Loucura e cultura: uma escuta das relações de gênero nas falas de pacientes psiquiatrizados

 Loucura e cultura: uma escuta das relações de gênero nas falas de pacientes psiquiatrizados


 

Resumo

O presente trabalho teve como escopo assinalar como os valores e estereótipos de gênero, presentes em nossa cultura, aparecem evidentes na “quebra psíquica”, isto é, como os papéis estabelecidos culturalmente para o sujeito do sexo feminino ou masculino aparecem na experiência dos ditos “loucos” e “loucas”. A partir da análise quanti-qualitativa das falas de pacientes psiquiatrizados, os resultados apontam para a prevalência de queixas relacionais entre as mulheres e, por outro lado, para a valorização da virilidade entre os homens. Nas queixas relacionais das mulheres, o objeto de descontentamento é, na maior parte das vezes, a família e a vida amorosa. Já no discurso viril dos homens destacaram-se os temas da sexualidade ativa, do trabalho, do dinheiro e da fama.

Palavras chaverelações de gênero; loucura; quebra psíquica; cultura

Abstract

The scope of the present work was to point out how the gender values and stereotypes socially established in our culture are evidenced in the "psychic loss", that is, how the culturally established roles for the male or female individuals appear in the experience of the so-called “insane” people. From the quanti-qualitative analysis of the speeches of psychiatrized patients, the results point to the prevalence of relationship-related complaints among the women and, on the other hand, to the valorization of the virility among the men. In the relationship-related complaints of the women, the object of complaint is, in most cases, family and love life. In the male virility speech, active sexuality, work, money and fame were the most expressive topics.

Keywords: gender relations; insanity; psychic loss; culture

 

            A loucura, comumente entendida como “comportamento desviante, produto de desequilíbrios psíquicos e mentais” (Cherubini, 1997:2), tem sua definição permeada por aspectos sociais e culturais que se transformam ao longo das épocas. Nesse sentido, cada sociedade prescreve conceitos de “normalidade” e, consequentemente, designa como “anormal” aquilo que está fora da norma, que foge ao padrão. Historicamente, os “loucos” foram não apenas interpretados, mas definidos de diferentes maneiras (Foucault, 1982). Ou seja, a própria definição do que venha a ser loucura se modificou. Além disso, a experiência da loucura no mundo ocidental, antes do século XIX, mostrou-se bastante polimorfa, a cada momento histórico (Foucault, 1975), antes de ser confiscada no conceito de “doença mental”.

            Na Antiguidade Clássica, a loucura foi vista, dentre outros enfoques, sob o viés de um modelo mítico-religioso, segundo o qual o desvario seria um castigo divino deferido ao sujeito em função de ter cometido uma afronta à divindade (ultrapassagem do métron). Pessotti (1994) ressalta a posição ativa do indivíduo “louco”, aqui responsável por sua condição.

            Na Idade Média, a causa da loucura foi, sobretudo, atrelada à possessão demoníaca. Assim, o tratamento para os “endemoniados” foi atribuído aos padres, por meio do exorcismo. O catolicismo perseguiu os hereges (sujeitos de condutas desviantes) e queimou na fogueira os acometidos pela bruxaria.

            A partir do século XVII a racionalidade adquiriu paulatinamente maior credibilidade, havendo uma desvalorização das explicações míticas e religiosas. Na tradição ocidental, que valoriza a razão, a loucura foi desqualificada em sua capacidade de dizer a verdade (Machado, 2009).  O louco, banido da sociedade, foi confinado em hospitais gerais, juntamente com outros sujeitos também marginalizados, tais como inválidos pobres, portadores de doenças venéreas, libertinos, etc. (Foucault, 1975). O critério de asilamento, segundo Foucault (1975) seria uma “alteração” em relação à moral. Segundo ele, estas casas não tinham “vocação médica alguma; não se é admitido aí para ser tratado, mas porque não se pode ou não se deve fazer parte da sociedade” (Foucault, 1975:79).

          Somente no século XIX, período de criação da clínica psiquiátrica, é que o louco atingiu sua especificidade enquanto sujeito/objeto a ser estudado e tratado. Foi separado de outros grupos marginais e excluído em asilos específicos. É o início da apropriação da loucura pela medicina, tal como conhecemos ainda hoje em dia. Nesse sentido, Pinel foi um dos pioneiros na compreensão da loucura enquanto “doença” ou “alienação mental” e seu respectivo tratamento. O método de Pinel previa o isolamento do paciente da sociedade e do convívio familiar a fim de garantir uma observação sistemática e prolongada do comportamento do “alienado”, visando também uma reeducação moral.

          Dá-se início aos grandes debates acerca da classificação nosológica dos tipos de alienação. O louco, transformado em paciente, separado agora em sua especificidade (“alienação mental”), passa a ser tratado como objeto de estudo, havendo uma importação da lógica semiológica indicial para o campo da saúde mental (Martins, 2003; Zanello, inédito). Nesse momento histórico, a loucura passa a ser transformada em “doença mental”. Uma das grandes contribuições de Foucault (1982), em História da loucura, é justamente apontar como a “doença mental” é uma entidade produzida e não uma verdade descoberta. O papel do médico imbuiu-se mais de um controle ético do que de uma intervenção terapêutica: “o louco tinha que ser vigiado nos seus gestos, rebaixado nas suas pretensões, contradito no seu delírio, ridicularizado no seu erro” (Foucault, 1975:82). Trata-se de um contexto repressivo e moral. Passa-se a falar sobre o louco, mas do louco é retirado o poder e a vez de falar sobre si mesmo.

        De maneira geral, o modelo manicomial, iniciado através da criação dos asilos específicos para “alienados mentais”, caracterizou-se, cada vez mais, por maus-tratos aos pacientes, envolvendo eletro-choque, banhos frios, amarração, falta de cuidados com higiene e alimentação, lobotomia etc. Esses maus tratos constituíam-se em “punições” para a reeducação moral do paciente: há uma “confusão no interior de um regime moral único cujas técnicas tinham algumas um caráter de precaução social e outras um caráter de estratégia médica” (Foucault, 1975:83).

         As descobertas da neurociência e o desenvolvimento da indústria farmacêutica, no século XX, reforçaram ainda mais a concepção da loucura como “doença mental”[1]. A “mordaça química” permitiu a saída de vários “loucos” do asilo, garantindo, no entanto, a permanência do controle médico, só que desta vez, mais invisibilizado.  O louco é novamente silenciado e seus sintomas “anormais” suprimidos. A percepção da loucura tornou-se um reconhecimento da “doença” e houve um transbordamento da mesma para o cotidiano das pessoas. Firmou-se uma crescente medicalização da existência, constituindo-se uma nova forma de controle social, presente até os dias atuais.

      A nosso ver, a representação da loucura como “doença mental” não favorece o sujeito em sofrimento psíquico grave e nem proporciona uma escuta acerca de um saber que a voz do louco pode portar. Szasz (1980) aponta para a desqualificação das necessidades, aspirações e valores humanos conflitantes que a idéia de “doença mental” promove ao negligenciar os aspectos da subjetividade. Para o autor, o uso deste conceito pela psiquiatria não realiza a necessária distinção entre problemas existenciais e neurológicos, restringindo a interpretação das causas da “doença mental” ao campo fisiológico, enquanto doença do cérebro (corporal).

       Críticas como esta, bem como ao tratamento desumano nos manicômios, levaram ao aparecimento de protestos em diversos países, no século XX, e ao surgimento de iniciativas reformistas no campo da saúde mental que culminaram com o movimento de luta antimanicomial.

            No Brasil, a Reforma Psiquiátrica surgiu mais concretamente apenas no final da década de 1970, em protesto ao subsistema nacional de saúde mental e à estrutura do saber e das instituições psiquiátricas clássicas (Tenório, 2002). A Reforma trouxe em seu bojo a proposta de reformulação do modelo assistencial em saúde mental, apontando a necessidade de reorganização dos serviços.

            Retirar o louco do asilo e restabelecer seu convívio na sociedade é apenas uma pequena parte dessa proposta. É necessário principalmente, a nosso ver, ouvir esta ou este considerada/o louca/o. Restituir as suas vozes. E mais, escutar nestas falas as especificidades da nossa cultura. Como nos diz Foucault (1975:71), a doença só “tem realidade e valor de doença no interior de uma cultura que a reconhece como tal”. Trata-se, portanto, de saber como “nossa sociedade exprime-se nas formas mórbidas nas quais recusa-se a reconhecer-se” (Foucault, 1975:74).

          Desta forma, ao questionar uma concepção reducionista e biologizante (discurso biomédico) no âmbito da saúde mental, acreditamos que a análise da noção de gênero abre novo campo de reflexões, o qual destaca a participação de fatores sócio-culturais na experiência do sofrimento psíquico. Em outras palavras, a cultura, em seu caráter constitutivo, privilegia caminhos de subjetivação, nos quais as relações de gênero são um fator importante. Isto é, aquilo que a sociedade estabelece e exige de um “homem” ou de uma “mulher” interfere na experiência subjetiva de cada indivíduo e, portanto, tem influência caso esse sujeito venha a “quebrar” [2] em sofrimento psíquico grave.

            A idéia de valores culturais permeando o sofrimento psíquico grave ganha consistência nos estudos epidemiológicos que apontam variações de prevalência de certos “transtornos” na população, com fortes evidências de diferenças na distribuição de tais transtornos quando em relação a homens ou mulheres. Além disso, os próprios sintomas se transformam, a depender dos valores da época e da sociedade. Tal caráter plástico dos sintomas foi denominado por Van den Berg como “metablética” (Van den Berg, 1965).

             Dados epidemiológicos referentes aos “transtornos mentais”[3] apontam para uma maior ocorrência de depressão e transtornos de ansiedade entre as mulheres e, por outro lado, uma prevalência do uso de substâncias psicoativas e comportamentos anti-sociais entre os homens (Andrade, Viana & Silveira, 2006; Rabasquinho & Pereira, 2007; Santos, 2009; Zanello, 2010).

              Atualmente, a interpretação desses dados é realizada por duas grandes correntes norteadoras que levam a entendimentos essencialmente diferenciados. De um lado, a corrente biológica, a qual foi fortalecida pelo abarcamento da loucura pela medicina e pelo despontamento da indústria farmacêutica. Nesse viés, há uma ênfase nos sintomas, na doença, em detrimento da subjetividade, desqualificando as condições existenciais e materiais dos sujeitos em sofrimento psíquico (Zanello, 2010).

               Quanto às mulheres, por exemplo, os transtornos de humor e ansiedade freqüentemente mais associados a elas são explicados em função de seu ciclo reprodutivo, da existência de hormônios no corpo feminino que exercem influência sobre seu humor (Andrade, Viana & Silveira, 2006). Desta forma, a perspectiva biologizante reduz o ser da mulher ao corpo.

               Uma segunda corrente, privilegia uma leitura sócio-cultural, mostrando indicadores psicossociais que influenciam a expressão da saúde mental. Assim, a perspectiva sócio-histórica busca explicar a loucura, enquanto sintoma da nossa cultura, enfatizando fatores de risco no campo social que interferem na “quebra” psíquica, entre eles o gênero (desigualdades nas relações de gênero). “Nessa perspectiva, mais do que conseqüência de um corpo desregulado, o sofrimento psíquico seria compreendido como resultado de papéis sociais, de relações de gênero e da pressão disso sobre o sujeito” (Zanello, 2010:310).

                Em uma pesquisa realizada em Florianópolis, por exemplo, Maluf (2009) aponta a partir das narrativas das “usuárias” dos serviços públicos de saúde mental, o quanto as experiências de aflição, sofrimento, etc. vividas pelas mulheres em sofrimento psíquico grave localizavam-se antes nas trajetórias e nos contextos sociais de seus cotidianos. Em seus relatos, as mulheres pesquisadas enfatizaram os conflitos familiares, o cotidiano doméstico e a relação com o marido e os filhos como principal fonte de tensão e sofrimento psíquico. Dessa forma, revelaram uma experiência não abordada pelo discurso das políticas públicas de saúde mental e de saúde da mulher, e pelo próprio discurso dos profissionais da área de saúde que justificavam estas tensões segundo uma concepção biomédica, pautada no ciclo reprodutivo da mulher (adolescência, gravidez, parto, puerpério e menopausa) ou, simplesmente, no biológico (Maluf, 2009).

                Ludemir (2000), por seu turno, sublinha fatores de risco relacionados aos transtornos mentais comuns (quadros de depressão e ansiedade), cuja população afetada é, em sua prevalência, feminina. Dentre tais fatores de risco estariam: trabalho informal e obrigações familiares (responsabilidades de esposa, mãe, dona de casa). Isto é, a invisibilidade do trabalho, a baixa remuneração e as “obrigações”, assumidas como dever moral, de cuidados com os familiares. Tais ideais são construções cultural e historicamente situadas e dizem respeito às relações de gênero.

                 Reler o campo da saúde mental sob a ótica das relações de gênero pressupõe, portanto, uma desconfiança acerca do caráter histórico e ideológico do abarcamento da loucura pelo discurso psiquiátrico que seleciona certos “dados”, dando-lhes um caráter a-histórico e “natural” (biológico). Como aponta Casares (2008): “(...) no reconocer ni denunciar el androcentrismo que caraceriza uma disciplina forma parte también de um proyeto ideológico y político” (Casares, 2008:32).

                No presente artigo, tratou-se, portanto, de pensar a loucura sob um prisma psicossocial, enquanto sofrimento psíquico grave (Costa, 2010)[4], possibilidade páthica, constituída nas relações e no contexto social. Ao realizarmos esta leitura, aproximamos os “loucos” de todos os “normais” que também sofrem psiquicamente, preenchendo o “abismo” apregoado em termos como “transtorno mental”, que segrega da sociedade de “sãos” os “transtornados”. Trata-se assim de apontar uma continuidade da experiência humana e o quanto o sofrimento psíquico grave coloca em evidência, numa espécie de lupa, certos aspectos que aparecem no sofrimento banal, do cotidiano de cada um de nós e na prática da clínica dita dos “normóticos”. Este é um ensinamento freudiano: o “anormal” nos ensina sobre o “normal” e vice versa (Freud, 1905).

                  O que a “quebra psíquica” nos revela acerca das relações e dos papéis de gênero presentes no cotidiano de cada um de nós? É o que visou pesquisar o presente estudo. De que maneira os papéis sociais constitutivos dos gêneros aparecem no sofrimento dos ditos “loucos” e “loucas”, pacientes psiquiatrizados? E como o entendimento desse fenômeno pode contribuir para uma forma de intervenção mais adequada? Antes de adentrarmos nas especificidades da pesquisa realizada, faz-se necessário esclarecer o próprio conceito de gênero aqui adotado.

Relações de gênero

                  O conceito de gênero surgiu a partir do movimento feminista como “importante categoria de descrição e análise de interações sociais” (Couto-Oliveira, 2007:7), contrapondo-se ao determinismo biológico implícito no uso de termos como “sexo” ou “diferença sexual” (Scott, 1990) que reduz a análise dos sujeitos às diferenças “do corpo” (genitália). Segundo Lima (2008), o gênero é marcado pelo sistema cultural patriarcal das sociedades ocidentais onde a mulher é historicamente colocada à margem. “Gênero não pode ser descontextualizado do seu chão patriarcal, gênero trata de uma relação de hierarquia onde o feminino está constantemente subjugado ao masculino” (Lima, 2008:1).

                 Apesar da noção de gênero ter surgido a partir dos estudos feministas que focavam, sobretudo, os papéis sociais e a submissão das mulheres, atualmente, enfatiza-se o conceito de gênero como categoria relacional, isto é, ressalta-se a impossibilidade de estudar mulheres e homens separadamente. Isso porque os papéis de gênero e as categorias a eles relacionadas são complementares, superpostas, pertencendo a um mesmo modo de funcionamento social. Neste caso, a um modo binário de compreensão dos seres humanos e à heterossexualidade compulsória. Em outras palavras, a desconstrução da “essência” feminina leva necessariamente a uma desconstrução da essência “masculina”, e vice-versa, bem como à possibilidade de surgimento de novas categorias de gênero, tais como os transexuais, os travestis e os transgêneros. É por isso que, atualmente, estudos de gênero e feministas se referem a esta categoria como “relações de gênero”.

                 As reflexões acerca deste conceito foram historicamente produzidas a partir da contestação de interesses sociais e, principalmente, políticos e econômicos que designaram os papéis sociais e padrões comportamentais a serem sustentados por mulheres e por homens. Nesse sentido, Santos (2009) aponta que aquilo que parece se tratar da experiência subjetiva de cada sujeito enquanto homem e enquanto mulher encontra-se na realidade submetido a valores e normas conformadas pela sociedade e pelo momento histórico no qual se inserem. Ou como nos diz Casares (2008), ao se referir aos papéis, valores e estereótipos de gênero: “(...) los elementos simbólicos rigen también nuestras vidas, aunque no siempre seamos conscientes de su alcance (...)” (Casares, 2008:232).

                Casares (2008) define da seguinte maneira os papéis de gênero: “son las actividades, comportamientos, y tareas o trabajos que cada cultura asigna a cada sexo” (Casares, 2008:50). Segundo a autora, formam habilidades sociais e formas de atuar “apropriadas” para um membro daquela sociedade, dependendo do sexo em que é classificado. Em geral, são constituídos por valores sociais, que se mostram evidentes nos estereótipos de gênero. Estes últimos apresentam-se como armas eficazes contra a equiparação das pessoas (Casares, 2008:52): são “um conjunto de ideas simples, pero fuertemente arraigadas em la conciencia que escapan al control de la razón”. Possuem força psicológica e criam realidade material! Se fazem presentes, por exemplo, na remuneração desigual de pessoas com sexos diferentes, quando desempenham a mesma tarefa. Os estereótipos sustentam a desigualdade e relação de poder hierárquica entre os gêneros. Além disso, reafirmam os valores sociais e constituem espaço privilegiado na formação identitária das pessoas de uma sociedade: pessoas que não se adaptam aos estereótipos de gênero são consideradas anômalas, marginalizadas. Assim, afirma Casares (2008): “la adecuacion personal a los estereótipos responde, em gran medida, a la necessidad de las personas de sentirse socialmente integradas” (Casares, 2008:53). Os estereótipos de gênero seriam assim categorias artificiais e culturais que exageram as diferenças físicas, tornando-as simbólicas, adquirindo uma dimensão condensadora também das emoções. Isto é, no caso dos estereótipos de gênero, “(...) la simbolización de los sexos se convierte casi em um pensamento normativo lleno de valores sobre ‘lo que debe ser’, ocultando por completo ‘lo que es’ y ‘lo que podria ser’” (Casares, 2008:231).

