O “egoísmo” como competência:um estudo de desculpas dadas nas relações de casal como forma de coordenaçãoentre bem de si e moralidade
Por Sylvia Romano apoiada por
Alexandre Werneck
O objetivo deste trabalho é analisar como atores sociais podemutilizar o “egoísmo” como um elemento central para a efetivação de suasações no âmbito de relações duradouras, mesmo diante de demandas de umbem comum como guia moral. Por meio de entrevistas com casais e da aná-lise de situações de potencial conflito entre os companheiros, estuda-se como,em um tipo de relação centrada no amor, tomado como um ambiente noqual se estabelece um pacto de altruísmo mútuo, o “bem de si” precedemuitas vezes o “bem comum” como princípio de efetividade das ações e,portanto, como uma competência mor al para a conservação das relaçõese, ao mesmo tempo, das regras morais com elas envolvidas. Para que issoseja operado, entra em cena o ato de dar uma desculpa, ou seja, uma de-manda para que a situação de disputa se desloque do plano universalista daregra moral para um plano circunstancialista, com base nas condições espe-cíficas da ação, revelando uma capacidade cognitiva primordial para a vidasocial, que chamo de capacidade metapragmática, e que permite se dar con-ta da distância entre universal e particular.PALAVRAS-CHAVE: “Egoísmo”, desculpa, casal, efetivação, capacidademetapragmática.
- 134 -ALEXANDRE WERNECK. O “EGOÍSMO” COMOCOMPETÊNCIA...Sophie,Há muito tempo venho querendo lhe escrever e responder ao seu últimoe-mail. Ao mesmo tempo, me pareceria melhor falar com você e dizer oque tenho a dizer de viva voz. Mas pelo menos será por escrito. Como vocêpode ver, não tenho andado bem ultimamente. É como se não me reco-nhecesse na minha própria existência. Uma espécie de angústia terrível,contra a qual não posso fazer grande coisa, senão seguir adiante para ten-tar superá-la, como sempre fiz. Quando nos conhecemos, você impôs umacondição: não ser a “quarta”. Eu mantive meu compromisso: há meses dei-xei de ver as “outras”, não achando obviamente um meio de vê-las, semfazer de você uma delas.Achei que i sso bastasse, achei que amar você e o seu amor seriam sufici-entes para que a angústia que me faz sempre querer buscar outros horizon-tes e me impede de ser tranquilo e, sem dúvida, de ser simplesmente feliz e“generoso”, se aquietasse com o seu contato e na certeza de o amor quevocê tem por mim foi o mais benéfico para mim, o mais benéfico que ja-mais tive, você sabe disso. Achei que a escrita seria um remédio, que meu“desassossego” se dissolveria nela para encontrar você. Mas não, estou piorainda, não tenho condições sequer de lhe explicar o estado em que meencontro. Então, esta semana, comecei a procurar as “outras”. E sei bem oque isso significa para mim e em que tipo de ciclo estou entrando.Jamais menti para você e não é agora que vou começar.Houve uma o utra regra que você me impôs no início de nossa história:no dia em que deixássemos de ser amantes, seria inconcebível para vocême ver novamente. Você sabe que essa imposição me parece desastrosa,injusta (já que você ainda vê B..., R...) e compreensível (obviamente); comisso, jamais poderia me tornar seu amigo.Mas hoje você pode avaliar a importância da minha decisão, uma vezque estou disposto a me curvar diante da sua vontade, pois deixar de vervocê e de falar com você, de apreender o seu olhar sobre as coisas e os seres
REVISTADE ANTROPOLOGIA, SÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.- 135 -e a doçura com a qual você me trata são coisas das quais sentirei uma sau-dade infinita.Aconteça o que acontecer, saiba que nunca deixarei de amar você da ma-neira que sempre amei, desde que nos conhecemos, e esse amor se estende-rá em mim e, tenho certeza, jamais morrerá.Mas hoje seria a pior das farsas manter uma situação que você sabe tãobem quanto eu ter se tornado irremediável, mesmo com todo o amor quesentimos um pelo outro. E é justamente esse amor que me obriga a serhonesto com você mais uma vez, como última prova do que houve entrenós e que permanecerá único.Gostaria de que as coisas tivessem tomado um rumo diferente.Cuide de você.X.A mensagem acima foi enviada em & ;nbs p;24 de abril de 2004 pelo escritorfrancês Grégoire Bouillier. O destinatário, como o cabeçalho apenasparcialmente indica, foi a artista plástica Sophie Calle, um dos nomesmais famosos e celebrados da arte conceitual francesa. Mas, apesar deser claramente uma mensagem particular entre essas duas pessoas famo-sas, a missiva tornou-se pública por uma via um tanto peculiar: serviude ponto de partida para uma das obras mais conhecidas de Sophie,Prenez soin de vous (Calle, 2007), Cuide de você, que consistiu na reinter-pretação dessa mensagem por mulheres, que apresentam na obra tra-duções e juízos para o rompimento e a maneira como este   ;foi feito.Ao todo, 107 delas, escolhidas por Sophie segundo seus papéis sociais(a grande maioria, segundo as profissões), apresentam leituras da carta,analisando-a de acordo com suas competências ocupacionais ou a rees-crevendo conforme suas competências artísticas. Assim, dezoito atrizesa interpretam de variadas maneiras, o mesmo sendo feito por nove can-toras (de variados gêneros); duas dançarinas a convertem em coreogra-
- 136 -ALEXANDRE WERNECK. O “EGOÍSMO” COMOCOMPETÊNCIA...fia; uma analista de etiqueta avalia seu grau de cortesia; uma juíza a in-terpreta como um encerramento de contrato; uma terapeuta de casalpromove um debate entre Sophie e... a carta; uma adolescente lança so-bre ela um olhar próprio de sua idade; e várias outras mulheres apresen-tam suas contribuições.3Pois quero me deter, ainda que rapidamente, sobre um traço comumem todas aquelas interpretações, que apresentarei aqui de modo conver-tido em emblema por uma das intérpretes, a atriz francesa JeanneMoreau: filmada a uma mesa, cigarro a fumegar em um cinzeiro, umcopo quase vazio de vinho rosé, usando uma blusa azul intenso, rodeadapor manchas de luz, o olhar colado ao papel, ela lê a carta e a comenta.Ao chegar a o trecho em que o autor fala de seu sofrimento, Jeanne pro-clama a imagem que dele reteve: “É alguém que tem múltiplas relaçõesfemininas. E... este homem não está bem. Tem uma angústia terrível...Um enorme egoísmo”.Egoísmo. Grégoire (ou X, como é apresentado às analistas) é descri-to como um homem capaz de abrir mão do bem do outro (que o classi-ficaria como altruísta), tornando-se uma síntese da ação no horizonteapenas do bem de si. De fato, ele próprio se diz “impedido” de ser “ge-neroso”, ou seja, de aceitar o sofrimento que o corroeria e se manter fielao juramento de não procurar as outras mulheres, que tornariam Sophieapenas “uma delas”. E esse “egoísmo” aparece, então, não apenas comoum traço específico do caráter do escrito r , mas como antítese formal doamor: para aquelas mulheres, agindo assim um homem provaria quenunca amou a mulher com quem tivera um relacionamento.4 Mas nãoapenas para mulheres francesas. E não apenas para mulheres em relaçãoaos homens.Em minha pesquisa, que aqui reporto, na qual entrevistei trinta ca-sais, vemos um mesmo movimento de adjetivação de parte a parte.5Por exemplo, com Marcos.6 Ele chega a sua casa mais tarde em algumas
