava visivelmente muito perturbado andando de um lado para o outro, parecia não saber o que fazer, aparentando transtornos. Tinha aparência de drogado, exalava mal cheiro, mas não parecia bêbado e nem cheirava a álcool. Ela continua: “... depois da ronda pela casa, ele saiu um momento do quarto e eu disse ao meu marido finge que dorme e cuida das meninas, pois ele vai voltar. Minha filha que estava acordada chorava muito e falei pra ela ficar bem caladinha como se estivesse dormindo foi o que ela fez, ficou quietinha abraçada à irmã e ao pai. Ele voltou e me obrigou a manter relações sexuais com ele. Sem saber o que fazer, pedia ajuda a Deus. Aquilo foi uma humilhação muito grande, na minha cama, com o meu marido vendo tudo e as minhas filhas então? Até hoje não sei “transar” como antes, a lembrança me perturba, tenho problemas, passo mal, meu marido não se conforma, reclama. Temo que me abandone por isso. Com os olhos distantes, como se voltasse à cena do crime, Dolores informa: “... pela conversa dele, percebi que ele não falava coisa com coisa, às vezes parecia tranquilo, daí a pouco se exaltava e com a faca na mão, junto do meu pescoço. Que medo! Quando ele falou que iria fazer sexo comigo, tornei a me apavorar e, na hora, pensei na família e o quanto seria pior se fossem com as minhas filhas, pensei que era melhor eu ceder do que ele fazer algo pior conosco, ele sentou na cama e falou que não era pra eu gritar, era melhor pra mim. Ele se serviu de mim duas vezes e perguntava, gostou cachorra, tu foste pega no dente, índia é tudo assim ... Eu desesperei, além de me usar me humilhava e minhas filhas e meu marido assistindo, acho que a pequena não acordou, nem sei ... quando percebi que ele tinha saído da minha casa parece que o mundo caiu sobre mim, não tinha reação de nada lembro que peguei o celular, mas não tinha condições de ligar pra ninguém, acho que ainda não tenho mundo.” Abalada, Dolores confessou que teve dificuldade de identificar o criminoso, mas o fez. Ele respondeu processo e foi condenado, o fantasma à época era a saída do agressor da cadeia. Ela ainda vive aos sobressaltos, pois se aproxima o final do cumprimento da pena. As categorias sobre violência: enredamentos na narrativa das mulheres Nos diálogos estabelecidos com as interlocutoras é possível detectar em seus depoimentos e mesmo discurso de indígenas e quilombolas, uma série de categorias a respeito de eventos que, do ponto de vista antropológico, poderiam ser definidos analiticamente como situações de violência, embora dificilmente nossas interlocutoras tenham usado explicitamente o termo violência, as protagonistas referiram-se a todo momento a situações que atingiam seus corpos individual e coletivamente. Os corpos são atingidos de forma coletiva na medida em que a corporeidade e construída socialmente e as violações são estruturais e não individuais, além de engendrarem dor e resistências. Os fatos narrados aproximam-se da definição de violência proposta por Paula Lacerda (2015) que a entende como: [...] um amplo conjunto de situações que poderiam ser percebidas, de outro ponto de vista, como ‘causadoras de sofrimento’, pessoas se apresentam como ‘vítimas de violação de direitos’, o que as transforma em sujeito e potencializa o alcance de suas reivindicações.” (2008, 28) A primeira categoria que se refere a tais processos diz respeito a violência enfrentada coletivamente pelo povo Tembé Tenetehara na Colônia Santo Antônio do Prata, educandário que recebia as crianças indígenas sequestradas de suas comunidades e apartadas de seus parentes para serem educadas, catequizadas e “civilizadas” com base na pedagogia cristã dos missionários Capuchinhos. Posteriormente, a Colônia foi transformada em Leprosário e a ameaça de contrair a doença afastou ainda mais os Tembé Tenetehara do território que tradicionalmente ocupavam. No período de instalação do Leprosário, conforme conta Dona Maria Joana, circulava na região o boato de que era possível curar a hanseníase se o doente comesse o fígado de uma pessoa saudável. Na