VEJO, ENTENDO, AJO: UM SILOGISMO TENAZ NA COMUNICAÇÃO ESTÉTICA

O fato de a arte ter sido e ser ainda vinculada a uma ideia moral consolida a crença histórica na sua capacidade de determinar (re)ações a partir das proposições que ela destina ao público. A arte, sobretudo na fase moderna e contemporânea, possuiria a força singular de afetar o espectador segundo um mecanismo de “gozo” que garantiria como, ao ver, eu entenderia naquilo que olho uma motivação a agir no mundo para responder a uma injunção moral presente na obra. Para pensar essa crença, que interessa, em primeira instância, a compreensão do trabalho de muitos artistas, Hans-Robert Jauss providencia argumentos decisivos. As análises de Giorgio Agamben sobre a função da “liturgia” antiga revelam-se fundamentais, também, para cernir ainda mais intensamente o que está em jogo nessa crença na possibilidade de as obras terem um efeito moral mobilizador sobre aqueles que as recebem. Todavia, cabe a Jacques Rancière questionar se o gozo estético proporcionado por essa liturgia dispara verdadeiramente no espectador uma motivação a agir. Palavras-chave: arte; gozo; (re)ação; Jauss; Rancière; Agamben ABSTRACT The fact that art was and is still linked to a moral idea consolidates the historical belief in its ability to determine (re)actions from the propositions it destinates to the public. Art, especially in the modern and contemporary period, would have a unique strength to affect the viewer according to a mechanism of “enjoyment” (Jauss) which would ensure how, when I see, I would understand in this when I look at a motivation to act in the world to answer to a moral injunction present in the work. To investigate this belief, which concerns, in a first moment, the understanding of the work ofmany artists, Hans-Robert Jauss provides decisive arguments. Giorgio Agamben’s analyses of the function of the ancient “liturgy” are fundamental, too, to identify with more intensity what is at stake in this belief in the possibility that the works have a mobilizing moral effect on those who receive them. However, it is up to Jacques Rancière to question whether the aesthetical “enjoyment”provided by the liturgy truly triggers the spectator a motivation to act. Keywords: art; enjoyment; (re)action; Jauss; Rancière; Agamben Considerada proativa por muitos artistas e críticos, a arte encontra na relação entre história e política correspondências suscetíveis de contribuir para um adensamento e para uma complexificação de seu teor. Na genealogia do conceito de política realizada no livro intitulado “Entre o passado e o futuro” (Arendt, 1997), Hannah Arendt evoca de modo inevitável o imperativo marxista de fazer a história e de transformar o mundo por meio de uma realização da filosofia. Ela apresenta argumentos instigantes a esse respeito. Eles nos interessam porque permitem estabelecer, por extensão, analogias entre a evolução da agenda da filosofia e a evolução da agenda da arte na modernidade. A respeito do que pode interessar à arte, retiramos da leitura dos dois primeiros ensaios do livro (“O conceito de história” e “O que é a autoridade?”) duas características: 1) a arte moderna, por meio do caráter muitas vezes experimental de suas práticas, confirmaria o primado dado ao “processo” produtivo, em detrimento do resultado a ser “contemplado”; 2) o processo de produção, ou de criação, sendo relativo a cada domínio em que ocorre, tende a fazer do “valor” do processo e do produto algo relativo ao contexto e à situação em que foram desencadeados. Com efeito, a arte moderna confirma fortemente a tese arendtiana de uma total fragmentação dos mundos na modernidade, de uma multiplicidade cognitiva e simbólica resultando da implosão da tradição, de uma transformação do campo dos valores em campo aberto, singularizado pela escolha e pela construção própria a cada indivíduo. A paisagem epistêmica da pluralidade dos mundos ou, como dizia o curador suíço Harald Szeemann em 1972, das “mitologias individuais”, autoriza-nos a considerar que a arte é, para esse autor, um campo de manifestação privilegiado. Se, como afirma Hannah Arendt, a modernidade epistemológica consiste menos na afirmação de um organon transcendental permanente e sólido do que num jogo de proposições em contínuo estado de fabricação; se, desde o século XVIII, a filosofia da natureza e da história geram saberes construídos, podemos afirmar por extensão que a arte também se tornou a cena em que cada obra fabrica uma proposição. Como atualizar a leitura de Hannah Arendt no contexto contemporâneo? Se o valor artístico não é mais absoluto, mas relativo, circunstancial, ele dá à arte a oportunidade de atestar o valor, de transformar potencialmente cada obra em afirmação, senão do valor, pelo menos de algum valor que se depreende dela. Na arte, a perda de um referencial transcendente e a relativização do valor conforme as condições e circunstâncias de sua enunciação dão chance para a sua construção mais intensa e menos extensa. Antes, porém, essas condições e circunstâncias artísticas permitem que se una as agendas da fabricação e da ação, já que a passagem do por que ao como, das coisas ao processo, criam as condições favoráveis ao ato de disparar no mundo e para o mundo processos implicitamente finalizados. Assim, a ação, que Hannah Arendt restringe à ideia de efemeridade e esgotamento no próprio acontecer, torna-se a fabricação de um artifício, de um produto - a proposição - que tem um início e um fim. A arte moderna sempre se pensou como ação, mas teleológica. A insistência no processo e na necessidade da ação envolve a ideia de que o artifício age, que ele pode ser pensado no âmbito estético como o análogo da ideia moderna de uma natureza e de uma história que se desenvolvem e tendem ao progresso, propiciando, assim, valores. O paradoxo, no entanto, é que é a probabilização epistemológica e crítica do valor que incentiva a criação das proposições, ou seja, trata-se de uma verdadeira teleologia da ação baseada nas premissas apresentadas na frase anterior. À luz das análises de Hannah Arendt, não conseguimos silenciar nossa convicção de que a arte da grande época do modernismo triunfante e, hoje, um certo tipo de arte ativista “colaborativa” contemporânea,1 tentaram - e ainda tentam - dar sentido a um tipo de agir (micropolítico e estético) fugaz, mas capaz de redimir a contingência cotidiana das atividades humanas. A sacralidade da arte moderna se perdeu, mas a secularização decorrente de um certo desmoronamento dos ideais utópicos não impede que sobrevivam algumas de suas mais significativas relíquias morais. A presença da ideia de formação - Bildung - da humanidade através da arte atravessa um longo século XX que não deixa de se prolongar no início do XXI. As inúmeras vanguardas do início do século XX já transmitiam a ideia da força que a arte tem de agir, de ser uma potência ativa ou, para retomar o vocabulário de Hannah Arendt, de fabricar o valor para cumprir ou satisfazer um sentido histórico. A crença na possibilidade de a arte fabricar sentido e de projetar na história esse ideal caracteriza fortemente o tempo a que nos referimos. Esse ideal evidencia o fato de que, na modernidade, a condição política da arte está ligada à analogia entre a condição histórica da política e a condição histórica da arte. A arte pretende ser uma espécie de filosofia prática da história, ela pretende fabricar a história. Desde Piet Mondrian e Kasimir Malevic no início do século XX, com Joseph Beuys, meio século mais tarde, e, para falar de hoje, os artistas colaborativos, sempre se tratou de transformar os homens e a sociedade, de melhorá-los, de transformar suas condições de vida. Essa perspectiva política aproxima o artista do filósofo, quando ambos tentam trabalhar a transformação do (seu) conhecimento em princípio de ação, considerando-se detentores de uma legitimidade para esclarecer e despertar o público. Para resumir esse mecanismo de modo sintético, eu diria que o artista fabrica ou constrói um uso da arte que é um uso “político” da Ideia de arte. Isso envolve um jogo. No contexto da arte, o que poderíamos constatar a partir da leitura de Hannah Arendt (que não fala de arte, mas de história e de política)? A história das ideias políticas mostra como é antigo o mecanismo que leva alguém, detentor de um saber específico, a pretender transformar seu conhecimento em princípio de governo. Esse tipo de gesto é iniciado, mais uma vez, por um filósofo, Platão, quando este se encontra perante a necessidade de pensar melhor a respeito da política. Hannah Arendt lembra como o desafio de pensar “As leis” significa pensar as condições para fazer