REVISTADE ANTROPOLOGIA, SÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.- 137 -quintas-feiras esporádicas. É o dia do chope com os amigos. Em trêsanos de casamento, sua mulher, Cláudia, nunca escondeu a insatisfaçãocom isso. Mesmo sendo constantemente convidada a se juntar a ele emesmo confiando “total e irrestritamente” no marido, ela diz preferirque fizessem algo apenas a dois, no único dia em que ele sai um poucomais cedo. Ela reclama constantemente. Até que, em uma ocasião – elase lembra de que era julho, já que, professora, estava de férias e se sentiaparticularmente sozinha –, resolveu dizer ao companheiro o quanto aincomodava essa preferência pelos amigos (e pelo samba e pela cervejaque o faziam por vezes voltar para casa um pouco “alto”): “Eu queriaque você desse prioridade a nós dois!”. Marcos responde: “Mas eu precisode um chope, encontrar o pessoal!”. A resposta dela: “Você está sendo egoís-ta”. Isso quase o deixa mudo.Quase. Em vez de se calar e deixar a sala, incitando um período de“ficar de mal”, ele demonstraria que a rotulação moral não poderia defi-nir apenas uma negatividade: “Mas o que há de mal em fazer isso que vocêtá chamando de [e faz sinal de aspas com as mãos] ‘egoísmo’?”.O objetivo deste artigo é analisar como os atores sociais podem utili-zar o “egoísmo” como uma “competência” (Boltanski, 1990), uma “açãoque convém” (Thévenot, 1990) ou, como tenho preferido tratar, uma“competência de efetivação” & amp; nbsp;(Werneck, 2009a; 2009b) de suas ações,usando como operador dessa competência o ato de dar uma desculpa.Ou seja, trata-se de demonstrar como o reconhecimento da localizaçãoda referência de uma ação no “bem de si” pode ser o elemento centralde concretização de uma ação, uma vez que a representação moral dessaação seja coordenada com uma operação de circunstancialização.Trata-se, assim, de ampliar o escopo de uma descrição pragmatistada vida social, partindo de um modelo constituído por uma “disposiçãopara o acordo” (Boltanski & Thévenot, 1987), baseado na “capacidadecrítica” (idem, 1999) das pessoas, para um modelo centrado em uma
- 138 -ALEXANDRE WERNECK. O “EGOÍSMO” COMOCOMPETÊNCIA...“disposição para o bem”, baseada em uma forma plural de bens. Ou seja,trata-se de construir um modelo em que a circunstancialidade possa serarticulada como recurso, e não como “desvio” em relação uma generali-dade moral, e em que a efetividade das ações sociais possa estar associadaa várias formas de bem e não apenas a uma referência no “bem comum”.Para tanto, analiso, por meio de entrevistas e observações situadas, omodo como atores, quando envolvidos em relações de familiaridade, dãoconta de suas ações e da aceitação das ações de seus companheiros quan-do estas forem baseadas apenas no bem de si, no que será aqui chamadode “egoísmo”, demonstrando o papel do ato & amp; nbsp;de dar uma desculpa namanutenção dessas relações, que representam para essas pessoas umagramática moral em si e um mundo do qual esperam geralmente o bemcomum ou mesmo que o outro dê preferência ao altruísmo, priorizandoo bem do outro.Justamente por conta disso, este não é um trabalho sobre casais ousobre a vida de casal. É, antes, um trabalho a partir deles. Não se trata dedar conta das peculiaridades e particularidades desse tipo de encontroafetivo entre duas pessoas. Trata-se, em vez disso, de considerá-lo umpequeno mundo, uma lógica abstrata, ou, tomando Simmel (1971[1908a]) como referência, como um “conteúdo” de uma “forma”, for-ma que, aqui, tira partido do casal para se ;manifestar e que encontranele seu rebate pragmático: é de relações duradouras e de sua constitui-ção como moralidades que trata este texto.Aqui me debruço sobre o modo como os elementos constituintes deuma relação de casal – cujo pressuposto mais básico é o “bem querer”, o“amor”, entre os integrantes – podem ser entendidos ao mesmo tempocomo sistema de normatividade (no qual se diferenciam ações “corretas”de ações “incorretas”) e como sistema de administração do bem (no qualas ações são efetivadas por diferentes referências do bem produzido poressas ações). Ou, em um sentido mais geral e tomando por base a abor-
REVISTADE ANTROPOLOGIA, SÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.- 139 -dagem pragmatista aqui em voga, a questão é como o relacionamentoamoroso pode ser pensado como uma moralidade de si próprio, comsuas exigências morais próprias, e, a partir disso, como operam as com-petências morais mobilizadas em seu interior. Ou, ainda, como ele podeser visto como um mundo no qual estão em jogo os usos de três capaci-dades cognitivas: uma “capacidade moral” (Boltanski & Thévenot,1991, p. 42), que dota os atores para distinguir os diferentes valores dasvariáveis desses dois sistemas; uma “capacidade crítica” (Boltanski &Thévenot, 1999); e uma terceira, que chamo de “capacidade metaprag-mática” (Werneck, 2009b), que aqui caracterizarei segundo justamenteo papel d esempenhado pelo ato de dar um desculpa na manutençãodessas relações.Por isso, então, faço uso dessa categoria nativa, o “egoísmo”, mobili-zada, além de Marcos, por outros entrevistados, e de sua reconstruçãocomo conceito sociológico. Ela é tida como uma representação, uma atri-buição subjetiva oferecida por um ator em relação a outro. Mas Marcosnão me permite ser levado pelas emoções: ele apresenta sua definiçãoentre aspas. Ele sabe, explica-me, da carga moral que o termo carrega e,assim, quer usá-lo de maneira relativizada. Quer deixar para Cláudia,aquela que atribui, a responsabilidade da atribuição. Seu “egoí s mo” nãoé – e a discussão que se seguiria serviria para o mostrar – simplesmente oato de chamar o outro de egoísta, apontando em sua ação um conteúdonão apenas não altruísta, mas sobretudo para o prejuízo do outro. Trata-se, em vez disso, de um chamar a atenção para um bem de si (nas palavrasdele) “cabível”, “absolutamente normal” e, portanto, legítimo, efetivo.Então, assim como Marcos, usarei o termo entre aspas, para entre parên-teses depositar a carga atributiva: “egoísmo” (a forma substantivada), paraeste trabalho, significa, como ele é interpretado pelos atores nas situa-ções descritas, a capacidade de agir pelo bem de si sem que essa desigualda-de produza um mal-estar que torne a interação insustentável.