época chegaram a ser encontrados na mata cadáveres com o fígado retirado, o que reforçava ainda mais o temor de que uma das pessoas a serem mortas pudessem ser Tembé Tenetehara. É desse cenário que emerge a categoria massacre: as interlocutoras constantemente reafirmam, ao dizer dessas memórias que “o nosso povo foi muito massacrado no Prata”. A noção de massacre parece elucidar mais enfaticamente os acontecimentos que a categoria violência, uma vez que as violações enfrentadas coletivamente pelos Tembé Tenetehara – ditos de Santa Maria – incluem espoliação territorial, epistemicídio, quebra dos laços de parentesco e, em última instância, o adoecimento e a morte dos membros do povo. O mesmo ocorre com as mulheres Xipaya e Kuruaya que, expulsas de seus territórios no médio Xingu, vieram à cidade e vivem presas a espaços, onde sequer podiam, há 10 anos, se declarar indígenas. Eram, como referem algumas das interlocutoras, impedidas de falar a língua materna, enfrentaram o massacre da discriminação, produzida pelo racismo que se apresenta em estratégias de dominação de ordem material e ideológica, utilizada pelas estruturas coloniais para manter status privilegiado de membros do grupo dominante, produzindo a perene subalternidade dos povos etnicamente diferenciados (Moreira, 2016 ), não fosse a luta que empreendem diuturnamente. No caso das quilombolas o massacre foi/é pesado e reproduzido nas diversas narrativas. A segunda categoria que diz de processos de violência é a de escravidão. Conforme explica Maria da Paz: “os antigos do nosso povo tratavam a mulher como escrava. Ela só servia para ter filho, cuidar da casa e da roça, ser usada pelo marido e trabalhar pro pai. Hoje não pode mais ser assim, mas muitos homens no nosso povo e de fora querem tratar as mulheres nessa escravidão.” A categoria escravidão parece dizer respeito a crítica que as mulheres indígenas fazem sobre a condição feminina dentro das diversas comunidades. O entendimento de que as mulheres eram e são tratadas como escravas, guarda em seu interior a reivindicação de que sejam entendidas como sujeitos, dotadas de direitos, vontades e voz. Tal categoria diz respeito a forma como as interlocutoras pensam a mulheridade e a crítica que fazem por não serem reconhecidas de tal forma. Entre as quilombolas a condição de escrava é mencionada por conta das avós e das bisavós, entretanto, algumas vezes, a condição passada é negada para não comprometer a luta e favorecer a discriminação. A terceira categoria nos parece a que possui maior tensão ao ser utilizada analiticamente: trata-se da categoria maldade. Durante muito tempo do percurso das pesquisas que apontavam para as categorias nativas, evitou-se conjecturar sobre a mesma, por receio de que escrever sobre o assunto pudesse “dar munição” para os antagonistas em relação aos povos tradicionais. Entretanto, ao buscar as noções de justiça que permitem a luta política das mulheres, a maldade atravessou o percurso da problematização. As interlocutoras com quem se dialogou nomeiam como “homens maus” aqueles que agridem seus corpos, física e/ou sexualmente. E, a essas agressões, as mulheres indígenas dão o nome de maldades. As quilombolas, algumas vezes referem-se às violações dos homens maus, como malinesas. Denominam malinesas às penas impostas, pelos encantados, a homens (e também à mulheres) que vivem fora das normas tradicionais, malinesas que trazem como consequência efeitos deletérios às relações sociais. Malinos são os encantados que castigam os transgressores com o mal, tornando-os perniciosos ao convívio social. Os encantados que “jogam a malinesa” vivem nas matas e nos cursos d’água e por serem donos dos espaços, exigem reverências e cumprimento de obrigações, nem sempre observadas pelos homens maus que terminam “malinando” com as mulheres (ou mulheres que malinam com homens). No caso da maldade ou da malinesa entre indígenas e quilombolas, uma e outra não integram a essência dos humanos, são tomadas pelas interlocutoras como condição que, dependendo do comportamento, pode