                  Couto-Oliveira (2007) ressalta que o estabelecimento dos padrões de comportamento, bem como o exercício dos papéis atribuídos às mulheres e aos homens, implica em experiências de mundo e realidades distintas para os dois sexos, influenciando sobre os diferentes aspectos da vida, individual e socialmente, o que inclui o desenvolvimento e o funcionamento físico e psicológico. 

                 Dentre os estereótipos culturalmente atribuídos às mulheres e que tivemos a oportunidade de levantar em outra pesquisa, anteriormente realizada (Zanello & Gomes, 2010), destacaram-se: a contenção/renúncia sexual, os traços de caráter relacionais (cuidar do outro, dedicar-se a ele) e o ideal de beleza.

                Em relação à pudicícia feminina, nos diz Perrot (2003): “A mulher ‘tal como deve ser’, principalmente a jovem, casadoura, deve mostrar comedimentos nos gestos, nos olhares, na expressão das emoções, as quais não deixará transparecer senão com plena consciência” (Perrot, 2003:15). A Psiquiatria, como vertente da medicina no século XIX, contribuiu bastante na afirmação deste estereótipo, dando-lhe força “científica”, consolidando-se como higienização burguesa dos comportamentos.

As mulheres que se conservavam no seio da sociedade não eram menos vigiadas pelo olhar psiquiátrico, mas sofriam vigilância distinta e penalizadora (....). As normas culturais da sociedade criaram uma imagem onde as mulheres eram idealizadas como anjos do lar guardiãs da virtude. Moralistas e médicos formulavam as normas e o seu destino anatômico, considerando-as especialmente adequadas para a maternidade e os deveres domésticos (Garcia, 1995:57).

              A afirmação da contenção sexual por parte das mulheres relaciona-se também à afirmação da maternidade e a uma suposta “essência” feminina (“natural”) do cuidado com o outro. Segundo Bordo (1997), a “feminilidade”, construída na lógica androcêntrica, coloca a mulher como principal nutridora emocional e física dos demais: “As regras dessa construção de feminidade exigem que as mulheres aprendam como alimentar outras pessoas, não a si próprias, e que considerem como voraz e excessivo qualquer desejo de auto-alimentação e cuidado consigo mesmas” (Bordo, 1997:25). Isto é, exige-se das mulheres que desenvolvam uma espécie de economia emocional totalmente voltada para os outros.

               Quanto ao ideal de beleza relacionado à mulher, adquire o corpo, neste momento histórico, estatuto de elemento central a ser cuidado, “sarado”[5], sobretudo no que tange à gordura ou sobrepeso.  Segundo Novaes (2006), a beleza é um valor e uma moeda de troca, sendo capital na afirmação de uma mulher enquanto tal: “A imagem da mulher na cultura confunde-se com a da beleza. Este é um dos pontos mais enfatizados no discurso sobre a mulher: ela pode ser bonita, deve ser bonita, do contrário não será totalmente mulher” (Novaes, 2006:85). Segundo a autora, o que é normativo para a mulher, no momento e no contexto social atual, não é apenas a imposição de modelos de beleza, nem que ela deve ser bela, mas antes que ela pode ser bela. Isto é, caso a mulher não seja, é sua escolha e a mesma será julgada por um viés moral (“desleixo”, baixa auto-estima, etc). A beleza deixou assim de ser um dever estético para ser um dever moral feminino. Trata-se da afirmação das tecnologias do self, tão bem apontadas por Foucault (1977:136): “a eficácia das práticas disciplinares é maior quando não são vividas como demandas externas ao sujeito, mas como comportamentos auto-gerados e auto-regulados”. Isto é, o ideal de beleza, como dever moral, passou a constituir subjetivamente as mulheres levando estas a pensarem que a busca da beleza é uma opção pessoal.

               Estes três estereótipos, como teremos a oportunidade de mostrar mais adiante, fazem-se presentes também na experiência de sofrimento psíquico grave e aparecem tanto nas queixas femininas quanto nas formas defensivas ao sofrimento.

            Igualmente afetados por elementos sociais são as construções dos estereótipos masculinos. De acordo com Azize e Araújo (2003), a representação de homem viu-se, em nossa cultura, cada vez mais aderida à representação de virilidade. Faz-se mister, portanto, apontar o caráter social e histórico da construção da virilidade masculina e o que é considerado viril enquanto tal. Segundo Azize e Araújo (2003), o que conta, nesse caso, é a excelência de desempenho: “Essa excelência de desempenho esperada de todo ‘homem de verdade’ possui ainda uma especificidade: não se trata apenas de atingir um padrão viril assumido como dominante, mas de parecer, transparecer, falar, demonstrar esta situação” (Azize & Araújo, 2003:41). O desempenho aqui se trata não apenas da potência sexual, mas também laboral (Zanello & Gomes, 2010). Ou, nas palavras de Casares (2008), dos estereótipos do varão prenhador e provedor.

            Badinter (1992) aponta, nesse sentido, o quanto ser “homem” é uma construção que ocorre no imperativo. Para ela, a virilidade tem que ser “fabricada” e provada: “Dever, provas, competições, essas palavras dizem que há uma verdadeira tarefa a realizar para vir a ser um homem (...). O homem é então uma espécie de artefato, e como tal ele corre sempre o risco de falhar. Defeito de fabricação, falha da máquina viril, em suma um homem fracassado” (Badinter, 1992:15). Esta virilidade exigida dos homens para que cumpram ou realizem sua “essência” masculina é motivadora de tensões e conflitos permanentes, pois a mesma deve ser afirmada em toda e qualquer circunstância. Os homens acabariam assim por serem oprimidos por sua própria opressão.

              Welzer-Lang (2004) sublinha o drama desta virilidade, quando ela é colocada em xeque em situações sociais as mais diversas, tais como o desemprego; a andropausa social representada pela aposentadoria; ou, pode-se pensar, no caso do objeto de nosso estudo, estar em um estado de impotência “forçada” devido à internação psiquiátrica. 

                Para ambos os sexos, portanto, há expectativas e cobranças sociais. Mais do que externos, esses valores são constitutivos dos percursos de subjetivação e se fazem presentes na experiência de ser um “homem” ou uma “mulher”, estabelecendo parâmetros pelos quais o sujeito se vivencia e se avalia.

              Ao qualificar as relações de gênero como aspectos dinâmicos constitutivos dos sujeitos, faz-se mister pensarmos no processo de subjetivação e de como a quebra psíquica revela conteúdos de gênero privilegiados em nossa cultura. O presente estudo tem assim como escopo fazer uma análise quanti-qualitativa dos discursos de pacientes psiquiatrizados, sob o foco das relações de gênero. Objetivou-se mostrar o quanto a fala destes pacientes é plena de questões profundamente marcadas pelas categorias de gênero.

Metodologia

                Para o presente trabalho foram realizadas 34 visitas ao setor de internação de um hospital psiquiátrico público de uma capital brasileira, durante os meses de fevereiro a junho de 2010. As visitas ocorreram três vezes por semana, no período matutino, com duração de 4 horas por dia. O público alvo foram os pacientes internos do hospital, em geral, avaliados em situação de surto ou crise (tentativa de suicídio, crise epiléptica). Durante estas visitas foram realizadas 22 entrevistas abertas, além de conversas informais no pátio, com 10 pacientes do sexo masculino e 12 do sexo feminino. As entrevistas transcorreram em uma sala da instituição com a presença do(a) paciente e, oportunamente, dois ou três entrevistadores estudantes de psicologia. Entrevistas e conversas informais foram anotadas para estudo dos diálogos. Procedeu-se a uma análise interpretativa das falas dos pacientes a partir de uma leitura qualitativa dos dados referentes às relações de gênero.

                Na análise qualitativa, realizou-se uma classificação dos temas (eixos temáticos) que apareceram nas falas dos pacientes, durante a entrevista, utilizando-se para isto da análise de conteúdo (Bardin, 1977). Depois disso, foi quantificada a freqüência dos temas que emergiram no total das falas dos pacientes, de acordo com o sexo do sujeito entrevistado. Todos os dados que pudessem identificar o hospital ou o sujeito entrevistado foram devidamente retirados dos fragmentos a serem utilizados nos resultados. A intenção, neste caso, foi resguardar o sigilo e a ética.

Resultados e discussão

                 A leitura quanti-qualitativa das falas dos(as) pacientes apontou para uma prevalência de queixas relacionais (77%) entre as mulheres e para um discurso marcado pela virilidade (71%) entre os homens. Porém, o discurso relacionado à virilidade também apareceu nas falas das mulheres (23%), da mesma maneira que as queixas relacionais emergiram nas entrevistas com os homens (29%). A diferença entre as freqüência nas falas de mulheres e homens é, no entanto, bastante expressiva, como podemos ver no gráfico abaixo:

                  A prevalência de queixas relacionais no discurso das mulheres e da virilidade nos discursos dos homens parece apontar para diferentes posições subjetivas na experiência da “loucura”. As mulheres tendem a ficar numa posição de queixume e ressentimento, enquanto os homens se defendem numa posição “reativa”, na qual o próprio funcionamento narcísico aparece inflacionado.

                  Realizada a análise de conteúdo, chegou-se às seguintes categorias no que se refere às queixas relacionais das mulheres: familiares (40%), amorosas (27%) e outros (10%). Dentre as queixas familiares, encontraram-se as seguintes subcategorias: paternas (15%), maternas (10%), filiais (15%). As queixas de violência foram classificadas dentro das queixas relacionais e apareceram em 41% das falas das entrevistadas. Já no eixo temático “virilidade”, foram encontradas as seguintes categorias nos discursos das mulheres: capacidade de cuidar (12%), beleza (7%), auto-enaltecimento (2%) e sexo (2%). Abaixo, encontram-se representadas percentualmente essas categorias:

                     No discurso dos homens, apareceram as seguintes categorias dentro do eixo temático virilidade: sexo (23%), trabalho (16%), fama (13%), dinheiro (10%) e força física (10%). Já no eixo temático das queixas relacionais, apareceram as seguintes categorias: familiar (15%; composta pelas subcategorias paterna 6%, materna 6%, filial 3%), amorosa (10%) e outros (3%). Abaixo, encontra-se representada cada categoria de maneira percentual:

                    Embora tanto nas queixas relacionais das mulheres quanto nas dos homens tenham se destacado os temas familiar e amoroso, a frequência com que apareceram no discurso dos homens é baixa, 15% familiar e 10% amorosa, em relação a das mulheres, 40% familiar e 27% amorosa.

                   As queixas amorosas das mulheres referiam-se, sobretudo, ao ato sexual, a amores impedidos por familiares, traições, separações, abandono, ameaças ou falta de provimento financeiro. Um exemplo pode ser ilustrado através da fala da paciente Fernanda. Sua queixa amorosa dizia respeito à maneira como ela se sentia tratada sexualmente pelo marido: “Ele me tratava como uma prostituta. Como é que um marido trata a esposa como uma prostituta?! Vai manter relação sexual... Abre as pernas e faz! Levanta o pescoço e fecha os olhos lentamente... Querem fazer fácil... Oral, anal... Animalesco! Animalesco! Me tratava como prostituta mesmo, eu não aceitei, pelejei sete anos, porque ele é meu primo, iria criar uma situação chata na família, como criou”.

                Outro exemplo é o caso da paciente Nara que, em relação à impossibilidade de “viver um amor”, contou:

“Ou! Eu tenho um namorado e minha mãe não quer deixar eu namorar. Será que ela ta certa?”. A entrevistadora então pergunta: “Por que ela não quer deixar?”. Nara: “Ela fala que ele é “pão duro”, sam?! Que ele num... não vai me levar pra consulta. Ele falou que vai, sam?! Que vai vir comigo... E ela não deixa.(...)”. Entrevistadora: “Você já conversou com sua mãe?”. Nara: “Minha mãe quando põe uma coisa na cabeça... Mas sabe culpa de quem? Do meu padrasto que não aceita ele lá. Aí eu tenho medo de ir morar com ele e não dar certo, ter que voltar pra casa da minha mãe (...)”.

              A traição também apareceu como tema recorrente nas queixas amorosas das mulheres. É o caso de Ana que nos contou que o pai de seu primeiro filho a trocou por sua irmã mais nova, irmã essa que ela abrigava em sua casa e que dormia com ela e o marido, na cama do casal na época. Ana também nos contou que o relacionamento que manteve com outro homem, seu primo, terminou em função do consumo de álcool, cigarro e do envolvimento dele com outras mulheres. Na época da entrevista, a paciente morava com um “velhinho” (como se referia a ele), a quem considera um ótimo homem, que a acolheu com seus filhos e lhe arranjou trabalho.

              Nas queixas amorosas dos homens, os temas recorrentes referiam-se, sobretudo, à incapacidade de exercer ou ter uma vida amorosa e à perda de um amor.  Em relação à incapacidade de exercer a vida amorosa, temos o exemplo de Wilian que nomeou isso de maneira muito clara. A entrevistadora lhe perguntou: “Você tem namorada?”. Ao que o paciente respondeu: “Eu não tenho, mas tenho vontade de ter, mas não consigo”. Entrevistadora: “É...como assim, não consegue?”. Wilian: “Porque elas não quer”. Entrevistadora: “Você já tentou?”. Wilian: “Quantas vezes!”. Entrevistadora: “É...você nunca beijou ninguém na boca?”. Wilian: “Nunca dei conta”. Outro paciente, Hélio, durante a entrevista nos relatou detalhadamente o sofrimento por ter perdido a namorada.

              Apesar de o tema da perda amorosa ser recorrente tanto na fala das mulheres quanto na dos homens, houve uma diferença qualitativa nas respostas dentre homens e mulheres: nas falas das mulheres quase sempre o amor tornou-se impossível em função de um agente externo. Em geral, familiares são ressentidos como “causadores” do afastamento ou da impossibilidade de se viver um grande amor. No caso dos discursos dos homens, a ênfase se deu na própria incapacidade de ter vivido um certo amor, do sujeito ter feito “algo” (uma traição, por exemplo) que “causou” esta impossibilidade. Ou seja, o lócus de controle[6] nos discursos dos homens parece encontrar-se no próprio sujeito, enquanto que no discurso das mulheres o mesmo é ressentido como exterior a elas. Seria interessante a aplicação de uma escala de lócus de controle na internação psiquiátrica para melhor averiguar estas diferenças.

              Segundo Noriega et all (2003), não se deve excluir do lócus de controle externo o aspecto da incapacidade aprendida, “que se dá quando o sujeito identifica sua ausência de controle sobre certas condições cotidianas, atribui o controle a forças externas e apresenta depressão. Supõe-se que a maior falta de controle causa maior atribuição externa e, consequentemente, maior depressão” (Noriega et all, 2003:212). Ou seja, os autores apontam o caráter aprendido, construído, nas interações sociais, do lócus de controle e sua relação com possibilidades de “adoecimento” psíquico. No caso, a depressão, como vimos, aparece nos dados epidemiológicos como um transtorno mental predominantemente feminino. Como se dá o caráter engendrado desta aprendizagem social, constitutiva do funcionamento psíquico do sujeito, é algo que deveria ser investigado com pesquisas empíricas.

              Nas queixas relacionais familiares das mulheres apareceram tanto os maus-tratos dos filhos com elas (filhos que agridem, que não ajudam etc.) quanto, principalmente, a preocupação com o cuidado dos filhos (quem está cuidando dos filhos, não poder amamentar, interferências na educação que dá ao filho etc.). O trecho da entrevista com a paciente Mara revela a preocupação com o cuidado da filha. Ela nos disse: “(...) minha filha pequenininha... Eu tenho que levar pra escola. Tem quatro anos, é o primeiro ano dela na escola”. Ao que perguntamos: “Quem está cuidando dela agora?”. A paciente respondeu: “É o irmão dela e o pai. Mas não tão cuidando do jeito que eu cuido não. Eu faço a comida na hora certa, eu trabalho de sete até nove horas, chego em casa faço a comida, dou banho nela, arrumo ela, penteio o cabelinho dela, levo ela pra escola... Eu to sofrendo demais, dá uma dor...”.

                Outras queixas das mulheres estão relacionadas ao tratamento que recebem do pai (15%), acusado de amaldiçoar, bater, denegrir e ofender, e, menos expressivamente, da mãe (10%), acusada neste caso de infantilizar, de tratar o sujeito como uma criança.

               Nas queixas relacionais dos homens, também apareceram queixas relacionadas ao pai referindo-se, sobretudo, a maus tratos físicos. No entanto, esta categoria teve freqüência inferior à metade das respostas das mulheres (6%). Outro dado importante refere-se à queixa relacional filial: no caso das respostas dos homens, a queixa se dava como sentimento de impotência de prover, em função da “doença” e da suspensão das atividades de trabalho em função da internação. Exemplo disso foi a fala de Luciano:

O desgraçado do médico não me deu alta... Ele vai ver meu filho? Ele vai levar as coisas lá pro meu filho? Você vai levar?”.

               Comparando as respostas das mulheres e dos homens, além das frequências já anteriormente comparadas, pode-se destacar dois pontos: a semelhança na figura apontada como agente agressor, tanto nas falas das mulheres quanto nas dos homens (quase sempre sujeitos do sexo masculino, geralmente algum parente próximo, principalmente o pai ou o padrasto); e a diferença nas queixas relacionais filiais. No caso das mulheres, o fator de sofrimento é não poder cuidar dos filhos, tarefa essa atribuída, em nossa cultura, a uma “naturalidade” do papel feminino, tornando-se uma baliza para sua auto-avaliação narcísica. Assim, uma mulher “verdadeira” deve ser boa mãe e cuidar bem de sua prole. No caso dos homens, o que lhes é demandado culturalmente é de outra ordem: trata-se do papel de provedor; papel este que se vê em xeque no período da internação ou em função da desorganização psíquica do sujeito.

                 No que tange à afirmação da virilidade, pôde-se perceber que, para os homens, valores e estereótipos masculinos profundamente patriarcais continuam a exercer um papel de (auto) aceitação e (auto) reconhecimento social. No discurso viril, muitas vezes delirante, isso se mostra como parte configuradora importante, sobretudo na eleição do conteúdo do delírio, apontando para especificidades de gênero no funcionamento narcísico do sujeito.