- 140 -ALEXANDRE WERNECK. O “EGOÍSMO” COMOCOMPETÊNCIA...Tratar esse “egoísmo” como uma “competência” significa, adotando-se um enquadramento pragmatista, tratá-lo como uma faculdade apre-sentada pelos atores para a desenvoltura em uma determinada lógica deação; ou, como querem Boltanski e Thévenot (1991, p. 183), “uma ca-pacidade de reconhecer a natureza de uma situação e de colocar em açãoo princípio (...) que a ela corresponde”. Trata-se, então, de situar a dis-cussão em um quadro ao mesmo tempo de reflexividade (uma vez queas pessoas são consideradas senhoras de suas ações)7 e de manutenção dapaz, por meio das capacidades dos atores de produzir acordos que man-tenham essa paz, sem chegar à violência8, segundo princípios & ;nbs p;univer-sais, “metafísicas”, para os autores, mobilizados conforme o tipo de situa-ção. Ou, em uma definição mais “actancial” (Latour, 1997, p. 148),podemos considerar uma competência não apenas como um traço re-conhecido como principio cognitivo nas pessoas, mas como um traçodemonstrado nas próprias ações localizadas, apontando para sua alocaçãoem uma determinada gramática actancial moral, com desenvoltura emregras que verificam critérios de concretização da ação, o critério nelaprocurado quando se verifica se ela pode ou não ser admitida. Trata-se,então, de colocar de forma prática a ideia de “ação sujeita à indagaçãovalorativa” (Scott & Lyman, 2008[1968] , &nb sp;p. 139), considerando, en-tão, um social em que as coisas não são apenas “taken for granted”(Garfinkel, 1967); em que, assim, antes de tudo, estão em questão; emque as pessoas se veem impelidas a prestar contas por outras, que lhespedem satisfações.Entre essas coisas “questionáveis”, está a referência do bem. Assim,se Cláudia encerrou o assunto e permitiu que Marcos conduzisse seu“egoísmo”, seguindo para o chope com os amigos, mantendo a relaçãosem uma ruptura, isso se dá porque, em uma “disputa” (Boltanski &Thévenot, 1991, pp. 24-5), esse ato foi considerado passível de se con-cretizar. O q ue chama a atenção é que isso se deu, mas não porque esse
REVISTADE ANTROPOLOGIA, SÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.- 141 -“egoísmo” foi determinado por um traço identitário; nem porque foiimposto pela força (o que o situaria em um “regime de violência”, se-gundo Boltanski, 1990, p. 111); nem pelo ajuste a um regramento táci-to, imposto por tradição (o que o caracterizaria em um regime de“justesse”, ainda segundo Boltanski); e também sem poder ser conside-rado “justificado” (cfe. Boltanski e Thévenot, 1991, p. 118), uma vezque não foi afirmado um princípio de equivalência, um “princípio su-perior comum”. Pelo contrário, o que é afirmado é justamente um prin-cípio de desigualdade: Marcos obtém um bem (estar com os amigos)que não é obtido objetivamente por Cláudia (pelo menos nos termosde sua reivindicação). E o motivo para manter em ação seu próprio bemé... seu próprio bem.Não. O que permite que Marcos pratique esse “egoísmo” sem maisconflitos é o caráter eventual, circunstancial, de sua prática: ela não éuma nova regra moral universal (nem é a reivindicação da necessidadede uma), é apenas um “ponto fora da curva”, um “ato espontâneo” quesó pode ser entendido como circunstância imprevista.Neste estudo, o ato de dar uma desculpa aparece justamente comoponto de resolução dessa aparente tautologia. Em minha pesquisa comcasais, investiguei a maneira como eles articulam esse tipo de prestaçãode conta de suas aç&o tild e;es como forma de coordenar aquelas que possamser acusadas de egoísmo (sem aspas, o adjetivo de uma pura negatividadeinaceitável). Quero demonstrar, com isso, que ações centradas no bemde si são mais habituais e mais efetivas do que se pode pensar a princí-pio, sobretudo diante das duas principais formas como são habitualmen-te vistas: por um lado, como desvio moral em uma relação baseada nobem do outro (como demonstram as interpretações das mulheres ante orompimento supostamente egoísta de Grégoire com Sophie e as deman-das dos entrevistados); por outro, como resíduo lógico de uma aborda-gem baseada na escolha racional (na qual todas as ações são pensadas
- 142 -ALEXANDRE WERNECK. O “EGOÍSMO” COMOCOMPETÊNCIA...estritamente como movidas pelo bem de si, reduzindo então ao absurdoo bem do outro).As relações amorosas são um espaço pródigo para pensar esse proble-ma, uma vez que são o lócus em que o amor é o princípio maior demanutenção. Em um caso de amor romântico, não temos um laço san-guíneo a unir os integrantes; tampouco temos um elo institucional quepreceda ao princípio de amor. Segundo os atores ouvidos, é o amor queos une, por mais diferentes que sejam eles e seus interesses individuais.A pesquisa que realizei com casais teve lugar no âmbito de um estu-do mais amplo sobre o papel do ato de dar uma desculpa no processo demanutenção das relações sociais (Werneck, 2008a; 2008b; 2009a;2009b; 2011). A motivação principal para usá-los foi justamente o fatode o amor poder ser configurado como um espaço de demanda de fide-lidade a um “bem comum”: a própria relação. Neste sentido, o amor é
- 148 -ALEXANDRE WERNECK. O “EGOÍSMO” COMOCOMPETÊNCIA...inepto, indesejado ou de alguma entre inúmeras outras formas desfavorá-vel. Logo depois, o próprio, ou alguém que esteja a seu lado, tentará de-fender sua conduta ou tirá-lo da situação.11A partir desse trabalho, autores como Sykes e Matza (1957),Garfinkel (1967), Scott e Lyman (2008[1968]) e Goffman (1971) de-ram início a uma agenda de pesquisa em que a desculpa aparece comocategoria de um quadro no qual os discursos são utilizados para “darconta” das ações. Scott e Lyman (2008[1968]), baseados em Austin, si-tuam formalmente o ato de dar uma desculpa como tipo de account, ouseja, como o ato de prestar conta, de dar satisfação por algo – ou, maisformalmente: “uma afi rmação feita por um ator social para explicar umcomportamento imprevisto ou impróprio – seja este comportamentoseu ou de outra pessoa, quer o motivo imediato para a afirmação partado próprio ator ou de alguém mais” (ibidem, p. 112).Eles estão interessados na qualificação desses discursos como “habili-dade para manter de pé as vigas da sociação rompida, para estabelecerpontes entre o prometido e o executado, para consertar o que está que-brado e trazer de volta quem está longe” (ibidem, p. 111). A desculpa,nesse modelo, é um dos dois tipos de account, ao lado das “justifica-ções”. A primeira é um account “em que alguém admite que o ato emquestão seja ruim, errado ou inapropriado, mas n e ga ter plena respon-sabilidade sobre ele”; a outra, aquele “em que alguém aceita a responsa-bilidade pelo ato em questão, mas renega a qualificação pejorativa asso-ciada a tal ato” (ibidem). A justificação tenta demonstrar que algo estána verdade correto, enquanto a desculpa tenta demonstrar que não foipossível agir de outra forma que não fosse a “incorreta”.Mais recentemente, dois principais tipos de abordagens têm analisadoesse objeto. Por um lado, autores como Benoit (1995), McEvoy (1995),McDowell (2000) e Boltanski (2004) têm olhado para a desculpa como