ser afastada dos humanos, sempre que, arrependidos, voltem a cumprir as obrigações com os encantados. A tensão reside no fato de que muitas vezes os homens maus ou malinos podem ser companheiros das mulheres indígenas e quilombolas ou lideranças dos referidos coletivos. Duas situações parecem ilustrativas de como a categoria maldade é posta em ação. A primeira delas diz respeito a história contada por Maria Laura, que teve a filha Maria Conceição sequestrada por um homem que circulava na comunidade. A menina passou oito dias em cativeiro submetida a violência física e sexual pelo agressor. Por fim, depois de espancá-la quase até a morte, o criminoso abandonou-a sozinha na casa onde a escondia. Embora Maria Conceição tenha sido encontrada com vida e acolhida sob o modo Tembé de cuidar do corpo, a marca da violência permanece para o resto da vida e o fato de o agressor ter muito dinheiro, à época, assegurou-lhe a impunidade. Ao contar a história de sua filha, Maria Laura referiu-se ao criminoso como um “anjo mau”, aproximando-o do mito bíblico que conta a história de Lúcifer. A mesma categoria foi utilizada pela filha de Maria da Paz, Maria Lídia, para referir-se ao seu pai. Na época ele se encontrava doente, com desmaios e fraquezas constantes, e as causas não puderam ser identificadas pelos médicos que a família procurou. Maria da Paz, desde que a conhecemos, narra as agressões cometidas pelo marido, que espancava ela e os filhos e dizia constantemente a todos palavras duras, que “machucavam” quem as ouvia. Conversando com Maria da Paz e Maria Lídia, a filha afirmou que a doença do pai era um “castigo por todas as maldades que ele fez com a gente”, com o que Maria da Paz concordou. A noção de maldade parece ter um sentido diferenciado para as mulheres indígenas se comparada aos usos que assume na sociedade dita ocidental. Enquanto no ocidente a maldade é frequentemente tomada como propriedade de pessoas perversas, entre as protagonistas indígenas a categoria parece se aproximar do que a Antropologia e os movimentos de mulheres tem chamado de machismo ou violência de gênero. Atentar para o uso diferenciado do termo pelas interlocutoras só foi possível em função do envolvimento etnográfico no contexto em que estas se inserem e por meio do diálogo e inflexão mantida pelas autoras. Por fim, a última categoria percebida como o sinônimo nativo para a violência é a de machucar. Frequentemente usada na sociedade ocidental para designar ferimentos físicos, sejam acidentais ou infringidos, machucar entre as mulheres indígenas refere-se ao ato de dizer palavras ofensivas e duras, que atacam a honra e o caráter das pessoas atingidas. Nos relatos de violência dentro das relações com os maridos – sejam eles indígenas ou não – as interlocutoras afirmam que as palavras duras são tão dolorosas e machucam tanto quanto agressões físicas. Tendo em conta a lei brasileira sobre violência doméstica, temos que o “machucar” talvez possa ser compreendido como violência psicológica11 , uma entre as possibilidades de violência contra a mulher, deslindadas nesse diploma legal. Entre as quilombolas há narrativas que informam que as palavras ofendem mais que serem marcadas por paus, chicotes e outros instrumentos de agressão. As marcas físicas podem ser tratadas, curadas, mesmo que levem tempo, mas as marcas dos machucados ferem a alma (para além do corpo) e permanecem na memória das interlocutoras e nada nem ninguém faz desaparecer. Abaixo as correspondências relativas às categorias éticas e êmicas. Thumbnail  Quadro 1 : Categorias éticas e êmicas sobre violência As categorias relativas à agência: a resistência das/entre mulheres Uma das principais questões que se tornaram visíveis no diálogo com as interlocutoras diz respeito ao fato de que as violações que atingem os corpos das mulheres jamais foram aceitas de forma passiva, elas não se deixam paralisar. Os processos de agência – aqui utilizada no sentido atribuído por Pierre Bourdieu (1983) e Anthony Giddens (1984) – e resistência, sempre estiveram