do filósofo o governante ideal. Para isso, deve-se cernir o princípio legítimo de indução, comando e obediência, seja do especialista, que é objeto de confiança, seja do filósofo, cujo governo se deve ao fato de encarnar um tipo de ser diferente daqueles que lhe obedecem. Trata-se, lembra Hannah Arendt, de definir um saber o que fazer, ou seja, seu incontestável porquê. Em um certo momento, Platão precisou reorientar seu conhecimento das Ideias verdadeiras para a determinação de medidas de ação. Mas como ele o fez? De volta na caverna da existência humana, o filósofo tenta transformar para o uso dos mortais o que viu e compreendeu e o que o deixou tão perturbado. O conhecimento precisa ser levado aos leigos com cautela e com as devidas mediações. Essa adequação é uma espécie de diplomacia cognitiva que transforma as Ideias em medidas e normas e a filosofia em política. Isso é particularmente interessante uma vez que apresenta elementos para pensar a relação entre o artista e seu público. Esse mecanismo gira em torno do uso das ideias (retiremos suas maiúsculas) por aquele (o filósofo ou o artista) que sua inteligência dos segredos do mundo ou das verdades escondidas aos anônimos coloca numa situação apropriada para construir uma relação serena entre esse conhecimento apurado e os “mortais”. Na metafórica platônica, o filósofo (no nosso contexto, o artista) tem vocação a governar, da mesma forma como cabe ao marceneiro fabricar seus móveis... Ele conhece o aparato técnico de seu material. Transformar o teor do conhecimento em princípio de ação, transformar o conhecimento teórico em participação concreta e ativa, é o que muitos artistas propõem hoje. Um pouco como se passa, a partir do livro VI da “República”, do sentido inicial das Ideias ao seu sentido de “bem” superior, essa transformação projeta um “bom para” ou um “apto a” de dentro de uma doutrina filosófica assim reorientada para o uso político. São as Ideias, transformadas em Bem, que inspiram o valor inerente à boa faculdade da ação. Na passagem da Ideia de arte para seu uso teleológico e empírico, patenteia-se uma espécie de virtude ativa e forja-se um princípio de aptidão para governar a Cidade. Esse ativismo demonstra a força imperativa desse pano de fundo, desse subsolo metafísico-político, dessa estratégia conceitual. Quando se pretende, como o pretendem hoje tantos artistas da vertente ativista colaborativa, despertar a consciência do público, fazer da arte uma prática capaz de nortear uma proposta interativa e intersubjetiva de tomada de consciência, o que está agindo é a crença no poder transformador, política e eticamente transformador e formador da arte. Nesse processo, a arte seria entendida como capaz de sensibilização moral. E essa última seria como que um primeiro passo, uma mediação necessária para alcançar um conjunto mais amplo de consequências no âmbito da vida social e, para confirmar o direcionamento desse conceito com Hannah Arendt, política. Tal mecanismo envolve a crença no fato de um certo tipo de razão - a do homo aestheticus - ser capaz de transformar o mundo e de realizar um ideal, mesmo que em escala micropolítica. Exemplaridade sensível Se nada pode reverter a crença social no poder do artista e na necessidade de sua existência, devemos, portanto, aprofundar o fato de que nada tampouco reverte um dado primordial, primeiro e soberano: a capacidade que a experiência estética, exemplificada pela experiência artística, teria de configurar um espaço de proposição e indução cuja finalidade seria moral. De que se trata? Para responder, o núcleo da experiência estética precisa ser investido de uma forma que o transforme em condição de possibilidade de algo mais amplo: o conhecimento sensível de algumas orientações de caráter moral na arte. O “desinteresse” kantiano é muitas vezes interpretado como um conceito de desconexão total do Belo em relação a qualquer tipo de compromisso e engajamento. Ora, podemos escolher em Kant um outro conceito, o da Beleza aderente, por exemplo, evocado em sua terceira Crítica, por meio da qual os homens podem representar e apresentar para si, na imaginação produtiva, alguns fins racionais capazes de nortear seu desejo de contribuir, por meio da experiência estética, ao incremento de sua condição humana... A partir dessa extensão realmente “interessada”, a experiência do Belo pode ser promissora e levar a consequências éticas e políticas. Jean-Marie Schaeffer nos dá uma chave importante quando lembra que a Estética, como doutrina filosófica, serviu, no século XVIII, de espaço coordenador, articulador e unificante de duas vertentes da filosofia que precisavam ser mantidas unidas, a razão pura e a razão prática, representando respectivamente o entendimento e a ética. No momento de fundar a completude orgânica do sistema filosófico, a Estética, como aparato conceitual que pensa e concebe os termos da experiência de prazer (ou desprazer) suscitada no sujeito por tal ou tal dado da realidade, representou uma maneira de vincular subjetividade e humanidade. Segundo Schaeffer, a relação bipolar da experiência estética e da obra de arte com o conhecimento e com a moral (em Kant), com o sensível e com o conceito (em Hegel), garante a função disponibilizada pela filosofia para fundar sua unidade sistêmica. Por volta de 1790, com Kant, ter-se-ia sistematizado a vontade de uma nova completude ontológica, que encontraria na doutrina estética o espaço de reconciliação da subjetividade e da “universidade transcendental da humanidade” (Schaeffer, 2000, p. 4). Isso coloca a experiência estética, portadora de um juízo reflexivo, num lugar de destaque, de liame, de motor, de indutora de comportamentos morais - um papel que ela continua tendo hoje nos meios artísticos que apostam muito mais na experiência estética do que na produção do objeto artístico. Sabemos também de que forma a arte moderna se caracterizou por uma potente introjeção de intenções e pretensões morais. A história da arte é um terreno privilegiado quando se trata de medir o poder atribuído a uma experiência que por muito tempo não foi chamada de “experiência estética”, mas que já possuía os mecanismos posteriormente atribuídos a ela pela Estética filosófica. Podemos observar como, em diversos contextos epistêmicos, a arte foi um suporte da ação moral. Uma de suas condições costumava ser a existência e a valorização crítica de um patrimônio considerado modelo estético-moral. Um pequeno livro do historiador da arte Salvatore Settis, intitulado “Futuro del ‘classico’”, apresenta as formas e as funções do clássico na cultura ocidental por meio da consolidação e da sobrevivência de seus dois principais paradigmas: Grécia e Roma. Sem retraçar a dinâmica histórica que fez da Antiguidade e dos Anciãos o motor de uma certa evolução da arte até o século XIX, podemos remeter ao pequeno capítulo 9 do livro, no qual Settis lembra como, para os críticos, historiadores e artistas neoclássicos do século XVIII, a complexa e sinuosa relação dialética com os clássicos visava a uma profunda renovação moral e política da sociedade por meio da arte. Esse programa estava em perfeita harmonia com as reflexões dos ideólogos sobre a arte como “tecnologia moral”, mecanismo que solicita o sentimento e o desejo do público [...], e que, portanto, é capaz de penetrar na consciência dos cidadãos para introduzir novos modelos comportamentais (Settis, 2005, p. 78). Settis lembra também que “a participação emotiva valia tanto, senão mais, do que um irrefutável raciocínio lógico” (Settis, 2005, p. 79). Reconhecemos aqui o solo histórico da arte como “tecnologia moral” (Settis, 2005, p. 78). Mas o que nos interessa é que a arte, como tecnologia moral, está historicamente apoiada sobre um determinado tipo de gestão do patrimônio artístico e da tradição clássica. Durante muitos séculos, com ênfase entre os séculos XV e XIX, a relação dialética com a tradição dos Antigos constituiu o território privilegiado de um uso simbólico, didático e pedagógico da arte. A vontade moral convocava - bem como se apoiava neles - os valores paradigmáticos e insuperáveis das obras, imagens e textos herdados da tradição, cuja atualidade era objeto de sucessivas relegitimações críticas. No fim do século XVIII, por exemplo, tanto as reflexões de um Claude-Henri Watelet a respeito das funções nacionais e morais da arte - consideradas pelo historiador Dominique Poulot como precursoras, antes da Revolução, da função pedagógica do museu (Poulot, 2008, p. 43) -,2 quanto as várias propostas de pedagogia institucional das artes, apresentadas por membros do Institut National des Sciences et des Arts, na fase de consolidação da