                  Na categoria “sexo” (23% das respostas dos homens), enquanto “virilidade”, a ênfase foi colocada no papel ativo, o sujeito da enunciação como personagem “comedor”, capaz de manter relações sexuais ativas com uma alta freqüência e com um grande número de parceiras, dentre estas, personagens famosas e desejadas. Como aponta Badinter (1992), o pênis, enquanto símbolo de toda-potência (love machine) ou da mais extrema fragilidade, metonímia do homem, é também seu mestre obsessor.

                 Três recortes de entrevistas exemplificam estes aspectos. Na primeira delas, foi perguntado a Júlio se ele era casado, ao que o paciente respondeu:

Sô não! Já tive um monte de rapariga (risadas). Já, já... Eu já tive um bucado de rapariga. Professora (chamando uma das entrevistadoras): Eu já tive um bucado de rapariga. Já tive um tanto de rapariga. Já tive cinco rapariga”. A entrevistadora então perguntou: “Você teve filhos com alguma ou se casou?”. O paciente respondeu: “Tive não, tive não, não. Só fiquei namorando elas cinco, elas cinco, elas cinco. Eu só fiquei namorando elas cinco. Eu tive sim um movimento com elas... Sabe o que é? Sabe o que é? Eu dormia com as cinco. Heeeee!!! (risadas) Eu dormia com as cinco mulhé”. Entrevistadora: “Como você fazia pra administrar tantas mulheres?”. Júlio: “Era fácil”.

                   Já Márcio, outro paciente, foi direto ao assunto:

Eu sou atentado... E eu gosto... Ainda mais que a minha esposa é a Kelly Key né, aí eu apronto mesmo. Ela fica ‘braba’ comigo. Fica indignada comigo. Mas eu não to nem aí! Você acha que ligo?! Eu tava traindo ela com a Angélica... Mas não dá nada...

                   Um último exemplo, dentre vários outros, foi trazido na fala de Everton. Quando perguntado a ele se era casado, ele nos disse:

Sô noivo! Mas tenho quase 40 filhos tudo espalhado no mundo, só esperando. E várias mulheres tudo cabacinha e virgem. E faço exame de sangue não dá um tipo de doença. Eu sei qual área que eu pinto na mulher. Eu olho pra cara, sei que não tem doença... Se não é, eu vou namoro, conquisto... até casar e to chifrando minha mulher. E muito! Porque ela não ta querendo outro filho”. A entrevistadora perguntou então: “Como você consegue ter tanto poder sobre as mulheres?”. E Everton respondeu: “Muito músculo duro, muito tendão aqui” (apontou o pênis). Entrevistadora: “Essas mulheres ficam apaixonadas por você?”. Everton: “Não! Elas ficam revoltadas porque não convivo com elas”.

                O trabalho ocupou o segundo lugar (16%) nas falas dos homens, seguido de temas relacionados a símbolos de sucesso pessoal e profissional (fama, 13%; dinheiro, 10%). A força física, outra forma de afirmação da virilidade, também apareceu como categoria importante. Como vimos anteriormente, estes são estereótipos e valores relacionados à masculinidade em nossa cultura.

               No caso do paciente Júnior, por exemplo, a virilidade apareceu no relato do exercício de inúmeros papéis que, segundo ele, lhe davam destaque social. Seu discurso levava a crer que o desempenho dessas funções e a relação com personalidades famosas era para ele algo corriqueiro e, portanto, tratado como irrelevante. O paciente relatou ser ex-jogador da seleção brasileira; ser técnico de informática, função que dominava plenamente, considerando “besteira” qualquer atividade a ser desempenhada no computador; ter servido ao Exército Brasileiro, onde foi atirador de elite; ter lecionado; ser usuário de maconha, mas só fumar o skank, variação mais forte da substância; produzir lança-perfume, mas não vender pessoalmente, pois tinha pessoas vendendo para ele; roubar carros, o que demonstrava seu “poder”, fazendo com que as meninas se aproximassem. Disse ainda que seu tio era juiz, um “nome importante”, que não permitiria que o sobrinho fosse preso por envolvimento com drogas e que seu pai havia sido delegado. Também relatou ser cantor da banda de rap Racionais e ter sido o cantor Bruno da dupla sertaneja Bruno e Marrone quando era gordo.

                Outro paciente, Luciano, relatou dominar inúmeras profissões:

Eu sou marceneiro, sou pedreiro, sou eletricista, sou pintor, sou encanador, trabalho com artesanato, trabalho com vendas, faço muita coisa. O melhor muro que tem lá (referindo-se à cidade onde mora) foi eu que fiz”.

                 No caso do paciente Edson, outro exemplo, ficou evidente a grandiosidade atribuída a todas as coisas que ele realizava. Ele não era apenas um soldado de Exército Brasileiro, mas um atirador de elite. Não viajava para qualquer lugar, ia à Marte, acompanhado de ninguém mais ninguém menos do que os cantores Martinho da Vila e Martinália. Ele era o pai da consagrada atriz Susana Vieira e seu parceiro de trabalho era o produtor internacional Steven Spielberg. Do desenho animado Caverna do Dragão, Edson nos contou ser o Mestre dos Magos, detentor de todos os saberes.

                 No tocante à exploração da virilidade por meio da força física e de outros atributos considerados como símbolo de masculinidade, tais como coragem e heroísmo, mostrou-se comum entre os homens a identificação com personagens super-poderosos da ficção. O paciente Vitor acreditava estar se transformando no personagem Vedita, do desenho animado Dragão Ball Z. Ele nos contou sobre sua insuperável força física, como poderia usá-la para explodir e arremessar objetos, além de aniquilar grandes inimigos.

                 Como apontado, nos discursos das mulheres relacionados à virilidade, apareceram os temas capacidade de cuidar (12%), beleza (7%), auto-enaltecimento (2%) e sexo (2%). No tema capacidade de cuidar, o principal sujeito ao verbo referido foram os filhos. A paciente Laura nos contou, por exemplo, sobre o poder que possuia com suas orações. Segundo ela, foram suas orações que fizeram sua filha engordar e ficar boa de saúde para amamentar sua neta. Fizeram também o irmão parar de xingar sua cunhada de “puta”, “piranha”, “vagabunda”. A paciente apresentava um nítido prazer ao relatar sua força de oração. Note-se que aqui, diferentemente das falas masculinas, a virilidade se expressa no exercício da relação com outrem e não apenas para ser usufruída pela própria paciente.

                Na categoria beleza, foram destacados os encantos físicos de sua própria pessoa, por parte das pacientes, bem como o desejo causado nos homens e, consequentemente, a inveja de outras mulheres. Uma paciente, por exemplo, Amanda, nos relatou como sua beleza sempre chamou a atenção dos homens, que mesmo com HIV sua pele continuava linda. Naquele momento, exibiu a pele para a entrevistadora e ressaltou a beleza de suas pernas. Contou-nos também que deixou de freqüentar festas, pois ao dançar todos os homens ficavam loucos com ela, enquanto as mulheres permaneciam bravas, invejosas. Fica claro nesta fala o quanto a afirmação da virilidade da paciente se dá pela declaração de ser um objeto de desejo, de cobiça, masculino. Diferentemente dos discursos masculinos, nos quais o aspecto ativo na vida amorosa e sexual se destacou, aqui percebemos uma afirmação através do desejo do outro, do poder de sedução e encantamentos, traços “naturalizados” em nossa cultura numa suposta “essência” feminina.

               Outros exemplos são as pacientes Maria Paula e Rebeca. Maria Paula demonstrou-se vaidosa, durante todo o tempo da entrevista, frequentemente afirmando e perguntando à entrevistadora se ela estava bonita. Rebeca, por seu turno, afirmava categoricamente, várias vezes, ao falar de sua beleza: “Eu sou linda assim porque os outros têm inveja de mim.” Não basta ser um objeto de desejo masculino, mas também, há que se destacar a comparação com outras mulheres para ressaltar as qualidades de beleza do próprio sujeito.

               O tema sexo teve apenas 2 % das respostas, ou seja, apareceu na fala de apenas uma das entrevistadas. A paciente Lúcia relatou-nos os seus casos sexuais, afirmando:

"A crise começa... Volúpia, luxúria, manipulação." Neste caso, percebe-se a afirmação do desejo sexual da mulher, mas a frequência da resposta foi inexpressiva, mostrando-se evidente a prevalência de um padrão ainda extremamente patriarcal no que tange à posição da mulher em relação ao desejo: desejo de ser desejada.

              A categoria enaltecimento de si mesma (2% das respostas) também foi inexpressivo, mas mostrou-se interessante ao se pensar o objeto pelo qual a paciente se enaltecia: a festa de casamento. Rebeca nos contou como sempre teve tudo do bom e do melhor e o quanto seu casamento foi chique, digno de uma princesa. Segundo ela, o casamento ocorreu em um lugar onde o presidente da República se hospedava e seu vestido foi encomendado a um estilista personalizado. A paciente mostrou-se muito envaidecida ao relatar a grandiosidade deste dia, no qual a sensação de ter sido “escolhida” parece ter se destacado.

             Face ao levantamento dos dados aqui apresentados, pensamos que ficou evidente o quanto os valores e estereótipos de gênero se fazem presentes dentro das situações de enlouquecimento que, aqui, compreendemos como sofrimento psíquico grave. Ficam ainda, no entanto, algumas perguntas a serem respondidas por estudos posteriores: como e em que medida as relações de gênero favorecem caminhos privilegiados de subjetivação e quebra psíquica em nossa cultura? Como as relações de gênero podem nos levar a uma releitura do campo da saúde mental e de conceitos metafísicos que mediam a nossa compreensão do enlouquecimento de um ponto de vista da psicologia clínica? E, por último, como usar os conhecimentos adquiridos nos estudos de gênero para repensar a intervenção em saúde mental?

              As duas primeiras perguntas ficarão em aberto, como a orientar futuras possibilidades de pesquisa. No entanto, em relação à última, temos algumas idéias e evidências de dados de outras pesquisas por nós realizadas. A primeira delas trata-se de um programa de oficinas de música e dança que desenvolvemos na internação, na ala feminina (Zanello & Souza, 2009). O título de nosso artigo é bastante ilustrativo, “Mais música, menos haldol” e foi sugerido a partir da fala de uma das internas. Nestas oficinas, eram escolhidas músicas que retratavam uma espécie de “reviravolta” na condição amorosa de ser abandonada, isto é, eram enfatizadas cenas nas quais o protagonista conseguia superar o abandono, a desilusão, a traição (como exemplo mor, a música sertaneja “Chora, me liga, implora”, a qual fazia o maior sucesso). Eram momentos extremamente mobilizadores, dos quais grande parte das internas participava, cantava (às vezes aos berros) e dançava. A catarse mostrava-se evidente, não apenas através das gesticulações e caretas ao cantar (como se estivessem dizendo isso para alguém), mas pelas próprias falas recolhidas dentre estas mulheres, depois das oficinas. Nos dias das oficinas, pôde-se perceber uma diminuição do número de contenções e da necessidade de uso de medicamentos radicais como o “sossega-leão”. Trata-se de uma intervenção paliativa, mas que vai ao encontro da idéia de redução de danos[7]. Foi uma idéia inicial e que, a nosso ver, pode nos levar a pensar em outras possibilidades de intervenção tanto nos momentos de crise quanto, quem sabe, em outras de caráter preventivo ou de promoção de vida[8].

              Um dado, no entanto, se mostrou bastante pertinente: estas oficinas não funcionaram na ala masculina. O tipo de música demandado era outro: gostavam mais do rap, de temas sociais, tais como a exploração social, a escravidão, o trabalho, etc. Como estas músicas incitavam, de acordo com os enfermeiros, a violência e a agressividades nos internos, foi solicitado que não se realizassem estas oficinas. Outra possibilidade se mostrou profícua e foi desenvolvida por um estagiário, Carlos Barreto, sob supervisão. Este aluno desenvolveu um projeto de oficinas de brincadeiras, para trabalhar a auto-estima dos pacientes. As atividades se mostraram logo bem específicas a cada ala (feminina e masculina). Uma questão se destacou na ala masculina: as atividades demandadas e que envolviam maior contingente de pacientes trabalhavam uma espécie de virilidade não exercida. Atividades tais como acertar a bola de basquete na cesta, vencer uma partida de ping-pong, criar seu próprio instrumento de música e outras, foram as que mais tiveram efeito terapêutico. Aqui, como apontamos anteriormente, ficou claro para nós o quanto a afirmação do lócus de controle interno, ou auto-agenciamento no universo masculino, parece ser importante na configuração da masculinidade em nossa cultura e na reconstrução de um senso identitário no universo masculino. Estas foram as primeiras experiências, aproximativas, de intervenção, que realizamos a partir desta releitura da loucura sob o viés das relações de gênero. O campo parece profícuo e são necessárias novas idéias e pesquisas para dar continuidade a estes primeiros trabalhos.

               Para finalizarmos esta parte do artigo, gostaríamos de destacar, a partir dos dados apresentados, o quanto o funcionamento narcísico do sujeito é engendrado. Em outras palavras: as relações de gênero nos levam a reler não apenas a quebra psíquica de outra maneira, mas a repensar também as formas de intervenção nas quais os próprios valores engendrados possam ser utilizados.

Considerações finais

            A compreensão do sofrimento psíquico grave, segundo a perspectiva das relações de gênero, permite considerarmos como os papéis construídos culturalmente tomam a experiência subjetiva do sujeito. Os papéis e valores de gênero constituem assim não apenas motivos de sofrimento (padrões e ideais constitutivos do sujeito e pelos quais ele se avalia, evidente nas queixas), mas “válvula de escape” privilegiada, pela e através da qual se constroem as defesas na loucura (discurso viril). Nas queixas relacionais, pôde-se observar estes papéis e valores enquanto causa motriz de sofrimento. No caso das mulheres, grande parte destas queixas é de ordem amorosa (se dividirmos a queixa familiar pelos temas paterno, materno e filial) e indica a impossibilidade de viver um grande amor. Em geral, impedido por algum fator que não ela mesma. No caso dos homens, as queixas amorosas também apareceram, porém para eles o fator impediente é ressentido como sendo eles próprios. Isto é, no caso das mulheres o lócus de controle parece ser externo; no caso dos homens, interno.

            A prevalência de queixas relacionais entre mulheres, em oposição à de um discurso viril dentre os homens, parece apontar para posições subjetivas diferentes dentre homens e mulheres, na quebra psíquica, ou no “enlouquecimento”. As mulheres, em geral, permanecem em uma posição de queixume enquanto os homens constroem uma posição defensiva, presente marcadamente em um discurso viril, no qual, muitas vezes, o próprio delírio parece exercer importante papel.

           Assim, no que tange ao discurso da virilidade, os valores pelos quais os homens constroem seus delírios perpassam aqueles culturalmente a eles atribuídos: atividade sexual, trabalho, dinheiro e fama. É por estas balizas que se inflaciona o Eu masculino, apontando para especificidades do narcisismo que valeriam a pena ser investigadas de maneira mais profunda em um trabalho que unisse clínica psicodinâmica e relações de gênero. Ou seja, seria interessante como possibilidade futura de estudo, aprofundar a relação entre as alterações do Eu nos casos de quebra psíquica e o caráter engendrado do funcionamento narcísico. Acreditamos que o viés das relações de gênero pode alterar nossa própria visão psicodinâmica do dito “enlouquecimento”.

           Também no discurso da virilidade, no caso das mulheres, os valores de gênero pelos quais estas se autovaloram são aqueles a elas relacionados em nossa cultura: beleza, capacidade de cuidar, sexo, auto-enaltecimento.

             Pode-se afirmar assim que no discurso dos pacientes psiquiatrizados afloram as relações de gênero. Ou ainda, que aí, no sofrimento extremado, ou nesta experiência radical que é a loucura, coloca-se uma lupa sobre as relações de gênero e o quanto elas são constitutivas das subjetividades. Fica em aberto, também para investigações posteriores, o estudo mais aprofundado sobre como as relações de gênero criam caminhos privilegiados de subjetivação, presentes na quebra psíquica e também refletidos nos dados epidemiológicos relacionados aos transtornos mentais.

               Uma das conseqüências do presente estudo é justamente ressaltar a necessidade de se levar em consideração as relações de gênero nas políticas públicas de saúde mental. O gênero, como baliza constitutiva que pode levar ao sofrimento psíquico, intensificá-lo ou simplesmente configurá-lo, também pode ser utilizado nas formas de intervenção de cunho terapêutico. Trata-se de tentar dele retirar um antídoto. Pesquisas, nesse sentido, já vêm sendo realizadas (Zanello & Souza, 2009). Nesse tipo de trabalho, utiliza-se como paradigma a idéia de redução de danos e não de “cura” propriamente dita. Em outras palavras, busca-se melhorar a qualidade de vida dos pacientes durante a internação, através de uma redução da necessidade de medicamentos e, principalmente, do método da contenção física que se mostra, na maior parte das vezes, bastante violento. Faz-se mister pensar também como os valores de gênero poderiam ser utilizados em intervenções de caráter preventivo ou como promoção de vida.

              Em suma, ao considerar a natureza sócio-cultural do adoecimento psíquico, sob o viés das relações de gênero, torna-se possível “desnaturalizar” o sofrimento, abrindo novas possibilidades de repensar formas de tratamento e de intervenção.

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Zanello, Valeska & Souza, Gustavo José de Oliveira. 2009. More music, less Haldol: an experience among music, phármakon and madness. Mental, v.7, n.13. http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_pdf&pid=S1679-44272009000200009&lng=pt&nrm=iso&tlng=pt

 

Nota biográfica

Valeska Zanello- Doutora em Psicologia Clínica pela Universidade de Brasília, com doutorado sanduíche na Université Catholique de Louvain (UCL), Bélgica. Psicóloga e bacharel em filosofia pela Universidade de Brasília. Especialista em Filosofia e Existência pela Universidade Católica de Brasília. Professora adjunta do Departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da Universidade de Brasília. Trabalha na interface entre saúde mental, filosofia da linguagem e relações de gênero.

Bruna Bukowitz- Bacharel em Psicologia pelo Instituto de Educação Superior de Brasília.


 

[1] E outros sinônimos tais como “transtorno mental” que vem sendo utilizado de maneira privilegiada nos dias atuais em compêndios internacionais de classificação da “loucura”.