presentes nas trajetórias das indígenas e quilombolas. O silenciamentos via etnocídio atingiu seus corpos e vidas, mas não se consolidou na medida em que as protagonistas sempre estiveram dispostas a buscar alternativas e resisitir. É com o intuito de romper com o etnocídio e a destituição da memória de seus coletivos que as mulheres indígenas ou quilombolas contam histórias de extrema violência no contexto da pesquisa; supomos que elas acreditam que por meio do registro na produção antropológica, as interlocutoras mantém a expectativa de que as memórias não sejam esquecidas nem apagadas, mas que, pelo contrário, permaneçam vivas na luta por direitos coletivos e por reconhecimento. Relatar as estratégias de agência e resistência e o protagonismo das interlocutoras frente a situações de poder assimétricas coaduna-se com o objetivo de “contar para prevenir”, como disse Maria dos Anjos, há anos, quando em uma roda de conversa aconselhou as jovens presentes: “... não guardem segredos, eles envenenam a vida. Não façam como eu que evitei contar as malinesas, daí não consegui domei os maus [homens] da minha vida. Nem os de casa, nem os da rua e ninguém deve machucar nossas almas, somos pessoas, [e olhando firme as meninas moças da roda] devemos reagir, assim as malinesas vão pra longe da comunidade.” De fato, contar a história parece uma das principais categorias que distinguem a agência das mulheres diante da violência sofrida. O trabalho das autoras, membros da equipe de antropólogos do Grupo de Pesquisa Cidade, Aldeia & Patrimônio só teve início a partir do convite dos membros da comunidade para que os pesquisadores escrevessem a história do povo Tembé Tenetehara e de outros povos indígenas e quilombolas, como informamos à partida. Quando na comunidade, muitos pesquisadores foram “intimados” a entrevistar os membros mais velhos da comunidade, para garantir que as histórias que estes se lembravam fossem registradas antes que se perdessem com seu falecimento. Maria Laura, com o início das pesquisas na comunidade, decidiu começar a escrever diários, onde poderia registrar suas memórias pessoais e coletivas e repassar para os pesquisadores do grupo. Outra categoria importante nos processos de agência das mulheres indígenas, especialmente as Tembé, é a do cuidado. Conforme elucida Maria Laura: “... o nosso povo foi muito massacrado no Prata. Morreu muita gente. A gente jamais podia dizer que era índio, até hoje nós vivemos discriminados. Hoje tá muito melhor, a gente vive junto, faz nossas festas, cuida uns dos outros e o nosso povo se alegra. Mas vive com a discriminação. Não podemos usar uma roupa, que já dizem que nós não somos índios. Eu vou dizer que eu sou uma portuguesa, sendo que eu não sou? Até tem gente que diz, mas eu não digo. Eu digo o que eu sou, eu sou Tembé. Mas tem que viver com a discriminação.” Ao contrário da visão de cuidado amplamente discutida na literatura produzida na área da Enfermagem, pautada na atenção e medicalização de pessoas com doenças, ou deficiência, o cuidado tembé e das demais etnias é holístico e alimenta o corpo de forma completa, por meio do sistema tradicional de ação para saúde, que contempla não apenas o cuidado com o corpo, mas a proteção espiritual, e as lutas políticas por uma vida melhor, que acarretam uma corporeidade saudável. E esse corpo não se estrutura desconectado do ser indígena, com toda a carga política e epistemológica que a identidade enseja para as tembé, xipaya e kuruaya. Cuidar de si e dos seus implica em se proteger de violações e fortalecer o grupo para que as lutas políticas possam ser continuadas. Nesse sentido, o cuidado de si constitui um empreendimento que conforma resistências políticas, materiais e epistemológicas, em um contexto no qual o corpo vem à cena tanto como território de lutas e afirmações identitárias, quanto como alvo de opressões e estigmas. Com as mulheres quilombolas a situação é semelhante, sempre que alguém se machuca a cura vem via sistema tradicional de ação para saúde, mesmo que a pessoa machucada e