Corpos urbanos errantes: uma etnografia da corporalidade de moradores de rua em São Paulo. São Paulo c
Assunto: Corpos urbanos errantes: uma etnografia da corporalidade de moradores de rua em São Paulo. São Paulo
Corpos urbanos errantes: uma etnografia da corporalidade de moradores de rua em São Paulo. São Paulo
POR SYLVIAROMANO APOIADA POR SIMONE FRANGELLA
Anablume, Fapesp, 2009, pp. 361.Taniele Rui Doutoranda PPGAS/Unicamp“Um corpo tem de ocupar um lugar no espaço”, diz a famosa lei da física que, proferida por Raimundo Sobrinho, morador de rua na avenida Pe-droso de Moraes e alçada à epígrafe do livro da antropóloga Simone Fran-gella, passa a ter o estatuto de nos desafiar a olhar como etnograficamente corpo e cidade podem se relacionar. Defendida como tese de doutorado em 2004, a instigante problemática de pesquisa investiga a construção da corporalidade de moradores de rua – homens e mulheres – adultos na cidade de São Paulo, e o modo como esta situação de habitar as ruas nessa faixa etária os faz experenciar a geografia urbana de forma bastante particular. Inspirada pelas reflexões de Michel de Certeau, a tese central de Frangella é a de que no momento mesmo em que parecem inclinados a permanecer reclu sos em seus limites de sujeira, de marginalidade e de não posse, os moradores de rua acabam por construir uma retórica pedestre resistente que só pode ser entendida em relação a ideologias políticas e econômicas oficiais de ordenação do espaço.Interessada na origem histórica dessa categoria e nas imagens que ela evoca, a antropóloga apreende moradores de rua como um segmento so-cial particular no espaço urbano, “uma categoria que, em função de inúme-ras e diversas trajetórias de desvinculação social e econômica, passa a habitar ‘cantos’ da cidade impensáveis ao planejamento urbanístico e ao imaginário
Revista de Antropologia, São Paulo, USP, 2010, v. 53 nº 2.- 802 -coletivo dos citadinos” (p. 16). Figura presente desde a criação do mundo urbano ocidental – a tal ponto que não é possível pensar em uma cidade sem moradores de rua – esse segmento se contrapõe cotidianamente às estratégias econômicas e políticas que ideologizam as urbes contemporâ-neas, mais notadamente as metrópoles. Por meio de seus próprios passos, defende a autora, o morador de rua está sempre resistindo material e simbolicamente à sua extinção na cidade. Ao invés de adotar termos “politicamente corretos” para definir esta condição, a autora opta por mostrar como também esses termos – sans-abri, homeless, sem-teto, população em situação de rua – são, a partir da dé-cada d e 1970, frutos da gradual adequação da realidade desse segmento à noção de exclusão social, representando uma espécie de categoria abstra-ta de reagrupamento das populações que, em diversas épocas históricas, sempre se situaram à margem do sistema de organização social, isto é, fora do sistema de produção e de consumo padronizados. Com isto, ela mos-tra também que, na experiência contemporânea, as categorias homeless ou em situação de rua funcionam como um termo cuja ressonância política é menos excludente e mais homogeneizadora. Sob essa nomeação, con-tudo, estão configurações muito distintas: o andarilho em deslocamento contínuo, o mendigo, os “loucos de rua” e, ainda, desempregados que vivem temporariamente nas ruas e frequentam albergues. Embora a for-mula & ccedil;ão de uma categoria política promova maiores possibilidades de sua inserção social e/ou a atenuação da condenação de sua imagem, ela não elimina a movimentação errante como um modo de vida de parte desse segmento. E nisto reside um dos maiores paradoxos enfrentados ao longo da pesquisa: se, de um lado, a errância que os constitui escapa às políticas sociais assistenciais, por outro, ela é impulsionada por políticas urbanas excludentes e controladoras da funcionalidade do espaço. Ainda é importante dizer que não se trata, obviamente, do único segmento que