[2] Termo utilizado numa abordagem psicanalítica da psicopatologia. Trata-se do princípio do cristal, metáfora criada por Freud para abordar e compreender a diversidade dos tipos de sofrimento psíquico do sujeito. Segundo ele, o humano não se “quebra” aleatoriamente, mas de acordo com sua estruturação psíquica, estrutura esta constituída em sua história pessoal, em um processo de subjetivação único e que aponta para as vivências da sexualidade infantil. Trata-se de destacar o quanto a “quebra” do sujeito relaciona-se com seu modo de funcionamento. Em termos epistemológicos, o uso do termo “quebra psíquica” parte de um pressuposto de definição e interpretação da “loucura” sob um viés da subjetividade, abrindo vias para o uso do conceito de loucura enquanto “sofrimento psíquico grave” e o uso de uma semiologia simbólica.  Isto é, faz-se fundamental, dentro desta visão, a participação da cultura e do contexto social. Antepõe-se assim à definição da loucura como um “transtorno mental”, cujo pressuposto é a idéia de síndrome e uma ênfase na semiologia indicial, típica da medicina. Ver Martins (2003; 2005)

[3] Tivemos que utilizar este termo nesta parte do artigo, pois a epidemiologia psiquiátrica é construída sobre a lógica médica das síndromes, na qual, como apontamos anteriormente, percebe-se uma importação da lógica semiológica da medicina para o campo do mental e da existência. Não há estudos epidemiológicos que não se baseiem nesta definição de loucura como síndrome, isto é, enquanto um conjunto correlacionado de sinais e sintomas. A própria definição de loucura, nesse sentido, propicia um olhar e um recorte no que se chama de epidemiologia. Tal recorte, pelo fato de se assentar em pressupostos epistemológicos específicos (modelo biomédico), favorece uma interpretação biológica, isto é, uma “naturalização” das diferenças de freqüência dos ditos “transtornos mentais” entre homens e mulheres e abre campo para a crescente indústria farmacêutica. Em relação à perversidade desta lógica e ao “desenvolvimento” de dependência lícita de ansiolíticos e anti-depressivos dentre as mulheres, olhar Zanello (2010).

[4] O autor propõe o uso do termo “sofrimento psíquico grave” para se referir à situação de enlouquecimento, isto é, a crise. Segundo ele, o termo “sofrimento psíquico grave” leva a pensar o sofrimento como algo essencialmente humano (enquanto possibilidade), de outra ordem que não a meramente orgânica ou física e, sobretudo, com caráter “grave” no sentido da intensidade e dificuldade de manejo. Neste artigo, consideraremos a loucura de maneira mais próxima a esta idéia de sofrimento psíquico grave. Este conceito parece-nos apontar para a possibilidade de “situações-limites” existentes para todos nós, enquanto humanos.

[5] Termo utilizado no ambiente médico para designar a cura de doenças, o que se tornaria visível na supressão dos sintomas. Expressões tais como “ter o corpo ‘sarado’” apontam para o caráter metafórico do uso do termo e, também, para a forma de vida da qual faz parte e cria. Nesse caso, mostra-se a medicalização dos corpos e da vida, e o quanto a gordura passa a ser vista como doença a ser curada, na afirmação de uma estética ideal e moral da “boa saúde”. Nossa cultura seria, nas palavras de Novaes (2006), “lipofóbica”.

[6] Conceito desenvolvido por Julian Rotter. Trata-se do grau em que um indivíduo crê que sua vida se encontra sob seu próprio controle ou sob o controle dos outros. Quando se crê ser responsável por seu próprio destino, a pessoa possui um lócus de controle interno; enquanto que, quando se crê que aquilo que lhe acontece é apenas fruto do acaso e da sorte/azar, tem-se um lócus de controle externo.

[7] Apregoada nas políticas públicas de saúde relacionada ao uso de drogas. Usamos o termo de maneira metafórica, por analogia.

[8]Encontramos uma certa dificuldade para expressar esta idéia, pois “prevenção” é um termo utilizado frequentemente em saúde, tendo como modelo de base a medicina e a biologia. Trata-se aqui, neste caso, mais de um modelo de potencialização e desconstrução, isto é, de práticas de intervenção que pensem o bem estar ou saúde mental com “S” maiúsculo, levando em consideração a existência material, social e histórica dos sujeitos envolvidos.