violada receba atendimento dentro do sistema ocidental de ação para saúde. Outra categoria percebida como forma de agência das mulheres nas tensões que envolvem os maridos diz respeito a educação dos filhos. Segundo Maria Laura: “... a mulher é que educa o filho. Se ela não mandar ele ir lá, tomar a bença do pai, fazer um carinho no pai, ele não vai, não, fica na dele. Foi por causa de um dos meus filhos que meu marido parou de me bater. Um dia, ele era novinho, magro, magro... Ele virou pro pai e falou: “O senhor nunca mais vai bater na mamãe, hoje foi o último dia”. O pai perguntou: “E o que tu vai fazer?”. E ele disse: “Eu não sei, mas o senhor não encosta mais um dedo nela”. Depois disso, nunca mais ele me bateu.” Uma das filhas de Maria Laura, ao ver o pai com outras mulheres na rua: “... fazia um escândalo, batia nela. Uma vez enchi as coisas da mulher de areia, ficou tudo sujo. Depois ele metia a porrada em mim quando chegava em casa, mas eu nunca deixava barato.” Atualmente as crianças que na infância enfrentaram os pais em defesa de suas mães, criam redes de apoio e acolhimento das indígenas mulheres em situação de violência, seja recebendo-as em suas casas, rezando por elas ou conversando com os maridos e, muitas vezes constrangendo-os perante os demais parentes. Maria José, quilombola da comunidade Maria me ajude constrangia o marido, mostrando de casa em casa os ferimentos produzidos pelas surras que levava, porque teimava em estudar. A peregrinação de casa em casa produzia o recolhimento do agressor que, alcoolizado, tinha produzido as maldades, malinado a protagonista. Por fim, a última categoria percebida como característica da agência empreendida pelas mulheres tembé em relação a violência diz respeito ao processo de fechar o corpo. Prática também verificada entre as quilombolas. Em um contexto em que as violações de direitos ocorridas em hospitais são reais e prováveis, fechar o corpo contra coisas ruins é essencial. Entre as práticas frequentes, temos: rezar na cabeça de criança com febre; ministrar ervas medicinais para pessoas que adoecem ou são envenenadas; manter a gravidez ou interrompê-la quando as vidas da mãe e da criança estão ameaçadas; são exemplos de saberes e fazeres acionados no agenciamento de situações consideradas de risco, em que se sabe que o acesso ao sistema ocidental de ação para saúde não responde satisfatoriamente ou há dificuldades em acessá-lo. Fechar o corpo entre os povos tradicionais implica proteger as pessoas da comunidade tanto no plano físico quanto no espiritual. Os rituais podem ou não estar relacionados à alguma forma de religiosidade indígena afro-brasileira ou ocidental. Uma das interlocutoras, reconhecida “por ser uma das mais antigas dos nossos antepassados”, entre os Tembé, relata que nos tempos antigos, quando houve grande incidência de hanseníase na região, ela conseguiu paralisar o avanço da doença no corpo de uma das pessoas da comunidade utilizando as propriedades do mucuracaá, uma planta medicinal que também é utilizada entre os tembé para combater o mau-olhado. Outras indígenas afirmam que uma mulher grávida que estivesse sob os cuidados de Maria Carmen estaria em boas mãos, uma vez que ela acompanhava a gestação desde os primeiros meses até a hora do parto, no qual a mulher era virada de lado e dava a luz enquanto a interlocutora rezava em sua barriga. Despois do parto, a profissional de saúde permanecia na casa da parturiente até o resguardo terminar, portanto eram quarenta dias de cuidados diferenciados. Durante uma das idas a campo, a mãe de uma criança que havia nascido há pouco tempo encontrava-se aflita, pois o bebê não parava de chorar e não costumava ser assim. Nesse momento, Maria Carmen, sogra da mãe da criança, entrava na casa e, ao se dar conta da situação, perguntou se a menina havia ido tomar banho de igarapé. Como a resposta foi afirmativa, a interlocutora disse: “... minha filha pegue alho, amasse e misture com álcool e deixe um tempo. Depois passe com o dedo na palma da mão da neném, na sola do pé, no