Revista de Antropologia, São Paulo, USP, 2010, v. 53 nº 2.- 803 -vive o circuito nômade na cidade, mas sim que ele possui a especificidade de subverter, de forma radical, o sentido homogeneizador do espaço da rua, ao condensar neste a dimensão pública e privada de sua vida.Antes de adentrar propriamente na etnografia da corporalidade dessa categoria, que é simultaneamente social e individual, a autora ainda nos convida a rever imagens sobre os moradores de rua projetadas no cinema (primeiro capítulo), onde também ali possuem um estatuto ambíguo: os moradores de rua parecem ver aquilo que não é percebido ao mesmo tempo em que são a representação do sujo, do poluído e do poluidor; como se o sofrimento e o isolamento associados a esse mundo os tornasse portadores de sabedoria sobre a vida, sobre a dor e a veracidade dos va-lores e sentimentos, exemplos de redenç& atil de;o e provadores da moral social. Pela condição em que vivem, tornam-se por excelência os contadores de histórias nunca vistas, testemunhas dos crimes na rua, de negociações ilícitas, de aventuras estranhas pelo espaço urbano, sendo também os ve-ículos dessa poluição e potencial instrumento de práticas contraventoras, onde se destaca a imagem da abjeção. Essas duas imagens conformam, assim, um universo ambíguo, onde a possibilidade de redenção social e moral pelo sofrimento extremo convive com um processo contínuo de desmoralização e de desumanização. As imagens cinematográficas têm ainda a vantagem de salientar uma característica muito relevante dessa experiência de morar nas ruas: o tem-po, que gradualmente entrelaça processos de perda e despojamento com aderências contínu as &a grave;s condições irregulares e escassas da rua, com a reformulação criativa de signos do espaço urbano e de interações sociais, e com o estigma que se torna o traço distintivo de sua condição. Ou seja, o que revela sua particularidade é que o momento vivenciado na rua re-vela um processo de profunda deslocalização e uma sujeição gradual, em muitos casos permanente, à vulnerabilidade física, psicológica, material
Revista de Antropologia, São Paulo, USP, 2010, v. 53 nº 2.- 804 -e simbólica. Nesse sentido, o estar na rua provoca, sobretudo, reflexões sobre os limites da experiência humana. Desprovidos de bens materiais, sem casa, absolutamente fora das práti-cas de consumo, envelhecendo na rua, o corpo é o único suporte que lhes resta e que lhes é irredutível. Nesse sentido, a trajetória do morador de rua é eminentemente corporal: o corpo traz a visibilidade dos processos que marcam a homogeneização política desta categoria e as suas distintas formas de se relacionar com o espaço urbano; é sobre ele que se projetam as contínuas e sucessivas intervenções e manifestações de violência que atualizam cotidianamente as tentativas de exclusão desse segmento; mas é também a partir do corpo que surgem as possibilidades de resistência do morador de rua à exclusão. Em acordo com teorias mais recentes acerca do estatuto do corpo na pesquisa social, Frangella apreende este como uma atividade simultaneamente física, simbólica, política e social, que se constrói na relação com outros corpos e na interface com a dimensão espacial e social das ruas da cidade. É no deslocamento pelo centro da cidade que os habitantes de rua afir-mam a sua existência, expressam sua subjetividade, criam possibilidades de agência, ainda que sob a marca do estigma, da subtração e da deficiên-cia. E se para apreender a corporalidade dos moradores de rua é preciso entendê-la na interface desse corpo com o espaço urbano, também a rua não pode ser considerada um mero logradouro. Ao longo do livro, ela emerge como um espaço urbano sobre o qual se constroem um conjun-to de açõ ; ;es que atribuem sentidos múltiplos e divergentes de lugar e de pertencimento. Portanto, tornar-se um morador de rua significa também alterar o espaço urbano e ser alterado por ele. Como se vê – e como tam-bém aponta Maria Filomena Gregori na apresentação do livro – não há aqui qualquer alusão a uma identidade fixa, estanque e irredutível, mas a uma condição individual e social que, em muitos casos temporária, tam-