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Partimos desse pressuposto para compreender as maneiras pelas quais mulheres indígenas e quilombolas/indígenas e quilombolas mulheres3 da Amazônia paraense resistem às violências do cotidiano e perscrutar suas sensibilidades em meio às situações de violência. Não se trata aqui de analisar estratégias de movimentos de mulheres indígenas e/ou quilombolas para conseguir alcançar suas reivindicações políticas, o que não deixaria de ser importante objeto de reflexão, mas sim de entender as próprias corporeidades das protagonistas como estratégias de resistência. Esta última, que pode parecer mais individualizada e circunstancial num primeiro olhar, ganha contornos coletivos quando se observa o compartilhamento de histórias, as redes de ajuda e solidariedade criadas pelas mulheres, entre outras agências, como veremos a seguir. Temos em conta que esse diálogo entre noções de justiça não ocorre com paridade de armas, pois o Estado brasileiro se constituiu olvidando etnicidades e engendrando políticas de homogeneização e integração dos grupos diferenciados à “sociedade nacional.” A conversa entre as sensibilidades jurídicas no país ocorre na forma do que Yrigoyen Fajardo (2011) denomina pluralismo jurídico subordinado colonial, isto é, de modo a não reconhecer noções de direito que não sejam as provenientes do Estado. Quando se pensa em questões relativas às mulheres etnicamente diferenciadas a questão se complexifica. A promulgação de leis específicas às mulheres, que consideram a violência como crime4 , fruto de anos de reivindicações e estudos promovidos por organizações e coletivos feministas, diz pouco sobre diferenças de ordem cultural, étnica e racial. Diante disso, compreender noções de violência bem como as estratégias de resistência das protagonistas se impõe. Os segredos da escuta Assim, nosso objetivo é refletir sobre as formas de narrar a violência que atinge os corpos das interlocutoras que pertencem a povos indígenas e coletivos quilombolas e debater acerca das possibilidades de tradução etnográfica a partir da identificação das categorias nativas que compõem a enunciação das interlocutoras, considerando as diferenciadas noções de justiça presentes entre as mulheres que emprestam seus depoimentos às autoras do texto. Para alcance dos objetivos, procura-se compreender como se dá a construção da corporeidade entre as mulheres indígenas e quilombolas/indígenas e quilombolas mulheres, pela possibilidade de demonstrar como o corpo se apresenta entre elas como território privilegiado de resistência e luta. A marca do presente trabalho são as reflexões que ressaltam e problematizam as categorias que integram a epistemologia e o olhar nativo sobre corpo e violência. Para os limites da reflexão proposta, é importante esclarecer que os depoimentos oferecidos pelas interlocutoras foram ditos às pesquisadoras em diversos momentos, os quais compreendem um lastro de 15 anos de pesquisa, sem que estas tivessem a intenção de trabalhar especificamente violência e violação de corpos, entretanto, os depoimentos foram como que aflorando pela impossibilidade – estatal e/ou comunitária – de oitiva das mulheres em situação de violência. Selecionou-se depoimentos de mulheres indígenas pertencentes aos povos Tembé Tenetehara5 , hoje moradores do município de Santa Maria do Pará, Xipaya6 e Kuruaya7 que vivem no médio Xingu e, no caso das quilombolas, selecionamos as interlocutoras moradoras das diversas comunidades localizadas no arquipélago do Marajó, também no estado do Pará. Destacam-se trajetórias e memórias que marcam de modo indelével o etnocídio praticado via colonização (Beltrão, 2012), que até o presente atinge os corpos e as vidas de pessoas indígenas e quilombolas via colonialidade.8 Nesse sentido, é latente na narrativa das interlocutoras a referência ao processo de expulsão territorial, sequestro de crianças indígenas e quilombolas pela ação missionária e/ou do Estado, tentativas reiteradas e violentas de genocídio, em face da tentativa de homogeneização e apagamento das pertenças. Vale, porém, ressaltar que a colonialidade incide de forma específica e brutal necessariamente sobre os corpos das mulheres, pois esta, segundo Lugones (2008) , se instituiu também como colonialidade gênero, que instituiu o sistema de gênero colonial/moderno, baseado nas dicotomias homem/mulher e público/privado, como o padrão. Isso ocultou sistemas de organização dos “mundos sexuais” nativos, em que muitas vezes as fronteiras entre masculino e feminino eram fluídas e as mulheres exerciam papéis importantes na vida coletiva. Não tratamos aqui de perscrutar esses sistemas “originais” e nem acreditamos que, hoje, isso seja possível. Porém, importa ter isso em consideração para um olhar etnográfico mais apurado. O ponto nevrálgico, locus em que os caminhos etnográficos se tornam mais “nebulosos”: ter o corpo marcado, como é o caso de indígenas e quilombolas mulheres/mulheres indígenas e quilombolas, pela violência física e sexual, muitas vezes infringida pelos próprios “parentes”, ou ainda por pessoas não indígenas e quilombolas, fato que mobiliza sentimentos como dor, sofrimento e vergonha. A possibilidade de ouvir (com tudo o que o ato da escuta representa para a Antropologia) implica em cuidados9 redobrados na interpretação de atos e falas que não são ditos a qualquer pessoa, nem em qualquer lugar. Os processos de violação dos corpos, vividos como eventos devastadores, segundo as interlocutoras, também formam seus modos de narrar, de liderar e de agir politicamente. De alguma forma, somos “ouvintes” privilegiadas, considerando a confiança com a qual fomos brindadas, portanto nosso compromisso com a ocultação das identidades é fato. O veneno da dor Veena Das (2008a), em seus escritos, problematiza a correlação entre dor e linguagem. Segundo a autora, por meio da expressão da dor, é possível sair da privacidade sufocante que ela produz na vítima. De acordo com Das (2008a), eventos devastadores produzem um tipo de conhecimento que só é alcançado pela experimentação do sofrimento, um conhecimento venenoso. Portanto, violências extremas não seriam apenas responsáveis pela destruição de vidas e corpos. Atuam, também, na construção de sujeitos e linguagens da dor. A enunciação da dor pede, portanto, admissão e reconhecimento, o que nem sempre ocorre. Trata-se, nos termos da autora, de sentir a dor no corpo do outro. Essa é a proposta ao fazer antropológico, requisitado de forma envergonhada, mas insistente por nossas interlocutoras. De acordo com Michael Taussig (1993), a reprodução da imagem dos povos indígenas como selvagens, irracionais e violentos é o que possibilita a propagação do terror colonial. E no caso dos coletivos quilombolas a estratégia de resistência e luta dos negros é imperdoável ao mundo colonial, afinal, os africanos são equiparadamente considerados, como os indígenas, pessoas desprezíveis. Trata-se uma operação mimética por parte do colonizador, que conduz a atos de extrema violência, não importando se esse imaginário é verdadeiro ou não. As culturas do terror criam, desse modo, o que o autor denomina como espaços de morte, nos quais indígenas, africanos e brancos viram nascer o Novo Mundo. Segundo Taussig (1993) o terror é o mediador por excelência da hegemonia colonial e acrescenta-se da discriminação presente em nossa sociedade. O autor afirma ainda que “... as culturas do terror são nutridas pelo entremesclar do silêncio e do mito.” (Taussig, 1993, 30) Os efeitos paralisantes e silenciadores do terror encontrariam na narrativa sua primeira possibilidade de cura. Quando decidiram falar sobre as violências que marcaram de forma mais ou menos severa suas trajetórias, nossas interlocutoras começaram a vencer a primeira imposição do terror, o silêncio. Como diz Maria Aparecida, quilombola, que por ser estudante universitária, escreveu seu depoimento: “não vou falar e também nunca escrevi, mas faço [o texto] porque não consigo explicar porque aconteceu comigo, talvez não haja explicação, e mesmo que tivesse jamais iria me fazer esquecer aquele homem imundo que me rasgou e tudo que aconteceu comigo. Neste caso, a forma de prevenção pra que não possa acontecer com outras mulheres é contar e contar do massacre que sofri. Mas para isso tenho que ter coragem para dar o testemunho, mas tenho muita vergonha por isso escrevo. Peço que a senhora conte, leve adiante, o massacre não pode continuar.” Para compreender o que diz Taussig (1993), traz-se à consideração e em complemento à Maria Aparecida, o depoimento de Maria Dolores, de pertença Kuruaya, que narra seu pânico no dia da violação, praticada dentro de sua casa, na frente do marido e das filhas, que à época tinham respectivamente oito anos e dois anos: “Dormi, como todas as noites, com meu marido e minhas filhas na minha cama. De madrugada acordei e levei o maior susto da minha vida, me deparei com um homem passando da sala pra cozinha, pois a porta do quarto ficava entre aberta durante a noite, então no primeiro momento imaginei que pudesse ser alguém de fora, pensei que fosse meu marido, então olhei na cama e vi as meninas e ele, percebi que tinha alguém na casa e não era o meu marido, ele dormia com as crianças. Logo depois minha filha de oito anos acordou e percebeu que eu estava bastante assustada e nervosa, então falei que tinha alguém na casa, pedi que ela não fizesse escândalo. Na hora, eu só pedia a Deus proteção pra minha família e, ao mesmo tempo, sem saber o que fazer e como agir naquela situação de angústia e muito muito medo.” Na sequência dos acontecimentos, Dolores se apercebe do perigo e evoca Deus: “... com toda Tua sabedoria me traz tranquilidade e, nas minhas orações, pedi que Deus fizesse aquela pessoa ter compaixão e não fizesse nada com meu marido e com as minhas filhas, eu coloquei minha vida nas mãos Dele. Eu dizia: Deus coloco minha família em suas mãos me proteja e me ilumine nesta noite, pois sei que corro perigo, me abençoe, te peço em amém. Dona a senhora já teve medo?” Dolores prossegue a narrativa, ofegante, e esclarece, “... agradeço todos os dias a Deus, eu esqueci parcialmente o fato, só que por mais que os anos passem, eu não consigo falar com as pessoas sobre o assunto, por medo e até mesmo vergonha.” O relato foi adiante, entrecortado pelo choro às vezes discreto, outras vezes convulsivo a ponto de interromper a narrativa. Ela segurava as minhas mãos10 com força, de certo ainda sentia pânico e as marcas corporais que se apresentavam vivas, intensas! O relato é bastante longo, mas importante para compreensão da dor, silenciada pelas circunstância e sobretudo pela vergonha. Diz a Kuruaya: “... trabalhei o dia inteiro, sou professora no bairro dos índios, local tomado pela violência. Nunca tive medo de nada. A casa é pequenininha. Toda noite eu tenho o costume de verificar portas e janelas, e nesse dia não foi diferente, entretanto nunca imaginei que alguém pudesse entrar na casa de alguém pelo telhado, por onde entrou o bandido. Quando me dei conta do perigo fingi que estava dormindo e observei por baixo do travesseiro que ele [o bandido] se aproximava e logo entrou no quarto meio agachado, ficando em volta do berço da minha filha. Chegou perto da cama e pôs a faca no meu pescoço, daí eu gritei e ele se debruçou em cima da cama fazendo ameaças, dizendo pra não gritar se não iria matar todo mundo caso eu não trepasse [mantivesse relações sexuais] com ele.” Dolores informou que ele estava visivelmente muito perturbado andando de um lado para o outro, parecia não saber o que fazer, aparentando transtornos. Tinha aparência de drogado, exalava mal cheiro, mas não parecia bêbado e nem cheirava a álcool. Ela continua: “... depois da ronda pela casa, ele saiu um momento do quarto e eu disse ao meu marido finge que dorme e cuida das meninas, pois ele vai voltar. Minha filha que estava acordada chorava muito e falei pra ela ficar bem caladinha como se estivesse dormindo foi o que ela fez, ficou quietinha abraçada à irmã e ao pai. Ele voltou e me obrigou a manter relações sexuais com ele. Sem saber o que fazer, pedia ajuda a Deus. Aquilo foi uma humilhação muito grande, na minha cama, com o meu marido vendo tudo e as minhas filhas então? Até hoje não sei “transar” como antes, a lembrança me perturba, tenho problemas, passo mal, meu marido não se conforma, reclama. Temo que me abandone por isso. Com os olhos distantes, como se voltasse à cena do crime, Dolores informa: “... pela conversa dele, percebi que ele não falava coisa com coisa, às vezes parecia tranquilo, daí a pouco se exaltava e com a faca na mão, junto do meu pescoço. Que medo! Quando ele falou que iria fazer sexo comigo, tornei a me apavorar e, na hora, pensei na família e o quanto seria pior se fossem com as minhas filhas, pensei que era melhor eu ceder do que ele fazer algo pior conosco, ele sentou na cama e falou que não era pra eu gritar, era melhor pra mim. Ele se serviu de mim duas vezes e perguntava, gostou cachorra, tu foste pega no dente, índia é tudo assim ... Eu desesperei, além de me usar me humilhava e minhas filhas e meu marido assistindo, acho que a pequena não acordou, nem sei ... quando percebi que ele tinha saído da minha casa parece que o mundo caiu sobre mim, não tinha reação de nada lembro que peguei o celular, mas não tinha condições de ligar pra ninguém, acho que ainda não tenho mundo.” Abalada, Dolores confessou que teve dificuldade de identificar o criminoso, mas o fez. Ele respondeu processo e foi condenado, o fantasma à época era a saída do agressor da cadeia. Ela ainda vive aos sobressaltos, pois se aproxima o final do cumprimento da pena. As categorias sobre violência: enredamentos na narrativa das mulheres Nos diálogos estabelecidos com as interlocutoras é possível detectar em seus depoimentos e mesmo discurso de indígenas e quilombolas, uma série de categorias a respeito de eventos que, do ponto de vista antropológico, poderiam ser definidos analiticamente como situações de violência, embora dificilmente nossas interlocutoras tenham usado explicitamente o termo violência, as protagonistas referiram-se a todo momento a situações que atingiam seus corpos individual e coletivamente. Os corpos são atingidos de forma coletiva na medida em que a corporeidade e construída socialmente e as violações são estruturais e não individuais, além de engendrarem dor e resistências. Os fatos narrados aproximam-se da definição de violência proposta por Paula Lacerda (2015) que a entende como: [...] um amplo conjunto de situações que poderiam ser percebidas, de outro ponto de vista, como ‘causadoras de sofrimento’, pessoas se apresentam como ‘vítimas de violação de direitos’, o que as transforma em sujeito e potencializa o alcance de suas reivindicações.” (2008, 28) A primeira categoria que se refere a tais processos diz respeito a violência enfrentada coletivamente pelo povo Tembé Tenetehara na Colônia Santo Antônio do Prata, educandário que recebia as crianças indígenas sequestradas de suas comunidades e apartadas de seus parentes para serem educadas, catequizadas e “civilizadas” com base na pedagogia cristã dos missionários Capuchinhos. Posteriormente, a Colônia foi transformada em Leprosário e a ameaça de contrair a doença afastou ainda mais os Tembé Tenetehara do território que tradicionalmente ocupavam. No período de instalação do Leprosário, conforme conta Dona Maria Joana, circulava na região o boato de que era possível curar a hanseníase se o doente comesse o fígado de uma pessoa saudável. Na época chegaram a ser encontrados na mata cadáveres com o fígado retirado, o que reforçava ainda mais o temor de que uma das pessoas a serem mortas pudessem ser Tembé Tenetehara. É desse cenário que emerge a categoria massacre: as interlocutoras constantemente reafirmam, ao dizer dessas memórias que “o nosso povo foi muito massacrado no Prata”. A noção de massacre parece elucidar mais enfaticamente os acontecimentos que a categoria violência, uma vez que as violações enfrentadas coletivamente pelos Tembé Tenetehara – ditos de Santa Maria – incluem espoliação territorial, epistemicídio, quebra dos laços de parentesco e, em última instância, o adoecimento e a morte dos membros do povo. O mesmo ocorre com as mulheres Xipaya e Kuruaya que, expulsas de seus territórios no médio Xingu, vieram à cidade e vivem presas a espaços, onde sequer podiam, há 10 anos, se declarar indígenas. Eram, como referem algumas das interlocutoras, impedidas de falar a língua materna, enfrentaram o massacre da discriminação, produzida pelo racismo que se apresenta em estratégias de dominação de ordem material e ideológica, utilizada pelas estruturas coloniais para manter status privilegiado de membros do grupo dominante, produzindo a perene subalternidade dos povos etnicamente diferenciados (Moreira, 2016 ), não fosse a luta que empreendem diuturnamente. No caso das quilombolas o massacre foi/é pesado e reproduzido nas diversas narrativas. A segunda categoria que diz de processos de violência é a de escravidão. Conforme explica Maria da Paz: “os antigos do nosso povo tratavam a mulher como escrava. Ela só servia para ter filho, cuidar da casa e da roça, ser usada pelo marido e trabalhar pro pai. Hoje não pode mais ser assim, mas muitos homens no nosso povo e de fora querem tratar as mulheres nessa escravidão.” A categoria escravidão parece dizer respeito a crítica que as mulheres indígenas fazem sobre a condição feminina dentro das diversas comunidades. O entendimento de que as mulheres eram e são tratadas como escravas, guarda em seu interior a reivindicação de que sejam entendidas como sujeitos, dotadas de direitos, vontades e voz. Tal categoria diz respeito a forma como as interlocutoras pensam a mulheridade e a crítica que fazem por não serem reconhecidas de tal forma. Entre as quilombolas a condição de escrava é mencionada por conta das avós e das bisavós, entretanto, algumas vezes, a condição passada é negada para não comprometer a luta e favorecer a discriminação. A terceira categoria nos parece a que possui maior tensão ao ser utilizada analiticamente: trata-se da categoria maldade. Durante muito tempo do percurso das pesquisas que apontavam para as categorias nativas, evitou-se conjecturar sobre a mesma, por receio de que escrever sobre o assunto pudesse “dar munição” para os antagonistas em relação aos povos tradicionais. Entretanto, ao buscar as noções de justiça que permitem a luta política das mulheres, a maldade atravessou o percurso da problematização. As interlocutoras com quem se dialogou nomeiam como “homens maus” aqueles que agridem seus corpos, física e/ou sexualmente. E, a essas agressões, as mulheres indígenas dão o nome de maldades. As quilombolas, algumas vezes referem-se às violações dos homens maus, como malinesas. Denominam malinesas às penas impostas, pelos encantados, a homens (e também à mulheres) que vivem fora das normas tradicionais, malinesas que trazem como consequência efeitos deletérios às relações sociais. Malinos são os encantados que castigam os transgressores com o mal, tornando-os perniciosos ao convívio social. Os encantados que “jogam a malinesa” vivem nas matas e nos cursos d’água e por serem donos dos espaços, exigem reverências e cumprimento de obrigações, nem sempre observadas pelos homens maus que terminam “malinando” com as mulheres (ou mulheres que malinam com homens). No caso da maldade ou da malinesa entre indígenas e quilombolas, uma e outra não integram a essência dos humanos, são tomadas pelas interlocutoras como condição que, dependendo do comportamento, pode ser afastada dos humanos, sempre que, arrependidos, voltem a cumprir as obrigações com os encantados. A tensão reside no fato de que muitas vezes os homens maus ou malinos podem ser companheiros das mulheres indígenas e quilombolas ou lideranças dos referidos coletivos. Duas situações parecem ilustrativas de como a categoria maldade é posta em ação. A primeira delas diz respeito a história contada por Maria Laura, que teve a filha Maria Conceição sequestrada por um homem que circulava na comunidade. A menina passou oito dias em cativeiro submetida a violência física e sexual pelo agressor. Por fim, depois de espancá-la quase até a morte, o criminoso abandonou-a sozinha na casa onde a escondia. Embora Maria Conceição tenha sido encontrada com vida e acolhida sob o modo Tembé de cuidar do corpo, a marca da violência permanece para o resto da vida e o fato de o agressor ter muito dinheiro, à época, assegurou-lhe a impunidade. Ao contar a história de sua filha, Maria Laura referiu-se ao criminoso como um “anjo mau”, aproximando-o do mito bíblico que conta a história de Lúcifer. A mesma categoria foi utilizada pela filha de Maria da Paz, Maria Lídia, para referir-se ao seu pai. Na época ele se encontrava doente, com desmaios e fraquezas constantes, e as causas não puderam ser identificadas pelos médicos que a família procurou. Maria da Paz, desde que a conhecemos, narra as agressões cometidas pelo marido, que espancava ela e os filhos e dizia constantemente a todos palavras duras, que “machucavam” quem as ouvia. Conversando com Maria da Paz e Maria Lídia, a filha afirmou que a doença do pai era um “castigo por todas as maldades que ele fez com a gente”, com o que Maria da Paz concordou. A noção de maldade parece ter um sentido diferenciado para as mulheres indígenas se comparada aos usos que assume na sociedade dita ocidental. Enquanto no ocidente a maldade é frequentemente tomada como propriedade de pessoas perversas, entre as protagonistas indígenas a categoria parece se aproximar do que a Antropologia e os movimentos de mulheres tem chamado de machismo ou violência de gênero. Atentar para o uso diferenciado do termo pelas interlocutoras só foi possível em função do envolvimento etnográfico no contexto em que estas se inserem e por meio do diálogo e inflexão mantida pelas autoras. Por fim, a última categoria percebida como o sinônimo nativo para a violência é a de machucar. Frequentemente usada na sociedade ocidental para designar ferimentos físicos, sejam acidentais ou infringidos, machucar entre as mulheres indígenas refere-se ao ato de dizer palavras ofensivas e duras, que atacam a honra e o caráter das pessoas atingidas. Nos relatos de violência dentro das relações com os maridos – sejam eles indígenas ou não – as interlocutoras afirmam que as palavras duras são tão dolorosas e machucam tanto quanto agressões físicas. Tendo em conta a lei brasileira sobre violência doméstica, temos que o “machucar” talvez possa ser compreendido como violência psicológica11 , uma entre as possibilidades de violência contra a mulher, deslindadas nesse diploma legal. Entre as quilombolas há narrativas que informam que as palavras ofendem mais que serem marcadas por paus, chicotes e outros instrumentos de agressão. As marcas físicas podem ser tratadas, curadas, mesmo que levem tempo, mas as marcas dos machucados ferem a alma (para além do corpo) e permanecem na memória das interlocutoras e nada nem ninguém faz desaparecer. Abaixo as correspondências relativas às categorias éticas e êmicas. Thumbnail  Quadro 1 : Categorias éticas e êmicas sobre violência As categorias relativas à agência: a resistência das/entre mulheres Uma das principais questões que se tornaram visíveis no