Revolução, revelam que o que motivou a ação dos poderes públicos visando à formação moral de um público cidadão foi a existência de um patrimônio artístico. Nessa fase da história do patrimônio e de sua circulação institucional, já vemos como as noções de moral e de política se encontram articuladas dentro de uma aposta: ela consiste em pensar que o homem culto, iniciado à alta cultura artística, se tornaria um sujeito mais harmonioso e mais integrado às legitimações do Estado e à vida comum. Chegando na arte moderna, reparamos nela um amplo leque de experiências estéticas suscetíveis de satisfazer uma exigência moral graças a mecanismos de indução cuidadosamente trabalhados. Bastaria remeter aqui ao pensamento de pintores como Wassili Kandinsky, Paul Klee, Piet Mondrian, Kasimir Malevic, e tantos outros artistas de cunho construvista, no início do século XX, para entender como a arte dessa época veiculou um ideal moral absolutamente inédito. Sua singularidade reside no fato de querer ser moral sem, contudo, supor um imperativo categórico transmissível pela obra de arte, nem a possibilidade de transformá-la em crivo puramente racional. Ela, no entanto, seria propensa a motivar alguma forma de (re)ação, já que, segundo Jacques Rancière, a arte que ele qualifica de “crítica” não renunciou à crença em sua capacidade de antecipar seu efeito. Rancière, portanto, tem razão ao perguntar: “A que modelos de eficácia obedecem nossas expectativas e nossos juízos em matéria de política da arte?” (Rancière, 2012, p. 53). Segundo ele, ainda hoje, assim como no século XVIII, acreditaríamos no poder que exercem sobre nós os signos sensíveis dispostos por um autor em determinado estado, uma vez que somos fiéis ao modelo pedagógico da eficácia da arte para induzir reações. Se a ideia rancieriana da necessária conjugação das dimensões éticas, representativas e estéticas da arte para se garantir um mínimo impacto e efeito é importante, é porque ela tira a arte contemporânea das limitações da doutrina estética entendida como unilateral e, tradicionalmente, vista como suspensão “desinteressada” das relações e conexões. A Beleza aderente, para retomar a categoria kantiana, permite cernir um terreno em que os valores morais e (neo)representacionais podem colaborar com os valores propriamente estéticos. A ideia de reequilibrar a predominância dada pela estética filosófica ao desinteresse e à suspensão perceptiva por certos elementos próprios à dinâmica representacional e ética das imagens é fundamental na arte contemporânea e naquilo que ela pretende induzir no espectador. Hans Robert Jauss, filósofo conhecido como teórico da recepção, fez em 1972 uma palestra muito instrutiva, demonstrando como a Estética filosófica entende os mecanismos de tal indução. Sua argumentação representa uma resposta implícita - e antecipada - à questão que Rancière levanta acerca dos modelos de eficácia aos quais obedecem nossas expectativas em termos de política da arte. Para Jauss, só o gozo estético justifica “a função social da arte e das disciplinas científicas a seu serviço” (Jauss, 2007, pp. 10-11). Jauss acredita que apenas o gozo seria capaz de colocar o receptor em uma posição adequada diante da função emancipadora da arte. E se essa função depende do alcance, pelo receptor, do nível suprassensorial e mental de reflexão estética, então é o gozo o criador de uma atmosfera adequada e da possibilidade de passagem a esse nível suprassensorial. A uma filosofia da arte que identifica no gozo estético uma forma de compensação burguesa ao “ascetismo na vida” (Jauss, 2007 p. 14)3 (como se percebe em Adorno, por exemplo), - isto é, ao caráter negativo, alienado e ideologicamente falso da vida -, Jauss opõe a certeza de que a melhor abertura, a melhor disposição à inteligência do teor de verdade e do teor social da arte se encontram em seu papel mediador e sensibilizador. Jauss lembra com razão que foi por meio da autonomização da arte no século XIX - cujo ideal mais corriqueiro foi a arte pela arte - que a experiência estética, entendida como “gozo”, foi relegada fora do domínio cognitivo ou da ação. Antes, a arte não se reservava um domínio tão exclusivo e excludente. Para Jauss, o gozo estético cria um sujeito “liberado pela imaginação de tudo aquilo que constitui a realidade constrangedora de seu cotidiano” (Jauss, 2007, p. 21). O gozo é a força que abre as portas para uma forma de ação. Ele permite que o sujeito seja liberado, não só por, não só de, mas, sobretudo, para. Citemos longamente o autor, pois a tese alcança o elemento que mais nos interessa aqui, o da motivação à ação, conforme a ordem de raciocínio que Rancière, trinta anos mais tarde, apresentará acerca da arte política. Jauss escreve: [...] a liberação pela experiência estética pode ser realizada em três planos: a consciência, como atividade produtiva, cria um mundo que é sua obra própria; a consciência, como atividade receptiva, abarca a possibilidade de renovar sua percepção do mundo; enfim - e aqui, a experiência subjetiva deságua na experiência intersubjetiva -, a reflexão estética adere a um juízo requerido pela obra ou se identifica a normas de ação que ela esboça e cuja definição cabe a seus destinatários prosseguir (Jauss, 2007, p. 22).4 A mensagem é nítida, com uma definição clara de cada momento. No entanto, Jauss não diz que os três planos são necessariamente simultâneos. Com efeito, o segundo e o terceiro, isto é, a aisthesis e a catarsis, à diferença do primeiro, a poïesis - que ele associa a um dos “três conceitos chaves da tradição estética” (Jauss, 2007, p. 23) - interessam o receptor, que pode se dispor a agir se souber entrar em consonância com o teor de motivação contido na obra. “O homem pode ser [...] disposto, por meio da identificação estética, a assumir normas de comportamento social” (Jauss, 2007, p. 24). A disposição à ação que pode decorrer da experiência estética, enquanto gozo que libera a imaginação crítica, só é inteligível, na obra de Jauss, no horizonte da crítica que ele faz da recusa histórica de certos pensadores em reconhecer um valor ético e cognitivo na experiência estética. Ele culpa Agostinho, Rousseau, o século XIX (Jauss, 2007, p. 24) etc. Sua crítica ao pensamento estético de Herbert Marcuse (Jauss, 2007, p. 24) nos permite entender, por exemplo, como o mais grave na desqualificação da experiencia estética como gozo consiste em atitudes geralmente hipermoralizantes que desqualificam o gozo em razão de seu pretenso e complacente compromisso com o idealismo e a indústria cultural. A desqualificação do gozo constitui um ataque exageradamente moralista - na verdade, ideológico - para negar qualquer possibilidade moral na obra apreendida através dele, já que o gozo, segundo Jauss, ao liberar a imaginação crítica, é plenamente legítimo para induzir uma ação diferenciada... Entre o banimento platônico da arte e a condenação marcusiana de uma experiência feliz que nos desviaria das tarefas críticas, existe um espaço para pensar o papel autenticamente social do gozo estético. Para Jauss, o trabalho de Jürgen Habermas, por exemplo, permite pensar o desafio de se criar uma ponte entre a experiência estética como contemplação solitária e essa mesma experiência como apelo para a comunicação de uma “nova solidariedade na ação” (Jauss, 2007, p. 33). O que importa é que a ponte, a abertura da obra ao seu prolongamento moral, a disposição do receptor numa atmosfera crítica capaz de motivar uma ação posterior etc., dependam do valor e da qualidade imanente da obra, de seu poder de construção de uma proposição impactante. Para nos ajudar a entender essa atenção às virtudes próprias da obra e a sua capacidade de se transcender em uma projeção comunicativa, isto é, uma obra capaz de instituir um protocolo relacional com um sujeito solicitado para reagir ao estado do mundo, em nome de uma possível solidariedade social, Jauss recorre a Paul Valéry e à ideia de existência de uma função cognitiva da construção estética. Ele encontra no famoso diálogo “Eupalinos” (Jauss, 2007, p. 33) a convicção de que existe uma raiz comum para as operações da arte e para as empreiteiras do conhecimento. Se as operações da arte e as operações do conhecimento compartilham a necessidade de saber-construir, e se esse saber-construir significa um domínio da função cognitiva, todo o processo envolvido, tratando-se de arte, é o processo de uma “lógica imaginativa” (Jauss, 2007, p. 40), fórmula de Valéry no seu ensaio de 1894, O método de Leonardo da Vinci. Mas por que isso nos interessa? Porque é devido à lógica imaginativa de uma obra, bem como ao fato de que o gozo é gozo perante o valor manifesto de uma