“Parto humanizado e o direito da escolha”: análise de uma audiência pública no Rio de Janeiro

“Humanized childbirth and the right to choose:” analysis of a public hearing in Rio de Janeiro Resumo Abstract Text Partos e cuidados com o gestar e o parir A judicialização do conflito A casa legislativa Uma breve descrição da Assembleia Legislativa: as múltiplas vozes femininas e a produção da política Parto humanizado é um direito de quem? Os cuidados femininos e a gestão da reprodução Considerações finais AGRADECIMENTO REFERÊNCIAS NOTAS Datas de Publicação Histórico Resumo O trabalho analisa, por meio de pesquisa de campo, uma plenária da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, “Parto humanizado e o direito da escolha”. Entendendo esse como um espaço político de conflitos dos saberes da área médica, da enfermagem e do Legislativo, é ponderado o conteúdo da plenária com os discursos de saber/poder acerca do corpo feminino e de sua reprodução. O artigo explora as tensões em torno da luta política pelo “parto humanizado” a partir de demandas feitas pelo Conselho Regional de Enfermagem. É abordada também a história da medicalização do parto e o papel das enfermeiras, obstetrizes e parteiras nesse processo. cuidado; parto humanizado; conflito Abstract This work uses a field survey to analyze a plenary session of the Rio de Janeiro Legislative Assembly entitled “Humanized childbirth and the right to choose.” Understanding this as a political space for conflicts of knowledge pertaining to the areas of medicine, nursing, and legislature, we consider the content of this session and discourses of power/knowledge surrounding the female body and reproduction. The article explores tensions around the political struggle for “humanized childbirth” via demands made by the Regional Council of Nursing. We also address the history of the medicalization of childbirth and the role of nurses, professionals specialized in low-risk births (obstetrizes), and midwives in this process. care; humanized childbirth; conflict Em 2012, o Conselho Regional de Medicina do Rio de Janeiro (Cremerj) publicou em seu regimento duas resoluções que geraram embate com o Conselho Regional de Enfermagem (Coren). A primeira resolução, n.265/12, visava impedir médicos de atender a partos domiciliares e de participar de equipes de suporte e de sobreaviso previamente acordados, além de tornar compulsória a notificação dos hospitais ao Conselho de Medicina de todas as transferências de partos domiciliares ou oriundos das chamadas “casas de parto”. A segunda resolução, n.266/12, impede doulas, parteiras e obstetrizes de atuar em partos hospitalares, uma vez que são consideradas, de acordo com o documento, profissionais não habilitadas e/ou não reconhecidas como pertencentes à área da saúde. Tal publicação gerou polêmica no campo científico ( Bourdieu, 2011 , p.5) – área dos saberes médicos e da enfermagem – e também em movimentos partidários, movimentos feministas e com as adeptas do “parto humanizado”. Ao participar da audiência, eu queria entender os conflitos ( Simmel, 2006 ) que apareciam tanto nesse campo quanto na regulação da prática de saúde em relação ao processo gestacional. Acreditando que a plenária constituísse momento privilegiado de espaços de disputas e verdades sobre a reprodução e o corpo feminino, a intenção foi entender os sentidos proferidos sobre o “parto humanizado” no panorama da audiência. Sobre a metodologia para este artigo, além do trabalho de campo, utilizei a gravação disponível no canal da Alerj no YouTube (Alerj, 2016), transcrevendo as falas dos componentes da audiência. Propus-me a realizar uma pesquisa etnográfica na audiência, com densa descrição, portanto “um trabalho árduo de observação”, elaborando sentidos e significados nesse espaço ( Geertz, 1978 ). Este artigo é resultado parcial de minha pesquisa de dissertação, a qual se dividiu em diferentes frentes de trabalho: na Casa de Parto David Capistrano Filho e em fóruns de debates e palestras sobre o assunto, entre elas a mencionada audiência pública, divulgada em um grupo virtual. Já ocorrera antes, em 2009, embate semelhante entre os conselhos devido à reabertura da Casa de Parto David Capistrano Filho, no bairro de Realengo, na cidade do Rio de Janeiro. Nessa ocasião, o Cremerj se posicionou contra a reabertura da instituição, com declaração em nota publicada em seu jornal de junho-julho do mesmo ano, reiterando que: O Conselho Federal de Medicina e o Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio de Janeiro voltam a denunciar mais um desrespeito à saúde da população ... Alertamos as autoridades para o equívoco da reabertura da ‘Casa de Parto’ em Realengo, que viola a legislação brasileira, e normas éticas, técnicas e bioéticas de atendimento à mulher e à criança. A ‘Casa de Parto’, que funciona ‘sem médicos’, nega o acesso ao atendimento por obstetras, pediatras e anestesistas, dando uma clara demonstração de descaso com a gestante e com o recém-nascido. É um desrespeito à cidadania submeter mãe e filho a uma condição de risco pela banalização que se quer imputar ao ato de nascer (Cremerj protesta..., 2009, p.19). E segue expondo a necessidade de uma equipe multiprofissional de atendimento ao parto: Defendemos o correto: uma maternidade bem equipada com a presença de uma equipe multiprofissional, com número adequado de médicos e outros profissionais, que seja bem treinada e apta a enfrentar qualquer situação de risco. O CFM e o Cremerj reafirmam que continuarão buscando os instrumentos legais para impedir o absurdo funcionamento da ‘Casa de Parto’, que caracteriza um retrocesso inaceitável para a assistência materno-infantil na cidade do Rio de Janeiro em pleno século 21 (Cremerj protesta..., 2009, p.19). No Brasil não é obrigatório que partos sejam realizados por médicos, obstetras e enfermeiros, sendo esta última categoria autorizada pelo Coren e pela lei n.7.489, de julho de 1986, a assistir partos domiciliares, hospitalares ou em casas de parto. Além desses, existem outros profissionais que apareceram nessa arena de disputa em torno do parto, de acordo com Riesco e Tsunechiro (2002) ; também há a profissional em obstetrícia, que surge pela primeira vez no Brasil com o título entregue às formadas no Curso de Obstetrícia da Faculdade de Medicina e Cirurgia do Pará, entre 1922 e 1925. Dois tipos de formação eram oferecidos; os cursos de enfermagem e de obstetrícia funcionavam de maneira independente. Com a crescente hospitalização do parto, o campo de atuação das parteiras passou a ser objeto de disputa entre estas, as enfermeiras e os médicos, e uma grande polêmica foi gerada entre enfermeiras e parteiras. De um lado, as enfermeiras não aceitavam que as parteiras formadas pelos médicos nos cursos anexos às clínicas obstétricas das faculdades de medicina recebessem o título de enfermeira obstétrica e lutavam por consolidar o curso como uma especialidade da enfermagem. Para elas, os cursos de parteira, denominados de enfermagem obstétrica, eram um exemplo de especialização sem base, uma vez que a formação anterior em enfermagem não era exigida das candidatas. Por outro lado, as parteiras argumentavam que no mundo inteiro o ensino da obstetrícia era responsabilidade de médicos, professores da clínica obstétrica, e que a enfermagem e a obstetrícia eram profissões afins, porém distintas, não sendo possível conferir às enfermeiras com um ano de especialização as mesmas competências e prerrogativas asseguradas àquelas que faziam o curso de obstetrícia (Riesco, Tsunechiro, 2002, p.451). Em 1970 foram introduzidas modificações nas grades curriculares, decorrentes da reformulação das universidades brasileiras, propondo “vedar a duplicação de meios para fins idênticos ou equivalentes”, como apontam Riesco e Tsunechiro (2002) ; então os cursos de enfermagem e de obstetrícia se fundiram. Em 2005, o curso de obstetrícia foi recriado na Universidade de São Paulo, no campus da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH), e atualmente é o único curso de ensino superior com formação em obstetrícia no Brasil (Obstetrícia, s.d.). Vale ressaltar que, de acordo com Morais (2010 , p.82), a partir de 1998 foi incentivada a especialização em “enfermagem obstétrica” no Brasil, a fim de promover o parto normal realizado por essa categoria. A autora aponta que isso aconteceu após o destaque recebido na primeira Conferência Internacional sobre Humanização do Parto e do Nascimento, ocorrida em Fortaleza (CE). Anteriormente, em 1995, ativistas e profissionais se manifestaram sobre “avanços nas reflexões acerca do conceito de humanização, na ênfase da importância da mulher nesse processo e, ainda, na discussão do papel dos diferentes interlocutores para a efetivação de sua proposta” ( Morais, 2010 , p.81). O dossiê Humanização do parto (Rede..., 2002), feito pela Rede Nacional Feminista de Saúde, Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos, destaca outra categoria que emerge no país, a das doulas (ver Simas, 2016 ). O documento aponta que o grupo Doulas do Brasil foi criado em 2002 por iniciativa de quatro mulheres, todas localizadas na região de São Paulo e Campinas. Foi difundido por uma plataforma virtual, na qual elas ofereciam informações sobre a profissão, cursos de capacitação, depoimentos, fotos e um cadastro nacional de doulas. Partos e cuidados com o gestar e o parir Nesta seção contextualizo a produção sobre o saber obstétrico no Brasil a partir do século XIX, observando como uma sociedade com forte componente moral acolheu esses saberes sobre o corpo feminino pelo olhar do médico. No Brasil, os partos e seus cuidados eram rituais tradicionalmente de mulheres, muitas vezes encabeçados pela figura da parteira. Ela detinha um saber empírico e assistia a futura mãe em seu domicílio, antes, durante e após a chegada da criança ( Rohden, 2000 , 2006 ; Brenes, 1991 ). Essa figura, de inteira confiança das mulheres, era consultada sobre temas variados, como cuidados com o corpo, doenças venéreas, aborto etc. ( Brenes, 1991 , p.135). De acordo com Magalhães (citado em Rohden, 2006 , p.214), até o início do século XIX, a presença do profissional médico só era requerida em casos de partos complicados, nos quais a vida da criança ou da gestante estivesse em risco. Assim, era rara a presença de um médico no momento do parto. Dar à luz fora de casa era uma situação anormal, considerada apavorante, e acontecia apenas em casos extremos, sobretudo por “desclassificados socialmente”, como pessoas em situação de rua ou prostitutas. Além disso, de acordo com a autora, há relatos dessa época de que a presença do médico poderia causar certo “excesso de pudor” em relação ao profissional, pois era um homem conduzindo o parto no corpo feminino. De modo geral, a medicina até então não intervinha muito no aparelho genitourinário e nas chamadas enfermidades femininas ( Rohden, 2006 , p.214). Com a vinda da Corte portuguesa para o Brasil, em 1808 ocorreu a implantação do ensino oficial de medicina, primeiro na Bahia e depois no Rio de Janeiro. Assim, em 1809, a “arte obstétrica” passou a ser lecionada na Escola de Cirurgia do Rio de Janeiro, e a cadeira de partos, que constava do currículo das academias médicas, foi integrada definitivamente quando essas instituições se transformaram, segundo Santos Filho (citado em Rohden, 2006 , p.214), nas prestigiadas faculdades de medicina, criadas em 1832. Mott (dez. 2002) lembra que no Brasil, a partir da década de 1820, as parteiras, além de atender no domicílio, recebiam gestantes em suas casas. Ao longo dos anos, essa configuração de atendimento se expandiu, e as casas das parteiras começaram a ser conhecidas como “casas de maternidade”. Em 1832, foi criado um “curso de partos” no país, com o objetivo de que as parteiras estudassem de acordo com as normas da ciência; assim, elas teriam uma “forma correta” de atender as mulheres na ocasião do parto e nos cuidados do recém-nascido. De acordo com Barreto (2008) , as mulheres que almejassem atuar como parteiras precisavam se inscrever no curso de partos, ter no mínimo 16 anos de idade, apresentar um atestado de bons costumes passado pelo juiz de paz da freguesia, saber ler e escrever corretamente e pagar vinte mil réis pela matrícula. Já em 1854, o curso foi reformulado, introduzindo-se outras exigências: a idade das candidatas passou de 16 para 21 anos; a moralidade deveria ser atestada pelas famílias; a autorização para matrícula era dada pelo pai, quando a candidata era solteira, e pelo marido, quando casada; além do domínio da escrita e da leitura em língua portuguesa, passou-se a exigir o conhecimento do francês e das quatro operações matemáticas – Decreto n.1.387, 28 abr. 1854 ( Barreto, 2008 , p.908). A partir de então, passou-se a divulgar a ideia das parteiras especializadas, com certificado concedido pelos médicos (Rodhen, 2006, p.215). “A introdução da medicina neste espaço inaugurou não só a experimentação clínica articulada com o discurso anatomopatológico quanto produziu um discurso a partir da penetração da figura masculina no saber e prática obstétrica” ( Brenes, 1991 , p.135-136). Nesse cenário, as parteiras começam a perder autonomia na gestão dos corpos femininos, e os médicos passam a desempenhar fortemente sua autoridade na regulamentação dessas práticas. Assim, esses profissionais passam cada vez mais a gerenciar a saúde feminina e sua reprodução (Rodhen, 2006). De acordo com Martins (2005) , a constituição da ciência obstétrica esteve sujeitada a um conjunto de situações: não apenas à transformação do status do conhecimento médico como um saber autorizado, mas à própria reorganização do saber científico nas primeiras décadas do século XIX e à reestruturação do ensino da medicina. A reorganização do conhecimento científico que aconteceu nas primeiras décadas do século XIX levou ao abandono definitivo das explicações especulativas sobre o corpo humano. O corpo se transforma num cenário material e visível, num novo território cujas verdades eram acessíveis ao olhar atento do médico e do cientista, que passaram a lançar um olhar em profundidade entre tecidos e órgãos em direção ao núcleo da verdade ( Martins, 2005 , p.652). Martins (2004 , p.83) diz que houve uma reestruturação do ensino na área da medicina. A ideia era que tivesse uma composição de especialidade pautada no saber científico, de forma a objetivar os processos, construir um vocabulário próprio e constituir os acessos aos espaços hospitalares para atender às demandas médicas. No que diz respeito ao parto, essas mudanças resultaram na criação das “maternidades” na segunda metade do século XIX. De acordo com Santos Filho (citado em Rohden, 2006 , p.216): Cada vez mais os médicos iam tomando a frente no gerenciamento da saúde feminina e da reprodução. Iam se especializando e investindo na normalização das práticas relativas ao corpo feminino. A influência das parteiras era crescentemente defasada. Quando surgiram as primeiras maternidades no Rio de Janeiro, as parteiras diplomadas foram convocadas ao trabalho, mas sob o controle dos médicos. A autoridade de ginecologistas e obstetras sobre o comportamento das mulheres, no final do século XIX, ultrapassava em muito o domínio dos consultórios. E principalmente ultrapassava o domínio do físico, do orgânico ou mesmo do psíquico para se instalar no domínio da moral. A crescente especialização médica sobre o corpo feminino ... [e o] clima intervencionista mais geral que caracterizava a medicina do século passado são fatores implicados nesse processo. Brenes (1991) aponta que, apesar da existência das faculdades e de o ensino teórico ter melhorado bastante, a partir de 1832 o ensino prático permanecia precário, tanto pela falta de espaço físico para alocar as parturientes quanto pelo número reduzido de mulheres grávidas que procuravam o serviço. No Rio de Janeiro, o curso era ministrado em dois locais, no Hospital Militar e na Santa Casa, na qual já havia uma enfermaria para atender mulheres pobres; mas as irmãs de caridade ofereciam forte resistência à entrada dos alunos na enfermaria devido a fatores morais. Assim, a ideia de criar maternidades anexas às faculdades de medicina veio com a lei de 28 de abril de 1854, que reformou os cursos e estipulou essa determinação. Naquele momento, a fim de atrair mulheres para esses espaços, houve por parte da corporação médica um enorme esforço em construir uma imagem do médico que inspirasse confiança na população. Aliado a isso, o discurso médico teceu para a mulher uma nova subjetividade, de maneira que: garantiu-lhe um novo papel na sociedade, abrindo-lhe as portas para uma vida social mais intensa, esposando-lhe nova configuração dentro do lar, da família, tornando-a, enfim, um ser bem mais vivo que a mulher da sociedade patriarcal da colônia. Porém, o ponto de apoio deste discurso que criou a mulher da sociedade imperial foi a sexualidade feminina. Sexualidade que foi descrita a fundo, com acurada precisão fazendo a mulher um ser frágil e inconstante, a quem somente os médicos poderiam orientar, por serem os únicos que a conheciam. Deste ‘jogo’ surgiram ‘o mito do amor materno’, a ‘mãe dedicada’, ‘boa esposa’, ‘a rainha do lar’, as histéricas, as mundanas e toda uma série de tipos femininos que ocupariam a literatura médica e o imaginário social do século XIX. A mulher criada no século XIX, que povoou as páginas do romance nacional, destacava-se pela sua constituição frágil e débil ( Brenes, 1991 , p.145). De acordo com Nagahama e Santiago (2005) , o processo de hospitalização do parto a partir do século XX, com a institucionalização da assistência ao ato de dar à luz, foi fundamental para a apropriação do saber nessa área e para o desenvolvimento do saber médico. Tal processo produz a transformação do papel da mulher de sujeito (como parteira) para objeto no processo de parto e nascimento (como parturiente). Desse modo, a apropriação do saber médico e as práticas médicas constituíram fatores determinantes para a institucionalização do parto e a transformação da mulher em propriedade institucional no processo de dar à luz (Nagahama, Santiago, 2005, p.656), sendo as parteiras retiradas de cena. Diante desse cenário, surgem nos últimos tempos discussões e conflitos entre os profissionais que disputam a arena do parto. Nesse sentido, observo os efeitos e as práticas das mencionadas resoluções do Cremerj na Alerj. Assim será possível detalhar de forma mais eficiente os principais desafios encontrados para entender as dimensões do cuidado nos serviços de saúde, bem como os percursos históricos dos agentes no cenário do parto. A judicialização do conflito Diante das resoluções do Cremerj, ainda em 2012 o Coren ajuizou uma ação civil pública1 contra a entidade, pedindo a anulação dessas resoluções. Obteve-se a liminar com antecipação de tutela, pois, de acordo com o Conselho de Enfermagem, a decisão do Cremerj colocava as mulheres em “situação de risco”. Em julho do mesmo ano, a decisão judicial resultou na suspensão das resoluções até nova decisão. Já em setembro de 2014, uma decisão judicial de primeira instância avaliou como pertinente a solicitação do Coren de pedir a suspensão das resoluções. Em janeiro de 2016, quando o processo se encontrava na primeira audiência da segunda instância, o então desembargador2 solicitou vistas ao processo para entender o que o relator estava ponderando. Não houve consenso na nova decisão: foram dois votos a favor do Cremerj e um