diálogo com as interlocutoras diz respeito ao fato de que as violações que atingem os corpos das mulheres jamais foram aceitas de forma passiva, elas não se deixam paralisar. Os processos de agência – aqui utilizada no sentido atribuído por Pierre Bourdieu (1983) e Anthony Giddens (1984) – e resistência, sempre estiveram presentes nas trajetórias das indígenas e quilombolas. O silenciamentos via etnocídio atingiu seus corpos e vidas, mas não se consolidou na medida em que as protagonistas sempre estiveram dispostas a buscar alternativas e resisitir. É com o intuito de romper com o etnocídio e a destituição da memória de seus coletivos que as mulheres indígenas ou quilombolas contam histórias de extrema violência no contexto da pesquisa; supomos que elas acreditam que por meio do registro na produção antropológica, as interlocutoras mantém a expectativa de que as memórias não sejam esquecidas nem apagadas, mas que, pelo contrário, permaneçam vivas na luta por direitos coletivos e por reconhecimento. Relatar as estratégias de agência e resistência e o protagonismo das interlocutoras frente a situações de poder assimétricas coaduna-se com o objetivo de “contar para prevenir”, como disse Maria dos Anjos, há anos, quando em uma roda de conversa aconselhou as jovens presentes: “... não guardem segredos, eles envenenam a vida. Não façam como eu que evitei contar as malinesas, daí não consegui domei os maus [homens] da minha vida. Nem os de casa, nem os da rua e ninguém deve machucar nossas almas, somos pessoas, [e olhando firme as meninas moças da roda] devemos reagir, assim as malinesas vão pra longe da comunidade.” De fato, contar a história parece uma das principais categorias que distinguem a agência das mulheres diante da violência sofrida. O trabalho das autoras, membros da equipe de antropólogos do Grupo de Pesquisa Cidade, Aldeia & Patrimônio só teve início a partir do convite dos membros da comunidade para que os pesquisadores escrevessem a história do povo Tembé Tenetehara e de outros povos indígenas e quilombolas, como informamos à partida. Quando na comunidade, muitos pesquisadores foram “intimados” a entrevistar os membros mais velhos da comunidade, para garantir que as histórias que estes se lembravam fossem registradas antes que se perdessem com seu falecimento. Maria Laura, com o início das pesquisas na comunidade, decidiu começar a escrever diários, onde poderia registrar suas memórias pessoais e coletivas e repassar para os pesquisadores do grupo. Outra categoria importante nos processos de agência das mulheres indígenas, especialmente as Tembé, é a do cuidado. Conforme elucida Maria Laura: “... o nosso povo foi muito massacrado no Prata. Morreu muita gente. A gente jamais podia dizer que era índio, até hoje nós vivemos discriminados. Hoje tá muito melhor, a gente vive junto, faz nossas festas, cuida uns dos outros e o nosso povo se alegra. Mas vive com a discriminação. Não podemos usar uma roupa, que já dizem que nós não somos índios. Eu vou dizer que eu sou uma portuguesa, sendo que eu não sou? Até tem gente que diz, mas eu não digo. Eu digo o que eu sou, eu sou Tembé. Mas tem que viver com a discriminação.” Ao contrário da visão de cuidado amplamente discutida na literatura produzida na área da Enfermagem, pautada na atenção e medicalização de pessoas com doenças, ou deficiência, o cuidado tembé e das demais etnias é holístico e alimenta o corpo de forma completa, por meio do sistema tradicional de ação para saúde, que contempla não apenas o cuidado com o corpo, mas a proteção espiritual, e as lutas políticas por uma vida melhor, que acarretam uma corporeidade saudável. E esse corpo não se estrutura desconectado do ser indígena, com toda a carga política e epistemológica que a identidade enseja para as tembé, xipaya e kuruaya. Cuidar de si e dos seus implica em se proteger de violações e fortalecer o grupo para que as lutas políticas possam ser continuadas. Nesse sentido, o cuidado de si constitui um empreendimento que conforma resistências políticas, materiais e epistemológicas, em um contexto no qual o corpo vem à cena tanto como território de lutas e afirmações identitárias, quanto como alvo de opressões e estigmas. Com as mulheres quilombolas a situação é semelhante, sempre que alguém se machuca a cura vem via sistema tradicional de ação para saúde, mesmo que a pessoa machucada e violada receba atendimento dentro do sistema ocidental de ação para saúde. Outra categoria percebida como forma de agência das mulheres nas tensões que envolvem os maridos diz respeito a educação dos filhos. Segundo Maria Laura: “... a mulher é que educa o filho. Se ela não mandar ele ir lá, tomar a bença do pai, fazer um carinho no pai, ele não vai, não, fica na dele. Foi por causa de um dos meus filhos que meu marido parou de me bater. Um dia, ele era novinho, magro, magro... Ele virou pro pai e falou: “O senhor nunca mais vai bater na mamãe, hoje foi o último dia”. O pai perguntou: “E o que tu vai fazer?”. E ele disse: “Eu não sei, mas o senhor não encosta mais um dedo nela”. Depois disso, nunca mais ele me bateu.” Uma das filhas de Maria Laura, ao ver o pai com outras mulheres na rua: “... fazia um escândalo, batia nela. Uma vez enchi as coisas da mulher de areia, ficou tudo sujo. Depois ele metia a porrada em mim quando chegava em casa, mas eu nunca deixava barato.” Atualmente as crianças que na infância enfrentaram os pais em defesa de suas mães, criam redes de apoio e acolhimento das indígenas mulheres em situação de violência, seja recebendo-as em suas casas, rezando por elas ou conversando com os maridos e, muitas vezes constrangendo-os perante os demais parentes. Maria José, quilombola da comunidade Maria me ajude constrangia o marido, mostrando de casa em casa os ferimentos produzidos pelas surras que levava, porque teimava em estudar. A peregrinação de casa em casa produzia o recolhimento do agressor que, alcoolizado, tinha produzido as maldades, malinado a protagonista. Por fim, a última categoria percebida como característica da agência empreendida pelas mulheres tembé em relação a violência diz respeito ao processo de fechar o corpo. Prática também verificada entre as quilombolas. Em um contexto em que as violações de direitos ocorridas em hospitais são reais e prováveis, fechar o corpo contra coisas ruins é essencial. Entre as práticas frequentes, temos: rezar na cabeça de criança com febre; ministrar ervas medicinais para pessoas que adoecem ou são envenenadas; manter a gravidez ou interrompê-la quando as vidas da mãe e da criança estão ameaçadas; são exemplos de saberes e fazeres acionados no agenciamento de situações consideradas de risco, em que se sabe que o acesso ao sistema ocidental de ação para saúde não responde satisfatoriamente ou há dificuldades em acessá-lo. Fechar o corpo entre os povos tradicionais implica proteger as pessoas da comunidade tanto no plano físico quanto no espiritual. Os rituais podem ou não estar relacionados à alguma forma de religiosidade indígena afro-brasileira ou ocidental. Uma das interlocutoras, reconhecida “por ser uma das mais antigas dos nossos antepassados”, entre os Tembé, relata que nos tempos antigos, quando houve grande incidência de hanseníase na região, ela conseguiu paralisar o avanço da doença no corpo de uma das pessoas da comunidade utilizando as propriedades do mucuracaá, uma planta medicinal que também é utilizada entre os tembé para combater o mau-olhado. Outras indígenas afirmam que uma mulher grávida que estivesse sob os cuidados de Maria Carmen estaria em boas mãos, uma vez que ela acompanhava a gestação desde os primeiros meses até a hora do parto, no qual a mulher era virada de lado e dava a luz enquanto a interlocutora rezava em sua barriga. Despois do parto, a profissional de saúde permanecia na casa da parturiente até o resguardo terminar, portanto eram quarenta dias de cuidados diferenciados. Durante uma das idas a campo, a mãe de uma criança que havia nascido há pouco tempo encontrava-se aflita, pois o bebê não parava de chorar e não costumava ser assim. Nesse momento, Maria Carmen, sogra da mãe da criança, entrava na casa e, ao se dar conta da situação, perguntou se a menina havia ido tomar banho de igarapé. Como a resposta foi afirmativa, a interlocutora disse: “... minha filha pegue alho, amasse e misture com álcool e deixe um tempo. Depois passe com o dedo na palma da mão da neném, na sola do pé, no braço e na coxa, em forma de cruz. Vai ficar um cheirinho ruim, mas não tem problema, ela vai melhorar. Ela deve ter visto alguma coisa no igarapé, criança é muito sensível, parece um pintinho novo. Quando eu era pequena, minha tia levava a gente pro igarapé, mas ela entrava primeiro, pedia licença pra mãe da água pra gente entrar e jogava o alho na água, aí o banho era sossegado.” O alho é antídoto (combate o veneno) para os encantados que “jogam malinesa” quando as pessoas não reconhecem as regras, que não se referem apenas aos espaços de domínio dos mesmos, mas às horas proibidas do dia e da noite. A paçoca de gergelim preto “pisada” com hortelã é utilizada para “botar pra fora” (as indígenas não utilizam o termo “aborto”, as quilombolas usam expulsar), principalmente quando a gravidez ameaça a vida da mãe ou quando o parto é de risco. Para mulheres grávidas que sentem dores, ministra-se chá de gengibre. Para inflamações, especialmente em casos de problemas de próstata, o caroço de abacate mostra-se eficaz. Crianças, quando morrem antes do batismo, segundo os católicos, choram durante sete dias e precisam ser batizados para que “descansem”. A última prática mostra-se elucidativa da forma tembé de pensar a construção da “pessoa”, a partir do ato de batizar a criança morta. Para os Tembé Tenetehara não se deve negar às pessoas mortas, quando oriundas de famílias cristãs, o direito ao ritual de batismo que as forma e legitima. As situações acima descritas, integrantes das observações de campo, revelam que mesmo enfrentando situações de precariedade e violência, as mulheres exercem seu protagonismo, instituindo o “ser sujeito” e encontram alternativas para agenciar situações de violência. O corpo e as múltiplas corporeidades que coexistem entre as interlocutoras são territórios privilegiados da resistência de indígenas e quilombolas mulheres e das formas de cuidar de si mesmas. Thumbnail  Quadro 2 : Categorias êmicas e éticas sobre agência Entre oitivas e traduções Os diálogos em campo demonstram que os atos e falas das interlocutoras são ferramentas importantes para a compreensão de suas realidades. Ao mesmo tempo, analisar o discurso no contexto das relações antropológicas passa a ser um desafio, na medida em que aponta para a necessidade de proceder o controle das dificuldades de tradução etnográfica, dos etnocentrismos ocidentais e do viés da colonialidade vigente. Em trabalho de grande influência e repercussão, Gayatri Spivak (2010) questiona criticamente a (im)possibilidade de fala de determinados grupos. A autora constata que os subalternos em geral, e o sujeito historicamente emudecido, a mulher subalterna em particular, foram e são, ao longo da história, mal compreendidos ou mal representados pelo interesse pessoal dos que têm poder para representar. A proposição instigante de Spivak (2010), além de elucidar silenciamentos, colonialismos e violências, também aduz escutas anti-hegemônicas, epistemologicamente desobedientes, pós-coloniais. Inspirada pela reflexão provocativa da filósofa indiana, Lacerda (2014) considera que em meio a tentativas de silenciamento, os grupos e sujeitos subalternizados – e esse é um deslocamento analítico fundamental para que a subalternidade não seja entendida como lugar paralisante e intransponível – estão falando. Superando a perspectiva colonialista que pretende “dar voz” aos grupos subalternizados por meio da pesquisa, Lacerda (2014) tensiona a questão que orienta Spivak (2010): como o não subalternizado, o privilegiado, pode escutar? As posições teórico-epistemológicas (que também possuem caráter político) adotadas na presente discussão objetivam favorecer a escuta etnográfica mais responsável, capaz de superar estereótipos de passividade e compreender indígenas e quilombolas como sujeitos de suas próprias histórias. A estruturação do olhar antropológico sobre o campo, em diálogo com os conceitos e categorias referidas, foi essencial para compreensão das interlocutoras como protagonistas de suas próprias histórias, não como vítimas passivas, desagenciadas e paralisadas diante de violações. Qualquer procedimento em sentido contrário seria uma prática etnocêntrica. Atentar para as narrativas das mulheres indígenas e quilombolas, a partir do que foi explicitado, é um esforço que vai além de retomar o protagonismo de vozes subalternizadas. Trata-se de uma tentativa de constituição de possibilidades de outra epistemologia, outras referências e sensibilidades, diferentes das que o pensamento colonial afirma serem as únicas dignas de serem aprendidas e respeitadas. A partir das falas desses sujeitos, confrontamos a tentativa histórica de epistemícidio (Santos, 2010) e assimilação que incide sobre os povos indígenas e quilombolas, e, mais especificamente sobre mulheres indígenas e quilombolas/ indígenas e quilombolas mulheres. Trata-se de uma opção metodológica que abriga dimensões e responsabilidades políticas, de contemplar enunciações ditas e tomadas como periféricas e arbitrariamente alijadas pelo pensamento ocidental e colonial. Por diálogos e justiças A diversidade das agências e possibilidades de justiça nos permite esterçar para diferentes lados saindo dos limites de nossos axiomas, verdades que consideramos inquestionáveis e supostamente válidas universalmente. Axiomas estes que muitas vezes são utilizadas como princípios que mantém privilégios de uns em detrimentos de outros secularmente subalternizados. Não se trata de atribuir valor superior aos conhecimentos tradicionais ou mesmo de aderir a eles, mas de considerá-los em diálogo para produzir a melhor justiça, sem diluí-los na ciência desenvolvida na academia. A importância das reflexões que se faz é tentar indicar que as agências das mulheres e modos diversos de conhecimentos, é indicar também que se pode pensar de outro modo e que os variados sistemas de justiça precisam, de fato, dialogar. Sabemos que os estudos acerca da violência de gênero no país muitas vezes utilizam o termo violência sem muita precisão, como se violência doméstica, violência intrafamiliar, violência contra a mulher, entre outros, fossem capazes de abarcar reflexões sobre realidades diversas. Fazer o esforço de compreender noções êmicas do termo afasta o perigo da reificação e induz a “diálogos ouvintes”, que postulamos aqui, em contraposição aos “diálogos surdos.” Ainda sobre a questão dos termos utilizados para abordar a violência, contemporaneamente tem se preferido falar em mulheres em situação de violência ao invés de violência contra a mulher, para indicar que a violência é transitória e não um destino que as mulheres devem cumprir (Campos, 2011). Além disso, a mudança de termo e, por conseguinte, de enfoque, impele a pensar a questão fora do molde algoz versus vítima, possibilitando compreender que, mesmo sendo vítima, especialmente num sentido jurídico-estatal, não significa não ter poder e força de resistir. As narrativas e corporeidades de mulheres indígenas e quilombolas/ indígenas e quilombolas mulheres desafiam compreensões do senso comum sobre situações de violência e nos fazem compreender que vítimas são sujeitos. Dessa forma, como sujeitos que são, devem poder acionar sistemas tradicionais de justiça ou mesmo a “justiça dos brancos”, como dizem algumas. Porém, a colonialidade, especialmente a de gênero (Lugones, 2008 ) cria contextos em que os dois lados olvidam as demandas pelo fim de maldades e malinesas. Referências bibliográficas ALEIXO, Mariah Torres. 2015. Indígenas e quilombolas icamiabas em situação de violência: rompendo fronteiras em busca de direitos Dissertação de mestrado, Programa de Pós-Graduação em Direito, UFPA. (Inédita) BELTRÃO, Jane Felipe. 2012. Histórias ‘em suspenso’: os Tembé ‘de Santa Maria’, estratégias de enfrentamento do etnocídio ‘cordial’. Revista História Hoje, São Paulo, v. 1, no 2, p. 195-212. BOURDIEU, Pierre. 1983. Esboço de uma teoria da prática In: ORTIZ, Renato (Org.). Pierre Bourdieu: sociologia São Paulo: Ática, p.46-81. BRASIL. 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Distinção e capital cultural hoje Distinction and cultural capital today: introduction Edison Bertoncelo Michel Nicolau Netto Fábio RibeiroSOBRE OS AUTORES Neste dossiê, reunimos artigos que debatem a distinção no mundo contemporâneo, inspirados pelas pesquisas pioneiras realizadas desde a década de 1970 por Pierre Bourdieu e sua equipe. Como introdução, apresentamos um breve resumo da concepção bourdieusiana elaborada principalmente no texto clássico A distinção (Bourdieu, 1979), em que Bourdieu desenvolveu uma análise complexa e original da sociedade francesa a partir de abordagens metodológicas diversas. Em suas conclusões, enfatizou a importância do capital cultural, e do fenômeno associado da distinção, para estabelecer uma representação adequada do espaço social francês e suas hierarquias para além das análises tradicionais com foco apenas em questões econômicas no sentido estrito. Em seguida, faremos um resumo das discussões sobre o debate classe e cultura com base na leitura de uma série de textos que dialogam, mais ou menos criticamente, com Pierre Bourdieu e, em especial, com A distinção. A partir disso, apresentamos algumas implicações do que se expôs para pesquisas futuras, e destacamos as contribuições dos artigos que compõem este dossiê. Uma breve história d’A distinção Os trabalhos de Pierre Bourdieu sobre a relação entre classe, cultura e estilo de vida são o desenvolvimento de pesquisas anteriores feitas em geral sob encomenda de órgãos governamentais em busca de melhoria de políticas públicas. Em Os herdeiros (1964), Bourdieu e Jean-Claude Passeron observaram que, embora a escola pública francesa oferecesse condições similares de aprendizado, o desempenho dos alunos não era o mesmo. A diferença da origem de classe entre os que obtinham sucesso - e chegavam à universidade - e os que eram excluídos no processo precisava de uma explicação que não fosse baseada em preconceitos de classe. Os autores foram capazes de perceber que a suposta cultura universal ensinada nas escolas encontra direta correspondência com um conjunto de conhecimentos e valores típicos das classes dominantes. A socialização das crianças na cultura burguesa produzia uma experiência de continuidade entre a cultura escolar e a cultura familiar. Para explicar esse processo, Bourdieu e Passeron falam da incorporação de um capital linguístico pelas crianças com origem nas classes dominantes, que seria um conjunto de conhecimentos e competências linguísticas, estilos pessoais e atitudes (Lamont e Lareau, 1988), que criam um senso de pertencimento à escola. De forma correlata, a ausência desse capital produzia um estranhamento do ambiente escolar nas crianças oriundas de meios sociais não burgueses. A diferença em desempenho, portanto, pode ser explicada justamente pelo valor desse capital incorporado pela criança em sua socialização familiar. A relação entre escola, desempenho e origem de classe segue em A reprodução (1970). Ali, tanto quanto a partir da edição inglesa de 1979 de Os herdeiros (apudPrieur e Savage, 2013), o termo agora mobilizado é capital cultural, tido por Tony Bennett e Elizabeth Silva (2011, p. 429) como o mais criativo conceito do autor, de fato “um neologismo - e não uma reelaboração de um léxico herdado” como seria o caso de outros conceitos como campo e habitus. Simultaneamente, Bourdieu trabalhava com o universo das artes e percebia, de um lado, uma relação entre gosto e origem de classe (no caso o interesse pela fotografia, em Un art moyen, de 1965), e de outro a relação entre classe e as disposições para apreciação da arte (como no livro O amor pela arte, de 1966). Os trabalhos desenvolvidos na década de 1960 já se articulavam tanto na mente de Bourdieu quanto em suas intenções de pesquisa. Como revela Monique de Saint-Martin (2015), desde 1962 o autor francês organizava workshops para discutir os temas que em 1979 apareceriam em A distinção e que já começavam a aparecer nos textos aqui citados. Entre o final da década de 1960, com a fundação do Centre Européen de Sociologie (1968), e o começo da década seguinte, especialmente com a fundação da revista Actes de la Recherche en Sciences Sociales (1975), Bourdieu começa a adquirir condições materiais apropriadas para se lançar no plano audacioso de investigar a importância da cultura nos processos de reprodução de classe na sociedade francesa. Não se tratava mais de se pensar em espaços isolados da sociedade (na escola, no museu, na prática fotográfica), mas na sociedade de forma integral. O centro e a revista permitiram tanto um espaço de divulgação de pesquisas de interesse de seu diretor, quanto a reunião de jovens e talentosos pesquisadores, entre os quais alguns de seus antigos colaboradores, como Luc Boltanski, com quem publicou Un art moyen. Nesse momento, há uma intensificação de pesquisas e textos que vão desaguar n’A distinção, e o livro pode mesmo ser considerado “o ponto no qual pesquisa e artigos se encontram e interagem” (Saint-Martin, 2015). De fato, aparecem no livro pesquisas e reflexões anteriormente publicadas e que vão solidificando conceitos, hipóteses e metodologias. Seguindo a lista formulada por Saint-Martin, temos: “Disposition esthétique et compétence artistique” (Bourdieu, 1971), “Les fractions de la classe dominante et les modes d’appropriation des oeuvres d’art” (Bourdieu, 1974); “Anatomie du goût” (Bourdieu e Saint-Martin, 1976); “La production de la croyance” (Bourdieu, 1977a); “Titres et quartiers de noblesse culturelle: la critique sociale du jugement esthétique” (Bourdieu e Saint Martin, 1976); “Les stratégies de reconversion” (Bourdieu et al., 1973); “Questions de politique” (Bourdieu, 1977b), “Classement, déclassement, reclassement” (Bourdieu, 1978) e “Le couturier et sa griffe” (Bourdieu e Delsaut, 1975). Em “A anatomia do gosto”, de 1976, Bourdieu e Saint-Martin já constroem os espaços social e dos estilos de vida, sendo que muitos dos trechos desse ensaio aparecem integralmente ou em partes em A distinção. Bourdieu também se beneficiou do desenvolvimento da estatística, em especial da “escola francesa de análise de dados”, e das técnicas computacionais1. Na década de 1960, o grupo de Jean-Paul Benzécri cunhou o termo “análise de correspondências múltiplas”, utilizada por Bourdieu e Saint-Martin em “A anatomia do gosto” e por Bourdieu em A distinção, para a medição das distâncias relativas dos indivíduos no espaço social de acordo com o acúmulo e a estrutura de seus capitais, nessa ocasião, medindo-se os capitais econômico e cultural. É com base nessa técnica de análise de dados que Bourdieu e Saint-Martin são capazes de construir o espaço social francês e a ele sobrepor o espaço dos estilos de vida. É a coincidência entre as posições dos sujeitos de acordo com seus capitais (volume e estrutura) e a legitimidade de suas práticas culturais definidoras de seus