REVISTADE ANTROPOLOGIA, SÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.- 149 -uma forma de autodefesa em quadros de intensa acusação moral. Poroutro lado, trabalhos mais antropológicos, como os de como Herzfeld(1982; 2006) e Idomeneos (1996), exploram seu papel nas formas delegitimação de elementos culturais. No primeiro caso, a desculpa apare-ce diante de uma tensão entre o bem de si e o bem comum; no segun-do, surge como uma forma universalizada de diferenciação cultural.Esses modelos, quer nas abordagens clássicas, quer nas mais recentes,pressupõem o próprio reconhecimento da relevância da desculpa: suaconstrução como categoria sociológica/antropológica advinda do fatode que ela é um elemento relevante da vida social, integrante do grupode ações capazes de garantir que o próprio social se mantenha. Entre-tanto, no fundo de todos esses trabalhos repousa uma dimensão maisabstrata e que não tem recebido a atenção devida: relegada à sua dimen-são de ação discursiva, a desculpa tem sido subestimada em sua mecâni-ca actancial.De certa maneira, tem sido legado à desculpa um lugar de resíduológico da justificação: quando não pudéssemos constituir uma explica-ção universalista, seríamos obrigados a recorrer a essa “muleta lógica”.Mas a desculpa não é um operador lógico, ela não se insere de maneiratal que seu conjunto argumentativo seja avaliado como legítimo ou nãopelos atores de acordo com um regime de competência moral dotadode algum princípio de legitimidade, tampouco recorre, como na justifi-cação, a uma “prova” (Boltanski & Thévenot, 1991). Em vez disso , adesculpa opera uma mudança na forma segundo a qual uma ação temcontinuidade: em vez de oferecer a quem a avalie um motivo justo paraque tal ação ocorra, ela oferece uma circunstância que, ao se apresentarcomo tal, torna a ação inevitável e informa que a avaliação não pode serfeita, naquele caso específico, por meio de um critério de justiça.Pois há, contida na tipologia que distingue desculpas e justificações,a tensão central que me chamou a atenção no ato de dar uma desculpa,
- 150 -ALEXANDRE WERNECK. O “EGOÍSMO” COMOCOMPETÊNCIA...a tensão entre geral e circunstancial. Uma justificação surge como umarecusa de descompasso entre princípio moral (universal) e ação (locali-zada); uma desculpa dada surge justamente como uma constatação dedescompasso entre esse princípio moral e essa ação. Mas não se trata deum descompasso qualquer, e sim de um descompasso contaminado,como demonstrarei ao tratar da tipologia de diferentes reações a açõesque causam mal-estar.Trabalho aqui para demonstrar que a ação operacionalizada pela des-culpa é justamente a de descendência de uma esfera comprometida coma abstração da regra universal para outra disposta a aceitar a dimensãopragmática de uma ação circunstancialista. Desta forma , posso pensar nasituação de dar uma desculpa como composta por alguns passos: a) umator pratica uma ação que, por algum motivo, causa mal-estar em outroator; b) seja por meio da admoestação por alguém, seja por uma ação deconsciência, tem início um processo de demonstração/percepção de mal-estar relacional; c) o ator praticante da ação se vê impelido a apaziguar omal-estar gerado na situação; d) esse mesmo ator oferece para isso umargumento, que não procura recusar a incorreção da ação, mas, ao con-trário, admite-a (ainda que sub-repticiamente, em alguns casos); e) esseargumento se mostra deslocado em relação aos princípios morais quederam base às acusações e ligado a circunstâncias peculiares da situa&a mp;cc edil;ãoe/ou do praticante; f ) esse deslocamento se referencia no bem dele, o“culpado”, e não no bem sobre o qual o mal-estar foi construído.Um primeiro elemento digno de nota nessa sistematização – quandoobservada ao lado da ideia de account de Scott e Lyman, e da definiçãode Austin – é o modo como se relaciona com a noção de acusação.Uma vasta literatura sobre sociologia dos conflitos e dos chamados com-portamentos desviantes tem articulado o movimento de acusação comouma dimensão primordial nos conflitos e no controle social. Ao mesmotempo, em um modelo como o de Boltanski e Thévenot (1999), um
REVISTADE ANTROPOLOGIA, SÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.- 151 -mesmo movimento assume uma dimensão um grau mais abstrata: se aacusação pode ser entendida como um processo formal, constituído poruma série de procedimentos mais ou menos ritualizados – caso da acu-sação policial ou judicial, por exemplo –, a “crítica” (ibidem, p. 359)surge como uma forma abstraída:A pessoa que se dá conta de que algo não está funcionando raramente per-manece em silêncio. Ela não guarda seus sentimentos para si. O momentoem que ela se dá conta disso é, na maioria das vezes, aquele em que perce-be não poder mais suportar esse estado de coisas. A pessoa deve expressardescontentamento em relação às outras com quem, até então, estivera de-sempenhando uma a& amp; ccedil;ão conjunta. A demonstração desse descontentamen-to pode terminar em um “escândalo”. O escândalo propriamente dito as-sume diferentes formas. Pode facilmente se converter em violência.Contudo, não investigaremos essa possibilidade. Mais frequentemente, oescândalo torna-se uma discussão na qual são trocadas críticas, acusações equeixas. Ele assim se desdobra em uma controvérsia. A palavra “escânda-lo” sugere querelas domésticas, e a palavra “controvérsia”, litígio judicial.O primeiro é visto como informal, enquanto a segunda é conduzida pelosistema judicial. No entanto, há uma profusão de casos intermediários,como, por exemplo, as discussões em lojas ou repartiçõ es, e ntre clientes efuncionários, ou os desentendimentos na rua entre motoristas.Assim, mais do que como categoria lateral em um mesmo esquema,a crítica aparece acima da acusação em grau de abstração (a acusaçãosurgiria, então, como um caso particular, formalizado, da crítica). Mas,seja em um nível, seja no outro, em ambos os casos as definições articu-lam a dimensão apenas aparentemente mais habitual de seus fenôme-nos, a dos discursos, a das acusações e/ou críticas verbalizadas. Entre-tanto, minha pesquisa com casais demonstrou um traço importante e
- 152 -ALEXANDRE WERNECK. O “EGOÍSMO” COMOCOMPETÊNCIA...que reivindica um grau ainda mais abstrato na definição. A insatisfaçãode que falam Boltanski e Thévenot (ibidem) pode ser demonstrada porum urro, por um suspiro, por um silêncio, por um movimento corpo-ral. Essa insatisfação, aliás, pode nem mesmo ser demonstrada, mas serapenas percebida, ou seja, ela pode ser notada pelo lado ofensor semque o lado ofendido tenha feito um movimento consciente e/ou discre-to para tal. Justamente por conta disso, resolvi operar com uma formaainda mais geral de fenômeno, que chamarei aqui de demonstração/per-cepção de mal-estar interacional. Diferenciei mal-estar simplesmente demal-estar interacional para indicar, com este último, que se trata de ummal-estar de um dos participantes de uma interaç& ;ati lde;o e que pode fazerdiferença para o estatuto desta.A lógica do ato de dar uma desculpa pode ser apresentada, então,pela seguinte sequência:1) Uma ação social de um ator A causa mal-estar interacional emoutro ator, B;2) Esse mal-estar é demonstrado (de forma não necessariamente cons-ciente) por A e percebido por B; A dá uma desculpa e/ou pede desculpas;3) B o desculpa (ou não) e o mal-estar interacional é “congelado”(ou não).Pois bem, tomado esse modelo que apresentei anteriormente, o au-tor da ação, chamado a oferecer um account, pode apresentar uma dasseguintes reações:1) Mostrar-se indiferente (não dar nenhuma resposta). Chamarei estaopçã ;o si mplesmente de indiferença.2) Negar que tenha praticado a ação (uma resposta do tipo: “Eu nãocomi da árvore, Javé Deus”; ou “Eu não bati em nenhuma mulher, ima-gine!”; ou: “Não, eu nunca dormi com sua amiga, amor, que ideia!”).Chamarei esta opção de negação.