contra. Depois disso o Coren entrou com um embargo infringente,3 previsto na lei n.10.352/2001, contra a decisão do TRF-RJ, alegando não ter havido consenso na sentença. Os advogados representantes do Coren solicitaram então um novo julgamento com uma nova turma. É interessante destacar que, de acordo com o Coren, o Cremerj não regulamenta as profissões das enfermeiras, obstetras, doulas e parteiras em seu regimento profissional, mas, como estratégia, a lei n.7.498, de 1986, que regulamenta o exercício profissional da enfermagem, reconhece as parteiras e as obstetrizes. O Conselho Federal de Medicina não formaliza a profissão da enfermagem em seu regulamento, tampouco a das doulas, obstetrizes e parteiras. O embate se dá porque tal dispositivo deixa para a direção médica do hospital a decisão da entrada de parteiras, doulas e obstetrizes durante o parto. Essas resoluções, entendidas como disputas entre os lugares e os profissionais “dignos” de realizar o parto, foram alvo de processo, no que Diniz, Machado e Penalva (2014) e Ventura (2010) chamaram de judicialização da saúde, com o Coren contestando as resoluções do Cremerj e defendendo o direito de assistência ao parto. Depois desses acontecimentos ocorreram algumas mobilizações que foram divulgadas em um grupo virtual, criado em janeiro de 2016 no Facebook, intitulado “Meu corpo, minhas regras, nossas escolhas” (Movimento..., s.d.). De acordo com sua própria descrição, o movimento é constituído por profissionais, mulheres e familiares a favor do “parto fisiológico” e de “direitos reprodutivos das mulheres”, entendendo como arbitrárias as resoluções do Cremerj. Diante dos conflitos gerados pelos conselhos, articularam-se também outras ações, como duas marchas contra as resoluções, na praia do Leme e na Central do Brasil, no Rio de Janeiro ( Promundo, 2016 ). Tais mobilizações deram origem à audiência pública que foi realizada em 14 de março de 2016, estudada no presente trabalho. A casa legislativa A Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj) é conhecida popularmente como a “Casa do Povo”, como se esse espaço concretizasse a ideia do Estado democrático de direito. Em seu site oficial está escrito que “a representação que se encontra no Poder Legislativo é uma síntese da realidade do Estado”, e informa que, de todos os poderes, o Legislativo é o que tem mais acesso à população civil. De acordo com Escosteguy (2017) , o Legislativo, além de exercer a função legiferante (produzir leis) e fiscalizadora, cumpre papel educativo. Nesse espaço público, de acordo com o autor, as propostas que atingem diretamente o interesse das pessoas são exibidas, debatidas e transformadas em normas legais. Em geral, nesse processo de constituição das leis há a participação de segmentos organizados da sociedade, como sindicatos, confederações de trabalhadores, organizações não governamentais e associações, todas apresentando seus pleitos. Nas audiências públicas, essas demandas são ouvidas e debatidas com os parlamentares, dando a ideia de participação política do povo nessa casa legislativa ( Escosteguy, 2017 ). A Alerj é composta por setenta deputados, que supostamente representam seus eleitores. De acordo com o site da instituição, as audiências públicas são realizadas pelas “comissões permanentes” para debater projetos de lei, ouvir propostas de organizações da sociedade civil, mediar negociações etc. (Alerj, s.d.). Essas sessões são abertas ao público, e os membros das comissões podem solicitar a presença de pessoas ou entidades para prestar esclarecimentos e debater questões sobre temas em discussão. Já os deputados podem conduzir o requerimento de informações a autoridades públicas do Estado para solicitar explicações acerca de determinados assuntos. Uma breve descrição da Assembleia Legislativa: as múltiplas vozes femininas e a produção da política Na mesa da plenária havia representantes do Movimento de Doulas, da Associação Brasileira de Obstetrizes e Enfermeiros Obstetras (Abenfo), da Associação Brasileira de Obstetrizes e Enfermeiros (Aben), da direção da Casa de Parto, representando a Secretaria Estadual de Saúde, do programa da Rede Cegonha Carioca e a deputada Rejane, que presidia a mesa. No público, integrantes do PCdoB e representantes de movimentos feministas e civis interessados no tema. A deputada Rejane informou que enviara convite ao Ministério Público e ao Cremerj para que participassem, porém não obtivera retorno. Como dito, tratava-se de iniciativa solicitada por membros do Conselho de Enfermagem e do movimento “Meu corpo, minhas regras, nossas escolhas”, em decorrência das resoluções n.265/2012 e n.266/2012 do Cremerj. A composição se fez em sua maioria por mulheres, muitas delas mães, acompanhadas de seus filhos pequenos, carregados por slings (técnica de amarração de um pano junto ao corpo para sustentar o bebê), e gestantes. Entre o público havia também profissionais de enfermagem e estudantes. Algumas vestiam camisas com a imagem do programa da Rede Cegonha Carioca e da Casa de Parto David Capistrano Filho. Foram distribuídas cadernetas com informativos sobre o exercício da enfermagem e sobre violência doméstica. De acordo com Mello e Souza (citado em Barbosa, 2002 ), o campo médico se apropriou dos discursos feministas por meio do argumento de que as mulheres têm autonomia sobre seus corpos. Por essa razão, podem optar por formas diversas de parto, inclusive a cesariana. Entretanto, esse discurso não é unânime no campo médico, e alguns não pensam a cesariana como uma possibilidade de autonomia, mas como uma indução ao risco conduzida por médicos. Nesse cenário, a realização excessiva de partos obstétricos via cirurgia pré-agendada foi denunciada como resultado de uma “cultura da cesariana” ( Carneiro, 2011 ). A visão de que a opção pela cesariana é mais um risco do que uma possibilidade de escolha e exercício de autonomia feminina circulava como um discurso ( Foucault, 1995 ) na sessão pesquisada. Pude notar que para algumas palestrantes e para grande parte do público a “cultura da cesariana” é algo danoso à saúde das mulheres e de sua prole. Além disso, havia a associação de que essa cultura se devia ao fato de o campo médico brasileiro transformar o corpo da mulher em mercadoria. Isso pode ser visto na fala da deputada Rejane, quando diz que os médicos propuseram as resoluções n.265/2012 e n.266/2012 não por preocupação com a saúde feminina, mas por um interesse mercadológico sobre seus corpos, buscando garantir uma reserva de mercado. De acordo com a deputada, os médicos visam menos a suas pacientes e mais à dominação de seus corpos como meio de obtenção de lucros. A deputada Rejane traz a ideia de que a medicalização da prática obstétrica opera segundo a lógica do sistema capitalista, que ordena a vida social e produz uma “maquinização” do corpo feminino. De acordo com Arruda (citado em Nagahama, Santiago, 2005), as modificações definitivas na assistência ao parto ocorreram a partir do século XVII, quando se descobriu o mecanismo da ovulação, pois o entendimento de que a mulher possuía uma estrutura mais delicada do que a do homem levou à percepção do parto como perigoso para a saúde e que a medicina deveria protegê-la. O modelo cartesiano do dualismo mente/corpo evoluiu para o corpo como uma máquina, sendo o corpo masculino considerado o protótipo desta máquina e o feminino um desvio do padrão masculino, considerado hereditariamente anormal, defeituoso, perigosamente imprevisível, regido pela natureza e carente do controle constante por parte dos homens. Com o advento do capitalismo industrial, a prática da assistência ao parto se consolidou como exercício monopolizado dos médicos e, assim, foi legitimado e reconhecido. Emily Martin (2006) , antropóloga norte-americana influenciada pelo pensamento marxista, diz que a medicina ocidental pensa o corpo como uma máquina. O útero como uma máquina de produção, a mulher como a operária, o médico como o técnico ou o mecânico que “conserta” ou supervisiona a fim de que sejam “produzidos” bebês saudáveis. Nesse contexto, a cesariana, que exige o máximo de “condução” do médico e o mínimo de trabalho ao útero, é considerada o melhor processo para produzir os melhores “produtos”. Essa perspectiva teria então gerado um processo de substituição das mãos das parteiras pelas tecnologias médicas (o bisturi, o fórceps). A própria ideia do trabalho de parto é entendida como um trabalho fabril, que é subdivido em vários estágios: fase latente, dilatação, expulsão, progressão etc. Do século XIX a meados do XX, à medida que se constituem os saberes científicos, formula-se a concepção da “metáfora da máquina”. Dessa forma, o paradigma da medicina remete à funcionalidade do corpo feminino relacionando-o ao modo de organização industrial capitalista ( Martin, 2006 ). À luz dessas questões que envolvem o debate sobre o corpo feminino e a reprodução, formula-se dentro da audiência a ideia de que, além da cesariana, há outras “intervenções desnecessárias”, denominadas violência obstétrica. Para além do ponto de vista econômico, o que está em jogo é uma questão de moralidade médica, que pauta o que seria o “melhor” para a mãe e para o bebê ( Pulhez, 2015 , p.94). Ao longo da sessão, houve discursos apoiados na crítica à mercantilização do corpo feminino pelo campo médico. Além desse tipo de acusação, a prática médica foi considerada um lócus de produção de “violência obstétrica”. Com isso surgem múltiplas vozes defendendo a importância de práticas que não promovam a “violência obstétrica”. Heloísa, enfermeira obstétrica, aponta nomes de profissionais e de ambientes favoráveis para ter um parto que não promova a violação dos corpos femininos. É isso que a gente precisa entender, por que a gente quer doula, por que a gente quer parto em casa, por que a gente quer casa de parto, por que a gente quer isso tudo? Porque a gente quer de verdade menos mortalidade materna, a gente quer menos sangramento, a gente quer um parto mais fácil, a gente quer um parto menos penoso, a gente quer que o parto deixe de ser lembrado como uma coisa dolorosa. A gente vai falar que alguma coisa foi difícil e a gente fala da dor, ‘foi um parto’. Não! Este parto é um parto da violência obstétrica, esse parto é o parto da posição deitada, é o parto da mulher que não tem um acompanhamento digno do lado dela, isso a gente não quer mais (Heloisa, enfermeira obstétrica, durante a Audiência Pública, Alerj, 2016). Na mesma direção, Luciana, integrante da audiência como representante da União Brasileira de Mulheres, traz a ideia de que é necessário levar uma “conscientização” às mulheres que não querem o “parto humanizado”. Pois essas estariam sendo “vítimas” de um sistema maior. Para ela, as mulheres pobres são vítimas das “violências obstétricas” dentro de hospitais. Pensando em como a gente conseguiria aumentar a conscientização, eu ainda escuto muitas mulheres falando que não querem parto humanizado ou parto normal por conta da dor. Porque o médico diz que não tem passagem e elas são, já no primeiro momento de sua consulta, induzidas a quererem uma cesariana. Imaginem nós, mulheres que ainda temos acesso à informação, se já somos condicionadas dessa forma, imaginem todas as outras mulheres, pobres, que na maioria das vezes não têm muitas informações, como elas são condicionadas a ter o parto via cesárea. Hoje nós temos parto por cesárea sendo marcado às 18h, porque por volta das 18h nós temos as taxas de emergência, então tem um lucro maior para esses médicos que irão fazer esses partos. Então o meu questionamento é justamente esse. Fora outras coisas que a gente vê: a mulher pode pagar por um dia de estética antes do parto, quando a gente não vê um bufê sendo oferecido para que as pessoas fiquem numa antessala, observando por um Big Brother a mulher parindo. Então, gente, várias situações bizarras. Como ficam, também, essas mulheres pobres que não têm esse acesso? Na verdade, minha pauta seria justamente falar sobre esse questionamento e como nós deveríamos pensar numa estratégia de conscientizar mais mulheres e que mais vozes femininas estejam dentro de uma próxima audiência pública falando e se defendendo de todas essas violências que a gente sofre cotidianamente (Luciana, representante da União Brasileira de Mulheres, durante a Audiência Pública, Alerj, 2016). Pulhez (2015) mostra que a denúncia da “violência obstétrica” é uma disputa que visa a uma construção de mundo, que estabelece o que é dispensável ou abusivo em um parto, uma transformação das mulheres em “vítimas”. Além de a categoria abarcar uma questão subjetiva, carrega um sentido político. O que está em jogo, então, é a “garantia à empatia social e à transformação delas em sujeito político, condição para a constituição de um movimento social reivindicativo e libertário”, como aponta Sarti (citado em Pulhez, 2015 , p.94). Parto humanizado é um direito de quem? Retornando à audiência pública, de acordo com relatos colhidos entre os presentes na sessão, o “parto humanizado” não é acessível a todos. A classe social, a raça/etnia ou gênero das pessoas farão com que elas tenham acesso aos serviços de forma diferenciada, assim como possibilidades distintas de receber cuidados dessa ordem. Pude presenciar Paula, que é doula e educadora perinatal, coordenadora do grupo de apoio ao Parto Ishtar, discorrer sobre isso ao narrar sua trajetória durante a gestação e sua experiência com o “parto humanizado”. Ela diz que, mesmo sendo uma “mulher negra da Baixada Fluminense”, teve acesso à informação sobre o parto humanizado. Entretanto, sua experiência é singular, e considera importante divulgar para outras mulheres. Segundo disse: Eu, como mulher negra, moradora da Baixada Fluminense, tive acesso à informação, que me levou à Casa de Parto onde eu fui acompanhada, fiz o meu pré-natal. E quando entrei em trabalho de parto, fui para a Casa de Parto. Por conta dos protocolos próprios da Casa, não pude continuar o meu parto lá, fui transferida, fui para outro hospital. Durante todo esse período, durante o meu trabalho de parto eu tive todos os meus desejos respeitados … Então, é importante que todos saibam que é um sistema e que a gente tá lutando, nadando contra a maré o tempo inteiro (Paula, doula, durante a Audiência Pública, Alerj, 2016). Suzane, enfermeira, da comissão de mulheres do PCdoB de São João da Barra, em sua fala afirma existir uma centralidade dessas políticas e práticas de assistência humanizada do parto nas grandes metrópoles. Para ela, isso restringe ou concede espaços que perpassam a produção do “parto humanizado”. Suzane diz que é oriunda de uma cidade pequena no interior do estado, que não há essa discussão no interior, demarcada apenas para o município do Rio de Janeiro: E a nossa vivência lá da Casa de Parto não existe, e eu acho que é muito importante que seja levada para o interior, porque eu acho fundamental que as nossas mulheres do interior do estado tenham acesso à informação de que existe esse serviço, esse trabalho, e possam escolher a forma de ter seus filhos: no hospital ou na residência. Porque, afinal de contas, é o corpo delas, são os filhos delas. E, assim, a minha vinda aqui foi pra viver a experiência de vocês. Porque eu acho que é de fundamental importância que se leve uma Casa de Parto ao interior do estado, uma coisa que ainda é muito restrita ao município sede (Suzane, integrante do PCdoB, durante a Audiência Pública, Alerj, 2016). Além de estar demarcada pela diferenciação de seu corpo, por meio do gênero e da pele, ou pela distinção entre centro e margem da cidade, conforme aparece nas falas, a disponibilização do serviço também é associada às diferentes classes sociais. Scavone (2004) afirma que, no contexto brasileiro, a utilização das técnicas e tecnologias – o uso da peridural, por exemplo – é vista como um privilégio, não um direito. Da mesma maneira, pode indicar uma forma de modernidade, com uma supervalorização da tecnologia médica e a aceitação de seu uso. A questão posta por uma das integrantes da audiência é outra. O acesso à informação aparece como um privilégio, e a recusa da medicalização, como um direito. Tal manifestação remete à ideia de que o “parto humanizado” é algo de uma classe social mais abastada, de uma elite econômica, pois apenas essa teria o poder da escolha. Estou aqui porque eu quero que todas as mulheres tenham acesso a isso, porque isso não pode ser um privilégio, isso não pode ser para uma elite … Eu tive acesso à informação, tive acesso à uma rede incrível, quero que todas as mulheres tenham isso. Quero que as mulheres possam parir com segurança, com acolhimento, com respeito, com uma equipe profissional qualificada, profissionais que estão atuando na clandestinidade não podem ser devidamente qualificados para nos dar a segurança de um parto saudável, para nós e para nossos bebês. A gente não quer um parto maluco, não, gente. A gente quer um parto seguro, saudável, para nós e para os nossos bebês, com respeito. É isso (Diana, integrante do Movimento Mães e Crias na Luta, durante a Audiência Pública, Alerj, 2016). Os cuidados femininos e a gestão da reprodução Ao longo da sessão, pude assistir à exposição da enfermeira obstétrica Heloisa, ativista do parto humanizado e precursora no país das ideias do obstetra francês Michel Odent (2002) . Na época, era a presidenta do instituto Michel Odent no Brasil. Ao discursar, ressaltou que, independentemente das resoluções do Cremerj, as mulheres continuarão tendo “autonomia” para realizar o parto domiciliar. De acordo com Heloisa, o que está em pauta é a ideia de uma hierarquia entre os profissionais que impediria o trabalho em grupo. Trata-se, segundo ela, de uma perpetuação do poder médico e do controle do corpo feminino. A gente tem que trabalhar em equipe no posto de saúde e a gente tem que trabalhar em equipe no parto em casa. E é por aí que eles estão quebrando a gente, então a ideia é manter as categorias isoladas, brigando entre si. A gente não precisa disso! Eu hoje tenho orgulho em dizer que tenho uma equipe que trabalha em parto hospitalar e em parto domiciliar, em que enfermeiras, médicos, pediatras, psicólogos e doulas estão juntos e podem trabalhar sem hierarquia. Isso é possível. E é a favor disso que estamos lutando, é contra a hierarquia ... É por isso que somos tão atacadas. Quando a gente vê uma mulher parindo, ninguém controla essa mulher, isso é impressionante. A gente vê uma mulher sendo suturada num hospital e ela não dá um gemido, é uma tristeza, ela não dá um gemido porque ela sabe que se ela der um gemido ela vai ser maltratada. ‘Ah, então eu largo você aí, minha filha, toda arreganhada.’ É assim que ela é tratada. Quando a gente vai para a Casa de Parto, a gente vai suturar, a batalha que é para a gente conseguir, porque é doloroso, porque essa mulher reclama, então uma mulher que tem a possibilidade de dar conta de parir sem intervenção nenhuma, por suas pernas, isso dá a ela um poder, e é por isso que querem nos calar, querem nos calar no parto e querem nos calar na nossa vida (Heloisa, enfermeira obstétrica, durante a Audiência Pública, Alerj, 2016). Maia (2010) ressalta que a enfermagem obstétrica está tendo cada vez mais ampliação no mercado de trabalho no contexto brasileiro, mostrando-se uma importante área de expertise no serviço da “humanização do parto”. O Ministério da Saúde traz normativas que incentivam a humanização da assistência ao parto, certificando a atuação da enfermeira obstetra na atenção ao parto normal sem complicações. A exemplo disso, a autora afirma que o Ministério da Saúde tem financiado cursos de capacitação, estabelecendo pagamento, pelo SUS, de parto assistido por enfermeira obstetra e implantação dos centros de parto normal, unidades privilegiadas de atuação dessa profissional em partos sem distocia (complicações durante a parição), além de trabalhar em partos domiciliares. De acordo com Maysa, representante da Abenfo presente na mesa da plenária, as resoluções do Cremerj dificultam a atenção ao parto fornecida pelas profissionais enfermeiras obstétricas e obstetrizes. Segundo ela, são decisões que delimitam e padronizam os espaços de atuação do médico, da enfermeira e de obstetrizes na atenção ao parto em domicílio e hospitais. Ela explicou que nos chamados partos de “baixo risco” ou nos partos de “risco habitual” o acompanhamento da gestação, do parto e do pós-parto pode ser realizado por enfermeiros/as e obstetrizes que estejam qualificados/as para tal. Na mesma direção, como se trata de um “processo fisiológico”, as mulheres podem e devem ter a opção de ser atendidas em um hospital, em um centro de parto normal, em uma casa de parto ou em um domicílio. Para Maysa, há que pensar que a concepção da assistência ao parto também deve pressupor que a maioria das mulheres está “saudável”. Para ela, o atual modelo hospitalar, “biomédico”, entende a gestação, o parto e o pós-parto como algo que altera a saúde das mulheres. Dessa forma, as gestantes são submetidas a um modelo de assistência montado para aquelas que adoecem. O primeiro pressuposto, de acordo com Maysa, deve ser que as mulheres são saudáveis. O que está em debate é a transição de paradigmas “para um modelo em que as principais protagonistas deixam de ser o médico e passam a ser a mulher, é ela que precisa poder escolher quais são os locais em que se sente mais segura”. Sendo assim, é possível notar que essa visão é crítica ao modelo biomédico e ao paradigma do cuidado. Pensando em termos foucaultianos, o processo de nascimento passa a ser de interesse da biopolítica. Há, então, uma vigilância estatal, interessada no cuidado e controle dos corpos e da população, normatizando o biológico e o controle das vidas. Maysa afirma que as resoluções do Cremerj interferem no processo de cuidado das mulheres. De acordo com ela, para que se desencadeie o processo e transcorra da forma mais “natural possível”, a parturiente precisa de um sistema que esteja adequado: E para que possamos construir isso é necessário que um grupo multidisciplinar esteja trabalhando em acordo. Portanto, essas resoluções dificultam a escolha dessas mulheres para tomar uma decisão coerente e segura, também dificultam os diversos profissionais envolvidos no processo, ao atuarem sob ameaça. … Na medida em que os profissionais trabalham com segurança, sabemos que em algum momento podemos necessitar dessa transferência e precisamos poder contar com esse plano (Maysa, enfermeira obstétrica, durante a Audiência Pública, Alerj, 2016). Na audiência apareceu a ideia da dimensão da “gestão do cuidado”. Em um de seus artigos, Cecílio (2009) analisa o romance A morte de Ivan Ilitch , de Tolstói, um tanto ilustrativo em relação às formas de cuidar e às críticas à normativa do cuidado. Na obra, o escritor descreve o sofrimento do enfermo a partir do “olhar do doente”. O personagem Ivan Ilitch, que levou uma vida burguesa na Rússia czarista, consegue, a partir de sua enfermidade – da sensação da dor, da perda de autonomia, do medo da morte, da sensação de desespero e solidão – e de certa ausência de comunicação do outro, inserir-se na produção do cuidado em dimensões distintas, tanto naquela de quem recebe o cuidado como na de quem gera o cuidado. é a incomunicabilidade com os outros. Ninguém parece entender o que ele está vivendo. Os médicos, porque insistem em um linguajar técnico, preocupados em encontrar um diagnóstico da doença e a terapia correspondente. A mulher e os filhos expressam pena e culpa ao vê-lo naquela situação. ... Ele sabe que é um estorvo para a família. O pior, porém, é que ele sabe que todos mentem, que todos fingem não ver o agravamento de sua situação. Seus encontros com o espelho são dramáticos, quase insuportáveis. A imagem que vê em nada faz lembrar o homem que era, antes, inveja a vitalidade e a autonomia dos que não estão doentes. Um mundo que lhe parece cada dia mais distante ( Cecílio, 2009 , p.546). Até que surge a figura do Guerássim, um serviçal humilde, analfabeto, designado a ajudar o patrão em suas atividades diárias, visto que este não conseguia mais dar conta delas sozinho. Em dado momento, Ivan IIitch descobre que ao erguer suas pernas a dor se alivia, então pede para que Guerássim o ajude a fazer isso; foi uma primeira intervenção terapêutica eficaz, taxada pelo médico e pela família como um absurdo sem utilidade, pois não se encaixava nos cânones da medicina daquela época. O ato de colocar as pernas de Ilitch no ombro de Guerássim foi criando laços de intimidade inimagináveis na época entre o senhor e seu servo. Cecílio traz a ideia do cuidado como gesto acolhedor, que produz junto a Ilitch um cuidado que tem a potência de diminuir a dor. Com essa intimidade, Ilitch admite seu medo da morte, discute sobre isso e dispõe da atenção que necessita: “a invenção de um novo modo de cuidar que escapa dos instituídos e alarga e reinventa o mundo do possível. Uma ‘tecnologia de cuidado’ que nasce do gesto, da proximidade física, da escuta e da generosidade do ‘cuidador’” (Cecílio, 2009, p.548). O autor também aponta para certo risco dos programas de “qualificação” e dos programas de “humanização”, pois as formas de construir o atendimento ao outro podem continuar a colaborar para uma instrumentalização demasiada de formalizações do encontro “trabalhador-usuário”, impedindo a possibilidade dos encontros que produzem cuidado, como o caso dos personagens Ilitch e Guerássim. De acordo com Mendonça (2014) , o ato do cuidado se dá a partir da construção da abertura ao outro, trazendo as ideias oriundas do conceito do “ato livre”, de Lévinas. A abertura para o outro se faz por uma necessidade e total vulnerabilidade, afirma Lévinas (citado em Mendonça, 2014 ). O “ato livre” então corresponde a uma ação humana compelida pela presença da face do outro. As liberdades se localizam nas relações, em meio à subjetividade e à vulnerabilidade. O cuidado é um acontecimento marcado pelo encontro de quem cuida e de quem é cuidado. Ainda segundo Mendonça, os modelos assistenciais do cuidado passaram a ser parte integrante e ferramenta das técnicas de governo em uma era da biopolítica, integrando, assim, a máquina do Estado e sendo basilar no controle da população. A biopolítica se dá a partir do problema da população contextualizada no Estado liberal. É preciso então gerir os seres vivos para que haja controle, a fim de garantir a melhoria da gestão da força de trabalho. Nessa perspectiva, o cuidado é biopolítica, mas só algumas vidas são cuidadas. Pelbart (2007 , p.1) aponta que esse biopoder “não visa barrar a vida, mas tende a encarregar-se dela, intensificá-la, otimizá-la”, chegando ao cerne da subjetividade e da vida contemporânea do biopoder. O deixar morrer e fazer viver implicam cuidar da população, dos processos biológicos; otimizar e gerir a vida. Sobre a concepção da “gestão do cuidado”, Zuleide, enfermeira obstétrica, ao compor a mesa plenária, reforça a ideia de que o enfermeiro atua no “cuidado diferenciado” em relação a essas mulheres. Essas resoluções, argumenta, estariam impedindo esses profissionais de oferecer esse “cuidado”. A gente precisa buscar porque existe uma demanda, existem mulheres querendo esse cuidado diferenciado. E outras que não buscam, talvez porque ninguém tenha falado disso para elas. Essa informação não chega até elas. E, quando chega, elas não podem usar. Porque a gente ainda tem uma minoria, e é isso que está acontecendo, que decide o que deve ser feito, sem ter a possibilidade de um momento como esse, para que a população se manifeste e diga ‘eu quero um cuidado diferenciado, eu quero essa possibilidade’. Nós queremos todas as possibilidades, porque eu acho que tudo tem que ser respeitado, desde que a gente possa optar. Eu trabalho no programa Cegonha Carioca, trabalho na Casa de Parto David Capistrano, trabalho também com uma equipe de parto domiciliar. São várias possibilidades e todas elas com o objetivo de oferecer o melhor cuidado (Zuleide, enfermeira obstétrica, durante a Audiência Pública, Alerj, 2016). Assim como os enfermeiros, as doulas são apresentadas como profissionais capazes de humanizar o parto e evitar “violências obstétricas”. Roberta, representante do Movimento de Doulas e do coletivo Parto com Princípio, diz que a presença da doula é uma questão de saúde pública, pois diminui as taxas de cesárias e as taxas de episiotomia e aumenta as taxas de aleitamento nas primeiras semanas após o nascimento. A categoria “doula”, de acordo com a palestrante, é reconhecida pela Classificação Brasileira de Ocupações (CBO), no entanto, até aquele momento não havia uma lei que regulamentasse sua participação no cenário de parto. Enquanto Roberta palestrava na sessão plenária, algumas doulas se manifestaram sobre o assunto. Em rumores paralelos à palestra principal, queixavam-se de ser transformadas em “testemunhas oculares” de potenciais “violências obstétricas”, uma vez que o médico em exercício retiraria a “autonomia” da mulher sobre o seu corpo. Temos que informar a mulher sobre quais são os direitos dela e informar sobre a tal da violência obstétrica, porque tem muitas, muitas e muitas coisas que acontecem dentro de uma sala de parto que são tidas como normais, cotidianas, mas o nosso papel, a gente chega ali no ouvido daquela mulher durante a gestação e diz: ‘Olha, se você deixar que isso seja feito com você ou se fizerem isso com você contra a sua vontade, isso significa que você está sendo vítima de violência obstétrica.’ … então nós somos, sim, testemunhas oculares do que está acontecendo ali. Então porque os médicos estão com tanto, tanto, tanto medo que a gente esteja ali olhando o que eles estão fazendo com as mulheres? (Roberta, doula, durante a Audiência Pública, Alerj, 2016). É interessante perceber que na plenária não eram debatidas apenas as resoluções, mas a “autonomia” da mulher. Sendo assim, o tema primordial do debate era o efeito de ações públicas na dimensão privada da vida das mulheres ( Foucault, 1995 ). Considerações finais Acredito que, levando-se em conta os aspectos observados na audiência pública “Parto humanizado e o direito da escolha”, pode-se constatar que existe um ponto de recorrência nas reclamações das mulheres, profissionais e ativistas presentes, que diz respeito ao direito das gestantes e parturientes de serem ouvidas e consultadas acerca dos encaminhamentos do parto. O debate da audiência faz com que compreendamos os espaços políticos de conflitos dos saberes no campo da saúde e também do legislativo, além de ponderar os discursos do saber/poder ( Ortega, 1999 ) acerca do corpo feminino e sua reprodução. Além do recorte histórico, foi visto como os médicos foram tomando a frente do gerenciamento do corpo feminino, em particular no caso do parto, objeto do presente trabalho. Com este estudo, busquei dar continuidade às discussões e ajudar a resolver os conflitos que ocorrem entre a medicina, a enfermagem e as doulas, e mais ainda, busquei compreender e dar voz às ativistas e mulheres que exigem ser ouvidas nos encaminhamentos do parto, sendo este encarado como uma escolha da mulher. Almejo que o presente trabalho possa contribuir para a elaboração de outras questões que pautem o espaço do Legislativo, como disputa dos “direitos reprodutivos”, da “autonomia” da mulher e do “direito da escolha” no momento do parto. AGRADECIMENTO O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (Capes). Código de financiamento 001. REFERÊNCIAS ALERJ. Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro. Audiência Pública: Parto humanizado. Disponível em: Acesso em: 1 fev. 2017. 2016. » https://www.youtube.com/watch?v=xeEgo60Lku4&t=5099s> ALERJ. Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro. Como funciona. Disponível em: Acesso em: 1 fev. 2017. s.d. » http://www.alerj.rj.gov.br/Alerj/ComoFunciona> BARBOSA, Gisele Peixoto et al. Parto cesáreo: quem o deseja? Em quais circunstâncias? Cadernos de Saúde Pública, v.19, n.6, p.1611-1620. Disponível em: Acesso em: 20 jul. 2015. 2002. » http://www.scielo.br/pdf/csp/v19n6/a06v19n6.pdf> BARRETO, Maria Renilda Nery. Assistência ao nascimento na Bahia oitocentista. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, v.15, n.4, p.901-925. 2008. BOURDIEU, Pierre. O campo político. Revista Brasileira de Ciência Política, n.5, p.193-216. Disponível em: Acesso em: 1 fev. 2017. 2011. » http://dx.doi.org/10.1590/s0103-33522011000100008> BRASIL. Lei n.10.352, de 26 de dezembro de 2001. Altera dispositivos da lei n.5.869, de 11 de janeiro de 1973 – Código de Processo Civil, referentes a recursos e reexame necessário. Diário da Câmara dos Deputados, p.44551. Disponível em: Acesso em: 10 out. 2020. 23 ago. 2000. » http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/leis_2001/l10352.htm> BRENES, Anayansi Correa. História da parturição no Brasil, século XIX. Cadernos de Saúde Pública, v.7, p.135-149. 1991. CARNEIRO Rosamaria Giatti. Cenas de parto e políticas do corpo: uma etnografia de práticas femininas de parto humanizado. Tese (Doutorado em Ciências Sociais) – Universidade Estadual de Campinas, Campinas. 2011. CECÍLIO, Luiz Carlos de Oliveira. ‘A morte de Ivan Ilitch’, de Leon Tolstói: elementos para se pensar as múltiplas dimensões da gestão do cuidado. Interface: Comunicação, Saúde, Educação, v.13, supl.1, p.545-555. 2009. CREMERJ PROTESTA.... Cremerj protesta contra reabertura de “casa de parto” em Realengo. Jornal do Cremerj, n.222, p.19, Disponível em: Acesso em: 1 fev. 2017. jun.-jul. 2009. » http://old.cremerj.org.br/jornais/jornais_pdf/109.pdf> DINIZ, Débora; MACHADO, Teresa Robichez de Carvalho; PENALVA, Janaina. A judicialização da saúde no Distrito Federal, Brasil. Ciência & Saúde Coletiva, v.19, n.2, p.591-598. 2014. ESCOSTEGUY, Carlos. O Poder Legislativo. Disponível em: Acesso em: 8 out. 2020. 2017. » https://www12.senado.leg.br/jovemsenador/home/paginas/cursos-online/planos-de-aula-ilb-o-poder-legislativo> FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal. 1995. GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Zahar. 1978. JUSBRASIL. Ação civil pública. Disponível em: Acesso em: 1 fev. 2017. s.d. » https://www.jusbrasil.com.br/topicos/26413013/acao-civil-publica> MAIA, Mônica Bara. Humanização do parto: política pública, comportamento organizacional e ethos profissional. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz. 2010. MARTIN, Emily. A mulher no corpo: uma análise cultural da reprodução. Rio de Janeiro: Garamond. 2006. MARTINS, Ana Paula Vosne. A ciência dos partos: visões do corpo feminino na constituição da obstetrícia científica no século XIX. Estudos Feministas, v.13, n.3, p.645-666. Disponível em: Acesso em: 1 fev. 2017. 2005. » https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-026X2005000300011&lng=pt&tlng=pt> MARTINS, Ana Paula Vosne. Visões do feminino: a medicina da mulher nos séculos XIX e XX. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz. 2004. MENDONÇA, Paulo Eduardo Xavier de. Sem soberania: gestão solidária e força fraca para cuidar de vidas fracas. Tese (Doutorado em Clínica Médica) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. 2014. MORAIS, Fátima Raquel Rosado. A humanização no parto e no nascimento: os saberes e as práticas no contexto de uma maternidade pública brasileira. Tese (Doutorado em Psicologia Socia) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte; Universidade Federal da Paraíba, Natal. 2010. MOTT, Maria Lúcia. Assistência ao parto: do domicílio ao hospital. Projeto História, v.25, p.197-219. Disponível em: Acesso em: 1 fev. 2017. dez. 2002. » http://revistas.pucsp.br/index.php/revph/article/view/10588> MOVIMENTO... Movimento: meu corpo, minhas regras, nossas escolhas. Disponível em: Acesso em: 16 set. 2017. s.d. » https://www.facebook.com/meucorpomeuminhasregrasnossasescolhas/> NAGAHAMA, Elizabeth Eriko Ishida; SANTIAGO, Silvia Maria. A institucionalização médica do parto no Brasil. Ciência e Saúde Coletiva, v.3, n.10, p.651-657. 2005. OBSTETRÍCIA. O curso e sua história. Disponível em: Acesso em: 1 jan. 2018. s.d. » http://obstetriciasite.wixsite.com/cursoobstetricia/blank-cee5> ODENT, Michel. O renascimento do parto. Florianópolis: Saint Germain. 2002. ORTEGA, Francisco. Habermas versus Foucault: apontamentos para um debate impossível. Síntese, v.26, n.85, p.242-244. 1999. PELBART, Peter Pál. Vida nua, vida besta, uma vida. Trópico, p.1-5. Disponível em: Acesso em: 8 out. 2020. 2007. » https://territoriosdefilosofia.wordpress.com/2014/06/22/vida-nua-vida-besta-uma-vida-peter-pelbart> PROMUNDO. Movimento pelo direito ao parto humanizado e contra retrocesso da resolução do Cremerj acontece no Rio de Janeiro. Disponível em: Acesso em: 8 ago. 2016. 2016. » http://promundo.org.br/2016/03/01/movimento-pelo-direito-ao-parto-humanizado-e-contraretrocesso-da-resolucao-do-cremerj-acontece-no-rio-de-janeiro/> PULHEZ, Mariana. Mulheres mamíferas: práticas de maternidade ativa. Dissertação (Mestrado em Antropologia) – Universidade Estadual de Campinas, Campinas. 2015. REDE... Rede Nacional Feminista de Saúde, Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos. Humanização do parto. São Paulo: Rede Feminista de Saúde. 2002. RIESCO, Maria Luiza Gonzalez; TSUNECHIRO, Maria Alice. Formação profissional de obstetrizes e enfermeiras obstétricas: velhos problemas ou novas possibilidades? Revista Estudos Feministas, v.10, n.2, p.449-459. 2002. ROHDEN, Fabíola. Histórias em torno da medicalização da reprodução. Revista Gênero, v.6, n.1, p.213--224. 2006. ROHDEN, Fabíola. Uma ciência da diferença: sexo, contracepção e natalidade na medicina da mulher. Tese (Doutorado em Antropologia) – Museu Nacional/Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro. 2000. SCAVONE, Lucila. Dar a vida e cuidar da vida: feminismo e ciências sociais. São Paulo: Editora Unesp. 2004. SIMAS, Raquel. Doulas e o movimento pela humanização do parto: poder, gênero e a retórica do controle das emoções. Dissertação (Mestrado em Antropologia) – Universidade Federal Fluminense, Niterói. 2016. SIMMEL, Georg. Questões fundamentais da sociologia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 2006. VENTURA, Miriam et al. Judicialização da saúde, acesso à justiça e a efetividade do direito à saúde. Physis: Revista de Saúde Coletiva, v.20, n.1, p.78. 2010. NOTAS 1 “Ação civil pública é um instrumento processual, de ordem constitucional, destinado à defesa de interesses difusos e coletivos. Mesmo estando referida no capítulo da Constituição Federal relativo ao Ministério Público (artigo 129, inciso III)” (Jusbrasil, s.d.). 2 O processo pode ser visualizado na íntegra em: < http://old.cremerj.org.br/anexos/RES_266_Anexo.pdf> . Acesso em: 10 out. 2020. 3 No “art. 530 – Cabem embargos infringentes quando o acórdão não unânime houver reformado, em grau de apelação, a sentença de mérito, ou houver julgado procedente ação rescisória. Se o desacordo for parcial, os embargos serão restritos à matéria objeto da divergência” (Brasil, 23 ago. 2000).