obra capaz de se transcender, internamente, num apelo comunicativo à ação, que as oposições entre ação e gozo, entre atitude meramente estética e prática moral, podem ser superadas. Inclusive, somente a integração, na experiência estética, de uma disposição e de uma motivação à ação, encontra-se inteiramente à altura do desafio da recepção e do estatuto moderno do sujeito receptor. Pessoalmente, discordamos da leitura que Jauss faz da arte moderna como sendo uma arte de plena autonomia: o crítico alemão escreve que a arte moderna teria considerado heresia “todo didatismo, toda intenção de exemplaridade” (Jauss, 2007, p. 58). Um estudo consequente da história da arte - a respeito, por exemplo, dos mestres do abstracionismo do início do século XX - mostra claramente que o didatismo e a exemplaridade constituem verdadeiras condições para as obras de Kandinsky, Mondrian, Malevich, inclusive para os movimentos dadá, surrealista, independentemente das diferenças e das tensões aí inerentes. Jacques Rancière também desconstrói de maneira muito eficaz a ideia de uma arte moderna sem relações ou dinâmicas heterogêneas e heterônomas. Assim, para ele, a ideologia modernista, notadamente emblematizada pela reconstrução da evolução da pintura rumo as suas mais puras e essenciais condições de existência, buscou, em Clement Greenberg, montar um mito da autonomia. Esse mito nega e desconsidera os múltiplos e incontroláveis processos de contaminação, abertura, deslocamento, deslizamento, integração ao real - e do real -, etc., que caracterizaram a arte moderna desde o início do século XX.5 Se a arte moderna explorou e experimentou tantos processos de impurificação, complexificação e “desespecificação” etc., - num misto de entropia e “néguentropie”, como dizia o paleontólogo e padre jesuíta Pierre Teilhard de Chardin -,6 ela foi, portanto, exemplar de uma arte capaz de criar elos das mais diversas espécies com seu exterior. Para nós, a arte moderna já almejou aquilo que Jauss propõe pensar como programa estético geral: o trabalho e a produção de modelos de identificação comunicativa. O que importa é que a arte saiba inventar esses modelos. Segundo o crítico, [...] a experiência estética está amputada de sua função social primária principalmente se a relação do público com a obra de arte fica enclausurada no círculo vicioso que reenvia da experiência de si e vice-versa, e se ela não se abre àquela experiência do outro que se realiza desde sempre, na experiência artística, no nível da identificação estética espontânea que toca, que comove, que faz admirar, chorar ou rir por simpatia, e que só o esnobismo pode considerar trivial (Jauss, 2007, p. 58-59).7 Ele acrescenta: [...] é precisamente nesses fenômenos de identificação, e não no estado ulterior de uma reflexividade estética livre deles, que a arte transmite normas de ação - e de uma maneira que deixa ao homem uma margem de liberdade entre o imperativo das prescrições jurídicas e o constrangimento socializante exercido de maneira insensível pelas instituições (Jauss, 2007, p. 59). Tal é a lógica da exemplaridade da arte: a experiência estética é capaz de transmitir normas singulares, porque imprescritíveis, a partir de recursos e mecanismos, eles mesmos imprescritíveis, de identificação de/a um modelo ou de/a uma causa. Nesse processo, tudo depende do gozo - nome que designa toda a cadeia da identificação, com prolongamento no estímulo à ação, um verdadeiro “interesse” -, e não apenas da possibilidade de sempre alcançar, de antemão, o nível suprassensorial da reflexão crítica por meio de uma mera tomada de consciência desconecta da imaginação. O gozo é a matriz que desencadeia todo o processo. Por que a experiência estética do gozo, que pode interessar o sujeito e impulsioná-lo a possíveis normas de ação, é tão preciosa? Porque seu estatuto, independente das prescrições jurídicas e institucionais, pode constituir o motor do interesse a causas ou modelos extra-artísticos: “modelos heroicos, religiosos ou éticos podem ganhar muito em potência sugestiva se a identificação opera por meio da identificação estética” (Jauss, 2007, p. 61). Assim, em busca de antigos fundamentos e problematizando a relação da identificação estética com “a práxis comunicacional”, Jauss observa como o cristianismo moderno está à origem de alguns deslocamentos que renovaram o campo da experiência estética: ao imaginário, o cristianismo teria substituído o exemplar; à purificação pela catarse, a compaixão que incita à ação solidária; e, ao prazer estético propiciado pela imitação, o mesmo cristianismo teria também substituído o apelativo, o convite a seguir o exemplo (Jauss, 2007, p. 62). Tais substituições cristãs, assim como a assunção do exemplar, da compaixão e da ação solidária, mostraram-se vinculadas a uma ideia de exemplaridade moral da arte. Encontramos aqui um pensamento que nos oferece os termos mais adequados para problematizar um ponto central de nosso propósito: [...] se queremos saber como a experiência estética pode desaguar numa ação simbólica ou reorientada para a solidariedade, é particularmente interessante recorrermos aos conceitos de exemplaridade, de comunicação simpática e de apelativo (Jauss, 2007, p. 63). Jauss afirma que existem três tipos de identificação: a simpática, a catártica, a associativa. O que caracteriza esta última é o envolvimento participativo do espectador. Por exemplo, no contexto da tragédia, o espectador não fica inerte e distante de seu herói - figura preeminente, desde Aristóteles, no conjunto dos modelos de identificação. Alguma troca acontece. Assim como o artista contemporâneo e o receptor de sua obra, o ator e o espectador compartilham um jogo que põe cada um em situação de exercer e de assumir um papel, ao mesmo tempo que reconhece o papel dos outros, segundo modos de comunicação suscetíveis de orientar, por conseguinte, a própria vida social (Jauss, 2007, p. 65). Não se pode exprimir melhor a singular combinação de participação (emocional, identificatória e suprassensorial) e de crença idealista na capacidade de a experiência estética motivar a ação, socializando assim, toda recepção! Essa é uma das chaves de legitimação da arte participativa, como se fala na arte desde os anos 1960...8 Agora, se pensarmos nas mais variadas maneiras que a arte contemporânea inventou para envolver o espectador, nas práticas performáticas, ambientais, relacionais etc., entendemos por que os níveis de identificação propostos por Aristóteles têm tanta importância para Jauss já que, pensa ele, o herói pode ser melhor, pior, ou semelhante a mim. No primeiro caso, irei admirar o melhor. Irei permitir-me apreciar alguém que não reside no mesmo espaço que eu. No caso de um herói semelhante a mim, que habita o mesmo domínio que eu, e graças à simpatia que ele irá suscitar em mim, serei conduzido “à identificação moral e ao reconhecimento de uma conduta a seguir” (Jauss, 2007, p. 66). Para um receptor comum, um herói comum; para mim, um herói semelhante a mim: tal é a comunicação proporcional de empatia, a melhor chance para que eu me disponha a seguir “o exemplo”. Na busca de uma arte capaz de não renunciar à sua negatividade crítica frente à realidade, mas capaz também de restaurar, ao mesmo tempo, sua “função comunicativa” (Jauss, 2007, p. 72) e sua capacidade de criar “normas” democráticas, Jauss recorre ao valor paradigmático do juízo estético kantiano. Sua função comunicativa é efetiva se, para assumir seu papel de ponte entre razão teórica e razão prática, esfera racional e esfera moral, o juízo toma como referência ou guia algo exemplar, uma exemplaridade. A perspectiva é clara: a experiência estética é o padrão experimental da intersubjetividade comunicacional mais livre e mais produtiva que existe; ela não se determina em relação a uma “necessidade lógica” (Jauss, 2007, p. 76),9 mas é exemplar, pois cabe à definição e à função do juízo estético pretender ao universal, expor-se, oferecer-se, manifestar-se como candidato aos sufrágios. Em quê? Meu gosto, diz Kant, mesmo que não seja lógico nem racional, tende sempre a querer se tornar a regra dos outros; essa tendência leva-me a pô-lo na roda das trocas dialógicas, da comunicação. Nisso, o sujeito experimenta um terreno desocupado, livre, imprescritível, para a problematização e argumentação do juízo. As trocas dialógicas suscitadas pelo ímpeto de compartilhar a experiência estética representam o melhor padrão da intersubjetividade social, da socialização; constituem funções sociais primárias. Jauss defende que, ao requerer a adesão de outrem, “esse juízo permite o estabelecimento coletivo de uma norma nova” (Jauss, 2007, p. 74). O