estilos de vida que permitiu que Bourdieu lançasse a tese da homologia entre os espaços. Voltaremos à metodologia mais adiante nesta introdução, mas aqui destacamos que a possibilidade de se medirem as posições relativas dos sujeitos concretizava o pressuposto teórico de Bourdieu de que a sociedade é formada por posições objetivas relacionais, ou seja, as posições se definem umas em relação às outras. As “classes no papel” ou classes teóricas são o resultado desse esforço de classificação sociológica, a partir do qual é possível identificar conjuntos de agentes que ocupam posições relativas vizinhas no espaço social em função da distribuição dos capitais relevantes. As classes assim construídas diferem das classes preconcebidas ou pressupostas como em muitas correntes do marxismo e da economia prevalentes na época (ver Bourdieu, 2015, pp. 99-120). A estatística e a computação, assim como os estatísticos reunidos no Instituto Nacional de Estatística e dos Estudos Econômicos (INSEE) e no Centro de Pesquisa pelo Estudo e Observação das Condições de Vida (Crédoc), permitem a representação visual e geométrica da sociedade que Bourdieu e seus colegas descobriam empiricamente. Após A distinção, o tema do capital cultural permaneceu central na obra de Bourdieu, especialmente em suas grandes pesquisas dos anos 1980, Homo academicus (1984) e La noblesse d’État (1989), e foi desenvolvido também nas aulas de Bourdieu como membro do Collège de France. Nessas aulas, o sociólogo destaca as diferenças entre sua concepção e a ideia mais difundida na época de “capital humano”, associada a economistas como Gary Becker e Jacob Mincer, que buscava interpretar os resultados dos investimentos em educação apenas em relação à sua conversão direta em capital econômico. Já Bourdieu, como de costume, enfatizava o aspecto relacional e também temporal do conceito de capital cultural, que não pode ser reduzido diretamente a seu aspecto monetário (ver Bourdieu, 2016, pp. 239-257). Assim, fica mais fácil perceber a função teórica desempenhada pelo conceito de capital cultural, além da função metodológica já explicitada em obras como A distinção. Em termos teóricos, o capital cultural e sua relação com os conceitos adicionais de habitus e capital simbólico permitem a Bourdieu afastar-se tanto de uma abordagem enfatizada em particular na economia, na qual o fundamento da ação social está em indivíduos racionais que buscam maximizar seu interesse (ver Bourdieu, 2017, passim), quanto de abordagens de inspiração durkheimiana que localizam aquilo que é próprio ao social e à sociologia em instituições completamente externas aos indivíduos (Bourdieu, 2016, pp. 229-262). Da mesma maneira, a ideia de distinção ganha maior aporte teórico na abordagem bourdieusiana como o fenômeno por excelência que permite àqueles que ocupam posições dominantes em determinados campos não só recolher e acumular lucros de distinção, mas também, através das lutas dentro do campo, estabelecer a própria estrutura do campo, ou seja, a hierarquia que favoreça a reprodução do capital que eles próprios possuem - num processo em que, como Bourdieu enfatiza, nada precisa acontecer intencionalmente, na lógica do complô (Bourdieu, 2016, p. 291). Críticas e reflexões a partir dos debates sobre A distinção Dessa forma, é possível dizer que não só A distinção é o resultado de quase duas décadas de um trabalho coletivo que reuniu tanto indivíduos quanto instituições francesas, mas também continuou alimentando as pesquisas e reflexões de Bourdieu no decorrer de sua carreira. E seu resultado é proporcional ao tamanho dos esforços e trabalhos despendidos. O estudo da relação entre classe e cultura tem uma longa tradição na sociologia e remonta ao menos a Weber, Veblen, Simmel e Elias. A distinção segue essa tradição e se torna - ao menos do que nela se consolida, como conceitos, métodos etc. - objeto frequente de reflexões e questionamentos na sociologia. Nas próximas seções, tematizamos alguns debates centrais à literatura que se debruçou nessa problemática construída n’A distinção. Onivorismo e a crítica da homologia estrutural e do capital cultural Na década de 1990, quando ganhava impulso o movimento de apropriação dos estudos de Bourdieu sobre a distinção para além da França (a primeira tradução da obra para o inglês ocorreu em 1984), surgiu uma ideia que, posteriormente, viria a ser interpretada por muitos autores dentro da sociologia da cultura e da sociologia da estratificação social como uma crítica à abordagem bourdieusiana da relação entre classes sociais, gostos e estilos de vida. Essa ideia, mais propriamente um conceito “provisório” do que uma teoria ou mesmo uma hipótese, foi desenvolvida nos estudos do sociólogo estadunidense Richard Peterson com seus colaboradores (Peterson, 1992, 1997, 2005; Peterson e Simkus, 1992; Peterson e Kern, 1996). Como argumenta Gayo (2016), “a ideia do onívoro foi desenvolvida de uma posição de alto status e forte legitimidade na sociologia norte-americana” (p. 104). Peterson era então reconhecido nacional e internacionalmente entre seus pares por seus trabalhos sobre indústrias culturais e produção cultural, além de ter publicado fartamente em revistas acadêmicas de elevado prestígio, como Poetics (Ibidem). Se os debates em torno do onivorismo cultural (o termo aludindo a uma “metáfora zoológica” tão criticada por Bernard Lahire) ganharam enorme impulso, estimulando a produção de vários estudos ao longo das décadas seguintes e tornando-se ponto de passagem obrigatório para as pesquisas recentes sobre gostos e práticas culturais, parte disso se deve, certamente, ao contexto acadêmico norte-americano e à posição de Richard Peterson nele. A esses fatores também se deve o fato de que essa ideia ganhou mais tração nos debates na sociologia norte-americana do que na sociologia europeia (sobretudo a francesa): “o onívoro cultural era uma reiteração posterior de um tema familiar dentro da sociologia dos Estados Unidos que afirmava que a geração nascida após a Segunda Guerra Mundial era mais próspera, educada, aberta e tolerante do que as gerações posteriores de norte-americanos” (Idem, p. 106). É menos claro, no entanto, porque esse conceito foi interpretado posteriormente como tendo implicações críticas aos estudos de Bourdieu sobre a distinção. Ironicamente, Peterson, em seus próprios estudos (sobretudo em uma publicação recente, 2005), afirmava que o onivorismo não apontava para uma refutação, mas apenas uma reformulação dos argumentos de Bourdieu. Se os estudos de Peterson foram lidos posteriormente como sendo uma espécie de refutação ao livro A distinção, isso se deve, em parte, à forma como essa obra foi apropriada fora da França, sobretudo pela sociologia de língua inglesa. Como destaca Holt (1998), durante muito tempo a sociologia norte-americana fez uma leitura “substancialista” dessa obra, minimizando um elemento que lhe é central, seu caráter relacional. Lizardo e Skiles (2016) sustentam que o entendimento convencional de que o debate sobre o onivorismo questionou a validade empírica das ideias de Bourdieu quanto à associação entre gosto e classe está baseado em uma leitura incorreta do trabalho de Bourdieu. Tal leitura parte de dois pressupostos: i) de que as práticas culturais dos indivíduos de “status elevado” podem ser classificadas em um padrão de tipo “exclusivismo esnobe” [snobbish exclusiveness], ou seja, tais indivíduos gostam ou fazem coisas associadas à “alta cultura”, rejeitando a cultura popular; ii) A distinção pode ser lida como um estudo de como as classes superiores, fortemente ligadas à alta cultura, se distinguem das classes populares, com seus gostos e práticas vulgares (Idem, p. 91). O argumento contido na primeira premissa ignora que a aversão estética é um mecanismo de produção de fronteiras simbólicas que opera tanto vertical quanto horizontalmente; no caso da segunda premissa, minimiza-se a ênfase conferida por Bourdieu à multidimensionalidade do espaço social, que se traduz, por intermédio do habitus, em oposições no espaço simbólico. Isso implica, por exemplo, que as lutas em torno da imposição dos modos legítimos de viver são travadas não apenas entre diferentes classes, mas, sobretudo, entre diferentes frações das mesmas classes (por exemplo, o “ascetismo aristocrático” dos intelectuais em oposição ao “gosto do luxo” da burguesia proprietária e dirigente). Voltando aos estudos de Peterson, a ideia do onivorismo não parece muito complicada: a velha distinção entre alta e baixa cultura estaria sendo substituída por outra, entre onívoros e unívoros. Os primeiros, além de se apropriarem da “alta cultura”, também consumiriam “cultura popular”. Os unívoros teriam um repertório de gostos e práticas restrito à “baixa cultura”. Nesse sentido, o onivorismo apontaria para “repertórios de práticas culturais, emergindo no final do século xx, que são marcados por uma amplitude crescente de gostos e participação cultural e também por uma disposição para transgredir fronteiras previamente construídas entre itens ou gêneros culturais hierarquicamente ordenados” (Karademir e Warde, 2016, p. 77). Em alguns estudos, “onivorismo” é substituído por “ecletismo”, mas a ideia é a mesma. O desenvolvimento original do conceito aponta para mudanças nos princípios de distribuição dos gostos e das práticas culturais, do “esnobismo” para o “onivorismo”. O onivorismo implica, portanto, a combinação de gostos e práticas, que atravessam diferentes registros culturais. Não basta, portanto, para ser caracterizado como onívoro, que um indivíduo goste de muitos gêneros ou participe de muitas atividades culturais. Ocorrendo no contexto de transformações sociais e culturais - relacionadas com o aumento da oferta de bens culturais, a “estetização” da cultura popular, a maior mobilidade social -, a emergência dessa nova “orientação” em relação às formas culturais teria efeitos profundos para as estratégias de distinção, para a importância da “alta cultura” na hierarquização social etc. Antes de analisarmos esses possíveis efeitos, no entanto, é essencial investigar a validade empírica da tese de Peterson. Como argumentam Karademir e Warde, há muitas dificuldades para avaliar a suposta importância do onivorismo enquanto novo “princípio” subjacente à distribuição de gostos e práticas culturais, dificuldades que dizem respeito à falta de consenso na literatura que opera com esse conceito quanto às maneiras de defini-lo e operacionalizá-lo, aos domínios e itens culturais que devem ser considerados, às medidas de posição social (classe social, status), à necessidade de uso de dados de diferentes tipos (qualitativos e/ou quantitativos), aos procedimentos para medir mudança social e, por fim, quanto aos critérios a empregar para operacionalizar uma noção central ao onivorismo, que é aquela da abertura à diversidade. Ora, se o onivorismo, pelo menos segundo a definição original, significa o “cruzamento” de fronteiras culturais e a composição “eclética” de gostos e práticas, então é necessário adotar algum critério para determinar quais são as fronteiras relevantes e onde estão localizadas. Por exemplo, em um estudo de Peterson e Kern (1996), ópera e música clássica foram consideradas gêneros eruditos; bluegrass, country, gospel, rock e blues, gêneros inferiores; musicais da Broadway, músicas leves (easy listening) e big band, gêneros médios. Com base nessa classificação, repertórios musicais que combinassem, por exemplo, ópera e rock, ou ópera e easy listening seriam considerados onívoros. É óbvio, portanto, que o modo de construir a classificação e a hierarquização dos gêneros musicais interfere fortemente nos resultados sobre a suposta emergência e/ou crescimento de repertórios onívoros. Nos próprios estudos de Peterson, como salienta Brisson (2019), há diferentes procedimentos para produzir tais classificações musicais, dificultando a comparabilidade dos resultados, o que não seria necessariamente um problema, tivessem tais modificações tido o objetivo de incorporar evoluções temporais das hierarquias musicais (estetização, intelectualização ou popularização de gêneros ou subgêneros musicais) ou, então, nos modos como tais hierarquias são subjetivamente percebidas e internalizadas pelos indivíduos. Não foi o caso. Pelo que foi exposto, é provável que o onivorismo seja um “artefato metodológico” (Brisson, 2019, p. 10). De fato, a falta de consenso sobre o que é onivorismo e como operacionalizá-lo reduz nossa capacidade de estimar a validade empírica da tese de Peterson. Além disso, é preciso refletir se, mesmo que empiricamente válida, a tese acrescentaria algo aos debates sobre classes, gostos e estilos de vida na tradição bourdieusiana (Bertoncelo, 2019). A “tese” do onivorismo introduz implicações opostas ou radicalmente diferentes daquelas associadas à hipótese das homologias para a investigação das práticas culturais? Suspeitamos que não. No estudo d’A distinção, já está presente o argumento de que um dos principais marcadores da distinção é a propensão e a capacidade dos agentes para transpor a disposição estética para novos objetos e domínios da vida social. O “esnobe”, a quem supostamente o onívoro estaria substituindo no mundo contemporâneo, não seria mais distinto ou distintivo: ao invés disso, como sublinham Lizardo e Skiles (2016), o “esnobismo”, entendido como uma orientação que privilegia tão somente os bens culturais institucionalmente consagrados em detrimento daqueles da “cultura popular”, seria um indício da aquisição tardia da disposição estética, mais próximo da “boa vontade cultural” da pequena burguesia. Essas considerações críticas, no entanto, não invalidam por completo a importância dos debates acerca do onivorismo. Ainda que este não constitua um objeto sociológico propriamente novo e que faltem as condições adequadas para apreciar a validade empírica das mudanças apreendidas por esse conceito, o debate serviu para arejar as discussões em torno da distinção. De fato, como conceber e investigar a distinção e a formação de capital cultural em um contexto marcado pela crescente circulação global de pessoas e objetos, pela disseminação das tics, pela ampliação da esfera do simbólico, pelas mudanças nos sistemas educacionais? É possível que essa capacidade “tolerante” para transpor a disposição estética para domínios não artísticos ou culturais e para objetos não consagrados, mesmo vulgares, tenha ela própria sido transposta para outras regiões do espaço social, não se restringindo, portanto, às frações mais intelectualizadas? O estudo britânico Culture, class, distincion aponta nessa direção: […] em suma, a cultura importa para a classe média, e até mais para seus estratos mais elevados. O capital cultural objetivado e institucionalizado opera como um recurso valioso, mas não exclusivamente por meio do controle da cultura legítima. Ao invés, a orientação requerida se dirige para a apreciação reflexiva, em um espírito de abertura, de uma diversidade de produtos culturais, mas continuam a existir fronteiras além das quais não é respeitável atravessar (Bennett et al., 2009, p. 194). Diferentemente, outros estudos apontam que esse ecletismo seletivo é a manifestação de certas disposições ao consumo que “divertidamente” [playfully] atravessam fronteiras culturais estabelecidas. A combinação entre gostos “estabelecidos” e “emergentes” expressa não tanto uma orientação onívora ou um novo tipo de capital cultural, mas, ao invés disso, o domínio do simbólico que está na raiz do capital cultural teorizado por Bourdieu, que opera, no entanto, em um contexto social marcadamente diferente (Flemmen; Jarness e Rosenlund, 2018). A perda da eficácia da “alta cultura” como distintiva? Uma das principais contribuições dos debates em torno do onivorismo para a Sociologia tem a ver com a problematização dos efeitos da “alta cultura” para os processos de distinção social2. Estudos recentes evidenciam que as classes superiores, sobretudo em suas frações mais intelectualizadas e cultivadas, possuem gostos “ecléticos”, que não se reduzem à “alta cultura” assim entendida (Flemmen; Jarness; Rosenlund, 2018, 2019; Prieur; Savage, 2011; Bennett et al., 2009). Mais: o consumo da “alta cultura” vem declinando socialmente, mesmo nas classes superiores, em especial nas gerações mais novas (Gripsrud et al., 2011; Purhonen et al., 2011; Dimaggio e Mukhtar, 2004)3. Quais as implicações disso para a relação entre “alta cultura” e capital cultural? Para alguns, a “alta cultura” não representa mais (ou jamais representou, fora do contexto francês) uma forma de capital cultural (Halle, 1992; Lamont, 1992). Diferentemente, DiMaggio e Mukhtar argumentam, baseados em um estudo sobre a evolução do consumo cultural nos Estados Unidos ao longo de duas décadas (1982-2002), que a “alta cultura” permanece central para a formação e acumulação de capital cultural, ainda que exista uma tendência geral de redução de seu público consumidor, mesmo que não na mesma magnitude para todas as formas culturais assim classificadas4. Conforme esse mesmo estudo, as atividades culturais populares tiveram uma redução de seu público tão grande quanto aquela da “alta cultura”, e o consumo cultural dos menos educados caiu mais fortemente do que o dos mais educados. Tais processos evidenciam, assim, que o declínio da “alta cultura” tem mais a ver com o aumento da competição por outras formas de uso do tempo livre e de modos de consumo da cultura do que propriamente com a perda de eficácia distintiva da “alta cultura”5. De forma similar, um estudo conduzido entre estudantes de ensino superior na Noruega, que cobre um período parecido com o anterior (1998-2008), aponta que, apesar de um declínio significativo das práticas associadas à “cultura legítima tradicional” - em menor medida entre estudantes de humanidades do que de disciplinas técnicas -, elas permanecem fortemente associadas às classes superiores e ainda gozam de elevado reconhecimento, o que indicaria, segundo o estudo, a provável persistência da eficácia distintiva da “alta cultura”, ou seja, ela ainda opera como um capital cultural (Gripsurd et al., 2011, pp. 524-525). Ao mesmo tempo, a contínua redução do interesse pela “alta cultura” e de seu consumo, especialmente entre os mais jovens e mais escolarizados, tenderia a torná-la uma cultura de “nichos sociais”, não mais gozando de reconhecimento social generalizado. Conforme argumentam DiMaggio e Mukhtar, “nós suspeitamos que se a participação [na “alta cultura”] continuar a cair, em algum momento, essas formas artísticas se tornarão irrelevantes para a cultura compartilhada das famílias e grupos sociais cujas chances de vida são mais dependentes do manejo de capital cultural” (Idem, p. 191). Ainda que tal tendência se concretize, esse processo teria como consequência a irrelevância do capital cultural como um princípio de diferenciação e hierarquização social? Embora, como argumentamos, a “alta cultura” ainda goze de algum reconhecimento social para além de seu público consumidor, cada vez mais restrito às classes superiores, é pouco provável que o que se entende por “cultura legítima” se restrinja a essas formas culturais (Špaček, 2017). Uma leitura relacional do capital cultural e dos processos distintivos “abre caminho para uma definição da disposição estética parcialmente dissociada dos conteúdos nos quais ela opera” (Coulangeon, 2015, p. 56). Holt (1998) chama atenção para os riscos de uma leitura substancialista que associa a “cultura legítima” à “alta cultura”, leitura essa que leva à conclusão de que a ausência de qualquer associação significativa entre o consumo da “alta cultura”, de um lado, e o pertencimento às classes superiores, de outro, indicaria a irrelevância do capital cultural na produção de desigualdades e na construção de fronteiras simbólicas e sociais. Holt entende que tal argumento confunde os aspectos abstrato e particular do capital cultural. Para ele, enquanto o aspecto abstrato é produzido pela incorporação das estruturas sociais condicionadas pelas classes, o particular é específico do campo em que o capital cultural é articulado. Dessa forma, o que os agentes incorporam não é exatamente um gosto pela “alta cultura”, mas uma condição específica de julgamento do mundo social que se manifestará como distintivo em objetos diferentes em cada campo social. Não haveria nada, portanto, de essencial no domínio da “alta cultura” para Bourdieu, sendo isso apenas um capital particular relevante para o estudo da sociedade francesa, mas que pode não importar para outros tempos ou outras sociedades. Ao invés de pressupor, deve-se, então, encontrar qual o capital específico que importa em cada contexto. É por isso que, para Holt (1997), mais importante é o estado incorporado do capital cultural, pois é ele que criará as condições para que os agentes possam ocupar posições dominantes em diferentes campos e neles controlar seus capitais específicos. Para dar um exemplo simples, é o capital cultural incorporado que permite a membros da elite ocuparem posições dominantes em campos tão distantes como o acadêmico e o financeiro, fazendo valer esse capital abstrato para o domínio dos capitais específicos. Na mesma linha, seguiram Prieur e Savage (2013). Sem adentrarem em discussão sobre campo, eles diferenciam a visão sobre o conceito de capital cultural em flexível e fixo. Segundo eles, o fixo seria a visão que atrela o capital cultural a um objeto específico - por exemplo, à “alta cultura”. Com esse olhar, “é fácil descartar a análise de Bourdieu como obsoleta e irrelevante” (Prieur e Savage, 2013, p. 249). Contudo, para eles, Bourdieu entendia o capital cultural como flexível, ou seja, uma forma de poder de qualidades exclusivas e relacionais, que se forma em objetos específicos de acordo com a relação que eles possuem com outros objetos. Assim, se a “alta cultura” não seria mais a concretização (ou, para voltar a Holt, a particularização) do capital cultural, outros objetos o são, devendo o pesquisador identificar quais. Na próxima seção voltaremos a esse debate, apresentando o que os autores chamam de “capital cultural emergente”. Não entendemos, contudo, que devemos descartar de maneira tão radical a “alta cultura” como forma de distinção. Isso se dá por dois motivos. Um primeiro motivo se refere ao que encontramos em algumas pesquisas, mas destacamos aqui Omar Lizardo (2006). O autor estuda a relação de conversão entre capital cultural e capital social. Sua tese central é inverter a noção clássica de que capital social se converte em cultural, para mostrar que o cultural se converte, com mais frequência, em social. Entretanto, o que mais nos interessa aqui é notar que, em diferentes redes de relacionamento, há a operação de diferentes conhecimentos culturais. Segundo o autor, a cultura popular tem um “valor generalizado de conversão”. Ou seja, a cultura popular pode ser convertida em diferentes redes de relacionamento, produzindo, inclusive, redes amplas de laços fracos. Já a “cultura de elite (highbrow) […] tem um valor restrito de conversão: ela deve mais provavelmente sustentar redes de laços fortes” (Lizardo, 2006, p. 783), que permitirão maiores vantagens para seus integrantes. Em outras palavras, o ecletismo cultural da elite lhe permite formar diferentes redes de socialização, sendo