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Corporeidades silenciadas: reflexões sobre as narrativas de mulheres violadas Corporealities silenced: reflections about the narratives of violated women Jane Felipe Beltrão Camille Gouveia Castelo Branco Barata Mariah Torres Aleixo Sobre os autores » Resumo » Abstract » Text» De traduções olvidadas e diálogos “surdos” » Os segredos da escuta » O veneno da dor » As categorias sobre violência: enredamentos na narrativa das mulheres » As categorias relativas à agência: a resistência das/entre mulheres » Entre oitivas e traduções » Por diálogos e justiças » Referências bibliográficas » Datas de Publicação » Histórico Resumo Refletir sobre as formas de narrar as violências enfrentadas por indígenas e quilombolas mulheres/mulheres indígenas e quilombolas é a proposta do texto para discutir a possibilidade de tradução etnográfica das categorias nativas em confronto com as categorias acadêmicas para referir as mulheres em situação de violência, identificando as agências das protagonistas. indígenas; quilombolas; violência Abstract Reflect about the ways of narrate the violence faced for indigenous and maroons women/women indigenous and maroons is the propositions of the article to discuss the possibility of ethnographic translation of native categories in confrontation with the academic categories to refer women in violence situations, identify the agencies of the protagonists indigenous; maroons; violence De traduções olvidadas e diálogos “surdos” No ensaio que hoje pode ser considerado clássico para o que se convencionou chamar Antropologia Jurídica ou Antropologia do Direito2 , Geertz (2013) enuncia que o Direito é construído à luz de saberes e artesanatos locais, isto é, tem a ver com a cultura na qual ele tem vida, onde “funciona.” Segundo o autor, há diversos sentidos de direito e justiça – o que ele denomina de sensibilidades jurídicas – as quais, no contexto contemporâneo, são obrigadas a conversar, em suas palavras, “... uma iluminando o que a outra obscurece.” (2013, p. 237) De acordo com essa afirmação, o estudo e a prática do Direito devem ser feitos por meio da tradução cultural, buscando compreender as sensibilidades jurídicas que estão em jogo nas contendas, seja aquelas levadas à justiça estatal, seja as que são discutidas e resolvidas à luz das normas comunitárias e, principalmente, as que caminham na fronteira entre tais normatividades. Partimos desse pressuposto para compreender as maneiras pelas quais mulheres indígenas e quilombolas/indígenas e quilombolas mulheres3 da Amazônia paraense resistem às violências do cotidiano e perscrutar suas sensibilidades em meio às situações de violência. Não se trata aqui de analisar estratégias de movimentos de mulheres indígenas e/ou quilombolas para conseguir alcançar suas reivindicações políticas, o que não deixaria de ser importante objeto de reflexão, mas sim de entender as próprias corporeidades das protagonistas como estratégias de resistência. Esta última, que pode parecer mais individualizada e circunstancial num primeiro olhar, ganha contornos coletivos quando se observa o compartilhamento de histórias, as redes de ajuda e solidariedade criadas pelas mulheres, entre outras agências, como veremos a seguir. Temos em conta que esse diálogo entre noções de justiça não ocorre com paridade de armas, pois o Estado brasileiro se constituiu olvidando etnicidades e engendrando políticas de homogeneização e integração dos grupos diferenciados à “sociedade nacional.” A conversa entre as sensibilidades jurídicas no país ocorre na forma do que Yrigoyen Fajardo (2011) denomina pluralismo jurídico subordinado colonial, isto é, de modo a não reconhecer noções de direito que não sejam as provenientes do Estado. Quando se pensa em questões relativas às mulheres etnicamente diferenciadas a questão se complexifica. A promulgação de leis específicas às mulheres, que consideram a violência como crime4 , fruto de anos de reivindicações e estudos promovidos por organizações e coletivos feministas, diz pouco sobre diferenças de ordem cultural, étnica e racial. Diante disso, compreender noções de violência bem como as estratégias de resistência das protagonistas se impõe. Os segredos da escuta Assim, nosso objetivo é refletir sobre as formas de narrar a violência que atinge os corpos das interlocutoras que pertencem a povos indígenas e coletivos quilombolas e debater acerca das possibilidades de tradução etnográfica a partir da identificação das categorias nativas que compõem a enunciação das interlocutoras, considerando as diferenciadas noções de justiça presentes entre as mulheres que emprestam seus depoimentos às autoras do texto. Para alcance dos objetivos, procura-se compreender como se dá a construção da corporeidade entre as mulheres indígenas e quilombolas/indígenas e quilombolas mulheres, pela possibilidade de demonstrar como o corpo se apresenta entre elas como território privilegiado de resistência e luta. A marca do presente trabalho são as reflexões que ressaltam e problematizam as categorias que integram a epistemologia e o olhar nativo sobre corpo e violência. Para os limites da reflexão proposta, é importante esclarecer que os depoimentos oferecidos pelas interlocutoras foram ditos às pesquisadoras em diversos momentos, os quais compreendem um lastro de 15 anos de pesquisa, sem que estas tivessem a intenção de trabalhar especificamente violência e violação de corpos, entretanto, os depoimentos foram como que aflorando pela impossibilidade – estatal e/ou comunitária – de oitiva das mulheres em situação de violência. Selecionou-se depoimentos de mulheres indígenas pertencentes aos povos Tembé Tenetehara5 , hoje moradores do município de Santa Maria do Pará, Xipaya6 e Kuruaya7 que vivem no médio Xingu e, no caso das quilombolas, selecionamos as interlocutoras moradoras das diversas comunidades localizadas no arquipélago do Marajó, também no estado do Pará. Destacam-se trajetórias e memórias que marcam de modo indelével o etnocídio praticado via colonização (Beltrão, 2012), que até o presente atinge os corpos e as vidas de pessoas indígenas e quilombolas via colonialidade.8 Nesse sentido, é latente na narrativa das interlocutoras a referência ao processo de expulsão territorial, sequestro de crianças indígenas e quilombolas pela ação missionária e/ou do Estado, tentativas reiteradas e violentas de genocídio, em face da tentativa de homogeneização e apagamento das pertenças. Vale, porém, ressaltar que a colonialidade incide de forma específica e brutal necessariamente sobre os corpos das mulheres, pois esta, segundo Lugones (2008) , se instituiu também como colonialidade gênero, que instituiu o sistema de gênero colonial/moderno, baseado nas dicotomias homem/mulher e público/privado, como o padrão. Isso ocultou sistemas de organização dos “mundos sexuais” nativos, em que muitas vezes as fronteiras entre masculino e feminino eram fluídas e as mulheres exerciam papéis importantes na vida coletiva. Não tratamos aqui de perscrutar esses sistemas “originais” e nem acreditamos que, hoje, isso seja possível. Porém, importa ter isso em consideração para um olhar etnográfico mais apurado. O ponto nevrálgico, locus em que os caminhos etnográficos se tornam mais “nebulosos”: ter o corpo marcado, como é o caso de indígenas e quilombolas mulheres/mulheres indígenas e quilombolas, pela violência física e sexual, muitas vezes infringida pelos próprios “parentes”, ou ainda por pessoas não indígenas e quilombolas, fato que mobiliza sentimentos como dor, sofrimento e vergonha. A possibilidade de ouvir (com tudo o que o ato da escuta representa para a Antropologia) implica em cuidados9 redobrados na interpretação de atos e falas que não são ditos a qualquer pessoa, nem em qualquer lugar. Os processos de violação dos corpos, vividos como eventos devastadores, segundo as interlocutoras, também formam seus modos de narrar, de liderar e de agir politicamente. De alguma forma, somos “ouvintes” privilegiadas, considerando a confiança com a qual fomos brindadas, portanto nosso compromisso com a ocultação das identidades é fato. O veneno da dor Veena Das (2008a), em seus escritos, problematiza a correlação entre dor e linguagem. Segundo a autora, por meio da expressão da dor, é possível sair da privacidade sufocante que ela produz na vítima. De acordo com Das (2008a), eventos devastadores produzem um tipo de conhecimento que só é alcançado pela experimentação do sofrimento, um conhecimento venenoso. Portanto, violências extremas não seriam apenas responsáveis pela destruição de vidas e corpos. Atuam, também, na construção de sujeitos e linguagens da dor. A enunciação da dor pede, portanto, admissão e reconhecimento, o que nem sempre ocorre. Trata-se, nos termos da autora, de sentir a dor no corpo do outro. Essa é a proposta ao fazer antropológico, requisitado de forma envergonhada, mas insistente por nossas interlocutoras. De acordo com Michael Taussig (1993), a reprodução da imagem dos povos indígenas como selvagens, irracionais e violentos é o que possibilita a propagação do terror colonial. E no caso dos coletivos quilombolas a estratégia de resistência e luta dos negros é imperdoável ao mundo colonial, afinal, os africanos são equiparadamente considerados, como os indígenas, pessoas desprezíveis. Trata-se uma operação mimética por parte do colonizador, que conduz a atos de extrema violência, não importando se esse imaginário é verdadeiro ou não. As culturas do terror criam, desse modo, o que o autor denomina como espaços de morte, nos quais indígenas, africanos e brancos viram nascer o Novo Mundo. Segundo Taussig (1993) o terror é o mediador por excelência da hegemonia colonial e acrescenta-se da discriminação presente em nossa sociedade. O autor afirma ainda que “... as culturas do terror são nutridas pelo entremesclar do silêncio e do mito.” (Taussig, 1993, 30) Os efeitos paralisantes e silenciadores do terror encontrariam na narrativa sua primeira possibilidade de cura. Quando decidiram falar sobre as violências que marcaram de forma mais ou menos severa suas trajetórias, nossas interlocutoras começaram a vencer a primeira imposição do terror, o silêncio. Como diz Maria Aparecida, quilombola, que por ser estudante universitária, escreveu seu depoimento: “não vou falar e também nunca escrevi, mas faço [o texto] porque não consigo explicar porque aconteceu comigo, talvez não haja explicação, e mesmo que tivesse jamais iria me fazer esquecer aquele homem imundo que me rasgou e tudo que aconteceu comigo. Neste caso, a forma de prevenção pra que não possa acontecer com outras mulheres é contar e contar do massacre que sofri. Mas para isso tenho que ter coragem para dar o testemunho, mas tenho muita vergonha por isso escrevo. Peço que a senhora conte, leve adiante, o massacre não pode continuar.” Para compreender o que diz Taussig (1993), traz-se à consideração e em complemento à Maria Aparecida, o depoimento de Maria Dolores, de pertença Kuruaya, que narra seu pânico no dia da violação, praticada dentro de sua casa, na frente do marido e das filhas, que à época tinham respectivamente oito anos e dois anos: “Dormi, como todas as noites, com meu marido e minhas filhas na minha cama. De madrugada acordei e levei o maior susto da minha vida, me deparei com um homem passando da sala pra cozinha, pois a porta do quarto ficava entre aberta durante a noite, então no primeiro momento imaginei que pudesse ser alguém de fora, pensei que fosse meu marido, então olhei na cama e vi as meninas e ele, percebi que tinha alguém na casa e não era o meu marido, ele dormia com as crianças. Logo depois minha filha de oito anos acordou e percebeu que eu estava bastante assustada e nervosa, então falei que tinha alguém na casa, pedi que ela não fizesse escândalo. Na hora, eu só pedia a Deus proteção pra minha família e, ao mesmo tempo, sem saber o que fazer e como agir naquela situação de angústia e muito muito medo.” Na sequência dos acontecimentos, Dolores se apercebe do perigo e evoca Deus: “... com toda Tua sabedoria me traz tranquilidade e, nas minhas orações, pedi que Deus fizesse aquela pessoa ter compaixão e não fizesse nada com meu marido e com as minhas filhas, eu coloquei minha vida nas mãos Dele. Eu dizia: Deus coloco minha família em suas mãos me proteja e me ilumine nesta noite, pois sei que corro perigo, me abençoe, te peço em amém. Dona a senhora já teve medo?” Dolores prossegue a narrativa, ofegante, e esclarece, “... agradeço todos os dias a Deus, eu esqueci parcialmente o fato, só que por mais que os anos passem, eu não consigo falar com as pessoas sobre o assunto, por medo e até mesmo vergonha.” O relato foi adiante, entrecortado pelo choro às vezes discreto, outras vezes convulsivo a ponto de interromper a narrativa. Ela segurava as minhas mãos10 com força, de certo ainda sentia pânico e as marcas corporais que se apresentavam vivas, intensas! O relato é bastante longo, mas importante para compreensão da dor, silenciada pelas circunstância e sobretudo pela vergonha. Diz a Kuruaya: “... trabalhei o dia inteiro, sou professora no bairro dos índios, local tomado pela violência. Nunca tive medo de nada. A casa é pequenininha. Toda noite eu tenho o costume de verificar portas e janelas, e nesse dia não foi diferente, entretanto nunca imaginei que alguém pudesse entrar na casa de alguém pelo telhado, por onde entrou o bandido. Quando me dei conta do perigo fingi que estava dormindo e observei por baixo do travesseiro que ele [o bandido] se aproximava e logo entrou no quarto meio agachado, ficando em volta do berço da minha filha. Chegou perto da cama e pôs a faca no meu pescoço, daí eu gritei e ele se debruçou em cima da cama fazendo ameaças, dizendo pra não gritar se não iria matar todo mundo caso eu não trepasse [mantivesse relações sexuais] com ele.” Dolores informou que ele estava visivelmente muito perturbado andando de um lado para o outro, parecia não saber o que fazer, aparentando transtornos. Tinha aparência de drogado, exalava mal cheiro, mas não parecia bêbado e nem cheirava a álcool. Ela continua: “... depois da ronda pela casa, ele saiu um momento do quarto e eu disse ao meu marido finge que dorme e cuida das meninas, pois ele vai voltar. Minha filha que estava acordada chorava muito e falei pra ela ficar bem caladinha como se estivesse dormindo foi o que ela fez, ficou quietinha abraçada à irmã e ao pai. Ele voltou e me obrigou a manter relações sexuais com ele. Sem saber o que fazer, pedia ajuda a Deus. Aquilo foi uma humilhação muito grande, na minha cama, com o meu marido vendo tudo e as minhas filhas então? Até hoje não sei “transar” como antes, a lembrança me perturba, tenho problemas, passo mal, meu marido não se conforma, reclama. Temo que me abandone por isso. Com os olhos distantes, como se voltasse à cena do crime, Dolores informa: “... pela conversa dele, percebi que ele não falava coisa com coisa, às vezes parecia tranquilo, daí a pouco se exaltava e com a faca na mão, junto do meu pescoço. Que medo! Quando ele falou que iria fazer sexo comigo, tornei a me apavorar e, na hora, pensei na família e o quanto seria pior se fossem com as minhas filhas, pensei que era melhor eu ceder do que ele fazer algo pior conosco, ele sentou na cama e falou que não era pra eu gritar, era melhor pra mim. Ele se serviu de mim duas vezes e perguntava, gostou cachorra, tu foste pega no dente, índia é tudo assim ... Eu desesperei, além de me usar me humilhava e minhas filhas e meu marido assistindo, acho que a pequena não acordou, nem sei ... quando percebi que ele tinha saído da minha casa parece que o mundo caiu sobre mim, não tinha reação de nada lembro que peguei o celular, mas não tinha condições de ligar pra ninguém, acho que ainda não tenho mundo.” Abalada, Dolores confessou que teve dificuldade de identificar o criminoso, mas o fez. Ele respondeu processo e foi condenado, o fantasma à época era a saída do agressor da cadeia. Ela ainda vive aos sobressaltos, pois se aproxima o final do cumprimento da pena. As categorias sobre violência: enredamentos na narrativa das mulheres Nos diálogos estabelecidos com as interlocutoras é possível detectar em seus depoimentos e mesmo discurso de indígenas e quilombolas, uma série de categorias a respeito de eventos que, do ponto de vista antropológico, poderiam ser definidos analiticamente como situações de violência, embora dificilmente nossas interlocutoras tenham usado explicitamente o termo violência, as protagonistas referiram-se a todo momento a situações que atingiam seus corpos individual e coletivamente. Os corpos são atingidos de forma coletiva na medida em que a corporeidade e construída socialmente e as violações são estruturais e não individuais, além de engendrarem dor e resistências. Os fatos narrados aproximam-se da definição de violência proposta por Paula Lacerda (2015) que a entende como: [...] um amplo conjunto de situações que poderiam ser percebidas, de outro ponto de vista, como ‘causadoras de sofrimento’, pessoas se apresentam como ‘vítimas de violação de direitos’, o que as transforma em sujeito e potencializa o alcance de suas reivindicações.” (2008, 28) A primeira categoria que se refere a tais processos diz respeito a violência enfrentada coletivamente pelo povo Tembé Tenetehara na Colônia Santo Antônio do Prata, educandário que recebia as crianças indígenas sequestradas de suas comunidades e apartadas de seus parentes para serem educadas, catequizadas e “civilizadas” com base na pedagogia cristã dos missionários Capuchinhos. Posteriormente, a Colônia foi transformada em Leprosário e a ameaça de contrair a doença afastou ainda mais os Tembé Tenetehara do território que tradicionalmente ocupavam. No período de instalação do Leprosário, conforme conta Dona Maria Joana, circulava na região o boato de que era possível curar a hanseníase se o doente comesse o fígado de uma pessoa saudável. Na época chegaram a ser encontrados na mata cadáveres com o fígado retirado, o que reforçava ainda mais o temor de que uma das pessoas a serem mortas pudessem ser Tembé Tenetehara. É desse cenário que emerge a categoria massacre: as interlocutoras constantemente reafirmam, ao dizer dessas memórias que “o nosso povo foi muito massacrado no Prata”. A noção de massacre parece elucidar mais enfaticamente os acontecimentos que a categoria violência, uma vez que as violações enfrentadas coletivamente pelos Tembé Tenetehara – ditos de Santa Maria – incluem espoliação territorial, epistemicídio, quebra dos laços de parentesco e, em última instância, o adoecimento e a morte dos membros do povo. O mesmo ocorre com as mulheres Xipaya e Kuruaya que, expulsas de seus territórios no médio Xingu, vieram à cidade e vivem presas a espaços, onde sequer podiam, há 10 anos, se declarar indígenas. Eram, como referem algumas das interlocutoras, impedidas de falar a língua materna, enfrentaram o massacre da discriminação, produzida pelo racismo que se apresenta em estratégias de dominação de ordem material e ideológica, utilizada pelas estruturas coloniais para manter status privilegiado de membros do grupo dominante, produzindo a perene subalternidade dos povos etnicamente diferenciados (Moreira, 2016 ), não fosse a luta que empreendem diuturnamente. No caso das quilombolas o massacre foi/é pesado e reproduzido nas diversas narrativas. A segunda categoria que diz de processos de violência é a de escravidão. Conforme explica Maria da Paz: “os antigos do nosso povo tratavam a mulher como escrava. Ela só servia para ter filho, cuidar da casa e da roça, ser usada pelo marido e trabalhar pro pai. Hoje não pode mais ser assim, mas muitos homens no nosso povo e de fora querem tratar as mulheres nessa escravidão.” A categoria escravidão parece dizer respeito a crítica que as mulheres indígenas fazem sobre a condição feminina dentro das diversas comunidades. O entendimento de que as mulheres eram e são tratadas como escravas, guarda em seu interior a reivindicação de que sejam entendidas como sujeitos, dotadas de direitos, vontades e voz. Tal categoria diz respeito a forma como as interlocutoras pensam a mulheridade e a crítica que fazem por não serem reconhecidas de tal forma. Entre as quilombolas a condição de escrava é mencionada por conta das avós e das bisavós, entretanto, algumas vezes, a condição passada é negada para não comprometer a luta e favorecer a discriminação. A terceira categoria nos parece a que possui maior tensão ao ser utilizada analiticamente: trata-se da categoria maldade. Durante muito tempo do percurso das pesquisas que apontavam para as categorias nativas, evitou-se conjecturar sobre a mesma, por receio de que escrever sobre o assunto pudesse “dar munição” para os antagonistas em relação aos povos tradicionais. Entretanto, ao buscar as noções de justiça que permitem a luta política das mulheres, a maldade atravessou o percurso da problematização. As interlocutoras com quem se dialogou nomeiam como “homens maus” aqueles que agridem seus corpos, física e/ou sexualmente. E, a essas agressões, as mulheres indígenas dão o nome de maldades. As quilombolas, algumas vezes referem-se às violações dos homens maus, como malinesas. Denominam malinesas às penas impostas, pelos encantados, a homens (e também à mulheres) que vivem fora das normas tradicionais, malinesas que trazem como consequência efeitos deletérios às relações sociais. Malinos são os encantados que castigam os transgressores com o mal, tornando-os perniciosos ao convívio social. Os encantados que “jogam a malinesa” vivem nas matas e nos cursos d’água e por serem donos dos espaços, exigem reverências e cumprimento de obrigações, nem sempre observadas pelos homens maus que terminam “malinando” com as mulheres (ou mulheres que malinam com homens). No caso da maldade ou da malinesa entre indígenas e quilombolas, uma e outra não integram a essência dos humanos, são tomadas pelas