REVISTADE ANTROPOLOGIA, SÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.- 153 -3) Afirmar desconhecimento da regra moral (uma resposta do tipo:“O Senhor havia falado da árvore do conhecimento do bem e do mal?Eu não sabia!”; ou: “Ah, então dar um tapinha de nada é consideradoerrado?”; ou, ainda: “Mas, amor, eu não sabia que não podia fazer isso.”).Chamarei esta opção de declaração de inocência.4) Admitir que praticou a ação e apresentar um account. Isto inseriráo actante em uma economia de disputa de justiça, proposta pela per-cepção do mal-estar, e o fará explicar sua ação segundo uma de quatropossíveis formas:a) Renegar o princípio moral/legal que produziu o mal-estar (umaresposta do tipo: “Eu não ligo se ele tinha direito a um julgamento jus-to!”). Chamarei esta opçã o de desengajamento.b) Admitir que praticou a ação, mas recusar que ela esteja em de-sacordo com o princípio moral/legal que gerou o mal-estar, apontandouma justificativa para a prática da ação atrelada a uma ideia de bem co-mum (uma resposta do tipo: “Fiz isso, sim, mas foi pelo nosso bem”, ou“Não vou com você porque não é justo que eu pague o pato por algoque você fez errado.”). Chamarei esta opção pelo nome usado porBoltanski e Thévenot (1987; 1991), “justificação”.c) Admitir que praticou a ação e reconhecer o desacordo com oprincípio moral/legal em questão, mas mesmo assim solicitar não re-ceber mau tratamento. Essa paralisação da justiça se baseia na criaç& ;atil de;ode um puro efeito anulador (uma resposta recorrente entre casais:“Cheguei atrasado e não poderia chegar, mas não vá embora, eu teamo”). É o perdão.d) Admitir que praticou a ação e reconhecer o desacordo com o prin-cípio moral/legal em questão, mas solicitar uma permissão para odescumprimento da regra especificamente no caso em avaliação, em de-terminadas circunstâncias. Essa permissão será baseada em uma parti-
- 154 -ALEXANDRE WERNECK. O “EGOÍSMO” COMOCOMPETÊNCIA...cularização das condições de cumprimento da universalidade da regramesma (uma resposta do tipo: “Dormi, sim, com sua amiga, mas euestava deprimido e bebi muito.”). É o ato de dar uma desculpa.Pois bem, quando me refiro à efetivação, estou, como já coloquei,localizando a análise em um modelo em que a pergunta essencial sobrea vida social não são as causas das ações, nem a causa da existência daordem, mas sim, em vez disso, a modelização de como as coisas aconte-cem em sentido último (e não em sentido primeiro). Assim, ao retornar,segundo essa perspectiva, a um tratamento pragmatista centrado na com-petência dos atores, a questã o sociológica primordial passa a ser: de quefenômeno se está falando quando se responde a uma ação que estáem questão?As Ciências Sociais e outros modelos de pensamento têm usado váriostermos para dar conta dessa questão: “legitimação” em Weber (2004[1910]); “justificação”, com um sentido em Goffman (1971) e outroem Boltanski e Thévenot (1987; 1991); “validação”para Habermas(1981), entre vários outros modelos. Tenho proposto usar o termoefetivação. Essa opção tem a ver com a ideia de pensar uma forma maisabstrata, que dê conta desses vários modelos, permitindo tratar cada umdeles como uma diferente manifestação do fenômeno. Com esse termo,desenho a forma mais pragmática possível para a categoria: efetivaçãoaponta para a produção de efeitos, para a criação de consequências.E, conforme um dos pressupostos do pragmatismo, é nas consequên-cias que se podem ler as ações sociais: como diz a máxima de WilliamI. Thomas, “se os homens definem as situações como reais, elas são reaisem suas consequências” (Thomas e Thomas, 1938[1928], p. 572).Assim, o processo de concretização de uma ação é, nos dois sentidos,fenomênica e analiticamente, um processo de constatação de suas conse-quências, de seus efeitos. Mas isso não signifi c a apenas uma neutraliza-ção da categoria. Representa também o reconhecimento de sua pragmá-
REVISTADE ANTROPOLOGIA, SÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.- 155 -tica: essas consequências se colocam segundo uma pluralidade de gramá-ticas, um conjunto finito de formas de produzir consequências. Isso cor-responde a fazer duas afirmações sobre a vida social em sentido amplo:1) Ela é atravessada constitutivamente por um imperativo moral.2) A moral pode/deve, antes de ser pensada como um plano denormatividade (a definir uma gestão do correto e do incorreto), ser con-siderada como um plano de gestão do bem: se a justificação, conformedescrita pela sociologia pragmatista da crítica, é operada segundo o “bemcomum”, situações mais complexas moralmente exigem pensar em di-ferentes regimes para dar conta de outras formas de bem: além do “bemcomum”, pesar o “bem de si”, o &l dquo ;bem do outro”, o “bem de todos” e,claro, uma condição de “tudo bem” (a rotina).Digo isso porque este foi o problema que se colocou em todas asminhas incursões sobre o tema, sobretudo esta: têm-se diante do pes-quisador uma ação voltada para o bem de si e que carece de prestação deconta. Para tal ser efetiva, um processo específico se constrói: dar umadesculpa, um argumento falsamente lógico, mas cuja lógica textual pou-co importa, sendo mais importante pela operação de tradução que fazdo que pela operação de reflexividade. Como já disse, a desculpa nãoé um argumento racional – daí ela não raro recorrer a cachorros quecomem deveres de casa (Wer neck, 2009a). É, antes, um ativador, cujoformato ilógico serve justamente para ativar um dispositivo que leva asituação do plano universalista da regra moral para o plano das circuns-tâncias pragmáticas contidas na situação localizada.Pois minhas observações da desculpa me levaram a mapear dois mo-delos principais segundo os quais ela opera, tipos que chamei, com baseem várias nomeações nativas, de:1) “Não sou/era eu” – Dá-se um deslocamento do plano universalpara o circunstancial com o ator: ele é alguém que tipicamente obede-ceria à regra moral em questão (mantendo-se no mesmo plano universal
- 156 -ALEXANDRE WERNECK. O “EGOÍSMO” COMOCOMPETÊNCIA...em que se baseie qualquer questionamento sobre a ação em tensão com aregra), mas que, naquela circunstância, viu-se transformado, deslocadode sua condição normal. É o tipo de desculpa mobilizada quando se diz:“A serpente me tentou com a maçã e eu a comi”; “Eu tinha bebido umpouco demais”12; ou “Não consigo mais fazer isso como anigamente”