juízo construído na experiência estética prepara os sujeitos para a arte da discussão, do consensus ou do dissensus. Sem dúvida, muitos artistas modernos e contemporâneos exploraram e exploram modos diversos de confirmar o papel determinante da arte, mostrando assim que seu estatuto mítico é a outra face de uma função experimental, fundadora de uma sociabilidade criativa que a torna moral. Nenhum artista, por mais lúdico que seja, renuncia a essa crença. A desacreditação significaria sua própria morte. Jauss ainda faz uma ressalva. Se, na época de consolidação de sua autonomia, a arte moderna precisou instituir oposições entre inovação e tradição, ruptura e repetição, contestação e instituição, negação e afirmação, essas oposições não foram satisfatórias no momento de dar conta “das funções prática, comunicativa e normativa da arte antes e depois desse período” (Jauss, 2007, p. 77). A última tese apresentada por Jauss é exemplar do espírito dos artistas que procuram introduzir em suas obras, simultaneamente, um conteúdo moral e social. Jauss diz: a experiência estética é amputada de suas funções sociais primárias enquanto a enclausuramos nas categorias da emancipação e da afirmação, da inovação e da reprodução, e enquanto não introduzimos as categorias intermediárias de identificação, exemplaridade e consensus aberto, essas categorias que, na experiência da arte, foram a base de toda atividade comunicacional, e que poderiam hoje fazer as artes saírem do impasse em que se deplorou tantas vezes vê-las engonçadas (Jauss, 2007, p. 77-78).10 Sem dúvida, esse texto, escrito em 1972, constitui hoje uma referência a ser meditada. In effectu Se é possível, portanto, que algo moral exista na experiência estética, como pensar que seu impacto determinaria o sujeito a agir ou levá-lo a (re)agir a seu teor? Jauss responde à questão, mas de uma maneira provavelmente idealista. Daí a pergunta rancieriana, que reabre uma das questões mais desafiadoras da arte: a de saber se um certo tipo de compreensão da obra de arte por parte do espectador deveria sempre desembocar em uma motivação à ação. Com efeito, não existe silogismo que declare: “Vejo, entendo, portanto, ajo”. Segundo o “modelo pedagógico da eficácia da arte” (Rancière, 2012, p. 53), o problema provém da “pressuposição de um continuum sensível entre a produção de imagens, gestos ou palavras e a percepção de uma situação que empenhe os pensamentos, sentimentos e ações dos espectadores” (Rancière, 2012, p. 54). Para entender esse modelo pedagógico, essa “tecnologia moral da arte” (Settis, 2005, p. 78), como escreveu Salvatore Settis a propósito dos projetos institucionais da Revolução Francesa, uma teoria da ação - indução, dedução, abdução - poderia nos ajudar, mas não adotamos uma grade semiótico-pragmática. Entretanto, os elementos pró-ativos da prática artística nunca deixarão de esbarrar no caráter não comprovável do silogismo que sustenta a crença nos poderes da imagem em determinar a agir socialmente... Por que, frente a uma obra de arte, uma imagem, uma encenação propositadamente orientada para questões sociais, políticas, por exemplo - e sabemos que a arte contemporânea está cheia desse tipo de proposições -, eu, espectador, iniciaria, posteriormente, de maneira quase automática, uma ação suscetível de modificar a realidade? Diante, por exemplo, de Trouxas ensanguentadas, de Artur Barrio, em 1970, diante das fotografias atuais de situações de conflitos feitas por Sophie Ristelhueber recentemente, nada garante que irei me tornar, imediatamente, um adversário ativo do regime militar que persegue os opositores políticos ou um adversário do Estado de Israel ou dos Estados Unidos. O que nos leva a pensar que o espectador que observa uma obra de arte ou que assiste a uma performance seria levado, de maneira quase automática, por determinação imperativa, a agir para atuar na ou em relação à situação evocada? Essa pergunta é rica em implicações porque problematiza o argumento daqueles que querem reaproximar a arte do domínio cotidiano da experiência, sob o pretexto de que nossa relação com as imagens de arte seria predominantemente passiva e que seria urgente reinventar um mecanismo em que o juízo reflexivo induziria um comportamento engajado. Decerto “a política própria à arte no regime estético consiste na elaboração do mundo sensível do anônimo” (Rancière, 2012, p. 65). Trata-se dos “modos do isso e do eu, do qual emergem os mundos próprios do nós político” (Rancière, 2012, p. 65). Mas, acrescenta Rancière, “na medida em que esse efeito passa pela ruptura estética, ele não se presta a nenhum cálculo determinável” (Rancière, 2012, p. 65).11 Diante dessa afirmação, nos perguntamos: se o efeito não pode ser calculado, ele pode ser construído? Rancière invoca o famoso conceito brechtiano de Verfremdung (o devir-estranho, normalmente traduzido por “distanciamento”): trata-se de um mecanismo em que “a estranheza sentida deveria dissolver-se na compreensão de suas razões”, transmitindo, intacta, “sua potência de afeto para transformar essa compreensão em potência de revolta” (Rancière, 2012, p. 66).12 O estranhamento produziria portanto um deslocamento-choque capaz de consolidar o poder reflexivo que determina a agir. Nesse mecanismo do teatro brechtiano, o mais importante seria fundir num único e mesmo processo o choque estético das diferentes sensorialidades e a correção representativa dos comportamentos, a separação estética e a separação ética. Mas não há razão para que o choque de dois modos de sensorialidade se traduza em compreensão das razões das coisas, nem para que esta produza a decisão de mudar o mundo (Rancière, 2012, p. 66). A segunda frase inicia a desconstrução. Rancière afirma que “esse efeito não pode ser uma transmissão calculável entre choque artístico sensível, tomada de consciência intelectual e mobilização política” (Rancière, 2012, p. 66). Esse comentário critica uma ilusão tenaz, neste caso, a ilusão transcendental contida na ideia que postula, como Jauss disse insistentemente, que existe uma relação transitiva entre perceber, entender e agir, entre choque artístico, tomada de consciência e mobilização. A crença na existência de uma tal relação só pode acontecer se o artista acreditar que a operação artística é dotada de algo que, em sua arqueologia do officium e nas suas reflexões sobre a “liturgia” e o rito, Giorgio Agamben chama de “efetualidade”. Já que, hoje mais do que nunca, a permanência do mito do artista - o mito como força de estruturação e duração de uma representação social e simbólica - sustenta a possibilidade de lançar mão de estratégias operacionais ritualizadas, o rico e complexo teor da “liturgia” artística oferece um paradigma inédito. Em Agamben, encontramos os conceitos que ajudam a entender melhor a crença nos efeitos da arte, já que ela explora recursos ao mesmo tempo simbólicos e práticos que geram a participação do espectador na dinâmica processual que lhe é submetida. O que diz Agamben? Na medida em que na liturgia, trata-se de um “particular regime performativo peculiar da eficácia de uma actio [ação]” (Agamben, 2013, p. 46), o officium artístico encontra no paradigma do officium cristão - e ciceroniano - um termo de comparação produtivo.13 Assim, lembra Agamben, o mistério litúrgico, ao representar a paixão de Cristo, “realiza seus efeitos, de maneira que se pode dizer que a presença de Cristo coincide nele integralmente com sua efetualidade” (Agamben, 2013, p. 50); isso implica, porém, “uma transformação da ontologia, na qual substancialidade e eficácia parecem se identificar” (Agamben, 2013, p. 50). Por meio do mito do artista, a potência da arte age como espaço institucional e social no qual o artista faz perdurar a força simbólica que ele assume explorar e manter - até que seja possível, às vezes, fazer da encenação ou da exposição do próprio corpo o rito mais favorável à essa perduração... Nesse sentido, a distinção ciceroniana entre arte in actu (que encontra em si própria seu fim) e arte in effectu (portadora de um impacto ativo além de sua enunciação) é fundamental, já que, na segunda categoria, “a operação se torna efetual, se dá realidade e consistência em um opus considerado, porém, não em si mesmo, mas primeiramente como effectus de uma operatio" (Agamben, 2013, p. 53). Como acrescenta Agamben, por meio da diferenciação entre práxis, poiësis aristotélica e várias outras categorias de arte em Cícero, a efetualidade certamente significa que “a efetuação da arte” tem um fim que não se encontra em uma “obra externa (como na poiësis), nem mesmo coincide [.] com a própria ação (como na práxis). Ela coincide, de fato, com o ato