interlocutoras como condição que, dependendo do comportamento, pode ser afastada dos humanos, sempre que, arrependidos, voltem a cumprir as obrigações com os encantados. A tensão reside no fato de que muitas vezes os homens maus ou malinos podem ser companheiros das mulheres indígenas e quilombolas ou lideranças dos referidos coletivos. Duas situações parecem ilustrativas de como a categoria maldade é posta em ação. A primeira delas diz respeito a história contada por Maria Laura, que teve a filha Maria Conceição sequestrada por um homem que circulava na comunidade. A menina passou oito dias em cativeiro submetida a violência física e sexual pelo agressor. Por fim, depois de espancá-la quase até a morte, o criminoso abandonou-a sozinha na casa onde a escondia. Embora Maria Conceição tenha sido encontrada com vida e acolhida sob o modo Tembé de cuidar do corpo, a marca da violência permanece para o resto da vida e o fato de o agressor ter muito dinheiro, à época, assegurou-lhe a impunidade. Ao contar a história de sua filha, Maria Laura referiu-se ao criminoso como um “anjo mau”, aproximando-o do mito bíblico que conta a história de Lúcifer. A mesma categoria foi utilizada pela filha de Maria da Paz, Maria Lídia, para referir-se ao seu pai. Na época ele se encontrava doente, com desmaios e fraquezas constantes, e as causas não puderam ser identificadas pelos médicos que a família procurou. Maria da Paz, desde que a conhecemos, narra as agressões cometidas pelo marido, que espancava ela e os filhos e dizia constantemente a todos palavras duras, que “machucavam” quem as ouvia. Conversando com Maria da Paz e Maria Lídia, a filha afirmou que a doença do pai era um “castigo por todas as maldades que ele fez com a gente”, com o que Maria da Paz concordou. A noção de maldade parece ter um sentido diferenciado para as mulheres indígenas se comparada aos usos que assume na sociedade dita ocidental. Enquanto no ocidente a maldade é frequentemente tomada como propriedade de pessoas perversas, entre as protagonistas indígenas a categoria parece se aproximar do que a Antropologia e os movimentos de mulheres tem chamado de machismo ou violência de gênero. Atentar para o uso diferenciado do termo pelas interlocutoras só foi possível em função do envolvimento etnográfico no contexto em que estas se inserem e por meio do diálogo e inflexão mantida pelas autoras. Por fim, a última categoria percebida como o sinônimo nativo para a violência é a de machucar. Frequentemente usada na sociedade ocidental para designar ferimentos físicos, sejam acidentais ou infringidos, machucar entre as mulheres indígenas refere-se ao ato de dizer palavras ofensivas e duras, que atacam a honra e o caráter das pessoas atingidas. Nos relatos de violência dentro das relações com os maridos – sejam eles indígenas ou não – as interlocutoras afirmam que as palavras duras são tão dolorosas e machucam tanto quanto agressões físicas. Tendo em conta a lei brasileira sobre violência doméstica, temos que o “machucar” talvez possa ser compreendido como violência psicológica11 , uma entre as possibilidades de violência contra a mulher, deslindadas nesse diploma legal. Entre as quilombolas há narrativas que informam que as palavras ofendem mais que serem marcadas por paus, chicotes e outros instrumentos de agressão. As marcas físicas podem ser tratadas, curadas, mesmo que levem tempo, mas as marcas dos machucados ferem a alma (para além do corpo) e permanecem na memória das interlocutoras e nada nem ninguém faz desaparecer. Abaixo as correspondências relativas às categorias éticas e êmicas. Thumbnail  Quadro 1 : Categorias éticas e êmicas sobre violência As categorias relativas à agência: a resistência das/entre mulheres Uma das principais questões que se tornaram visíveis no diálogo com as interlocutoras diz respeito ao fato de que as violações que atingem os corpos das mulheres jamais foram aceitas de forma passiva, elas não se deixam paralisar. Os processos de agência – aqui utilizada no sentido atribuído por Pierre Bourdieu (1983) e Anthony Giddens (1984) – e resistência, sempre estiveram presentes nas trajetórias das indígenas e quilombolas. O silenciamentos via etnocídio atingiu seus corpos e vidas, mas não se consolidou na medida em que as protagonistas sempre estiveram dispostas a buscar alternativas e resisitir. É com o intuito de romper com o etnocídio e a destituição da memória de seus coletivos que as mulheres indígenas ou quilombolas contam histórias de extrema violência no contexto da pesquisa; supomos que elas acreditam que por meio do registro na produção antropológica, as interlocutoras mantém a expectativa de que as memórias não sejam esquecidas nem apagadas, mas que, pelo contrário, permaneçam vivas na luta por direitos coletivos e por reconhecimento. Relatar as estratégias de agência e resistência e o protagonismo das interlocutoras frente a situações de poder assimétricas coaduna-se com o objetivo de “contar para prevenir”, como disse Maria dos Anjos, há anos, quando em uma roda de conversa aconselhou as jovens presentes: “... não guardem segredos, eles envenenam a vida. Não façam como eu que evitei contar as malinesas, daí não consegui domei os maus [homens] da minha vida. Nem os de casa, nem os da rua e ninguém deve machucar nossas almas, somos pessoas, [e olhando firme as meninas moças da roda] devemos reagir, assim as malinesas vão pra longe da comunidade.” De fato, contar a história parece uma das principais categorias que distinguem a agência das mulheres diante da violência sofrida. O trabalho das autoras, membros da equipe de antropólogos do Grupo de Pesquisa Cidade, Aldeia & Patrimônio só teve início a partir do convite dos membros da comunidade para que os pesquisadores escrevessem a história do povo Tembé Tenetehara e de outros povos indígenas e quilombolas, como informamos à partida. Quando na comunidade, muitos pesquisadores foram “intimados” a entrevistar os membros mais velhos da comunidade, para garantir que as histórias que estes se lembravam fossem registradas antes que se perdessem com seu falecimento. Maria Laura, com o início das pesquisas na comunidade, decidiu começar a escrever diários, onde poderia registrar suas memórias pessoais e coletivas e repassar para os pesquisadores do grupo. Outra categoria importante nos processos de agência das mulheres indígenas, especialmente as Tembé, é a do cuidado. Conforme elucida Maria Laura: “... o nosso povo foi muito massacrado no Prata. Morreu muita gente. A gente jamais podia dizer que era índio, até hoje nós vivemos discriminados. Hoje tá muito melhor, a gente vive junto, faz nossas festas, cuida uns dos outros e o nosso povo se alegra. Mas vive com a discriminação. Não podemos usar uma roupa, que já dizem que nós não somos índios. Eu vou dizer que eu sou uma portuguesa, sendo que eu não sou? Até tem gente que diz, mas eu não digo. Eu digo o que eu sou, eu sou Tembé. Mas tem que viver com a discriminação.” Ao contrário da visão de cuidado amplamente discutida na literatura produzida na área da Enfermagem, pautada na atenção e medicalização de pessoas com doenças, ou deficiência, o cuidado tembé e das demais etnias é holístico e alimenta o corpo de forma completa, por meio do sistema tradicional de ação para saúde, que contempla não apenas o cuidado com o corpo, mas a proteção espiritual, e as lutas políticas por uma vida melhor, que acarretam uma corporeidade saudável. E esse corpo não se estrutura desconectado do ser indígena, com toda a carga política e epistemológica que a identidade enseja para as tembé, xipaya e kuruaya. Cuidar de si e dos seus implica em se proteger de violações e fortalecer o grupo para que as lutas políticas possam ser continuadas. Nesse sentido, o cuidado de si constitui um empreendimento que conforma resistências políticas, materiais e epistemológicas, em um contexto no qual o corpo vem à cena tanto como território de lutas e afirmações identitárias, quanto como alvo de opressões e estigmas. Com as mulheres quilombolas a situação é semelhante, sempre que alguém se machuca a cura vem via sistema tradicional de ação para saúde, mesmo que a pessoa machucada e violada receba atendimento dentro do sistema ocidental de ação para saúde. Outra categoria percebida como forma de agência das mulheres nas tensões que envolvem os maridos diz respeito a educação dos filhos. Segundo Maria Laura: “... a mulher é que educa o filho. Se ela não mandar ele ir lá, tomar a bença do pai, fazer um carinho no pai, ele não vai, não, fica na dele. Foi por causa de um dos meus filhos que meu marido parou de me bater. Um dia, ele era novinho, magro, magro... Ele virou pro pai e falou: “O senhor nunca mais vai bater na mamãe, hoje foi o último dia”. O pai perguntou: “E o que tu vai fazer?”. E ele disse: “Eu não sei, mas o senhor não encosta mais um dedo nela”. Depois disso, nunca mais ele me bateu.” Uma das filhas de Maria Laura, ao ver o pai com outras mulheres na rua: “... fazia um escândalo, batia nela. Uma vez enchi as coisas da mulher de areia, ficou tudo sujo. Depois ele metia a porrada em mim quando chegava em casa, mas eu nunca deixava barato.” Atualmente as crianças que na infância enfrentaram os pais em defesa de suas mães, criam redes de apoio e acolhimento das indígenas mulheres em situação de violência, seja recebendo-as em suas casas, rezando por elas ou conversando com os maridos e, muitas vezes constrangendo-os perante os demais parentes. Maria José, quilombola da comunidade Maria me ajude constrangia o marido, mostrando de casa em casa os ferimentos produzidos pelas surras que levava, porque teimava em estudar. A peregrinação de casa em casa produzia o recolhimento do agressor que, alcoolizado, tinha produzido as maldades, malinado a protagonista. Por fim, a última categoria percebida como característica da agência empreendida pelas mulheres tembé em relação a violência diz respeito ao processo de fechar o corpo. Prática também verificada entre as quilombolas. Em um contexto em que as violações de direitos ocorridas em hospitais são reais e prováveis, fechar o corpo contra coisas ruins é essencial. Entre as práticas frequentes, temos: rezar na cabeça de criança com febre; ministrar ervas medicinais para pessoas que adoecem ou são envenenadas; manter a gravidez ou interrompê-la quando as vidas da mãe e da criança estão ameaçadas; são exemplos de saberes e fazeres acionados no agenciamento de situações consideradas de risco, em que se sabe que o acesso ao sistema ocidental de ação para saúde não responde satisfatoriamente ou há dificuldades em acessá-lo. Fechar o corpo entre os povos tradicionais implica proteger as pessoas da comunidade tanto no plano físico quanto no espiritual. Os rituais podem ou não estar relacionados à alguma forma de religiosidade indígena afro-brasileira ou ocidental. Uma das interlocutoras, reconhecida “por ser uma das mais antigas dos nossos antepassados”, entre os Tembé, relata que nos tempos antigos, quando houve grande incidência de hanseníase na região, ela conseguiu paralisar o avanço da doença no corpo de uma das pessoas da comunidade utilizando as propriedades do mucuracaá, uma planta medicinal que também é utilizada entre os tembé para combater o mau-olhado. Outras indígenas afirmam que uma mulher grávida que estivesse sob os cuidados de Maria Carmen estaria em boas mãos, uma vez que ela acompanhava a gestação desde os primeiros meses até a hora do parto, no qual a mulher era virada de lado e dava a luz enquanto a interlocutora rezava em sua barriga. Despois do parto, a profissional de saúde permanecia na casa da parturiente até o resguardo terminar, portanto eram quarenta dias de cuidados diferenciados. Durante uma das idas a campo, a mãe de uma criança que havia nascido há pouco tempo encontrava-se aflita, pois o bebê não parava de chorar e não costumava ser assim. Nesse momento, Maria Carmen, sogra da mãe da criança, entrava na casa e, ao se dar conta da situação, perguntou se a menina havia ido tomar banho de igarapé. Como a resposta foi afirmativa, a interlocutora disse: “... minha filha pegue alho, amasse e misture com álcool e deixe um tempo. Depois passe com o dedo na palma da mão da neném, na sola do pé, no braço e na coxa, em forma de cruz. Vai ficar um cheirinho ruim, mas não tem problema, ela vai melhorar. Ela deve ter visto alguma coisa no igarapé, criança é muito sensível, parece um pintinho novo. Quando eu era pequena, minha tia levava a gente pro igarapé, mas ela entrava primeiro, pedia licença pra mãe da água pra gente entrar e jogava o alho na água, aí o banho era sossegado.” O alho é antídoto (combate o veneno) para os encantados que “jogam malinesa” quando as pessoas não reconhecem as regras, que não se referem apenas aos espaços de domínio dos mesmos, mas às horas proibidas do dia e da noite. A paçoca de gergelim preto “pisada” com hortelã é utilizada para “botar pra fora” (as indígenas não utilizam o termo “aborto”, as quilombolas usam expulsar), principalmente quando a gravidez ameaça a vida da mãe ou quando o parto é de risco. Para mulheres grávidas que sentem dores, ministra-se chá de gengibre. Para inflamações, especialmente em casos de problemas de próstata, o caroço de abacate mostra-se eficaz. Crianças, quando morrem antes do batismo, segundo os católicos, choram durante sete dias e precisam ser batizados para que “descansem”. A última prática mostra-se elucidativa da forma tembé de pensar a construção da “pessoa”, a partir do ato de batizar a criança morta. Para os Tembé Tenetehara não se deve negar às pessoas mortas, quando oriundas de famílias cristãs, o direito ao ritual de batismo que as forma e legitima. As situações acima descritas, integrantes das observações de campo, revelam que mesmo enfrentando situações de precariedade e violência, as mulheres exercem seu protagonismo, instituindo o “ser sujeito” e encontram alternativas para agenciar situações de violência. O corpo e as múltiplas corporeidades que coexistem entre as interlocutoras são territórios privilegiados da resistência de indígenas e quilombolas mulheres e das formas de cuidar de si mesmas. Thumbnail  Quadro 2 : Categorias êmicas e éticas sobre agência Entre oitivas e traduções Os diálogos em campo demonstram que os atos e falas das interlocutoras são ferramentas importantes para a compreensão de suas realidades. Ao mesmo tempo, analisar o discurso no contexto das relações antropológicas passa a ser um desafio, na medida em que aponta para a necessidade de proceder o controle das dificuldades de tradução etnográfica, dos etnocentrismos ocidentais e do viés da colonialidade vigente. Em trabalho de grande influência e repercussão, Gayatri Spivak (2010) questiona criticamente a (im)possibilidade de fala de determinados grupos. A autora constata que os subalternos em geral, e o sujeito historicamente emudecido, a mulher subalterna em particular, foram e são, ao longo da história, mal compreendidos ou mal representados pelo interesse pessoal dos que têm poder para representar. A proposição instigante de Spivak (2010), além de elucidar silenciamentos, colonialismos e violências, também aduz escutas anti-hegemônicas, epistemologicamente desobedientes, pós-coloniais. Inspirada pela reflexão provocativa da filósofa indiana, Lacerda (2014) considera que em meio a tentativas de silenciamento, os grupos e sujeitos subalternizados – e esse é um deslocamento analítico fundamental para que a subalternidade não seja entendida como lugar paralisante e intransponível – estão falando. Superando a perspectiva colonialista que pretende “dar voz” aos grupos subalternizados por meio da pesquisa, Lacerda (2014) tensiona a questão que orienta Spivak (2010): como o não subalternizado, o privilegiado, pode escutar? As posições teórico-epistemológicas (que também possuem caráter político) adotadas na presente discussão objetivam favorecer a escuta etnográfica mais responsável, capaz de superar estereótipos de passividade e compreender indígenas e quilombolas como sujeitos de suas próprias histórias. A estruturação do olhar antropológico sobre o campo, em diálogo com os conceitos e categorias referidas, foi essencial para compreensão das interlocutoras como protagonistas de suas próprias histórias, não como vítimas passivas, desagenciadas e paralisadas diante de violações. Qualquer procedimento em sentido contrário seria uma prática etnocêntrica. Atentar para as narrativas das mulheres indígenas e quilombolas, a partir do que foi explicitado, é um esforço que vai além de retomar o protagonismo de vozes subalternizadas. Trata-se de uma tentativa de constituição de possibilidades de outra epistemologia, outras referências e sensibilidades, diferentes das que o pensamento colonial afirma serem as únicas dignas de serem aprendidas e respeitadas. A partir das falas desses sujeitos, confrontamos a tentativa histórica de epistemícidio (Santos, 2010) e assimilação que incide sobre os povos indígenas e quilombolas, e, mais especificamente sobre mulheres indígenas e quilombolas/ indígenas e quilombolas mulheres. Trata-se de uma opção metodológica que abriga dimensões e responsabilidades políticas, de contemplar enunciações ditas e tomadas como periféricas e arbitrariamente alijadas pelo pensamento ocidental e colonial. Por diálogos e justiças A diversidade das agências e possibilidades de justiça nos permite esterçar para diferentes lados saindo dos limites de nossos axiomas, verdades que consideramos inquestionáveis e supostamente válidas universalmente. Axiomas estes que muitas vezes são utilizadas como princípios que mantém privilégios de uns em detrimentos de outros secularmente subalternizados. Não se trata de atribuir valor superior aos conhecimentos tradicionais ou mesmo de aderir a eles, mas de considerá-los em diálogo para produzir a melhor justiça, sem diluí-los na ciência desenvolvida na academia. A importância das reflexões que se faz é tentar indicar que as agências das mulheres e modos diversos de conhecimentos, é indicar também que se pode pensar de outro modo e que os variados sistemas de justiça precisam, de fato, dialogar. Sabemos que os estudos acerca da violência de gênero no país muitas vezes utilizam o termo violência sem muita precisão, como se violência doméstica, violência intrafamiliar, violência contra a mulher, entre outros, fossem capazes de abarcar reflexões sobre realidades diversas. Fazer o esforço de compreender noções êmicas do termo afasta o perigo da reificação e induz a “diálogos ouvintes”, que postulamos aqui, em contraposição aos “diálogos surdos.” Ainda sobre a questão dos termos utilizados para abordar a violência, contemporaneamente tem se preferido falar em mulheres em situação de violência ao invés de violência contra a mulher, para indicar que a violência é transitória e não um destino que as mulheres devem cumprir (Campos, 2011). Além disso, a mudança de termo e, por conseguinte, de enfoque, impele a pensar a questão fora do molde algoz versus vítima, possibilitando compreender que, mesmo sendo vítima, especialmente num sentido jurídico-estatal, não significa não ter poder e força de resistir. As narrativas e corporeidades de mulheres indígenas e quilombolas/ indígenas e quilombolas mulheres desafiam compreensões do senso comum sobre situações de violência e nos fazem compreender que vítimas são sujeitos. Dessa forma, como sujeitos que são, devem poder acionar sistemas tradicionais de justiça ou mesmo a “justiça dos brancos”, como dizem algumas. Porém, a colonialidade, especialmente a de gênero (Lugones, 2008 ) cria contextos em que os dois lados olvidam as demandas pelo fim de maldades e malinesas. Referências bibliográficas ALEIXO, Mariah Torres. 2015. Indígenas e quilombolas icamiabas em situação de violência: rompendo fronteiras em busca de direitos Dissertação de mestrado, Programa de Pós-Graduação em Direito, UFPA. (Inédita) BELTRÃO, Jane Felipe. 2012. Histórias ‘em suspenso’: os Tembé ‘de Santa Maria’, estratégias de enfrentamento do etnocídio ‘cordial’. Revista História Hoje, São Paulo, v. 1, no 2, p. 195-212. BOURDIEU, Pierre. 1983. Esboço de uma teoria da prática In: ORTIZ, Renato (Org.). Pierre Bourdieu: sociologia São Paulo: Ática, p.46-81. BRASIL. Lei nº. 11.340 de 7 de agosto de 2006 Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm » http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm CAMPOS, Carmem Heim de. “Razão e sensibilidade: Teoria feminista do direito e Lei Maria da Penha.” In CAMPOS, Carmem Heim de. (Org.). Lei Maria da Penha comentada em uma perspectiva jurídico-feminista Rio de Janeiro. Lumen Juris, 2011. pp. 01-27. DAS, Veena. 2008a. El acto de presenciar. Violencia, conocimiento envenenado y subjetividad. In: ORTEGA, Francisco (Org.). Veena Das : sujetos del dolor, agentes de dignidad Bogotá: Universidad Nacional de Colombia, p 343-374. DAS, Veena. 2008. Lenguaje y cuerpo: transacciones en la construcción del dolor. In: ORTEGA, Francisco (Org.). Veena Das : sujetos del dolor, agentes de dignidad Bogotá: Universidad Nacional de Colombia, p 343-374. GIDDENS, Anthony. 1984. The constitution of society Cambridge: Polity. GUEERTZ, Clifford. 2013. O saber local: fatos e leis em uma perspectiva comparativa. In GUEERTZ, Clifford. O saber local – novos ensaios em antropologia interpretativa Petrópolis: Editora Vozes. LACERDA, Paula. 2014. Comunicação oral. In: Antopologia em Foco IV, Belém. LACERDA, Paula. 2015. Meninos de Altamira: violência, luta política e administração pública Rio de Janeiro: Garamond. LUGONES, María. 2008. Colonialidad y género. In Tabula Rasa, num. 9, julio-diciembre, Universidad Colegio Mayor de Cundinamarca, Colombia, p. 73-101. Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=39600906 Acesso em: 10.out.2013. » http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=39600906 Moreira, Adilson. 2016. Direito Discriminatório Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=TkgAEQtClRU Acesso em: 04.set.2016.