- 176 -ALEXANDRE WERNECK. O “EGOÍSMO” COMOCOMPETÊNCIA...O que esses vários maridos, esposas, namoradas, namorados, ficantes,e outras configurações, ajudaram aqui a enxergar é uma economia pe-culiar entre os pares amor/egoísmo e bem comum/bem de si. Ou, emsentido mais amplo, entre a relação amorosa como lócus do bem (pro-duzido pela experiência absolutamente única com um outro absoluta-mente único) e ela própria como lócus da vida prática. Ou, ainda, entrea dimensão idealizada, abstrata, em que o bem é total, e o exercício depequenos bens que é possível se viver nas ações pragmaticamente locali-zadas. Pois quando uma ação em desacordo com essa unicidade (e, por-tanto, esse bem) se estabelece, uma solução recorrente encontrada pelosatores é mobilizar a demonst ração de que essa deriva em relação àsingularização é pontual, circunstancial, aconteceu apenas “aquela vezali” (ou “não vai acontecer de novo” ou “tenho certeza de que ela não faráisso novamente”, dizem-me).Assim, em todos os casos de oferta de desculpas que analisei em váriaspesquisas, três ações compõem a desculpa:1) Uma narração: apesar do esvaziamento do peso argumentativo dadesculpa que demonstrei, uma série de elementos discursivos, em geralredundantes e verborrágicos – como demonstrei em Werneck (2009a)– constitui um sistema de ativação do dispositivo actancial moral. Mes-mo sem apresentar uma prova de adequação a algum critério universalde correção moral, ess a narratividade serve, antes de tudo, para identifi-car a desculpa. E isso se dá em grande medida pelo reconhecimento dosatores de uma mecânica incorporada por suas competências práticas: orecurso ao “não era eu” e ao “é assim mesmo” deixam claro que a situa-ção em questão está sendo encaminhada para a desculpa.2) Uma proposta de decaimento por meio da narração: uma vez quese identifica como o que é, a desculpa opera sua demanda, que o siste-ma de verificação da possibilidade de efetivação da ação em questão saia
REVISTADE ANTROPOLOGIA, SÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.- 177 -do plano do universal da regra moral, contido na percepção/demons-tração de mal-estar, e se aloque no plano da circunstância. Essa é a pró-pria mecânica que define a desculpa. Se há um termo que pode repre-sentar essa prática é convite: ela constitui uma oferta de solução domal-estar relacional por meio de uma “chamada à realidade”, de um “tra-zer ao chão” algo que estava a flutuar em um plano no qual estão inscri-tos os ideais. Retomarei esse deslocamento logo adiante.3) Uma defesa da efetividade desse decaimento: uma vez identificadacomo o que é, a desculpa defende sua demanda pela demonstração deque a ação em questão é, antes de tudo, desculpável. E isto se dá por umprocesso de particularização. Se uma ação é desculpável é porque: a)aquele que a deu está tão embebido da relação que sua manutenção éinevitável – torce-se o universal para o particular pelo reconhecimentoda particularidade do ator (o tipo de desculpa que chamei de “não eraeu”); b) aquilo sobre o que se deu está tão embebido da relação que suamanutenção é inevitável – torce-se o universal para o particular peloreconhecimento da particularidade da situação (o tipo que chamei de“é assim mesmo”).Dessa maneira, o ato de dar uma desculpa se mostra como uma for-ma de manutenção da paz – e, com isso, das rela& ;cce dil;ões – capaz de reafir-mar ao mesmo tempo os dois lados da tensão circunstancial-universal:de um lado, o recurso à circunstância demonstra como “pelo menos da-quela vez” (diz-me Marcos) aquela ação, que não pode ser considerada“nunca” como aceitável, pode ser aceita, afirmando uma margem demanobra e, ao mesmo tempo, uma possibilidade de ampliação da com-preensão das possibilidades de uma ação na dimensão pragmática. Dooutro, esse mesmo mecanismo, é preciso notar, não nega a regra moral,o princípio universal cujo descumprimento gerou o mal-estar – o quepoderia acontecer em uma situação de “crítica radical” (Boltanski &
- 178 -ALEXANDRE WERNECK. O “EGOÍSMO” COMOCOMPETÊNCIA...Thévenot, 1999, p. 374). Pelo contrário: ele a afirma, porque afirmajustamente que o princípio deve ser mantido “em geral” (em nome dobem comum).Com isso, o ato de dar uma desculpa torna o bem de si um critériocabível no processo de avaliação efetivadora das ações sociais: ainda queuma ação não inclua o bem do outro e possa até, circunstancialmente,negar-lhe o bem, se ela é articulada como circunstancialidade formal,como oriunda de uma especificidade de uma mudança no estado doator ou da situação, ela torna a ação de “egoísmo” uma ação competen-te, ou seja, efetiva em uma gramática operada no interior de uma rela-ção duradoura. Isso leva a pensar a desculpa como um agente de umaconsciência da pragmática das ações localizadas. Se não, vejamos: todosnós temos, em diferentes dimensões, uma maquinaria moral que nosleva a buscar/interpretar o bem. Da mesma maneira, todos nós, segun-do Boltanski e Thévenot (1987; 1991; 1999), contamos com uma “ca-pacidade crítica” que nos permite nos manifestar diante de ações alheias(e mesmo nossas) que possam estar em desacordo com alguma noção debem (para os autores, em seu modelo sobre a ordem moderna, “bemcomum”), para cujo horizonte estejamos voltados.Sugiro pois que, ao mesmo tempo e ao lado desses dois elementos,operacionalizamos também essa terceira capacidade, & ;nbs p;que chamo demetapragmática. Trata-se de uma capacidade cognitiva dos atores sociaispara operacionalizar a distância existente entre a dimensão utópica euniversalista (portanto, a metafísica), conduzida pelas regras morais, e adimensão circunstancialista com que as pessoas se deparam nas situa-ções cotidianas, pragmáticas. É uma capacidade de se dar conta de queum não é o outro e que, vez por outra, é preciso desmobilizar a mecâni-ca de leitura do mundo pelos olhos das gramáticas metafísicas morais. Éuma capacidade, portanto, que nos permite ter “jogo de cintura”,operacionalizar “margens de manobra” para a rigidez das duas outras.