apenas na medida em que este é a efetuação (artis effectio) de uma arte” (Agamben, 2013, p. 54). Na perspectiva de tantas ações artísticas características da arte contemporânea, uma arte que não seja pensada como obra objetivada ou como puro processo pelo processo - mas como efetualidade - revela-se um parâmetro fundamental. Agamben elucida: [...] enquanto Aristóteles via realmente a obra (ergon) como telos dapoiësis do artesão ou do artista, aqui [em Cícero], por meio do paradigma das artes performativas, como a dança e o teatro [...], o telos não é mais a obra mas a artis effectio (Agamben, 2013, p. 54-55). Nessa frase, segue na tradução francesa um trecho que muito nos interessa e cuja ausência surpreende na edição brasileira: É a partir da influência que um paradigma artístico pode ter exercido sobre a operatividade litúrgica que poderíamos colocar o problema inédito das relações entre arte e liturgia. Se, em Ambrosio [teólogo do século III], é o paradigma artístico que influencia o paradigma litúrgico, na modernidade, o contrário aconteceu e é a liturgia que providenciou o modelo da atividade do artista, por meio de um processo que alcançou sua plena consciência de si em Mallarmé, mas que pode ter encontrado seu apogeu nas performances contemporâneas (Agamben, 2012, p. 68).14 Citação crucial, central, fundamental. O silogismo transitivo que postula “vejo, entendo, ajo”, sustenta-se na crença de uma potência - a arte - que se torna realidade por meio de sua própria operação em uma “ontologia energética-operativa” (Agamben, 2013, p. 60) que o artista saberia ritualizar como “liturgia”. Trata-se para nós de entender a arte de caráter amplamente performativo, mas também a arte que pratica os rituais expositivos tradicionais, transformando-os em liturgias, como se fosse fundamentalmente motivada por uma economia (oikonomia) da efetualidade artística para a comunidade e o público. O estrato mais profundo que subjaz à ação artística é, portanto, a crença - a ilusão mantida viva (ficção?) - de que o officium encontra-se levado na “esfera da efetualidade e do effectus" (Agamben, 2013, p. 87). Para tomarmos duas polaridades extremas da arte moderna envolvidas em horizontes sociais, críticos e filosóficos bem diferenciados, seja o dadaísmo dos anos 1916, o neodadaísmo dos anos 1950, seja a produção de pintura monocromática de cunho espiritualista ou materialista, podemos afirmar que o artista, além de um simples desejo de agir, sempre necessita, em seu arcabouço, de uma crença na artis effectio e na conciliação de duas posições:15 uma situação subjetiva e uma competência-dever que define “a legitimação (e o dever correlato) para cumprir certos atos em virtude de seu encargo ou de sua fUnção” (Agamben, 2013, p. 92). Tratar-se-ia de uma visão solene a respeito do artista? Não necessariamente. De Mondrian e os mestres do abstracionismo a André Breton e a galáxia surrealista e dadá, passando por Barnett Newman e o envolvimento “sublime”; Yves Klein, vendedor de “zonas de sensibilidade pura”; Lygia Clark, artista-terapeuta em Paris nos anos 1970 etc., o leque de atitudes, posturas, poses, ao mesmo tempo existenciais e artísticas, é amplo, complexo, plural, polifacetado, diverso. Dele são testemunhas, por exemplo, duas figuras emblemáticas da arte contemporânea: o pop Andy Warhol e o neowagneriano Joseph Beuys emblematizaram, nas décadas de 1960 e 1970, duas possíveis - e não necessariamente opostas - posições de discurso dentro da liturgia. A liturgia artística ritualiza a crença na faculdade de a arte disparar, através do gozo jaussiano, alguma recepção ativa e renovadora. Passagem da mística à política: o artista, sob a vestimenta democrática, nunca deixa, portanto, de re(in)staurar a concepção e a produtividade mítica de sua função ou officium, já que ritual artístico e democracia não são em nada antinómicos e que a liberdade permitiu a coexistência histórica do neodandysmo cínico do criador das Brillo Boxes e Marylin (Warhol) e do neochamanismo holístico-ecológico de Joseph Beuys, que plantou 7 mil árvores na 7ª Documenta de Kassel, 1982. Poderiamos, inclusive, ler em toda a tradição duchampiana e pós-duchampiana, isto é, numa certa iconoclastia moderna, surpreendentes formas de ritualização - dentro da liturgia adequada - da tensão com os próprios rituais artísticos tradicionais. O que mais impressiona, quando se estuda atentamente o pensamento dos artistas modernos, é a ausência de dúvida quanto à capacidade de o officium, agenciador de ações e recursos dos mais diversos, alcançar suas metas sociais e morais, sobretudo por meio de um núcleo prático, de uma poiësis inventiva (o que não quer dizer que ela seja convincente do ponto de vista plástico e estético). Assim, a crença na arte como tecnologia moral recebe dessa imersão na lógica litúrgica do officium artístico uma nova luz. No entanto, um olhar desconstrutivo como o de Rancière nos leva naturalmente a desmontar a ilusão que a máquina “litúrgica” ritualiza de modo permanente. Com efeito, nada garante que a interrelação entre obra e público - pleiteada, desejada, encenada, agenciada - leve este último a intervir na ordem da ação (meta/micro)política. Na verdade, encontramos aí algo que diz respeito ao desafio da participação, termo que surgiu na arte há meio século, mas que poderia muito bem ser o termo adequado para remeter ao complexo leque de relações que os homens mantêm com as imagens e com a arte desde tempos imemoriais. A crença num efeito da proposição artística, a encena litúrgica dos ritos que determinam a mediação estética - o que Jauss problematizou através do gozo -, apostam na performatividade do silogismo que Rancière identifica nas suas reflexões sobre a arte “política”. Vejo, entendo e re(ajo). Mas, onde Jauss e Agamben afirmam que esses ritos são portadores de efeitos dos quais os espectadores raramente escapam, o filósofo francês vai além da questão da participação empática para desconstruir seus impensados. Para ele, a arte pretende muito mais do que pode realmente. Se são as virtualidades do agir artístico que motivam Jauss e Agamben, o que interessa Rancière, como bom desconstrutor irônico, é mostrar que a política das artes não passaria de uma aposta moral não sempre coroada de êxito. Essa discussão interroga não só as mais fundamentais intenções artísticas e estéticas da arte na sua história, como também suas recentes reatualizações, notadamente no trabalho dos artistas que chamamos de “ativistas”. Vale, portanto, investigar na filosofia da arte o que pode amparar uma crítica mais contundente do agir artístico quando este é, como hoje, motivado pela ideia, já histórica, de mudar a vida. Nesse sentido, tanto as perspectivas dadas por Hannah Arendt quanto por Rancière ao conceito de “político” são pertinentes para ressituar esses horizontes. Eles se querem portadores de injunções morais. O lema final seria: refaçamos as consciências e teremos um novo mundo. Tal é exatamente o sentido do silogismo. Resta crer nele... 1 Trata-se dos chamados “coletivos de artistas”, cujo número cresceu muito no Brasil do início do século XXI. A dimensão coletiva de suas ações envolve tanto os próprios artistas, que procuram inventar uma arte mais anônima e pretensamente menos autoral, e o público convidado a entrar num processo de partilha com eles. Toda cidade brasileira possui “coletivos”, como, por exemplo, o Grupo Poro, em Belo Horizonte; o grupo Gia (Grupo de Intervenção Ambiental), em Salvador, Bahia etc. 2 Poulot fala do colecionismo como modelo do museu público, o domínio privado do colecionador sendo “colocado sob o olhar de um público identificado com uma exigência moral”. 3 Fórmula de Adorno em seu “Teoria estética” (Lisboa: Edições 70, 2006, p. 25), em que fala de “vida ascética”. 4 Segunda tese, enunciada em itálico no texto de Jauss. 5 Jacques Rancière fala disso em “Et tant pis pour les gens fatigués”. Entretiens. Paris: Éditions Amsterdam, 2009, p. 348. Ver também a entrevista “Politics and Aesthetics”. Angelaki, Vol. 8, Nr. 2. Ag. de 2003, p. 207. 6 Em meados do século XX, Teilhard de Chardin encontrou nesse neologismo uma maneira de contrapor sua potente visão teológica da criação contínua do universo no Cristo Cósmico ao princípio científico da entropia, vinda da termodinâmica de Carnot. A neg-entropia inverte a perda da informação, embutida no conceito de entropia, e aponta para a complexificação crescente do universo. 7 Quarta tese, enunciada em itálico no texto de Jauss. 