Distinção e capital cultural hoje Distinction and cultural capital today: introduction Edison Bertoncelo Michel Nicolau Netto Fábio RibeiroSOBRE OS AUTORES Neste dossiê, reunimos artigos que debatem a distinção no mundo contemporâneo, inspirados pelas pesquisas pioneiras realizadas desde a década de 1970 por Pierre Bourdieu e sua equipe. Como introdução, apresentamos um breve resumo da concepção bourdieusiana elaborada principalmente no texto clássico A distinção (Bourdieu, 1979), em que Bourdieu desenvolveu uma análise complexa e original da sociedade francesa a partir de abordagens metodológicas diversas. Em suas conclusões, enfatizou a importância do capital cultural, e do fenômeno associado da distinção, para estabelecer uma representação adequada do espaço social francês e suas hierarquias para além das análises tradicionais com foco apenas em questões econômicas no sentido estrito. Em seguida, faremos um resumo das discussões sobre o debate classe e cultura com base na leitura de uma série de textos que dialogam, mais ou menos criticamente, com Pierre Bourdieu e, em especial, com A distinção. A partir disso, apresentamos algumas implicações do que se expôs para pesquisas futuras, e destacamos as contribuições dos artigos que compõem este dossiê. Uma breve história d’A distinção Os trabalhos de Pierre Bourdieu sobre a relação entre classe, cultura e estilo de vida são o desenvolvimento de pesquisas anteriores feitas em geral sob encomenda de órgãos governamentais em busca de melhoria de políticas públicas. Em Os herdeiros (1964), Bourdieu e Jean-Claude Passeron observaram que, embora a escola pública francesa oferecesse condições similares de aprendizado, o desempenho dos alunos não era o mesmo. A diferença da origem de classe entre os que obtinham sucesso - e chegavam à universidade - e os que eram excluídos no processo precisava de uma explicação que não fosse baseada em preconceitos de classe. Os autores foram capazes de perceber que a suposta cultura universal ensinada nas escolas encontra direta correspondência com um conjunto de conhecimentos e valores típicos das classes dominantes. A socialização das crianças na cultura burguesa produzia uma experiência de continuidade entre a cultura escolar e a cultura familiar. Para explicar esse processo, Bourdieu e Passeron falam da incorporação de um capital linguístico pelas crianças com origem nas classes dominantes, que seria um conjunto de conhecimentos e competências linguísticas, estilos pessoais e atitudes (Lamont e Lareau, 1988), que criam um senso de pertencimento à escola. De forma correlata, a ausência desse capital produzia um estranhamento do ambiente escolar nas crianças oriundas de meios sociais não burgueses. A diferença em desempenho, portanto, pode ser explicada justamente pelo valor desse capital incorporado pela criança em sua socialização familiar. A relação entre escola, desempenho e origem de classe segue em A reprodução (1970). Ali, tanto quanto a partir da edição inglesa de 1979 de Os herdeiros (apudPrieur e Savage, 2013), o termo agora mobilizado é capital cultural, tido por Tony Bennett e Elizabeth Silva (2011, p. 429) como o mais criativo conceito do autor, de fato “um neologismo - e não uma reelaboração de um léxico herdado” como seria o caso de outros conceitos como campo e habitus. Simultaneamente, Bourdieu trabalhava com o universo das artes e percebia, de um lado, uma relação entre gosto e origem de classe (no caso o interesse pela fotografia, em Un art moyen, de 1965), e de outro a relação entre classe e as disposições para apreciação da arte (como no livro O amor pela arte, de 1966). Os trabalhos desenvolvidos na década de 1960 já se articulavam tanto na mente de Bourdieu quanto em suas intenções de pesquisa. Como revela Monique de Saint-Martin (2015), desde 1962 o autor francês organizava workshops para discutir os temas que em 1979 apareceriam em A distinção e que já começavam a aparecer nos textos aqui citados. Entre o final da década de 1960, com a fundação do Centre Européen de Sociologie (1968), e o começo da década seguinte, especialmente com a fundação da revista Actes de la Recherche en Sciences Sociales (1975), Bourdieu começa a adquirir condições materiais apropriadas para se lançar no plano audacioso de investigar a importância da cultura nos processos de reprodução de classe na sociedade francesa. Não se tratava mais de se pensar em espaços isolados da sociedade (na escola, no museu, na prática fotográfica), mas na sociedade de forma integral. O centro e a revista permitiram tanto um espaço de divulgação de pesquisas de interesse de seu diretor, quanto a reunião de jovens e talentosos pesquisadores, entre os quais alguns de seus antigos colaboradores, como Luc Boltanski, com quem publicou Un art moyen. Nesse momento, há uma intensificação de pesquisas e textos que vão desaguar n’A distinção, e o livro pode mesmo ser considerado “o ponto no qual pesquisa e artigos se encontram e interagem” (Saint-Martin, 2015). De fato, aparecem no livro pesquisas e reflexões anteriormente publicadas e que vão solidificando conceitos, hipóteses e metodologias. Seguindo a lista formulada por Saint-Martin, temos: “Disposition esthétique et compétence artistique” (Bourdieu, 1971), “Les fractions de la classe dominante et les modes d’appropriation des oeuvres d’art” (Bourdieu, 1974); “Anatomie du goût” (Bourdieu e Saint-Martin, 1976); “La production de la croyance” (Bourdieu, 1977a); “Titres et quartiers de noblesse culturelle: la critique sociale du jugement esthétique” (Bourdieu e Saint Martin, 1976); “Les stratégies de reconversion” (Bourdieu et al., 1973); “Questions de politique” (Bourdieu, 1977b), “Classement, déclassement, reclassement” (Bourdieu, 1978) e “Le couturier et sa griffe” (Bourdieu e Delsaut, 1975). Em “A anatomia do gosto”, de 1976, Bourdieu e Saint-Martin já constroem os espaços social e dos estilos de vida, sendo que muitos dos trechos desse ensaio aparecem integralmente ou em partes em A distinção. Bourdieu também se beneficiou do desenvolvimento da estatística, em especial da “escola francesa de análise de dados”, e das técnicas computacionais1. Na década de 1960, o grupo de Jean-Paul Benzécri cunhou o termo “análise de correspondências múltiplas”, utilizada por Bourdieu e Saint-Martin em “A anatomia do gosto” e por Bourdieu em A distinção, para a medição das distâncias relativas dos indivíduos no espaço social de acordo com o acúmulo e a estrutura de seus capitais, nessa ocasião, medindo-se os capitais econômico e cultural. É com base nessa técnica de análise de dados que Bourdieu e Saint-Martin são capazes de construir o espaço social francês e a ele sobrepor o espaço dos estilos de vida. É a coincidência entre as posições dos sujeitos de acordo com seus capitais (volume e estrutura) e a legitimidade de suas práticas culturais definidoras de seus estilos de vida que permitiu que Bourdieu lançasse a tese da homologia entre os espaços. Voltaremos à metodologia mais adiante nesta introdução, mas aqui destacamos que a possibilidade de se medirem as posições relativas dos sujeitos concretizava o pressuposto teórico de Bourdieu de que a sociedade é formada por posições objetivas relacionais, ou seja, as posições se definem umas em relação às outras. As “classes no papel” ou classes teóricas são o resultado desse esforço de classificação sociológica, a partir do qual é possível identificar conjuntos de agentes que ocupam posições relativas vizinhas no espaço social em função da distribuição dos capitais relevantes. As classes assim construídas diferem das classes preconcebidas ou pressupostas como em muitas correntes do marxismo e da economia prevalentes na época (ver Bourdieu, 2015, pp. 99-120). A estatística e a computação, assim como os estatísticos reunidos no Instituto Nacional de Estatística e dos Estudos Econômicos (INSEE) e no Centro de Pesquisa pelo Estudo e Observação das Condições de Vida (Crédoc), permitem a representação visual e geométrica da sociedade que Bourdieu e seus colegas descobriam empiricamente. Após A distinção, o tema do capital cultural permaneceu central na obra de Bourdieu, especialmente em suas grandes pesquisas dos anos 1980, Homo academicus (1984) e La noblesse d’État (1989), e foi desenvolvido também nas aulas de Bourdieu como membro do Collège de France. Nessas aulas, o sociólogo destaca as diferenças entre sua concepção e a ideia mais difundida na época de “capital humano”, associada a economistas como Gary Becker e Jacob Mincer, que buscava interpretar os resultados dos investimentos em educação apenas em relação à sua conversão direta em capital econômico. Já Bourdieu, como de costume, enfatizava o aspecto relacional e também temporal do conceito de capital cultural, que não pode ser reduzido diretamente a seu aspecto monetário (ver Bourdieu, 2016, pp. 239-257). Assim, fica mais fácil perceber a função teórica desempenhada pelo conceito de capital cultural, além da função metodológica já explicitada em obras como A distinção. Em termos teóricos, o capital cultural e sua relação com os conceitos adicionais de habitus e capital simbólico permitem a Bourdieu afastar-se tanto de uma abordagem enfatizada em particular na economia, na qual o fundamento da ação social está em indivíduos racionais que buscam maximizar seu interesse (ver Bourdieu, 2017, passim), quanto de abordagens de inspiração durkheimiana que localizam aquilo que é próprio ao social e à sociologia em instituições completamente externas aos indivíduos (Bourdieu, 2016, pp. 229-262). Da mesma maneira, a ideia de distinção ganha maior aporte teórico na abordagem bourdieusiana como o fenômeno por excelência que permite àqueles que ocupam posições dominantes em determinados campos não só recolher e acumular lucros de distinção, mas também, através das lutas dentro do campo, estabelecer a própria estrutura do campo, ou seja, a hierarquia que favoreça a reprodução do capital que eles próprios possuem - num processo em que, como Bourdieu enfatiza, nada precisa acontecer intencionalmente, na lógica do complô (Bourdieu, 2016, p. 291). Críticas e reflexões a partir dos debates sobre A distinção Dessa forma, é possível dizer que não só A distinção é o resultado de quase duas décadas de um trabalho coletivo que reuniu tanto indivíduos quanto instituições francesas, mas também continuou alimentando as pesquisas e reflexões de Bourdieu no decorrer de sua carreira. E seu resultado é proporcional ao tamanho dos esforços e trabalhos despendidos. O estudo da relação entre classe e cultura tem uma longa tradição na sociologia e remonta ao menos a Weber, Veblen, Simmel e Elias. A distinção segue essa tradição e se torna - ao menos do que nela se consolida, como conceitos, métodos etc. - objeto frequente de reflexões e questionamentos na sociologia. Nas próximas seções, tematizamos alguns debates centrais à literatura que se debruçou nessa problemática construída n’A distinção. Onivorismo e a crítica da homologia estrutural e do capital cultural Na década de 1990, quando ganhava impulso o movimento de apropriação dos estudos de Bourdieu sobre a distinção para além da França (a primeira tradução da obra para o inglês ocorreu em 1984), surgiu uma ideia que, posteriormente, viria a ser interpretada por muitos autores dentro da sociologia da cultura e da sociologia da estratificação social como uma crítica à abordagem bourdieusiana da relação entre classes sociais, gostos e estilos de vida. Essa ideia, mais propriamente um conceito “provisório” do que uma teoria ou mesmo uma hipótese, foi desenvolvida nos estudos do sociólogo estadunidense Richard Peterson com seus colaboradores (Peterson, 1992, 1997, 2005; Peterson e Simkus, 1992; Peterson e Kern, 1996). Como argumenta Gayo (2016), “a ideia do onívoro foi desenvolvida de uma posição de alto status e forte legitimidade na sociologia norte-americana” (p. 104). Peterson era então reconhecido nacional e internacionalmente entre seus pares por seus trabalhos sobre indústrias culturais e produção cultural, além de ter publicado fartamente em revistas acadêmicas de elevado prestígio, como Poetics (Ibidem). Se os debates em torno do onivorismo cultural (o termo aludindo a uma “metáfora zoológica” tão criticada por Bernard Lahire) ganharam enorme impulso, estimulando a produção de vários estudos ao longo das décadas seguintes e tornando-se ponto de passagem obrigatório para as pesquisas recentes sobre gostos e práticas culturais, parte disso se deve, certamente, ao contexto acadêmico norte-americano e à posição de Richard Peterson nele. A esses fatores também se deve o fato de que essa ideia ganhou mais tração nos debates na sociologia norte-americana do que na sociologia europeia (sobretudo a francesa): “o onívoro cultural era uma reiteração posterior de um tema familiar dentro da sociologia dos Estados Unidos que afirmava que a geração nascida após a Segunda Guerra Mundial era mais próspera, educada, aberta e tolerante do que as gerações posteriores de norte-americanos” (Idem, p. 106). É menos claro, no entanto, porque esse conceito foi interpretado posteriormente como tendo implicações críticas aos estudos de Bourdieu sobre a distinção. Ironicamente, Peterson, em seus próprios estudos (sobretudo em uma publicação recente, 2005), afirmava que o onivorismo não apontava para uma refutação, mas apenas uma reformulação dos argumentos de Bourdieu. Se os estudos de Peterson foram lidos posteriormente como sendo uma espécie de refutação ao livro A distinção, isso se deve, em parte, à forma como essa obra foi apropriada fora da França, sobretudo pela sociologia de língua inglesa. Como destaca Holt (1998), durante muito tempo a sociologia norte-americana fez uma leitura “substancialista” dessa obra, minimizando um elemento que lhe é central, seu caráter relacional. Lizardo e Skiles (2016) sustentam que o entendimento convencional de que o debate sobre o onivorismo questionou a validade empírica das ideias de Bourdieu quanto à associação entre gosto e classe está baseado em uma leitura incorreta do trabalho de Bourdieu. Tal leitura parte de dois pressupostos: i) de que as práticas culturais dos indivíduos de “status elevado” podem ser classificadas em um padrão de tipo “exclusivismo esnobe” [snobbish exclusiveness], ou seja, tais indivíduos gostam ou fazem coisas associadas à “alta cultura”, rejeitando a cultura popular; ii) A distinção pode ser lida como um estudo de como as classes superiores, fortemente ligadas à alta cultura, se distinguem das classes populares, com seus gostos e práticas vulgares (Idem, p. 91). O argumento contido na primeira premissa ignora que a aversão estética é um mecanismo de produção de fronteiras simbólicas que opera tanto vertical quanto horizontalmente; no caso da segunda premissa, minimiza-se a ênfase conferida por Bourdieu à multidimensionalidade do espaço social, que se traduz, por intermédio do habitus, em oposições no espaço simbólico. Isso implica, por exemplo, que as lutas em torno da imposição dos modos legítimos de viver são travadas não apenas entre diferentes classes, mas, sobretudo, entre diferentes frações das mesmas classes (por exemplo, o “ascetismo aristocrático” dos intelectuais em oposição ao “gosto do luxo” da burguesia proprietária e dirigente). Voltando aos estudos de Peterson, a ideia do onivorismo não parece muito complicada: a velha distinção entre alta e baixa cultura estaria sendo substituída por outra, entre onívoros e unívoros. Os primeiros, além de se apropriarem da “alta cultura”, também consumiriam “cultura popular”. Os unívoros teriam um repertório de gostos e práticas restrito à “baixa cultura”. Nesse sentido, o onivorismo apontaria para “repertórios de práticas culturais, emergindo no final do século xx, que são marcados por uma amplitude crescente de gostos e participação cultural e também por uma disposição para transgredir fronteiras previamente construídas entre itens ou gêneros culturais hierarquicamente ordenados” (Karademir e Warde, 2016, p. 77). Em alguns estudos, “onivorismo” é substituído por “ecletismo”, mas a ideia é a mesma. O desenvolvimento original do conceito aponta para mudanças nos princípios de distribuição dos gostos e das práticas culturais, do “esnobismo” para o “onivorismo”. O onivorismo implica, portanto, a combinação de gostos e práticas, que atravessam diferentes registros culturais. Não basta, portanto, para ser caracterizado como onívoro, que um indivíduo goste de muitos gêneros ou participe de muitas atividades culturais. Ocorrendo no contexto de transformações sociais e culturais - relacionadas com o aumento da oferta de bens culturais, a “estetização” da cultura popular, a maior mobilidade social -, a emergência dessa nova “orientação” em relação às formas culturais teria efeitos profundos para as estratégias de distinção, para a importância da “alta cultura” na hierarquização social etc. Antes de analisarmos esses possíveis efeitos, no entanto, é essencial investigar a validade empírica da tese de Peterson. Como argumentam Karademir e Warde, há muitas dificuldades para avaliar a suposta importância do onivorismo enquanto novo “princípio” subjacente à distribuição de gostos e práticas culturais, dificuldades que dizem respeito à falta de consenso na literatura que opera com esse conceito quanto às maneiras de defini-lo e operacionalizá-lo, aos domínios e itens culturais que devem ser considerados, às medidas de posição social (classe social, status), à necessidade de uso de dados de diferentes tipos (qualitativos e/ou quantitativos), aos procedimentos para medir mudança social e, por fim, quanto aos critérios a empregar para operacionalizar uma noção central ao onivorismo, que é aquela da abertura à diversidade. Ora, se o onivorismo, pelo menos segundo a definição original, significa o “cruzamento” de fronteiras culturais e a composição “eclética” de gostos e práticas, então é necessário adotar algum critério para determinar quais são as fronteiras relevantes e onde estão localizadas. Por exemplo, em um estudo de Peterson e Kern (1996), ópera e música clássica foram consideradas gêneros eruditos; bluegrass, country, gospel, rock e blues, gêneros inferiores; musicais da Broadway, músicas leves (easy listening) e big band, gêneros médios. Com base nessa classificação, repertórios musicais que combinassem, por exemplo, ópera e rock, ou ópera e easy listening seriam considerados onívoros. É óbvio, portanto, que o modo de construir a classificação e a hierarquização dos gêneros musicais interfere fortemente nos resultados sobre a suposta emergência e/ou crescimento de repertórios onívoros. Nos próprios estudos de Peterson, como salienta Brisson (2019), há diferentes procedimentos para produzir tais classificações musicais, dificultando a comparabilidade dos resultados, o que não seria necessariamente um problema, tivessem tais modificações tido o objetivo de incorporar evoluções temporais das hierarquias musicais (estetização, intelectualização ou popularização de gêneros ou subgêneros musicais) ou, então, nos modos como tais hierarquias são subjetivamente percebidas e internalizadas pelos indivíduos. Não foi o caso. Pelo que foi exposto, é provável que o onivorismo seja um “artefato metodológico” (Brisson, 2019, p. 10). De fato, a falta de consenso sobre o que é onivorismo e como operacionalizá-lo reduz nossa capacidade de estimar a validade empírica da tese de Peterson. Além disso, é preciso refletir se, mesmo que empiricamente válida, a tese acrescentaria algo aos debates sobre classes, gostos e estilos de vida na tradição bourdieusiana (Bertoncelo, 2019). A “tese” do onivorismo introduz implicações opostas ou radicalmente diferentes daquelas associadas à hipótese das homologias para a investigação das práticas culturais? Suspeitamos que não. No estudo d’A distinção, já está presente o argumento de que um dos principais marcadores da distinção é a propensão e a capacidade dos agentes para transpor a disposição estética para novos objetos e domínios da vida social. O “esnobe”, a quem supostamente o onívoro estaria substituindo no mundo contemporâneo, não seria mais distinto ou distintivo: ao invés disso, como sublinham Lizardo e Skiles (2016), o “esnobismo”, entendido como uma orientação que privilegia tão somente os bens culturais institucionalmente consagrados em detrimento daqueles da “cultura popular”, seria um indício da aquisição tardia da disposição estética, mais próximo da “boa vontade cultural” da pequena burguesia. Essas considerações críticas, no entanto, não invalidam por completo a importância dos debates acerca do onivorismo. Ainda que este não constitua um objeto sociológico propriamente novo e que faltem as condições adequadas para apreciar a validade empírica das mudanças apreendidas por esse conceito, o debate serviu para arejar as discussões em torno da distinção. De fato, como conceber e investigar a distinção e a formação de capital cultural em um contexto marcado pela crescente circulação global de pessoas e objetos, pela disseminação das tics, pela ampliação da esfera do simbólico, pelas mudanças nos sistemas educacionais? É possível que essa capacidade “tolerante” para transpor a disposição estética para domínios não artísticos ou culturais e para objetos não consagrados, mesmo vulgares, tenha ela própria sido transposta para outras regiões do espaço social, não se restringindo, portanto, às frações mais intelectualizadas? O estudo britânico Culture, class, distincion aponta nessa direção: […] em suma, a cultura