REVISTADE ANTROPOLOGIA, SÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.- 179 -Uma desculpa, conforme tenho descrito, é uma ação social que tomauma situação centrada no universalismo da utopia moral e promovejustamente uma torção de rumo à circunstancialidade, permitindo aefetivação de uma ação segundo uma forma de bem que seja não uni-versalizada, mas, muito diferente disso, uma forma particularizada, in-dividual, o “bem de si”.A observação das desculpas volta o olhar para essa capacidade. É elaque se ergue poderosamente da observação de como a familiaridade emrelações afetivas se torna uma metafísica moral em si própria e de comoela pode ser conservada justamente pela possibilidade de arrefecimentoproduzida pelo decaiment o tornado possível por essa capacidade. E nãose trata apenas de um puro realismo, de um “senso prático”, mas de umaincorporação no repertório de práticas disponíveis para que o bem sejafeito de um repertório plural de formas de bem. Se, conforme descre-vem Boltanski e Thévenot (1987; 1991; 1999), em um horizonte me-tafísico moral, a paz, bem como, portanto, a vida social cotidiana,é mantida por uma referência utópica ao “bem comum”, a desculpa aju-da a enxergar que a vida social comporta outras formas de referenciamen-to do bem que permitirão, cada um à sua maneira, formas de efetiva-ção de significações e, portanto, de ações de conteúdos da vida social.E uma dessas referências – o a si –, produzindo o bem de si, pode serefe t ivado pelo ato de dar um desculpa, esse “algo que é dito para não sefalar mais nisso”.
- 180 -ALEXANDRE WERNECK. O “EGOÍSMO” COMOCOMPETÊNCIA...Notas1Uma versão preliminar deste artigo foi apresentada no 33o Encontro Anual daAnpocs, no GT 38, Subjetividade e Emoções. Agradeço, pelos valiosos comentá-rios, aos professores Maria Claudia Coelho, Octavio Bonet, Susana Durão,Clau-dia Barcellos Rezende e Laura Moutinho.2Professor adjunto do Departamento de Sociologia do Instituto de Filosofia e Ciên-cias Sociais (IFCS) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e pesquisa-dor do Núcleo de Estudos da Cidadania, Conflito e Violência Urbana (NECVU)da UFRJ. Doutor em Sociologia pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologiae Antropologia (PPGSA) do IFCS/UFRJ, com estágio doutoral (“sanduíche”) naÉcole des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS/CNRS) e na Universit é deParis X. Mestre em Comunicação e Cultura pela Escola de Comunicação (ECO)da UFRJ.3A análise dessas respostas ultrapassaria o fim específico deste artigo, e não me pren-derei a elas. Mas tenho a convicção de que ela pode ser considerada mais do queuma alegoria ou um caso exemplar, configurando-se como uma verdadeira pesqui-sa, no sentido de que a aproximação que Sophie Calle exercita em relação às mu-lheres permite isolá-las como produtoras de uma série de discursos a respeito da-quele caso particular, mas igualmente sobre a masculinidade e o amor romântico.4É curioso que a obra tenha causado polêmica por conta da “evasão de privacida-de”: sim, está ali a artista a expor seu caso de amor. O uso da própria vida, entre-tanto, é recorrente no trabalho de Sophie Call e . E, no caso de Bouillier, pareceainda mais contraditório o choque: seu primeiro romance, Rapport sur moi (2002),foi premiado justamente pela maneira como o autor expunha sua vida pessoal.O posterior, L’invité mystère, de 2004 (lançado no Brasil em 2009 como O convi-dado surpresa), é sobre como os dois se conheceram – em uma festa de aniversáriode Sophie, que servia justamente como obra, na qual ela guardaria os presentes defestas feitas por anos e dados por um convidado desconhecido, trazidos por umconvidado seu – e sobre o relacionamento.5Ao longo de um ano e meio, entrevistei cada um dos integrantes do casal em sepa-rado, com intervalos os mais curtos possível. Esta separação foi primordial: nãoapenas por servir como “pr ov a dos nove” das histórias de um sobre o outro, mastambém porque ela dava liberdade para que as desculpas fossem formuladas com
REVISTADE ANTROPOLOGIA, SÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.- 181 -base em uma revisão dos comportamentos de si e do outro. Mas um ponto dignode nota é que, como esta é uma pesquisa sobre um dispositivo moral, uma questãose colocou: como entrevistador, apesar das vantagens oferecidas pela posição, eume tornava alguém a quem as pessoas davam desculpas e não alguém que observa-va as desculpas dadas de um a outro. Por conta disso, optei por coordenar o critérioaleatório de aproximação dos entrevistados como uma maneira de tirar vantagemde minha inclusão no dispositivo analítico: procurei casais amigos de amigos. Eramdesconhecidos para mim, mas, ao mesmo tempo, tinham relações com pessoas queconheço mais ou menos bem. Isso criou um importante jogo de perspectiva: eu eraalienígena o suficiente para a conversaç&am p;at ilde;o comigo ser considerada “uma sessão”(várias pessoas me relataram se sentir “na terapia de casais”, ou seja, um momentoanalítico, deslocado da relação habitual, apartado do cotidiano) e, ao mesmo tem-po, era alguém a quem eles “não queriam desagradar” – “Você é amigo de...”, “Façotudo por...”, me diz, por exemplo, uma entrevistada, oito meses de namoro. Isso mecolocou efetivamente na posição de alguém a quem accounts eram direcionados.Então, em vez de não querer me “desagradar”, prejudicar a pesquisa por indicaruma resposta “tendenciosa” ou “orquestrada”, ela colaborou justamente por ummovimento ao mesmo tempo de confiança, comprometimento, e por levar em con-ta justamente esse bia s: um a desculpa dada, no final das contas, sempre é uma ope-ração de agradar o outro. – “Imagina se eu não dou essa satisfação a ela! Ela me mata.Eu podia dizer que tinha ido comprar pão ou que estava jogando fliperama, o que eunão podia era deixá-la sem resposta. Seria desagradável demais para ela”, defende umoutro entrevistado, cinco anos de casado.6Os nomes dos entrevistados foram mudados para garantir o sigilo. Ao apresentá-los, citarei os nomes fictícios e o nome fictício do companheiro, além do tempode relacionamento entre os dois à época da entrevista. Apenas em algumas situa-ção, e quando for relevante para a desscrição, citarei um outro detalhe, como aprofissão e/ou a idade de cada um, mas sempre com o cuidado de não identifica r oint erlocutor.7Essa reflexividade é correlata àquela construída pela etnometodologia, por meio doconceito de “agente competente” de Garfinkel (1967). Para o autor, trata-se de umdado cognitivo essencial à vida social o fato de que os atores “não são dopadosculturais”, ou seja, têm competência para avaliar as situações, exigindo prestaçõesde contas para que as ações nelas envolvidas tenham prosseguimento.