8 O jogo que caracteriza a exposição e a recepção da arte é perfeitamente enquadrado nessa frase, que inclui também, já que se trata de jogo, a dimensão contextual e institucional do mundo da arte como mundo compartilhando, em todas as instâncias que o compõem, as mesmas regras de jogo. 9 Lemos na mesma página: “podemos pensar que, em caso de discussão sobre uma norma que é preciso estabelecer, a experiência estética permitirla estabelecer um consensus com mais facilidade que a lógica propedêutica.” 10 Última tese, enunciada em itálico. 11 Tradução levemente modificada. 12 Tradução levemente modificada: no lugar da palavra “força” proposta pelo tradutor português, restabelecemos para a “puissance” do original francês a palavra “potência”. Gozo jaussiano ou estranhamento-distanciamento brechtiano, mecanismos reto-verso da mesma ilusão transcendental? 13 Mencionemos logo que não podemos somente restringir a realidade do officium às suas manifestações mais evidentemente performáticas e “litúrgicas”, como, por exemplo, as encenações e outros ritos paracatólicos de Hermann Nitsch, ex-body artist austríaco, mas que devemos também estendê-lo a todo processo de exposição, que envolve sempre um rito, como sugeriu Germano Celant quando chamou a “instalação” de “cerimônia da exposição”. Cf. CELANT, G. “La machine visuelle. L’installation artistique et ses archétypes”. Kassel: Catágolo Documenta 7, 1982, p. XIII, XVII, XVIII. (Versão original Rassigna, Nr. 10 Junho de 1982, pp. 6-11). Trechos citados em BLISTENE, B.; DAVID, C., PACQUEMENT, A. (org.). “L’époque, la mode, la morale, la passion. Aspects de l’art d’aujourd’hui”. Paris: Centre Georges Pompidou/Musée National d’Art Moderne, Catálogo de exposição, 21 de Maio-17 de Agosto de 1987, pp. 440-1. 14 A alusão a Mallarmé não nos permite silenciar o fato de que um dos artistas recentes mais envolvidos na “liturgia” artística, Marcel Broodthaers, identificou no poeta do Coup de dés o inventor da arte contemporânea. Cf. HUCHET, S. “No ar: os curtocircuitos alegóricos de Marcel Broodthaers”. In: “27ª Bienal de São Paulo. Seminários”. São Paulo e Rio de Janeiro: Fundação Bienal de São Paulo/Ed. Cobogo, 2008, pp. 41-56. 15 Acreditamos que essa crença continua sendo forte, mesmo no caso de coletivos de artistas que pensam que o fato de pendurar balões entre prédios ou de incentivar ações por meio de simples cartazes quase imperceptíveis no meio do ruído e da poluição visual urbana é capaz de interpelar e levar as pessoas a mudar sua percepção da realidade! Referências AGAMBEN, G. “Opus Dei. Arqueologia do ofício”. Homo Sacer II, 5. São Paulo: Boitempo editorial, 2013. ______. “Opus Dei. Archéologie de l’office”. Homo Sacer II, 5. Paris: éditions du Seuil. 2012. ARENDT, H. (1972). “Entre o passado e o futuro”. São Paulo: Perspectiva, 1997. JAUSS, H. R. “Kleine Apologie der asthetischen Erfahrung”. Constanz : Verlangsanstalt, 1972, “Petite apologie de l’expérience esthétique”, tradução para o francês de Claude Maillard, Paris : Éditions Allia, 2007. POULOT, D. “Une histoire des musées de France. XVIIIè-XXè siècle”. 2a. ed. Paris: La Découverte/Poche, 2008. RANCIÈRE, J. (2008). “O espectador emancipado”. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2012. SCHAEFFER, J.-M. “Adieu à l’esthétique”. Paris : PUF, Les essais du Collège International de Philosophie, 2000. SETTIS, S. “Futuro del ‘classico”. Torino: Giulio Einaudi Mtore. 2°04. “Le fului’ du classique”, tradução para o francês de Jean-Luc Defromont, Paris: Éditions Liana Levi 2005

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Corporeidades silenciadas: reflexões sobre as narrativas de mulheres violadas Corporealities silenced: reflections about the narratives of violated women Jane Felipe Beltrão Camille Gouveia Castelo Branco Barata Mariah Torres Aleixo Sobre os autores » Resumo » Abstract » Text» De traduções olvidadas e diálogos “surdos” » Os segredos da escuta » O veneno da dor » As categorias sobre violência: enredamentos na narrativa das mulheres » As categorias relativas à agência: a resistência das/entre mulheres » Entre oitivas e traduções » Por diálogos e justiças » Referências bibliográficas » Datas de Publicação » Histórico Resumo Refletir sobre as formas de narrar as violências enfrentadas por indígenas e quilombolas mulheres/mulheres indígenas e quilombolas é a proposta do texto para discutir a possibilidade de tradução etnográfica das categorias nativas em confronto com as categorias acadêmicas para referir as mulheres em situação de violência, identificando as agências das protagonistas. indígenas; quilombolas; violência Abstract Reflect about the ways of narrate the violence faced for indigenous and maroons women/women indigenous and maroons is the propositions of the article to discuss the possibility of ethnographic translation of native categories in confrontation with the academic categories to refer women in violence situations, identify the agencies of the protagonists indigenous; maroons; violence De traduções olvidadas e diálogos “surdos” No ensaio que hoje pode ser considerado clássico para o que se convencionou chamar Antropologia Jurídica ou Antropologia do Direito2 , Geertz (2013) enuncia que o Direito é construído à luz de saberes e artesanatos locais, isto é, tem a ver com a cultura na qual ele tem vida, onde “funciona.” Segundo o autor, há diversos sentidos de direito e justiça – o que ele denomina de sensibilidades jurídicas – as quais, no contexto contemporâneo, são obrigadas a conversar, em suas palavras, “... uma iluminando o que a outra obscurece.” (2013, p. 237) De acordo com essa afirmação, o estudo e a prática do Direito devem ser feitos por meio da tradução cultural, buscando compreender as sensibilidades jurídicas que estão em jogo nas contendas, seja aquelas levadas à justiça estatal, seja as que são discutidas e resolvidas à luz das normas comunitárias e, principalmente, as que caminham na fronteira entre tais normatividades. Partimos desse pressuposto para compreender as maneiras pelas quais mulheres indígenas e quilombolas/indígenas e quilombolas mulheres3 da Amazônia paraense resistem às violências do cotidiano e perscrutar suas sensibilidades em meio às situações de violência. Não se trata aqui de analisar estratégias de movimentos de mulheres indígenas e/ou quilombolas para conseguir alcançar suas reivindicações políticas, o que não deixaria de ser importante objeto de reflexão, mas sim de entender as próprias corporeidades das protagonistas como estratégias de resistência. Esta última, que pode parecer mais individualizada e circunstancial num primeiro olhar, ganha contornos coletivos quando se observa o compartilhamento de histórias, as redes de ajuda e solidariedade criadas pelas mulheres, entre outras agências, como veremos a seguir. Temos em conta que esse diálogo entre noções de justiça não ocorre com paridade de armas, pois o Estado brasileiro se constituiu olvidando etnicidades e engendrando políticas de homogeneização e integração dos grupos diferenciados à “sociedade nacional.” A conversa entre as sensibilidades jurídicas no país ocorre na forma do que Yrigoyen Fajardo (2011) denomina pluralismo jurídico subordinado colonial, isto é, de modo a não reconhecer noções de direito que não sejam as provenientes do Estado. Quando se pensa em questões relativas às mulheres etnicamente diferenciadas a questão se complexifica. A promulgação de leis específicas às mulheres, que consideram a violência como crime4 , fruto de anos de reivindicações e estudos promovidos por organizações e coletivos feministas, diz pouco sobre diferenças de ordem cultural, étnica e racial. Diante disso, compreender noções de violência bem como as estratégias de resistência das protagonistas se impõe. Os segredos da escuta Assim, nosso objetivo é refletir sobre as formas de narrar a violência que atinge os corpos das interlocutoras que pertencem a povos indígenas e coletivos quilombolas e debater acerca das possibilidades de tradução etnográfica a partir da identificação das categorias nativas que compõem a enunciação das interlocutoras, considerando as diferenciadas noções de justiça presentes entre as mulheres que emprestam seus depoimentos às autoras do texto. Para alcance dos objetivos, procura-se compreender como se dá a construção da corporeidade entre as mulheres indígenas e quilombolas/indígenas e quilombolas mulheres, pela possibilidade de demonstrar como o corpo se apresenta entre elas como território privilegiado de resistência e luta. A marca do presente trabalho são as reflexões que ressaltam e problematizam as categorias que integram a epistemologia e o olhar nativo sobre corpo e violência. Para os limites da reflexão proposta, é importante esclarecer que os depoimentos oferecidos pelas interlocutoras foram ditos às pesquisadoras em diversos momentos, os