importa para a classe média, e até mais para seus estratos mais elevados. O capital cultural objetivado e institucionalizado opera como um recurso valioso, mas não exclusivamente por meio do controle da cultura legítima. Ao invés, a orientação requerida se dirige para a apreciação reflexiva, em um espírito de abertura, de uma diversidade de produtos culturais, mas continuam a existir fronteiras além das quais não é respeitável atravessar (Bennett et al., 2009, p. 194). Diferentemente, outros estudos apontam que esse ecletismo seletivo é a manifestação de certas disposições ao consumo que “divertidamente” [playfully] atravessam fronteiras culturais estabelecidas. A combinação entre gostos “estabelecidos” e “emergentes” expressa não tanto uma orientação onívora ou um novo tipo de capital cultural, mas, ao invés disso, o domínio do simbólico que está na raiz do capital cultural teorizado por Bourdieu, que opera, no entanto, em um contexto social marcadamente diferente (Flemmen; Jarness e Rosenlund, 2018). A perda da eficácia da “alta cultura” como distintiva? Uma das principais contribuições dos debates em torno do onivorismo para a Sociologia tem a ver com a problematização dos efeitos da “alta cultura” para os processos de distinção social2. Estudos recentes evidenciam que as classes superiores, sobretudo em suas frações mais intelectualizadas e cultivadas, possuem gostos “ecléticos”, que não se reduzem à “alta cultura” assim entendida (Flemmen; Jarness; Rosenlund, 2018, 2019; Prieur; Savage, 2011; Bennett et al., 2009). Mais: o consumo da “alta cultura” vem declinando socialmente, mesmo nas classes superiores, em especial nas gerações mais novas (Gripsrud et al., 2011; Purhonen et al., 2011; Dimaggio e Mukhtar, 2004)3. Quais as implicações disso para a relação entre “alta cultura” e capital cultural? Para alguns, a “alta cultura” não representa mais (ou jamais representou, fora do contexto francês) uma forma de capital cultural (Halle, 1992; Lamont, 1992). Diferentemente, DiMaggio e Mukhtar argumentam, baseados em um estudo sobre a evolução do consumo cultural nos Estados Unidos ao longo de duas décadas (1982-2002), que a “alta cultura” permanece central para a formação e acumulação de capital cultural, ainda que exista uma tendência geral de redução de seu público consumidor, mesmo que não na mesma magnitude para todas as formas culturais assim classificadas4. Conforme esse mesmo estudo, as atividades culturais populares tiveram uma redução de seu público tão grande quanto aquela da “alta cultura”, e o consumo cultural dos menos educados caiu mais fortemente do que o dos mais educados. Tais processos evidenciam, assim, que o declínio da “alta cultura” tem mais a ver com o aumento da competição por outras formas de uso do tempo livre e de modos de consumo da cultura do que propriamente com a perda de eficácia distintiva da “alta cultura”5. De forma similar, um estudo conduzido entre estudantes de ensino superior na Noruega, que cobre um período parecido com o anterior (1998-2008), aponta que, apesar de um declínio significativo das práticas associadas à “cultura legítima tradicional” - em menor medida entre estudantes de humanidades do que de disciplinas técnicas -, elas permanecem fortemente associadas às classes superiores e ainda gozam de elevado reconhecimento, o que indicaria, segundo o estudo, a provável persistência da eficácia distintiva da “alta cultura”, ou seja, ela ainda opera como um capital cultural (Gripsurd et al., 2011, pp. 524-525). Ao mesmo tempo, a contínua redução do interesse pela “alta cultura” e de seu consumo, especialmente entre os mais jovens e mais escolarizados, tenderia a torná-la uma cultura de “nichos sociais”, não mais gozando de reconhecimento social generalizado. Conforme argumentam DiMaggio e Mukhtar, “nós suspeitamos que se a participação [na “alta cultura”] continuar a cair, em algum momento, essas formas artísticas se tornarão irrelevantes para a cultura compartilhada das famílias e grupos sociais cujas chances de vida são mais dependentes do manejo de capital cultural” (Idem, p. 191). Ainda que tal tendência se concretize, esse processo teria como consequência a irrelevância do capital cultural como um princípio de diferenciação e hierarquização social? Embora, como argumentamos, a “alta cultura” ainda goze de algum reconhecimento social para além de seu público consumidor, cada vez mais restrito às classes superiores, é pouco provável que o que se entende por “cultura legítima” se restrinja a essas formas culturais (Špaček, 2017). Uma leitura relacional do capital cultural e dos processos distintivos “abre caminho para uma definição da disposição estética parcialmente dissociada dos conteúdos nos quais ela opera” (Coulangeon, 2015, p. 56). Holt (1998) chama atenção para os riscos de uma leitura substancialista que associa a “cultura legítima” à “alta cultura”, leitura essa que leva à conclusão de que a ausência de qualquer associação significativa entre o consumo da “alta cultura”, de um lado, e o pertencimento às classes superiores, de outro, indicaria a irrelevância do capital cultural na produção de desigualdades e na construção de fronteiras simbólicas e sociais. Holt entende que tal argumento confunde os aspectos abstrato e particular do capital cultural. Para ele, enquanto o aspecto abstrato é produzido pela incorporação das estruturas sociais condicionadas pelas classes, o particular é específico do campo em que o capital cultural é articulado. Dessa forma, o que os agentes incorporam não é exatamente um gosto pela “alta cultura”, mas uma condição específica de julgamento do mundo social que se manifestará como distintivo em objetos diferentes em cada campo social. Não haveria nada, portanto, de essencial no domínio da “alta cultura” para Bourdieu, sendo isso apenas um capital particular relevante para o estudo da sociedade francesa, mas que pode não importar para outros tempos ou outras sociedades. Ao invés de pressupor, deve-se, então, encontrar qual o capital específico que importa em cada contexto. É por isso que, para Holt (1997), mais importante é o estado incorporado do capital cultural, pois é ele que criará as condições para que os agentes possam ocupar posições dominantes em diferentes campos e neles controlar seus capitais específicos. Para dar um exemplo simples, é o capital cultural incorporado que permite a membros da elite ocuparem posições dominantes em campos tão distantes como o acadêmico e o financeiro, fazendo valer esse capital abstrato para o domínio dos capitais específicos. Na mesma linha, seguiram Prieur e Savage (2013). Sem adentrarem em discussão sobre campo, eles diferenciam a visão sobre o conceito de capital cultural em flexível e fixo. Segundo eles, o fixo seria a visão que atrela o capital cultural a um objeto específico - por exemplo, à “alta cultura”. Com esse olhar, “é fácil descartar a análise de Bourdieu como obsoleta e irrelevante” (Prieur e Savage, 2013, p. 249). Contudo, para eles, Bourdieu entendia o capital cultural como flexível, ou seja, uma forma de poder de qualidades exclusivas e relacionais, que se forma em objetos específicos de acordo com a relação que eles possuem com outros objetos. Assim, se a “alta cultura” não seria mais a concretização (ou, para voltar a Holt, a particularização) do capital cultural, outros objetos o são, devendo o pesquisador identificar quais. Na próxima seção voltaremos a esse debate, apresentando o que os autores chamam de “capital cultural emergente”. Não entendemos, contudo, que devemos descartar de maneira tão radical a “alta cultura” como forma de distinção. Isso se dá por dois motivos. Um primeiro motivo se refere ao que encontramos em algumas pesquisas, mas destacamos aqui Omar Lizardo (2006). O autor estuda a relação de conversão entre capital cultural e capital social. Sua tese central é inverter a noção clássica de que capital social se converte em cultural, para mostrar que o cultural se converte, com mais frequência, em social. Entretanto, o que mais nos interessa aqui é notar que, em diferentes redes de relacionamento, há a operação de diferentes conhecimentos culturais. Segundo o autor, a cultura popular tem um “valor generalizado de conversão”. Ou seja, a cultura popular pode ser convertida em diferentes redes de relacionamento, produzindo, inclusive, redes amplas de laços fracos. Já a “cultura de elite (highbrow) […] tem um valor restrito de conversão: ela deve mais provavelmente sustentar redes de laços fortes” (Lizardo, 2006, p. 783), que permitirão maiores vantagens para seus integrantes. Em outras palavras, o ecletismo cultural da elite lhe permite formar diferentes redes de socialização, sendo essas redes dependentes do conhecimento cultural mais amplo, mas também do reconhecimento das hierarquias culturais. Essa ideia se aproxima tanto à de repertório, de Michèle Lamont, quanto de variações intraindividuais de Bernard Lahire. Para ambos os autores, os agentes mobilizam diferentes conhecimentos em contextos específicos. A diferença, contudo, é que a ideia de Lizardo, e esse é o ponto aqui, nos permite vislumbrar a permanência da relevância da “alta cultura” como forma de distinção. Esforço similar foi empreendido em artigo recente (Ábile et al., 2021), em que se argumentou que a perda da relevância da “alta cultura” foi observada em pesquisas que relacionaram a “alta cultura” ao campo propriamente artístico. O texto propõe olhar como a “alta cultura” é operada em outros campos para produzir distinções. Assim, demonstra-se que os capitais valorizados no campo artístico são mobilizados pelos campos da gastronomia e da moda para produzirem diferenciações. Estilistas e cozinheiros que se aproximam de artistas (e mesmo querem ser considerados artistas) se diferenciam dos outros, e seus produtos se tornam distintivos. Sendo práticas que recebem reconhecimento social (especialmente por programas de televisão), mas, ao mesmo tempo, exclusivas de uma elite, elas produzem distinção e operam como capital cultural. Dessa forma, argumenta-se que a “alta cultura” pode ser vista ainda operando como capital cultural, mesmo em domínios que não o artístico. Do gosto à prática: de “o quê” para “como” Uma outra forma de se pesquisar o capital cultural, mal captada especialmente por pesquisas baseadas em preferências, é a diferenciação entre “o que” se consome e o “como” se consome. Essa preocupação com a modalidade das práticas está bem exemplificada em um estudo de Vegard Jarness (2015), autor que pesquisou formas de consumo cultural e estratificação social na cidade de Stavanger, na Noruega. Segundo ele, as críticas direcionadas à noção de capital cultural ignoram a distinção entre opus operatum e modus operandi, ou seja, entre um conjunto de preferências (mais ou menos volumosas e “ecléticas”) e os esquemas de avaliação e apreciação subjacentes às escolhas. No contexto da ampliação da produção, difusão e consumo de bens simbólicos e das possibilidades de estetização da vida cotidiana, é provável que “gostar das mesmas coisas” signifique cada vez menos “ter os mesmos gostos” (Idem, p. 67). Na verdade, “quando os mesmos bens culturais comuns são apreciados de modos diferentes, isso pode tornar a prática ainda mais distintiva” (Idem, p. 77). Dessa forma, se indivíduos de diferentes classes ou frações de classe declaram preferências similares em gosto (por exemplo, musical), é possível que o modo como ouvem música ou mesmo a justificativa que dão para suas preferências possam se diferenciar, manifestando diferentes habitus incorporados e produzindo fronteiras que separam as classes e geram distinção. Formas emergentes de capital cultural e novas formas de distinção? Retornando à visão sobre capital cultural flexível ou à diferença de capital cultural abstrato e particular, alguns autores argumentam a favor da emergência de formas emergentes de capital cultural. Mike Savage e Annick Prieur argumentam que, em um contexto em que se ampliam os universos de possíveis escolhas estéticas e em que o valor do domínio da “cultura erudita tradicional” se reduz a mercados de concorrência social cada vez mais restritos, é provável que os agentes equipados com mais capital cultural privilegiem um tipo de apropriação “reflexiva”, distanciada e irônica, sustentada por uma capacidade de explicitar as razões da escolha. “Irônico” aqui implica que os agentes (re)conhecem os significantes do gosto e são capazes de associar diferentes significados a práticas mainstream. Além disso, tais agentes são capazes de se posicionar para além de certos enquadramentos nacionais, regionais ou locais, adotando uma orientação cosmopolita. Esses aspectos da prática - apropriação irônica, “reflexiva” e distanciada, a partir de um enquadramento cosmopolita - teriam um “novo” valor distintivo e, por isso, os autores utilizam o conceito de formas emergentes de capital cultural para apreendê-los (Prieur e Savage, 2011, 2013). Em suma, esse conceito apreende possíveis mudanças no gosto dominante, sobretudo nas gerações mais novas, indicando a operação de “novos” modos de distinção social não mais baseados na estética do desinteresse, que, nos trabalhos de Bourdieu, constituía o princípio subjacente à apropriação legítima das formas culturais “sérias” (Friedman et al., 2015) Por outro lado, outros estudos questionam a suposta novidade dessa modalidade de consumo que combina elementos do “tradicional” e do “contemporâneo”, argumentando que as “formas emergentes” de capital cultural ou as “novas” formas de distinção não pressupõem nada além do domínio do simbólico aplicado em novos contextos sociais (Flemmen; Jarness e Rosenlund, 2018; Atkinson, 2017). Um outro conjunto de estudos busca perceber outras formas de capital. Trata-se também da emergência de capital, mas não necessariamente cultural. É o caso mais frequente de pesquisas que se focam na aparência ou na beleza. Um conjunto de autores (Vandebroek, 2015; Anderson, Grunert, Katz e Lovascio, 2010; Holla e Kuipers, 2015) considera que tais características, ao serem avaliadas como distintivas por certos grupos, operam como um capital que denominam estético. Da mesma maneira que outras formas de capital, a condição de sua acumulação é predisposta pela posição do agente no espaço social. Uma variação dessa visão percebe que esse capital estético é mais importante para as mulheres (elas são mais frequentemente avaliadas por critérios estéticos). Contudo, mesmo a elas, esse capital é de pouca vantagem, pois é mobilizado pelos homens. Em outras palavras, o capital estético acumulado por uma mulher serve, no mais das vezes, como distinção para os homens. Ashley Mears (2015) mostra “os usos do capital corporal feminino por homens que se apropriam de mulheres como um recurso simbólico para gerar lucro, status e laços sociais num mundo exclusivo de homens de negócio” (Mears, 2015, p. 22). Seus estudos se focam na relação entre homens e mulheres em feiras e eventos internacionais de produtos. Contudo, isso pode ser relacionado com aquilo que Randall Collins chama de “trabalho goffmaniano” das mulheres. Seu foco é mostrar que, seja em casa ou em suas profissões, as mulheres tendem a se focar em trabalhos que produzem status. O diálogo com Mears é que esse status também é apropriado no mais das vezes pelo homem, seja ele o chefe, seja ele o marido. Essas duas análises colocam um ponto importante para a própria teoria dos capitais. Em geral, as pesquisas se focam na posse de capitais por agentes de acordo com suas posições sociais. Contudo, pouca atenção é dada à possibilidade de os agentes se apropriarem de capitais acumulados por outros. Ou seja, ainda que capitais sejam acumulados por determinados agentes de acordo com suas condições, esses mesmos capitais podem ser apropriados por outros em melhores condições sociais. Nas análises citadas, é o caso de capitais acumulados por mulheres e mobilizados em proveito de homens. Podemos estender esse raciocínio para outros campos, como a relação entre as altas classes e a cultura popular etc. Distinção e classe social no mundo contemporâneo O estudo da distinção nos coloca, como vimos, inúmeros desafios de natureza teórica. Ao mesmo tempo, existem dificuldades propriamente metodológicas no estudo desse tema. O conceito de distinção, tal como empregado por Bourdieu, supõe diferença e hierarquia. Há muitas evidências empíricas de que as práticas culturais são estratificadas e diferenciadas socialmente. Mais fundamentalmente, a hipótese da homologia - da correspondência estrutural entre o espaço social e o espaço dos estilos de vida - encontra sustentação empírica em estudos realizados em diversas sociedades, indicando que os estilos de vida são estruturados não apenas pelo volume de capital possuído pelos agentes, mas também por sua composição (Flemmen, Jarness e Rosenlund, 2019; Atkinson, 2017; Pereira, 2005)6. É possível, assim, não apenas diferenciar as classes superiores das classes médias e inferiores, mas também, como já demonstrado n’A distinção, diferenciar frações das classes superiores em função do peso dos diferentes recursos pertinentes a um dado universo social (Börjesson et al., 2016). E a mesma diferenciação interna pode ser encontrada para as demais classes, considerando os recursos específicos e modalidades de estilização da vida típicas a essas regiões do espaço social (Pereira, 2005). Por outro lado, uma parte importante desses estudos voltou-se para a investigação de um aspecto da distinção, aquele referente à produção, acumulação e transmissão de capital cultural7. Consequentemente, é pouco comum a utilização de uma ampla variedade de indicadores para mensurar as práticas dos agentes em diferentes domínios da vida social, restringindo-se frequentemente ao consumo da cultura entendida em um sentido bastante restrito (em parte devido às limitações decorrentes do uso de fontes secundárias). Ademais, a operacionalização da noção de espaço social, a partir da construção de diversos indicadores de formas de capital e de trajetórias sociais, tem recebido relativamente pouca atenção nos estudos de classe recentes inspirados pela tradição bourdieusiana8. Se, apesar das ressalvas anteriores, é possível dizer que o aspecto da distribuição diferencial das propriedades das práticas está, de alguma forma, bem documentado, o outro elemento da distinção, qual seja, a hierarquia, parece menos explorado nos estudos que se debruçam sobre essa temática. A mera evidência estatística da raridade de uma prática ou gosto não implica necessariamente que ele hierarquize os agentes. Os instrumentos geralmente utilizados para “mapear” os gostos e as práticas culturais não são suficientes para responder a esta questão. Os dados produzidos por meio de surveys são muito úteis (sobretudo quando produzidos a partir da problemática da pesquisa), porque possibilitam evidenciar a ocorrência empírica de homologias entre as práticas dos agentes em diferentes domínios e suas posições relativas no espaço social. É necessário, no entanto, dar alguns passos adicionais para apreendermos a problemática da distinção em sua totalidade. Como a hipótese da homologia sugere haver correspondências entre as hierarquias operantes nos diversos campos sociais, por um lado, e entre elas e as hierarquias vigentes no espaço social, por outro, uma primeira tarefa consiste em situar as práticas em seus campos específicos e reconstruir a estrutura desses campos (suas instâncias de legitimação, suas hierarquias e seus agentes, os valores que os orientam, os objetos em disputa), além das relações entre eles9. Há muitos estudos desse tipo na sociologia no Brasil e alhures10. Ademais, é preciso avançar na investigação dos aspectos subjetivos de como “as pessoas explicitamente avaliam, estimam e julgam os estilos de vida dos outros (Sølvberg e Jarness, 2019, p. 180). Como produzir dados desse tipo? Como apreender empiricamente os modos pelos quais as pessoas categorizam e hierarquizam os estilos de vida? Que técnicas de observação podemos empregar para investigar as disputas em torno do valor das propriedades dos estilos de vida e o reconhecimento pelos agentes dessas hierarquias? Essa é uma tarefa fundamental, uma vez que, para que possamos considerar determinadas práticas ou gostos como distintos e distintivos, é essencial evidenciar o amplo reconhecimento da legitimidade de tais práticas ou gostos. Como argumentam Sølvberg e Jarness, os estudos de Lamont sobre as fronteiras sociais e simbólicas nos ajudam a avançar nessas indagações. Fronteiras simbólicas são “distinções conceituais feitas pelos atores sociais para categorizar objetos, pessoas, práticas, e, até mesmo, o tempo e o espaço. São ferramentas pelas quais os indivíduos e grupos lutam para chegar a definições da realidade compartilhadas” (Lamont e Molnár, 2002, p. 168). Por sua vez, fronteiras sociais são “formas objetivadas de diferenças sociais manifestadas no acesso desigual e na distribuição desigual de recursos (materiais e imateriais) e de oportunidades sociais” (Idem, ibidem). Mapear as fronteiras simbólicas, retornando aos argumentos de Sølvberg e Jarness (2019), pode ser bastante útil para investigar empiricamente “se e como as diferenças de estilos de vida baseadas em classe estão, de fato, ligadas a processos de exclusão e inclusão” (p. 180). Em Money, morals and manners (1992), Lamont investigou o processo de construção de fronteiras de diferentes tipos (cultural, econômica e moral) com base em entrevistas em profundidade com informantes