braço e na coxa, em forma de cruz. Vai ficar um cheirinho ruim, mas não tem problema, ela vai melhorar. Ela deve ter visto alguma coisa no igarapé, criança é muito sensível, parece um pintinho novo. Quando eu era pequena, minha tia levava a gente pro igarapé, mas ela entrava primeiro, pedia licença pra mãe da água pra gente entrar e jogava o alho na água, aí o banho era sossegado.” O alho é antídoto (combate o veneno) para os encantados que “jogam malinesa” quando as pessoas não reconhecem as regras, que não se referem apenas aos espaços de domínio dos mesmos, mas às horas proibidas do dia e da noite. A paçoca de gergelim preto “pisada” com hortelã é utilizada para “botar pra fora” (as indígenas não utilizam o termo “aborto”, as quilombolas usam expulsar), principalmente quando a gravidez ameaça a vida da mãe ou quando o parto é de risco. Para mulheres grávidas que sentem dores, ministra-se chá de gengibre. Para inflamações, especialmente em casos de problemas de próstata, o caroço de abacate mostra-se eficaz. Crianças, quando morrem antes do batismo, segundo os católicos, choram durante sete dias e precisam ser batizados para que “descansem”. A última prática mostra-se elucidativa da forma tembé de pensar a construção da “pessoa”, a partir do ato de batizar a criança morta. Para os Tembé Tenetehara não se deve negar às pessoas mortas, quando oriundas de famílias cristãs, o direito ao ritual de batismo que as forma e legitima. As situações acima descritas, integrantes das observações de campo, revelam que mesmo enfrentando situações de precariedade e violência, as mulheres exercem seu protagonismo, instituindo o “ser sujeito” e encontram alternativas para agenciar situações de violência. O corpo e as múltiplas corporeidades que coexistem entre as interlocutoras são territórios privilegiados da resistência de indígenas e quilombolas mulheres e das formas de cuidar de si mesmas. Thumbnail  Quadro 2 : Categorias êmicas e éticas sobre agência Entre oitivas e traduções Os diálogos em campo demonstram que os atos e falas das interlocutoras são ferramentas importantes para a compreensão de suas realidades. Ao mesmo tempo, analisar o discurso no contexto das relações antropológicas passa a ser um desafio, na medida em que aponta para a necessidade de proceder o controle das dificuldades de tradução etnográfica, dos etnocentrismos ocidentais e do viés da colonialidade vigente. Em trabalho de grande influência e repercussão, Gayatri Spivak (2010) questiona criticamente a (im)possibilidade de fala de determinados grupos. A autora constata que os subalternos em geral, e o sujeito historicamente emudecido, a mulher subalterna em particular, foram e são, ao longo da história, mal compreendidos ou mal representados pelo interesse pessoal dos que têm poder para representar. A proposição instigante de Spivak (2010), além de elucidar silenciamentos, colonialismos e violências, também aduz escutas anti-hegemônicas, epistemologicamente desobedientes, pós-coloniais. Inspirada pela reflexão provocativa da filósofa indiana, Lacerda (2014) considera que em meio a tentativas de silenciamento, os grupos e sujeitos subalternizados – e esse é um deslocamento analítico fundamental para que a subalternidade não seja entendida como lugar paralisante e intransponível – estão falando. Superando a perspectiva colonialista que pretende “dar voz” aos grupos subalternizados por meio da pesquisa, Lacerda (2014) tensiona a questão que orienta Spivak (2010): como o não subalternizado, o privilegiado, pode escutar? As posições teórico-epistemológicas (que também possuem caráter político) adotadas na presente discussão objetivam favorecer a escuta etnográfica mais responsável, capaz de superar estereótipos de passividade e compreender indígenas e quilombolas como sujeitos de suas próprias histórias. A estruturação do olhar antropológico sobre o campo, em diálogo com os conceitos e categorias referidas, foi essencial para compreensão das interlocutoras como protagonistas de suas próprias histórias, não como vítimas