essas redes dependentes do conhecimento cultural mais amplo, mas também do reconhecimento das hierarquias culturais. Essa ideia se aproxima tanto à de repertório, de Michèle Lamont, quanto de variações intraindividuais de Bernard Lahire. Para ambos os autores, os agentes mobilizam diferentes conhecimentos em contextos específicos. A diferença, contudo, é que a ideia de Lizardo, e esse é o ponto aqui, nos permite vislumbrar a permanência da relevância da “alta cultura” como forma de distinção. Esforço similar foi empreendido em artigo recente (Ábile et al., 2021), em que se argumentou que a perda da relevância da “alta cultura” foi observada em pesquisas que relacionaram a “alta cultura” ao campo propriamente artístico. O texto propõe olhar como a “alta cultura” é operada em outros campos para produzir distinções. Assim, demonstra-se que os capitais valorizados no campo artístico são mobilizados pelos campos da gastronomia e da moda para produzirem diferenciações. Estilistas e cozinheiros que se aproximam de artistas (e mesmo querem ser considerados artistas) se diferenciam dos outros, e seus produtos se tornam distintivos. Sendo práticas que recebem reconhecimento social (especialmente por programas de televisão), mas, ao mesmo tempo, exclusivas de uma elite, elas produzem distinção e operam como capital cultural. Dessa forma, argumenta-se que a “alta cultura” pode ser vista ainda operando como capital cultural, mesmo em domínios que não o artístico. Do gosto à prática: de “o quê” para “como” Uma outra forma de se pesquisar o capital cultural, mal captada especialmente por pesquisas baseadas em preferências, é a diferenciação entre “o que” se consome e o “como” se consome. Essa preocupação com a modalidade das práticas está bem exemplificada em um estudo de Vegard Jarness (2015), autor que pesquisou formas de consumo cultural e estratificação social na cidade de Stavanger, na Noruega. Segundo ele, as críticas direcionadas à noção de capital cultural ignoram a distinção entre opus operatum e modus operandi, ou seja, entre um conjunto de preferências (mais ou menos volumosas e “ecléticas”) e os esquemas de avaliação e apreciação subjacentes às escolhas. No contexto da ampliação da produção, difusão e consumo de bens simbólicos e das possibilidades de estetização da vida cotidiana, é provável que “gostar das mesmas coisas” signifique cada vez menos “ter os mesmos gostos” (Idem, p. 67). Na verdade, “quando os mesmos bens culturais comuns são apreciados de modos diferentes, isso pode tornar a prática ainda mais distintiva” (Idem, p. 77). Dessa forma, se indivíduos de diferentes classes ou frações de classe declaram preferências similares em gosto (por exemplo, musical), é possível que o modo como ouvem música ou mesmo a justificativa que dão para suas preferências possam se diferenciar, manifestando diferentes habitus incorporados e produzindo fronteiras que separam as classes e geram distinção. Formas emergentes de capital cultural e novas formas de distinção? Retornando à visão sobre capital cultural flexível ou à diferença de capital cultural abstrato e particular, alguns autores argumentam a favor da emergência de formas emergentes de capital cultural. Mike Savage e Annick Prieur argumentam que, em um contexto em que se ampliam os universos de possíveis escolhas estéticas e em que o valor do domínio da “cultura erudita tradicional” se reduz a mercados de concorrência social cada vez mais restritos, é provável que os agentes equipados com mais capital cultural privilegiem um tipo de apropriação “reflexiva”, distanciada e irônica, sustentada por uma capacidade de explicitar as razões da escolha. “Irônico” aqui implica que os agentes (re)conhecem os significantes do gosto e são capazes de associar diferentes significados a práticas mainstream. Além disso, tais agentes são capazes de se posicionar para além de certos enquadramentos nacionais, regionais ou locais, adotando uma orientação cosmopolita. Esses aspectos da prática - apropriação irônica, “reflexiva” e distanciada, a partir de um enquadramento cosmopolita - teriam um “novo” valor distintivo e, por isso, os autores utilizam o conceito de formas emergentes de capital cultural para apreendê-los (Prieur e Savage, 2011, 2013). Em suma, esse conceito apreende possíveis mudanças no gosto dominante, sobretudo nas gerações mais novas, indicando a operação de “novos” modos de distinção social não mais baseados na estética do desinteresse, que, nos trabalhos de Bourdieu, constituía o princípio subjacente à apropriação legítima das formas culturais “sérias” (Friedman et al., 2015) Por outro lado, outros estudos questionam a suposta novidade dessa modalidade de consumo que combina elementos do “tradicional” e do “contemporâneo”, argumentando que as “formas emergentes” de capital cultural ou as “novas” formas de distinção não pressupõem nada além do domínio do simbólico aplicado em novos contextos sociais (Flemmen; Jarness e Rosenlund, 2018; Atkinson, 2017). Um outro conjunto de estudos busca perceber outras formas de capital. Trata-se também da emergência de capital, mas não necessariamente cultural. É o caso mais frequente de pesquisas que se focam na aparência ou na beleza. Um conjunto de autores (Vandebroek, 2015; Anderson, Grunert, Katz e Lovascio, 2010; Holla e Kuipers, 2015) considera que tais características, ao serem avaliadas como distintivas por certos grupos, operam como um capital que denominam estético. Da mesma maneira que outras formas de capital, a condição de sua acumulação é predisposta pela posição do agente no espaço social. Uma variação dessa visão percebe que esse capital estético é mais importante para as mulheres (elas são mais frequentemente avaliadas por critérios estéticos). Contudo, mesmo a elas, esse capital é de pouca vantagem, pois é mobilizado pelos homens. Em outras palavras, o capital estético acumulado por uma mulher serve, no mais das vezes, como distinção para os homens. Ashley Mears (2015) mostra “os usos do capital corporal feminino por homens que se apropriam de mulheres como um recurso simbólico para gerar lucro, status e laços sociais num mundo exclusivo de homens de negócio” (Mears, 2015, p. 22). Seus estudos se focam na relação entre homens e mulheres em feiras e eventos internacionais de produtos. Contudo, isso pode ser relacionado com aquilo que Randall Collins chama de “trabalho goffmaniano” das mulheres. Seu foco é mostrar que, seja em casa ou em suas profissões, as mulheres tendem a se focar em trabalhos que produzem status. O diálogo com Mears é que esse status também é apropriado no mais das vezes pelo homem, seja ele o chefe, seja ele o marido. Essas duas análises colocam um ponto importante para a própria teoria dos capitais. Em geral, as pesquisas se focam na posse de capitais por agentes de acordo com suas posições sociais. Contudo, pouca atenção é dada à possibilidade de os agentes se apropriarem de capitais acumulados por outros. Ou seja, ainda que capitais sejam acumulados por determinados agentes de acordo com suas condições, esses mesmos capitais podem ser apropriados por outros em melhores condições sociais. Nas análises citadas, é o caso de capitais acumulados por mulheres e mobilizados em proveito de homens. Podemos estender esse raciocínio para outros campos, como a relação entre as altas classes e a cultura popular etc. Distinção e classe social no mundo contemporâneo O estudo da distinção nos coloca, como vimos, inúmeros desafios de natureza teórica. Ao mesmo tempo, existem dificuldades propriamente metodológicas no estudo desse tema. O conceito de distinção, tal como empregado por Bourdieu, supõe diferença e hierarquia. Há muitas evidências empíricas de que as práticas culturais são estratificadas e diferenciadas socialmente. Mais fundamentalmente, a hipótese da homologia - da correspondência estrutural entre o espaço social e o espaço dos estilos de vida - encontra sustentação empírica em estudos realizados em diversas sociedades, indicando que os estilos de vida são estruturados não apenas pelo volume de capital possuído pelos agentes, mas também por sua composição (Flemmen, Jarness e Rosenlund, 2019; Atkinson, 2017; Pereira, 2005)6. É possível, assim, não apenas diferenciar as classes superiores das classes médias e inferiores, mas também, como já demonstrado n’A distinção, diferenciar frações das classes superiores em função do peso dos diferentes recursos pertinentes a um dado universo social (Börjesson et al., 2016). E a mesma diferenciação interna pode ser encontrada para as demais classes, considerando os recursos específicos e modalidades de estilização da vida típicas a essas regiões do espaço social (Pereira, 2005). Por outro lado, uma parte importante desses estudos voltou-se para a investigação de um aspecto da distinção, aquele referente à produção, acumulação e transmissão de capital cultural7. Consequentemente, é pouco comum a utilização de uma ampla variedade de indicadores para mensurar as práticas dos agentes em diferentes domínios da vida social, restringindo-se frequentemente ao consumo da cultura entendida em um sentido bastante restrito (em parte devido às limitações decorrentes do uso de fontes secundárias). Ademais, a operacionalização da noção de espaço social, a partir da construção de diversos indicadores de formas de capital e de trajetórias sociais, tem recebido relativamente pouca atenção nos estudos de classe recentes inspirados pela tradição bourdieusiana8. Se, apesar das ressalvas anteriores, é possível dizer que o aspecto da distribuição diferencial das propriedades das práticas está, de alguma forma, bem documentado, o outro elemento da distinção, qual seja, a hierarquia, parece menos explorado nos estudos que se debruçam sobre essa temática. A mera evidência estatística da raridade de uma prática ou gosto não implica necessariamente que ele hierarquize os agentes. Os instrumentos geralmente utilizados para “mapear” os gostos e as práticas culturais não são suficientes para responder a esta questão. Os dados produzidos por meio de surveys são muito úteis (sobretudo quando produzidos a partir da problemática da pesquisa), porque possibilitam evidenciar a ocorrência empírica de homologias entre as práticas dos agentes em diferentes domínios e suas posições relativas no espaço social. É necessário, no entanto, dar alguns passos adicionais para apreendermos a problemática da distinção em sua totalidade. Como a hipótese da homologia sugere haver correspondências entre as hierarquias operantes nos diversos campos sociais, por um lado, e entre elas e as hierarquias vigentes no espaço social, por outro, uma primeira tarefa consiste em situar as práticas em seus campos específicos e reconstruir a estrutura desses campos (suas instâncias de legitimação, suas hierarquias e seus agentes, os valores que os orientam, os objetos em disputa), além das relações entre eles9. Há muitos estudos desse tipo na sociologia no Brasil e alhures10. Ademais, é preciso avançar na investigação dos aspectos subjetivos de como “as pessoas explicitamente avaliam, estimam e julgam os estilos de vida dos outros (Sølvberg e Jarness, 2019, p. 180). Como produzir dados desse tipo? Como apreender empiricamente os modos pelos quais as pessoas categorizam e hierarquizam os estilos de vida? Que técnicas de observação podemos empregar para investigar as disputas em torno do valor das propriedades dos estilos de vida e o reconhecimento pelos agentes dessas hierarquias? Essa é uma tarefa fundamental, uma vez que, para que possamos considerar determinadas práticas ou gostos como distintos e distintivos, é essencial evidenciar o amplo reconhecimento da legitimidade de tais práticas ou gostos. Como argumentam Sølvberg e Jarness, os estudos de Lamont sobre as fronteiras sociais e simbólicas nos ajudam a avançar nessas indagações. Fronteiras simbólicas são “distinções conceituais feitas pelos atores sociais para categorizar objetos, pessoas, práticas, e, até mesmo, o tempo e o espaço. São ferramentas pelas quais os indivíduos e grupos lutam para chegar a definições da realidade compartilhadas” (Lamont e Molnár, 2002, p. 168). Por sua vez, fronteiras sociais são “formas objetivadas de diferenças sociais manifestadas no acesso desigual e na distribuição desigual de recursos (materiais e imateriais) e de oportunidades sociais” (Idem, ibidem). Mapear as fronteiras simbólicas, retornando aos argumentos de Sølvberg e Jarness (2019), pode ser bastante útil para investigar empiricamente “se e como as diferenças de estilos de vida baseadas em classe estão, de fato, ligadas a processos de exclusão e inclusão” (p. 180). Em Money, morals and manners (1992), Lamont investigou o processo de construção de fronteiras de diferentes tipos (cultural, econômica e moral) com base em entrevistas em profundidade com informantes norte-americanos e franceses. O modo como as pessoas falam de si e dos outros, as categorias que mobilizam, em seus discursos, para nomear, definir, avaliar suas próprias ações e as dos outros constituem dados importantes a partir dos quais podemos apreender como as fronteiras sociais e simbólicas são construídas e reconstruídas na vida social. Ao mesmo tempo, há uma tendência quase incontornável por parte dos indivíduos de idealizar seus comportamentos em situações sociais. Por isso, em situações de entrevista, é provável que os informantes recorram à produção de narrativas “honoráveis”, por meio das quais buscam transmitir uma imagem de si como indivíduos tolerantes, minimizando as diferenças de classe e evitando julgamentos ou o uso de categorias que impliquem hierarquização ou estigmatização. Mais: para os membros das classes superiores, apresentarem-se como pessoas tolerantes, “decentes”, igualitárias contribuiria, intencionalmente ou não, para a reprodução da legitimidade cultural e das fronteiras de classe (Sølvberg e Jarness, 2019, p. 23). Para que a situação de entrevista não se transforme em uma mera instância de produção de discursos complacentes ou condescendentes, é essencial que adotemos técnicas que permitam “extrair” as chamadas narrativas “viscerais”, aquelas carregadas de sentimentos de desgosto, julgamentos morais e estéticos, de categorias que produzem hierarquias entre grupos de pessoas11. A probabilidade de produção de tais narrativas “honoráveis” ou “viscerais” pode variar conforme o contexto: onde, com quem, de quem, do que se fala. Nos estudos de Sam Friedman sobre a estruturação social do gosto por comédia, por exemplo, seus informantes de frações superiores mais dotados de capital cultural construíam, em suas falas, fronteiras simbólicas baseadas na percepção da inabilidade de certas audiências de entenderem “formas mais elevadas” de comédia. Aparentemente, quando as pessoas falam sobre “o que as faz rir”, elas se sentem menos constrangidas em marcar distância com quem não compartilham seus gostos: “a comédia parece ter um poder único para definir fronteiras simbólicas, enraizado em sua conexão às propriedades sociais do humor…” (Friedman, 2014, p. 148)12. Neste sentido, tem sido cada vez mais relevante o emprego de múltiplas técnicas de pesquisa, que captem a complexidade das relações entre classe e distinção. Muito além de buscar saber as práticas raras e comuns, as que caracterizam mais o gosto de uma classe do que de outra, essas técnicas buscam nos ajudar a responder quais as práticas e os gostos mobilizados para a produção de fronteiras simbólicas. Em uma pluralidade de práticas e gostos que caracterizam a vida dos sujeitos, quais aqueles que se tornam, para usar outra expressão de Lamont, o repertório das diferentes classes nas lutas sociais. Ao fazer esse tipo de pergunta, deslocamos o capital cultural de seu aspecto distintivo para a temática do poder. Isso significa que o interesse recai na esfera da legitimidade de gostos e práticas. E, dessa forma, importa perguntar sobre as novas e antigas instâncias de legitimidade que marcam a esfera cultural. A legitimidade cultural na França de Bourdieu era altamente marcada pelo controle do Estado (operando nas escolas, nos museus, nas salas de concerto etc.), pelo gosto burguês e pela separação de alta e baixa culturas. O que ocorre com essas instâncias com o desenvolvimento da indústria cultural, da cultura produzida por empreendimentos privados e, em especial, pelos novos meios de comunicação, como a internet? A busca de respostas a perguntas como essa e outras que fizemos aparecem nos textos reunidos neste dossiê. A temática de novas configurações do capital cultural e formas de definição das fronteiras simbólicas são observadas no texto “Consumo e capital informacional nas lógicas de distinção entre os grupos dominados”, de Ana Lúcia de Castro. A autora leva o debate sobre a distinção para as classes populares e, nelas, a cultura de consumo. Seu objeto privilegiado de análise é o movimento hype, que envolve a adoção por jovens das classes populares de um consumo de bens restritos típicos do universo do luxo, mas ao mesmo tempo um afastamento das práticas mais legítimas desse universo e da classe dominante. A autora nota como nesse movimento o capital cultural é mobilizado não a partir de seus elementos tradicionais (como a “alta cultura”), mas a partir de um conhecimento da cultura digital que produz um capital informacional. Assim, é pela mobilização desse capital que os agentes do movimento hype são capazes de traçar as fronteiras simbólicas que os diferenciam de outros membros das classes populares. O capital cultural, ela argumenta, continua operando, mas sob formas não antevistas por Bourdieu. Mas se o capital cultural continua operando, sob novas formas, também deve haver instâncias que sejam fonte desse capital na contemporaneidade. Não é estranho à obra de Bourdieu observar o papel da escola e da língua nesse contexto. Contudo, a contemporaneidade exige que repensemos a escola, em especial em relação ao processo de globalização. A isso se dedica Miqueli Michetti no texto “Bilíngues, bilíngues de verdade e global citizens: distinção e disposições no mercado educacional”. O foco agora se volta para as classes altas e sua tentativa de buscar manter o valor do capital cultural que detêm. Para tanto, a inserção dessas classes em uma suposta cultura cosmopolita produz o efeito desejado. Os filhos da elite vão estudar em escolas em que não apenas aprendem uma língua estrangeira (o inglês, em geral), mas incorporam uma disposição cosmopolita e, com ela, a noção de que uma vida desterritorializada, voltada para o mundo, é superior. Dessa forma, em torno de noções que supõem o “bem”, como diversidade cultural, a valorização da diferença, a tolerância etc., o que na verdade se produz é um capital cultural, marcado pela disposição cosmopolita, que, mais uma vez, apenas a elite é capaz de adquirir. Ainda sobre o campo educacional brasileiro, Carlos Moris, Fernando Casselato, Matheus Nascimento, Gabriela Agostini e Luciana Massi mostram outro lado da atuação do capital cultural através de uma excelente aplicação do método de análise de correspondências múltiplas, que demonstra o efeito muito forte do capital cultural nas chances de sucesso no Enem e, portanto, nas chances de acesso à universidade, remetendo aos estudos bourdieusianos clássicos sobre o tema. O tema da distinção ligado ao capital cultural das elites muda de ares e nos leva ao Chile, onde Modesto Gayo e María Luisa Méndez mostram, através de métodos quantitativos e qualitativos, a existência de uma fragmentação ideológica na elite chilena, em contraposição a teorias que pressupõem um conservadorismo inerente a qualquer grupo no topo da hierarquia social. Aproveitando-se do momento de alta tensão e conflitos na sociedade chilena, o artigo estabelece correlações que sugerem uma clivagem entre grupos de elite que apoiam a mudança constitucional e querem um papel protagonista nesse processo, e outros que temem e gostariam de impedir mudanças profundas. Esses grupos, por sua vez, podem ser correlacionados a atitudes opostas no espectro político e ideológico. Do Chile, passamos para a Argentina e o texto de Alexandra Tedesco, um trabalho de sociologia histórica centrado na figura de Victoria Ocampo, escritora fundamental para a formação do campo intelectual argentino no século XX. Através de uma análise cuidadosa de sua trajetória, percebemos também a operação do habitus e do capital cultural incorporado na formação e reprodução de mecanismos de distinção da elite cultural argentina. A relação entre classe, cultura e política reaparece no artigo de Alana Meirelles Vieira, “Entre cultura e política: a distinção da produção de opinião na mídia”. Mobilizando de modo bastante frutífero os conceitos bourdieusianos de espaço social, habitus, campo e capital, a autora problematiza as tomadas de posição no mercado de produção política, centrado na mídia, considerando as homologias das posições e das trajetórias sociais dos agentes nos campos político, jornalístico, econômico e, mais amplamente, no espaço das classes sociais. Com base na análise de dados primários produzidos a partir de entrevistas em profundidade e de pesquisa documental, o trabalho contribui para dar corpo a uma vertente da Sociologia da Cultura que não se furta aos desafios de apreender os determinantes de classe, pela mediação do habitus, nas tomadas de posição política e ideológica. O texto de Michel Nicolau Netto e Bárbara Venturini Ábile propõe a tematização das homologias das hierarquias no campo da moda e no espaço das classes sociais, a partir da investigação empírica de dois eventos de colaboração criativa entre marcas de luxo e fast fashion, entendidos como instâncias empíricas do encontro entre o “sagrado” e o “profano”. Com base em dados produzidos por meio de pesquisa de material visual e de entrevistas em profundidade, os autores argumentam que tais colaborações pressupõem (e também reproduzem) o reconhecimento pelos agentes das hierarquias simbólicas e, portanto, do valor das marcas enquanto signos de distinção nesse subespaço simbólico. Por isso, os eventos de colaboração criativa servem também como uma instância de observação da luta de classes em torno da imposição dos modos legítimos de viver, luta em que as classes superiores quase sempre detêm os recursos necessários para a preservação da raridade relativa em que se assentam seus privilégios. Fechando o dossiê, apresentamos uma entrevista realizada por e-mail com o pesquisador norueguês Johannes Hjellbrekke, que nos traz observações muito interessantes sobre o uso da metodologia bourdieusiana para a produção de projetos de pesquisa no século XXI e a relevância contínua do conceito de capital cultural em nossas sociedades, já tão distantes da França das décadas de 1960 e 70 que Bourdieu investigou. Referências Bibliográficas Ábile, B. V.; Ferreira, T. A.; Miraldi, J. C. & Nicolau Netto, M. (2021), “A arte entre estilistas e chefs: os repertórios da arte e a delimitação das fronteiras na gastronomia e na moda”. CSOn-line: Revista Eletrônica de Ciências Sociais Anderson, Tammy L.; Grunert, Catherine; Katz, Arielle & Lovascio, Samantha. (2010), “Aesthetic capital: A research review on beauty perks and penalties”. Sociology Compass, 4: 564-575. Atkinson, Will. 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Tempos difíceis. Sobre a importância do feminismo*