norte-americanos e franceses. O modo como as pessoas falam de si e dos outros, as categorias que mobilizam, em seus discursos, para nomear, definir, avaliar suas próprias ações e as dos outros constituem dados importantes a partir dos quais podemos apreender como as fronteiras sociais e simbólicas são construídas e reconstruídas na vida social. Ao mesmo tempo, há uma tendência quase incontornável por parte dos indivíduos de idealizar seus comportamentos em situações sociais. Por isso, em situações de entrevista, é provável que os informantes recorram à produção de narrativas “honoráveis”, por meio das quais buscam transmitir uma imagem de si como indivíduos tolerantes, minimizando as diferenças de classe e evitando julgamentos ou o uso de categorias que impliquem hierarquização ou estigmatização. Mais: para os membros das classes superiores, apresentarem-se como pessoas tolerantes, “decentes”, igualitárias contribuiria, intencionalmente ou não, para a reprodução da legitimidade cultural e das fronteiras de classe (Sølvberg e Jarness, 2019, p. 23). Para que a situação de entrevista não se transforme em uma mera instância de produção de discursos complacentes ou condescendentes, é essencial que adotemos técnicas que permitam “extrair” as chamadas narrativas “viscerais”, aquelas carregadas de sentimentos de desgosto, julgamentos morais e estéticos, de categorias que produzem hierarquias entre grupos de pessoas11. A probabilidade de produção de tais narrativas “honoráveis” ou “viscerais” pode variar conforme o contexto: onde, com quem, de quem, do que se fala. Nos estudos de Sam Friedman sobre a estruturação social do gosto por comédia, por exemplo, seus informantes de frações superiores mais dotados de capital cultural construíam, em suas falas, fronteiras simbólicas baseadas na percepção da inabilidade de certas audiências de entenderem “formas mais elevadas” de comédia. Aparentemente, quando as pessoas falam sobre “o que as faz rir”, elas se sentem menos constrangidas em marcar distância com quem não compartilham seus gostos: “a comédia parece ter um poder único para definir fronteiras simbólicas, enraizado em sua conexão às propriedades sociais do humor…” (Friedman, 2014, p. 148)12. Neste sentido, tem sido cada vez mais relevante o emprego de múltiplas técnicas de pesquisa, que captem a complexidade das relações entre classe e distinção. Muito além de buscar saber as práticas raras e comuns, as que caracterizam mais o gosto de uma classe do que de outra, essas técnicas buscam nos ajudar a responder quais as práticas e os gostos mobilizados para a produção de fronteiras simbólicas. Em uma pluralidade de práticas e gostos que caracterizam a vida dos sujeitos, quais aqueles que se tornam, para usar outra expressão de Lamont, o repertório das diferentes classes nas lutas sociais. Ao fazer esse tipo de pergunta, deslocamos o capital cultural de seu aspecto distintivo para a temática do poder. Isso significa que o interesse recai na esfera da legitimidade de gostos e práticas. E, dessa forma, importa perguntar sobre as novas e antigas instâncias de legitimidade que marcam a esfera cultural. A legitimidade cultural na França de Bourdieu era altamente marcada pelo controle do Estado (operando nas escolas, nos museus, nas salas de concerto etc.), pelo gosto burguês e pela separação de alta e baixa culturas. O que ocorre com essas instâncias com o desenvolvimento da indústria cultural, da cultura produzida por empreendimentos privados e, em especial, pelos novos meios de comunicação, como a internet? A busca de respostas a perguntas como essa e outras que fizemos aparecem nos textos reunidos neste dossiê. A temática de novas configurações do capital cultural e formas de definição das fronteiras simbólicas são observadas no texto “Consumo e capital informacional nas lógicas de distinção entre os grupos dominados”, de Ana Lúcia de Castro. A autora leva o debate sobre a distinção para as classes populares e, nelas, a cultura de consumo. Seu objeto privilegiado de análise é o movimento hype, que envolve a adoção por jovens das classes populares de um consumo de bens restritos típicos do universo do luxo, mas ao mesmo tempo um afastamento das práticas mais legítimas desse universo e da classe dominante. A autora nota como nesse movimento o capital cultural é mobilizado não a partir de seus elementos tradicionais (como a “alta cultura”), mas a partir de um conhecimento da cultura digital que produz um capital informacional. Assim, é pela mobilização desse capital que os agentes do movimento hype são capazes de traçar as fronteiras simbólicas que os diferenciam de outros membros das classes populares. O capital cultural, ela argumenta, continua operando, mas sob formas não antevistas por Bourdieu. Mas se o capital cultural continua operando, sob novas formas, também deve haver instâncias que sejam fonte desse capital na contemporaneidade. Não é estranho à obra de Bourdieu observar o papel da escola e da língua nesse contexto. Contudo, a contemporaneidade exige que repensemos a escola, em especial em relação ao processo de globalização. A isso se dedica Miqueli Michetti no texto “Bilíngues, bilíngues de verdade e global citizens: distinção e disposições no mercado educacional”. O foco agora se volta para as classes altas e sua tentativa de buscar manter o valor do capital cultural que detêm. Para tanto, a inserção dessas classes em uma suposta cultura cosmopolita produz o efeito desejado. Os filhos da elite vão estudar em escolas em que não apenas aprendem uma língua estrangeira (o inglês, em geral), mas incorporam uma disposição cosmopolita e, com ela, a noção de que uma vida desterritorializada, voltada para o mundo, é superior. Dessa forma, em torno de noções que supõem o “bem”, como diversidade cultural, a valorização da diferença, a tolerância etc., o que na verdade se produz é um capital cultural, marcado pela disposição cosmopolita, que, mais uma vez, apenas a elite é capaz de adquirir. Ainda sobre o campo educacional brasileiro, Carlos Moris, Fernando Casselato, Matheus Nascimento, Gabriela Agostini e Luciana Massi mostram outro lado da atuação do capital cultural através de uma excelente aplicação do método de análise de correspondências múltiplas, que demonstra o efeito muito forte do capital cultural nas chances de sucesso no Enem e, portanto, nas chances de acesso à universidade, remetendo aos estudos bourdieusianos clássicos sobre o tema. O tema da distinção ligado ao capital cultural das elites muda de ares e nos leva ao Chile, onde Modesto Gayo e María Luisa Méndez mostram, através de métodos quantitativos e qualitativos, a existência de uma fragmentação ideológica na elite chilena, em contraposição a teorias que pressupõem um conservadorismo inerente a qualquer grupo no topo da hierarquia social. Aproveitando-se do momento de alta tensão e conflitos na sociedade chilena, o artigo estabelece correlações que sugerem uma clivagem entre grupos de elite que apoiam a mudança constitucional e querem um papel protagonista nesse processo, e outros que temem e gostariam de impedir mudanças profundas. Esses grupos, por sua vez, podem ser correlacionados a atitudes opostas no espectro político e ideológico. Do Chile, passamos para a Argentina e o texto de Alexandra Tedesco, um trabalho de sociologia histórica centrado na figura de Victoria Ocampo, escritora fundamental para a formação do campo intelectual argentino no século XX. Através de uma análise cuidadosa de sua trajetória, percebemos também a operação do habitus e do capital cultural incorporado na formação e reprodução de mecanismos de distinção da elite cultural argentina. A relação entre classe, cultura e política reaparece no artigo de Alana Meirelles Vieira, “Entre cultura e política: a distinção da produção de opinião na mídia”. Mobilizando de modo bastante frutífero os conceitos bourdieusianos de espaço social, habitus, campo e capital, a autora problematiza as tomadas de posição no mercado de produção política, centrado na mídia, considerando as homologias das posições e das trajetórias sociais dos agentes nos campos político, jornalístico, econômico e, mais amplamente, no espaço das classes sociais. Com base na análise de dados primários produzidos a partir de entrevistas em profundidade e de pesquisa documental, o trabalho contribui para dar corpo a uma vertente da Sociologia da Cultura que não se furta aos desafios de apreender os determinantes de classe, pela mediação do habitus, nas tomadas de posição política e ideológica. O texto de Michel Nicolau Netto e Bárbara Venturini Ábile propõe a tematização das homologias das hierarquias no campo da moda e no espaço das classes sociais, a partir da investigação empírica de dois eventos de colaboração criativa entre marcas de luxo e fast fashion, entendidos como instâncias empíricas do encontro entre o “sagrado” e o “profano”. Com base em dados produzidos por meio de pesquisa de material visual e de entrevistas em profundidade, os autores argumentam que tais colaborações pressupõem (e também reproduzem) o reconhecimento pelos agentes das hierarquias simbólicas e, portanto, do valor das marcas enquanto signos de distinção nesse subespaço simbólico. Por isso, os eventos de colaboração criativa servem também como uma instância de observação da luta de classes em torno da imposição dos modos legítimos de viver, luta em que as classes superiores quase sempre detêm os recursos necessários para a preservação da raridade relativa em que se assentam seus privilégios. Fechando o dossiê, apresentamos uma entrevista realizada por e-mail com o pesquisador norueguês Johannes Hjellbrekke, que nos traz observações muito interessantes sobre o uso da metodologia bourdieusiana para a produção de projetos de pesquisa no século XXI e a relevância contínua do conceito de capital cultural em nossas sociedades, já tão distantes da França das décadas de 1960 e 70 que Bourdieu investigou. Referências Bibliográficas Ábile, B. V.; Ferreira, T. A.; Miraldi, J. C. & Nicolau Netto, M. (2021), “A arte entre estilistas e chefs: os repertórios da arte e a delimitação das fronteiras na gastronomia e na moda”. CSOn-line: Revista Eletrônica de Ciências Sociais Anderson, Tammy L.; Grunert, Catherine; Katz, Arielle & Lovascio, Samantha. (2010), “Aesthetic capital: A research review on beauty perks and penalties”. Sociology Compass, 4: 564-575. Atkinson, Will. (2017), Class in the new millennium: the structure, homologies and experience of the Britain social space Londres, Nova York: Routledge, Taylor & Francis Group. Bennett, Tony & Silva, Elizabeth. (2011), “Introduction: cultural capital - histories, limits, prospects”. Poetics, 39: 427-443. Bennett, Tony et al (2009), Culture, class, distinction Londres: Routledge. Bertoncelo, Edison. (2022), Construindo espaços relacionais com a análise de correspondências múltiplas: aplicações nas ciências sociais Brasília: Editora da Enap. Bertoncelo, Edison. (2019), “Consumo cultural e manutenção das distâncias sociais no Brasil”. In: Pulici, Carolina & Fernandes, Dmitri (orgs.). As lógicas sociais do gosto São Paulo: Editora Unifesp. Börjesson, Mikael; Broady, Donald; Le Roux, Brigitte; Lidegran, Ida & Palme, Mikael. (2016), “Cultural capital in the elite subfield of Swedish higher education”. Poetics , 56 (3): 15-34. Bourdieu, Pierre. (1971), “Disposition esthétique et compétence artistique”. Les Temps Modernes, 27 (295): 1345-1378. Bourdieu, Pierre. (1974), “Les fractions de la classe dominante et les modes d’appropriation des œuvres d’art”. Information sur les Sciences Sociales, 13 (3). Bourdieu, Pierre. (février 1977a), “La production de la croyance”. Actes de la Recherche en Sciences Sociales, 13: 3-43. Bourdieu, Pierre. (septembre 1977b), “Questions de politique”.Actes de la Recherche en Sciences Sociales . vol. 16, pp. 55-89. Bourdieu, Pierre. (1978), “Titres et quartiers de noblesse culturelle élements d’une critique sociale du jugement esthetique”. Ethnologie Française, 8, (2/3):107-44. Bourdieu, Pierre. (nov. 1978), “Classement, déclassement, reclassement”.Actes de la Recherche en Sciences Sociales , 24: 2-22. Bourdieu, Pierre. (1979), La distinction: critique sociale du jugement Paris, Les Éditions de Minuit. Bourdieu, Pierre. (1984), Homo academicus Paris, Les Éditions de Minuit. Bourdieu, Pierre. (1989), La noblesse d’État Paris: Les Éditions de Minuit. Bourdieu, Pierre. (2015), Sociologie générale, volume 1. Paris, Seuil. Bourdieu, Pierre. (2016), Sociologie générale , volume 2. Paris, Seuil. Bourdieu, Pierre. (2017), Anthropologie économique Paris, Seuil. Bourdieu, Pierre; Boltanski, Luc; Castel, Robert & Chamboredon, Jean-Claude. (1965), Un art moyen: essai sur les usages sociaux de la photographie Paris: Les Éditions de Minuit . Bourdieu, Pierre; Darbel, Alain & Schnapper, Dominique. (2007, [1966]), L’amour de l’art: les musées d’art européens et leur public Paris: Les Éditions de Minuit . Bourdieu, Pierre & Passeron, Jean-Claude. (1964), Les héritiers: les étudiants et la culture Paris: Les Éditions de Minuit . Bourdieu, Pierre & Passeron, Jean-Claude. (1970), La reproduction: éléments pour une théorie du système d’enseignement Paris: Les Éditions de Minuit . Bourdieu, Pierre & Delsaut, Yvette. (janvier 1975), “Le couturier et sa griffe: contribution à une théorie de la magie”.Actes de la Recherche en Sciences Sociales , 1 (1): 7-36. Bourdieu, Pierre & Saint-Martin, Monique de. (octobre 1976), “Anatomie du gout”.Actes de la Recherche en Sciences Sociales , 2 (5): 2-81. Bourdieu, Pierre; Boltanski, Luc & Saint-Martin, Monique de. (1973), “Les strategies de reconversion: Les classes sociales et le systeme d’enseignement”. Social Science Information, 12 (5): 61-113. Brisson, Romain. (2019), “Back to the original omnivore: on the artefactual nature of Peterson’s thesis of omnivorousness”. Poetics , 76: 1-14. Coulangeon, Philippe. (2015), “Social mobility and musical tastes: A reappraisal of the social meaning of taste eclecticism”. Poetics , 51 (4): 54-68. Dimaggio, P. & Mukhtar, T. (2004), “Arts participation as cultural capital in the United States, 1982-2002: Signs of decline?”. Poetics , 32: 169-194. Flemmen, Magne & Haakestad, Hedda. (2018), “Class and politics in twenty-first century Norway: a homology of positions and position-taking”. European Societies, 20 (3): 401-423. Flemmen, Magne; Jarness, Vegard & Rosenlund, Lennart. (2018), “Social space and cultural class divisions: the forms of capital and contemporary lifestyle differentiation”. The British Journal of Sociology, 69 (10): 124-153. Flemmen, Magne; Jarness, Vegard & Rosenlund, Lennart. (2019), “Class and status: on the misconstrual of the conceptual distinction and a neo-Bourdieusian alternative”. The British Journal of Sociology , 70 (3): 816-866. Friedman, Sam. (2014), Comedy and distinction: the cultural currency of a “good” sense of humour Abingdon, Routledge. Disponível em http://eprints.lse.ac.uk/59932/. » http://eprints.lse.ac.uk/59932 Friedman, Sam; Savage, Mike; Hanquinet, Laurie & Miles, Andrew. (2015), “Cultural sociology and new forms of distinction”. Poetics , 53 (6): 1-8. Gayo, Modesto. (2016), “A critique of the omnivore - From the origin of the idea of omnivorousness to the Latin American experience”. In: Hanquinet, Laurie & Savage, Mike (orgs.). Routledge International Handbook of the Sociology of Art and Culture Nova York: Routledge, pp. 103-115. Gripsrud, Jostein; Hovden, Jan Fredrik & Moe, Hallvard. (2011), “Changing relations: Class, education and cultural capital”. Poetics , 39 (1): 507-529. Halle, David. ([1992] 2015), “O público para a arte abstrata: classe, cultura e poder”. In: Lamont, Michèle & Fournier, Marcel. Cultivando diferenças: fronteiras simbólicas e a formação da desigualdade São Paulo: Edições Sesc. Harrits, Gitte S.; Prieur, Annick; Rosenland, Lennart & Skjott-Larsen, Jakob. (2010), “Class and politics in Denmark: Are both old and new politics structured by class?”. Scandinavian Political Studies, 33 (1): 1-27. Holla, Sylvia & Kuipers, Giselinde. (2015), “Aesthetic capital”. In: Hanquinet, Laurie & Savage, Mike (orgs.). Routledge International Handbook of the Sociology of Art and Culture . London: Routledge, pp. 290-304. Holt, Douglas B. (1998), “Does cultural capital structure American consumption?”. Journal of Consumer Research, 25 (1): 1-25. Holt, Douglas B. (1997), “Distinction in America? Recovering Bourdieu’s theory of tastes from its critics”. Poetics , 25: 93-120. Jarness, Vegard. (2015), “Modes of consumption: from what to how in cultural stratification research”. Poetics , 53: 65-79. Karademir, Irmak H. & Warde, Alan. (2016), “The cultural omnivore thesis: methodological aspects of the debate”. In: Hanquinet, Laurie & Savage, Mike (orgs.). Routledge International Handbook of the Sociology of Art and Culture . Nova York: Routledge , pp. 76-89. Lamont, Michèle. (1992), Money, morals and manners. The culture of the French and the American upper-middle-class Chicago, University of Chicago Press. Lamont, Michèle & Molnár, Viràg. (2002), “The study of boundaries in the social sciences”. Annual Review of Sociology, 28: 167-195. Lamont, Michele & Lareau, Annette. (1988), “Cultural capital: allusions, gaps and glissandos in recent theoretical developments”. Sociological Theory, 6: 153-168. Lindell, Johan. (2018), “Distinction recapped: Digital news repertoires in the class structure”. New media & society, 20 (8): 3029-3049. Lindell, Johan & Hovden, Jan Fredrik. (2018), “Distinctions in the media welfare state: audience fragmentation in post-egalitarian Sweden”. Media, Culture & Society, 40 (5). Lizardo, Omar. (2006), “How cultural tastes shape personal networks”. American Sociological Review, 71: 778-807. Lizardo, Omar & Skiles, Sara. (2016), “After omnivorousness: Is Bourdieu still relevant?”. In: Hanquinet, Laurie & Savage, Mike (orgs.). Routledge International Handbook of the Sociology of Art and Culture . Nova York: Routledge , pp. 90-103. Mears, Ashley. (2015), “Girls as elite distinction: the appropriation of bodily capital”. Poetics , 53: 22-37. Miceli, Sergio & Pontes, Heloisa (orgs.). (2014), Cultura e sociedade: Brasil e Argentina São Paulo, Edusp. Nault, Jean-François; Baumann, Shyon; Childress, Clayton & Rawlings, Craig M. (2021), “The social positions of taste between and within music genres: From omnivore to snob”. European Journal of Cultural Studies, 24 (3): 717-740. Pereira, José Virgílio Borges. (2005), Classes e culturas de classe das famílias portuenses: classes sociais e modalidades de estilização da vida na cidade do Porto Porto, Edições Afrontamento. Peterson, Richard A. (2005), “Problems in comparative research: The example of omnivorousness”. Poetics , 33 (5-6): 257-282. Peterson, Richard A. (1997), “The rise and fall of highbrow snobbery as a status marker”. Poetics , 25 (2-3): 75-92. Peterson, Richard A. (1992), “Understanding audience segmentation: From elite and mass to omnivore and univore”. Poetics , 21 (4): 243-258. Peterson, R. A. & Kern, R. M. (1996), “Changing highbrow taste: From snob to omnivore”. American Sociological Review , 61 (5): 900-907. Peterson, Richard A. & Simkus, A. (1992), “How musical tastes mark occupational status groups”. In: Lamont, M. & Fournier, M. (orgs.). Cultivating differences. Symbolic boundaries and the making of inequality Chicago, University of Chicago Press, pp. 152-168. Prieur, Annick & Savage, Mike. (2011), “Updating cultural capital theory: a discussion based on studies in Denmark and in Britain”. Poetics , 39: 566-580. Prieur, Annick & Savage, Mike. (2013), “Emerging forms of cultural capital”. European Societies , 15 (2): 246-267. Pulici, Carolina. (2014), “A alimentação solene e parcimoniosa: práticas gastronômicas como fonte de distinção das elites brasileiras”. Revista Eco Pós, 17 (3): 1-15. Purhonen, Semi; Gronow, Jukka & Rahkonen, Keijo. (2011), “Highbrow culture in Finland: Knowledge, taste and participation”. Acta Sociologica, 54 (4): 385-402. Rosenlund, Lennart. (2015), “Working with Distinction: Scandinavian experiences”. In: Coulangeon, Philippe & Duval, Julien. The Routledge Companion to Bourdieu’s Distinction Oxon; Nova York: Routledge . Rosenlund, Lennart. (2009), Exploring the city with Bourdieu: applying Pierre Bourdieu’s theories and methods to study the community Sarbruque, vdm Verlag. Saint-Martin, M. (2015), “From Anatomie du goût to La distinction: attempting to construct the social space. Some markers for the history of the research”. In: Coulangeon, Philippe & Duval, Julien. The Routledge Companion to Bourdieu’s Distinction Oxon; Nova York: Routledge . Savage, Mike et al (2015), Social class in the 21 century Londres, Pelican Books. Sølvberg, Lisa M. B. & Jarness, Vegard. (2019), “Methodological challenges when mapping symbolic boundaries”. Cultural Sociology, 13 (2): 178-197. Špaček, Ondřej. (2017), “Measuring cultural capital: Taste and legitimate culture of Czech youth”. Sociological Research Online, 22 (1): 1-17. Van Den Haak, Marcel & Wilterdink, Nico. (2019), “Struggling with distinction: How and why people switch between cultural hierarchy and equality”. European Journal of Cultural Studies , 22 (4): 416-432. Vandebroek, Dieter. (2015), “Classifying bodies, classified bodies, class bodies: a carnal critique of the judgment of taste”. In: Coulangeon, Philippe & Duval, Julien. The Routledge companion to Bourdieu’s Distinction Oxon; Nova York: Routledge . 1 Bertoncelo, 2022. 2

Tempos difíceis. Sobre a importância do feminismo*