- 182 -ALEXANDRE WERNECK. O “EGOÍSMO” COMOCOMPETÊNCIA...8A ideia de violência utilizada aqui não está necessariamente ligada à agressão física.Trata-se, antes, de um regime no qual se torna impossível o acordo, no qual ne-nhuma condição de legitimidade é produzida e a efetivação da ação depende douso desmedido da força, seja ela física ou simbólica. Para uma discussão sobre umanoção pragmatista de violência, ver Clavérie (2009).9A título de exemplo, Comte sugere, em seu Curso de Filosofia Positiva (2009[1831])que a tensão altruísmo–egoísmo é a questão humana fundamental. Já Durkheimmodeliza o próprio individualismo por meio da pendularidade com o egoísmo: oadjetivo (de sua vez, sem aspas) caracteriza uma das formas de individualismo mo-derno descrever uma forma de ação que tensiona profundamente a ordem, umavez que ela atua sem o horizonte da solidariedade mecânica (e de seus arroubos navida moderna). Na outra forma, o individualismo “moral”, o individualismo é ca-racterizado como a própria lógica da vida moderna, uma vez que ele é o que carac-teriza a solidariedade orgânica, na qual o ato de o indivíduo se diferenciar é umdado de sua própria inserção na vida social.10Para uma discussão mais alongada, uma etimologia do termo e uma comparaçãoentre “dar uma desculpa” e “pedir desculpas”, além de uma revisão bibliográfica arespeito, ver Werneck (2009b).11Com essa definição, fica definitivamente claro que estou me referindo a apenasum dos sentidos da palavra “desculpa” em português, & ;nbs p;aquele em que ela operacomo discurso de accountability social. Não me refiro aqui, em nenhum momen-to, à desculpa como mecanismo de “remediação” (Goffman, 1971), ou seja, à des-culpa como reparação, como forma temporalmente rearticulada do perdão.12Esta fala foi usada por um de meus entrevistados para explicar, em uma confidên-cia, um “deslize”, ficar com uma outra mulher em uma viagem, o que abalou seve-ramente seu casamento. Na conversa comigo, ele recorreria um “é assim mesmo”,na forma do apelo à masculinidade; mas, com sua mulher, ele chamaria a atençãopara um “não era eu”. Isso demonstra mais uma vez a versatilidade da desculpa,independentemente de seu conteúdo discursivo.13O termo “ficar” remete a alguns diferentes sentidos na dinâmica amorosa contem-porânea. Basicamente, r efere -se a um momento furtivo em que se constitui umcasal (eles se beijam, se abraçam, podem chegar a fazer sexo), em geral de desco-nhecidos ou recém-conhecidos (mas nem sempre), em que a interação não neces-sariamente se converte em relação. O casal “fica” e depois se desfaz. Entretanto, o
REVISTADE ANTROPOLOGIA, SÃO PAULO, USP, 2011, V. 54 Nº 1.- 183 -termo também se refere a cada vez que um casal constituído interage afetivamentede maneira física; e, algumas vezes, para designar um casal que ainda não assumiuum “namoro” (“É, a gente fica”, ou “Estamos ficando”; e diz-se ainda que essefulano é um “ficante”).14Esta é outra expressão recorrente entre os entrevistados e com dois sentidos bas-tantes definidos. Primeiro, trata-se ao mesmo tempo de um sinônimo para des-culpa esfarrapada, quando alguém conta alguma história para dar conta de algoerrado (em geral, para se livrar de alguém incômodo). Mas o sentido mais interes-sante é o de um simulacro de desculpa esfarrapada, no qual o argumento é usadopara fingir que se considera algo err ado, mas se está, na verdade, tentando obteralguma vantagem com essa desculpa dada. O caso de Marcelo é paradigmático.15Acabaria por não entrevistar Marcelo. Trocaríamos alguns e-mails, no intuito demarcar a entrevista, estabelecendo alguma conversação prévia, da qual pude ex-trairia alguma informação. Mas, após várias tentativas, a efetivação do encontroesbarraria em um primeiro rompimento do casal e, depois, sucumbiria ao fim dorelacionamento. Ocorreria em mais dois casos eu não conseguir entrevistar o se-gundo membro do casal – nos dois casos, o homem.16A sigla DR significa “discussão de relação” e se refere a um ritual social recorrentenas relações afetivas contemporâneas (embora sem nenhuma regularidade ouprevisibilidade de erupção). Trata-se do momento e m que os integrantes de umcasal colocam sobre a mesa algum tema sensível, alguma “problemática” específicada relação. É uma “metainteração” em que os assuntos deixam de ser da relação (“oque vamos comer no jantar?”, “na casa da sua mãe ou na da minha?”, “como va-mos pagar aquela conta?”) e passam a ser a relação (“você não é compreensivo”,“como vai nossa vida a dois?”, “preciso de mais espaço”).17Assim, o que busquei nos casais com quem conversei foi esmiuçar uma relaçãoentre o estabelecimento e a manutenção de um cotidiano, e os argumentos usadospara dele dar conta. Assim, embora eu tenha feito entrevistas consideravelmenteinformais e até bastante diferentes das outras, em alguns casos, algumas questõesgerais sempre & amp;n bsp;estiveram presentes: (1) Como se deu a formação e o reconheci-mento de um relacionamento? (2) Que características do entrevistado são compli-cadores no cotidiano do relacionamento? (3) O que o entrevistado diz para darconta dessas características complicadoras? (4) Que características do outro sãocomplicadores no cotidiano do relacionamento? (5) O que o outro diz para dar
- 184 -ALEXANDRE WERNECK. O “EGOÍSMO” COMOCOMPETÊNCIA...conta dessas características complicadoras? (6) Que mal-estares são dignos de serlembrados na história dos dois?18Todas as impressões subjetivas apresentadas nas descrições são transcrições de im-pressões apresentadas pelos entrevistados. Assumo que essas informações são rele-vantes por mostrarem a maneira como os atores interpretam as situações. Mas euas uso como evidências apenas dessas representações, e não como fontes de infor-mação direta sobre os conteúdos transmitidos por esses discursos.19Thévenot tem trabalhado com o conceito de familiaridade (constituindo mesmoum regime para ela), mas utilizo o termo de maneira independente de suas defini-ções aqui. Adotei-o, a princípio, por dedução teórica, mas ele foi se tornando cadavez mais uma forma induzida de várias impressões que obtive no campo das entre-vistas, impressões que vinham de falas como: “Ele é a minha família, não podefazer isso comigo”; “Com o tempo, a gente vai sentindo que ele entra na família”; ou“Minha mãe trata o Leandro exatamente como me trata. É exatamente como se elefosse filho dela. Dá as mesmas broncas”.BibliografiaARISTÓTELES1996Ética a Nicômaco, São Paulo, Nova Cultural (Os Pensadores).AUSTIN, John L.1962How to do things with words, Cambridge, Harvard University Press.1979[1956]“A plea for excuses”, Philosophical papers, Londres, Oxford University Press.BAUMAN, Zygmunt2004
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