passivas, desagenciadas e paralisadas diante de violações. Qualquer procedimento em sentido contrário seria uma prática etnocêntrica. Atentar para as narrativas das mulheres indígenas e quilombolas, a partir do que foi explicitado, é um esforço que vai além de retomar o protagonismo de vozes subalternizadas. Trata-se de uma tentativa de constituição de possibilidades de outra epistemologia, outras referências e sensibilidades, diferentes das que o pensamento colonial afirma serem as únicas dignas de serem aprendidas e respeitadas. A partir das falas desses sujeitos, confrontamos a tentativa histórica de epistemícidio (Santos, 2010) e assimilação que incide sobre os povos indígenas e quilombolas, e, mais especificamente sobre mulheres indígenas e quilombolas/ indígenas e quilombolas mulheres. Trata-se de uma opção metodológica que abriga dimensões e responsabilidades políticas, de contemplar enunciações ditas e tomadas como periféricas e arbitrariamente alijadas pelo pensamento ocidental e colonial. Por diálogos e justiças A diversidade das agências e possibilidades de justiça nos permite esterçar para diferentes lados saindo dos limites de nossos axiomas, verdades que consideramos inquestionáveis e supostamente válidas universalmente. Axiomas estes que muitas vezes são utilizadas como princípios que mantém privilégios de uns em detrimentos de outros secularmente subalternizados. Não se trata de atribuir valor superior aos conhecimentos tradicionais ou mesmo de aderir a eles, mas de considerá-los em diálogo para produzir a melhor justiça, sem diluí-los na ciência desenvolvida na academia. A importância das reflexões que se faz é tentar indicar que as agências das mulheres e modos diversos de conhecimentos, é indicar também que se pode pensar de outro modo e que os variados sistemas de justiça precisam, de fato, dialogar. Sabemos que os estudos acerca da violência de gênero no país muitas vezes utilizam o termo violência sem muita precisão, como se violência doméstica, violência intrafamiliar, violência contra a mulher, entre outros, fossem capazes de abarcar reflexões sobre realidades diversas. Fazer o esforço de compreender noções êmicas do termo afasta o perigo da reificação e induz a “diálogos ouvintes”, que postulamos aqui, em contraposição aos “diálogos surdos.” Ainda sobre a questão dos termos utilizados para abordar a violência, contemporaneamente tem se preferido falar em mulheres em situação de violência ao invés de violência contra a mulher, para indicar que a violência é transitória e não um destino que as mulheres devem cumprir (Campos, 2011). Além disso, a mudança de termo e, por conseguinte, de enfoque, impele a pensar a questão fora do molde algoz versus vítima, possibilitando compreender que, mesmo sendo vítima, especialmente num sentido jurídico-estatal, não significa não ter poder e força de resistir. As narrativas e corporeidades de mulheres indígenas e quilombolas/ indígenas e quilombolas mulheres desafiam compreensões do senso comum sobre situações de violência e nos fazem compreender que vítimas são sujeitos. Dessa forma, como sujeitos que são, devem poder acionar sistemas tradicionais de justiça ou mesmo a “justiça dos brancos”, como dizem algumas. Porém, a colonialidade, especialmente a de gênero (Lugones, 2008 ) cria contextos em que os dois lados olvidam as demandas pelo fim de maldades e malinesas. Referências bibliográficas ALEIXO, Mariah Torres. 2015. Indígenas e quilombolas icamiabas em situação de violência: rompendo fronteiras em busca de direitos Dissertação de mestrado, Programa de Pós-Graduação em Direito, UFPA. (Inédita) BELTRÃO, Jane Felipe. 2012. Histórias ‘em suspenso’: os Tembé ‘de Santa Maria’, estratégias de enfrentamento do etnocídio ‘cordial’. Revista História Hoje, São Paulo, v. 1, no 2, p. 195-212. BOURDIEU, Pierre. 1983. Esboço de uma teoria da prática In: ORTIZ, Renato (Org.). Pierre Bourdieu: sociologia São Paulo: Ática, p.46-81. BRASIL. 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Tempos difíceis. Sobre a importância do feminismo*