Revista de Antropologia, São Paulo, USP, 2010, v. 53 nº 2.- 805 -bém pode marcar um envelhecimento na rua. A pesquisa etnográfica foi realizada em vários cenários distintos: no Refeitório Penaforte Mendes, localizado no bairro da Bela Vista, no cen-tro de São Paulo, no bairro do Brás, mais notadamente na Praça Metrô Brás. Cada um desses cenários possibilitou à autora apreender distintos aspectos dessa corporalidade. Entidades de acolhimento e serviços vol-tados a essa população também receberam atenção descritiva e analítica (capítulo 2), na medida em que elas acabam por constituir esse universo: são fonte de recursos e oportunidades no deslocamento do habitante de rua; minimizam sua condição de sofrimento e são, em muitos momentos, mediadores de relações de conflitos entre eles e os agen tes que promovem sua expulsão dos lugares, ou entre eles e a opinião pública.Todo o restante do argumento (capítulos 3, 4 e 5) é a etnografia dessa corporalidade, a meu ver, a principal contribuição do livro, uma vez que nos revela empiricamente a ambiguidade, a agência e ao mesmo tempo os condicionamentos aos quais estes corpos estão submetidos. E não por acaso essa etnografia se inicia pelos pés: a marca mais evidente da situação de rua, da exposição corporal e da subtração material e social que caracteriza suas vidas. As distintas formas pelas quais os pés se apresentam, vai mostrando a antropóloga, moldam-se à heterogeneidade da circulação na rua, criando uma sutil diversidade, constituída de acordo com um grau de sujeira e com a facilidade ou dificuldade de acesso a sapatos. Nesta dinâmica, há uma distin&am p;cce dil;ão entre ter pés limpos e pés sujos e outra entre usar sapatos fecha-dos e usar chinelos ou estar descalço. Os chinelos são apresentados como a fronteira entre a nudez absoluta dos pés e o asfalto e, consequentemente, o último elemento da exposição de sua realidade “sem-nada”. Também a pele é um instrumento relevante para decifrar a linguagem dos embates que cercam os moradores de rua, na medida em que a sujeira torna-se o seu atributo corporal mais destacável; o forte cheiro que exala
Revista de Antropologia, São Paulo, USP, 2010, v. 53 nº 2.- 806 -de seu corpo é, ao mesmo tempo, motivador de vergonha e forma de isolamento, signo de abjeção e veículo de proteção. É ainda no espaço da rua que os moradores têm que gerenciar a redução das dimensões pública e privada de sua vida. Levando em conta que tal espaço não é formatado, na urbanidade contemporânea, para a exposição e realização de práticas do mundo privado, a construção desse último no universo do morador de rua depende de forma inequívoca da corporalidade dos sujeitos que o habitam. Assim, práticas de asseio diário e formas de sexualidade e inti-midade também entram no rol da descrição de Frangella. Meninas e mu-lheres que permanecem nas ruas aparecem enfrentando cotidianamente o caráter masculino que reveste este mundo da itinerância na cidade.Os materiais descartáveis, de um lado, fonte de renda, podem ser tam-bém a extensão deste corpo: os materiais com que se cobrem acabam por mimetizá-los aos outros restos urbanos, criando uma invisibilidade que, por sua vez, provoca situações contraditórias. Casos extremos como o de Ricardo que dormia enrolado em jornal e papelão na calçada e que foi confundido com lixo urbano, tendo seu corpo esmagado por um cami-nhão que recolhia lixo, são tirados do jornal e trazidos pela autora para corroborar não só o argumento, mas também a “realidade” de uma lógica circular que tem como força motriz central a tentativa de sua eliminação. As ações interventoras da limpeza pública ou policial também são apresentadas como projetando cenas de humilha ção às quais este segmen-to não tem outra alternativa a não ser se submeter, sob pena de agressão. O mesmo ocorre com serviços oferecidos nas ruas, que exigem a submis-são a uma lógica disciplinadora e de “reintegração social”, o que supõe a limitação de seu comportamento nesses espaços. Nesse sentido, a comida passa a ser um dos eixos centrais em torno dos quais o circuito nas ruas se constrói. A ausência de garantias mínimas de alimentação diária estimula fundamentalmente os trajetos de moradores de rua e costura suas circula-
Revista de Antropologia, São Paulo, USP, 2010, v. 53 nº 2.- 807 -ções pela cidade, além de implicar uma dependência constante da rede de atendimento, que é, para muitos, o seu único recurso para se alimentar. A comida também funciona como uma troca material e simbólica entre entidades assistenciais, em sua maioria de natureza religiosa, e população de rua: oferece-se comida em troca de pregação religiosa.Por fim, a violência e a agressividade se destacam no cotidiano desse segmento e torna evidente de forma extrema a vulnerabilidade corporal no espaço da rua. A autora aborda a agressão corporal, sempre iminente, efetuada sobre os moradores de rua, particularmente à noite. O dormir na rua, diz ela, exprime o mais alto grau de vulnerabilidade corporal des-te segmento. Nesse caso em específico, uma prática especial de violência chama a aten& amp; ccedil;ão: o atear fogo nos habitantes de rua. Com seu efeito rápido, irreversível, doloroso e extensivo ao corpo todo, o fogo provoca o risco iminente da mutilação e da morte. É a tentativa de consumição desta única coisa que resta a quem vive nas ruas: o corpo. Na heterogeneidade que constitui essas experiências, um fator escapa à malha institucional, assim como burla os procedimentos repressivos: a identificação gradual do indivíduo com a dinâmica intermitente e frag-mentária da rua acaba por jogá-los em um tempo circular, disruptivo e aprisionador, que nubla as possibilidades reais de saída do circuito urba-no que lhe foi imposto. Nesse sentido, o alcance limitado da política de assistência deve-se muito ao conjunto de perdas que conduz a trajetória do morador de rua e à impossibilidade de cobrir as suas expectativas de mudan &cced il;a econômica, social e afetiva. Ironicamente, é esse mesmo pro-cesso que vincula o habitante de rua à cidade, trazendo-o para uma espa-cialização diferenciada na geografia urbana, enganadora das intervenções urbanísticas e pouco absorvida pela dinâmica do poder público. Aqui reside talvez não o maior problema analítico do livro, mas talvez o maior problema prático e político que ele comporta – é quando a trajetória
Revista de Antropologia, São Paulo, USP, 2010, v. 53 nº 2.- 808 -corporal e a circulação errante ganham o seu caráter mais cruel e, parado-xalmente, constitutivo: o da irreversibilidade. Frangella defende ainda a ideia de que a movimentação necessária de resistência à extinção, a errância, não é, contudo, um movimento reflexivo, trata-se, antes, de uma resposta contingencial às políticas de invisibilidade que são dolorosamente imputadas aos moradores de rua nessa interação radical, física, subjetiva e simbólica com a cidade. Porém, sustentar esta re-sistência corporal não é uma tarefa nada fácil, na medida em que se trata de uma corporalidade que reside no avesso daquilo que o imaginário urbano cria e formata. Como afirma enfaticamente a autora, não se trata de discutir condiç ões de vida. É evidente o grau de enfrentamento dessa população de-corrente dos embates cotidianos com o “público”. Todavia, diz ela, uma vez na rua, não se mantêm passivos. Mesmo não subvertendo a sua condição de pauperização e opressão, conseguem resistir com seus próprios passos, andando, criando novas territorialidades e codificação à sua extinção. Diante do exposto, creio que fica claro o vigor analítico do livro, assim como a sua refinada capacidade de observação e descrição acerca de uma situação que, inerente à ideia de cidade, pode receber tratamentos polí-tico, assistencial e teórico os mais distintos. Vivendo no limite da expe-riência humana, invertendo de forma radical as nossas noções de público, de privado e de propriedade, os mora d ores de rua, tal como apresentados por Simone Frangella, nos convidam ainda a refletir acerca daquilo que Marcel Mauss chamou de técnicas corporais, os modos pelos quais cada sociedade serve-se dos seus corpos. Ao entrar em contato com essa etno-grafia questionamos também as nossas formas de cuidado corporal e de asseio diário, as nossas andanças pela cidade, assim como nos relembra-mos (o que só as boas antropologias conseguem fazer) que as atividades cotidianas de comer, dormir, se abrigar e fazer sexo estão muito longe de ter o status de “naturais”.
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