quais compreendem um lastro de 15 anos de pesquisa, sem que estas tivessem a intenção de trabalhar especificamente violência e violação de corpos, entretanto, os depoimentos foram como que aflorando pela impossibilidade – estatal e/ou comunitária – de oitiva das mulheres em situação de violência. Selecionou-se depoimentos de mulheres indígenas pertencentes aos povos Tembé Tenetehara5 , hoje moradores do município de Santa Maria do Pará, Xipaya6 e Kuruaya7 que vivem no médio Xingu e, no caso das quilombolas, selecionamos as interlocutoras moradoras das diversas comunidades localizadas no arquipélago do Marajó, também no estado do Pará. Destacam-se trajetórias e memórias que marcam de modo indelével o etnocídio praticado via colonização (Beltrão, 2012), que até o presente atinge os corpos e as vidas de pessoas indígenas e quilombolas via colonialidade.8 Nesse sentido, é latente na narrativa das interlocutoras a referência ao processo de expulsão territorial, sequestro de crianças indígenas e quilombolas pela ação missionária e/ou do Estado, tentativas reiteradas e violentas de genocídio, em face da tentativa de homogeneização e apagamento das pertenças. Vale, porém, ressaltar que a colonialidade incide de forma específica e brutal necessariamente sobre os corpos das mulheres, pois esta, segundo Lugones (2008) , se instituiu também como colonialidade gênero, que instituiu o sistema de gênero colonial/moderno, baseado nas dicotomias homem/mulher e público/privado, como o padrão. Isso ocultou sistemas de organização dos “mundos sexuais” nativos, em que muitas vezes as fronteiras entre masculino e feminino eram fluídas e as mulheres exerciam papéis importantes na vida coletiva. Não tratamos aqui de perscrutar esses sistemas “originais” e nem acreditamos que, hoje, isso seja possível. Porém, importa ter isso em consideração para um olhar etnográfico mais apurado. O ponto nevrálgico, locus em que os caminhos etnográficos se tornam mais “nebulosos”: ter o corpo marcado, como é o caso de indígenas e quilombolas mulheres/mulheres indígenas e quilombolas, pela violência física e sexual, muitas vezes infringida pelos próprios “parentes”, ou ainda por pessoas não indígenas e quilombolas, fato que mobiliza sentimentos como dor, sofrimento e vergonha. A possibilidade de ouvir (com tudo o que o ato da escuta representa para a Antropologia) implica em cuidados9 redobrados na interpretação de atos e falas que não são ditos a qualquer pessoa, nem em qualquer lugar. Os processos de violação dos corpos, vividos como eventos devastadores, segundo as interlocutoras, também formam seus modos de narrar, de liderar e de agir politicamente. De alguma forma, somos “ouvintes” privilegiadas, considerando a confiança com a qual fomos brindadas, portanto nosso compromisso com a ocultação das identidades é fato. O veneno da dor Veena Das (2008a), em seus escritos, problematiza a correlação entre dor e linguagem. Segundo a autora, por meio da expressão da dor, é possível sair da privacidade sufocante que ela produz na vítima. De acordo com Das (2008a), eventos devastadores produzem um tipo de conhecimento que só é alcançado pela experimentação do sofrimento, um conhecimento venenoso. Portanto, violências extremas não seriam apenas responsáveis pela destruição de vidas e corpos. Atuam, também, na construção de sujeitos e linguagens da dor. A enunciação da dor pede, portanto, admissão e reconhecimento, o que nem sempre ocorre. Trata-se, nos termos da autora, de sentir a dor no corpo do outro. Essa é a proposta ao fazer antropológico, requisitado de forma envergonhada, mas insistente por nossas interlocutoras. De acordo com Michael Taussig (1993), a reprodução da imagem dos povos indígenas como selvagens, irracionais e violentos é o que possibilita a propagação do terror colonial. E no caso dos coletivos quilombolas a estratégia de resistência e luta dos negros é imperdoável ao mundo colonial, afinal, os africanos são equiparadamente considerados, como os indígenas, pessoas desprezíveis. Trata-se uma operação mimética por parte do colonizador, que conduz a atos de extrema violência, não importando se esse imaginário é verdadeiro ou não. As culturas do terror criam, desse modo, o que o autor denomina como espaços de morte, nos quais indígenas, africanos e brancos viram nascer o Novo Mundo. Segundo Taussig (1993) o terror é o mediador por excelência da hegemonia colonial e acrescenta-se da discriminação presente em nossa sociedade. O autor afirma ainda que “... as culturas do terror são nutridas pelo entremesclar do silêncio e do mito.” (Taussig, 1993, 30) Os efeitos paralisantes e silenciadores do terror encontrariam na narrativa sua primeira possibilidade de cura. Quando decidiram falar sobre as violências que marcaram de forma mais ou menos severa suas trajetórias, nossas interlocutoras começaram a vencer a primeira imposição do terror, o silêncio. Como diz Maria Aparecida, quilombola, que por ser estudante universitária, escreveu seu depoimento: “não vou falar e também nunca escrevi, mas faço [o texto] porque não consigo explicar porque aconteceu comigo, talvez não haja explicação, e mesmo que tivesse jamais iria me fazer esquecer aquele homem imundo que me rasgou e tudo que aconteceu comigo. Neste caso, a forma de prevenção pra que não possa acontecer com outras mulheres é contar e contar do massacre que sofri. Mas para isso tenho que ter coragem para dar o testemunho, mas tenho muita vergonha por isso escrevo. Peço que a senhora conte, leve adiante, o massacre não pode continuar.” Para compreender o que diz Taussig (1993), traz-se à consideração e em complemento à Maria Aparecida, o depoimento de Maria Dolores, de pertença Kuruaya, que narra seu pânico no dia da violação, praticada dentro de sua casa, na frente do marido e das filhas, que à época tinham respectivamente oito anos e dois anos: “Dormi, como todas as noites, com meu marido e minhas filhas na minha cama. De madrugada acordei e levei o maior susto da minha vida, me deparei com um homem passando da sala pra cozinha, pois a porta do quarto ficava entre aberta durante a noite, então no primeiro momento imaginei que pudesse ser alguém de fora, pensei que fosse meu marido, então olhei na cama e vi as meninas e ele, percebi que tinha alguém na casa e não era o meu marido, ele dormia com as crianças. Logo depois minha filha de oito anos acordou e percebeu que eu estava bastante assustada e nervosa, então falei que tinha alguém na casa, pedi que ela não fizesse escândalo. Na hora, eu só pedia a Deus proteção pra minha família e, ao mesmo tempo, sem saber o que fazer e como agir naquela situação de angústia e muito muito medo.” Na sequência dos acontecimentos, Dolores se apercebe do perigo e evoca Deus: “... com toda Tua sabedoria me traz tranquilidade e, nas minhas orações, pedi que Deus fizesse aquela pessoa ter compaixão e não fizesse nada com meu marido e com as minhas filhas, eu coloquei minha vida nas mãos Dele. Eu dizia: Deus coloco minha família em suas mãos me proteja e me ilumine nesta noite, pois sei que corro perigo, me abençoe, te peço em amém. Dona a senhora já teve medo?” Dolores prossegue a narrativa, ofegante, e esclarece, “... agradeço todos os dias a Deus, eu esqueci parcialmente o fato, só que por mais que os anos passem, eu não consigo falar com as pessoas sobre o assunto, por medo e até mesmo vergonha.” O relato foi adiante, entrecortado pelo choro às vezes discreto, outras vezes convulsivo a ponto de interromper a narrativa. Ela segurava as minhas mãos10 com força, de certo ainda sentia pânico e as marcas corporais que se apresentavam vivas, intensas! O relato é bastante longo, mas importante para compreensão da dor, silenciada pelas circunstância e sobretudo pela vergonha. Diz a Kuruaya: “... trabalhei o dia inteiro, sou professora no bairro dos índios, local tomado pela violência. Nunca tive medo de nada. A casa é pequenininha. Toda noite eu tenho o costume de verificar portas e janelas, e nesse dia não foi diferente, entretanto nunca imaginei que alguém pudesse entrar na casa de alguém pelo telhado, por onde entrou o bandido. Quando me dei conta do perigo fingi que estava dormindo e observei por baixo do travesseiro que ele [o bandido] se aproximava e logo entrou no quarto meio agachado, ficando em volta do berço da minha filha. Chegou perto da cama e pôs a faca no meu pescoço, daí eu gritei e ele se debruçou em cima da cama fazendo ameaças, dizendo pra não gritar se não iria matar todo mundo caso eu não trepasse [mantivesse relações sexuais] com ele.” Dolores informou que ele estava visivelmente muito perturbado andando de um lado para o outro, parecia não saber o que fazer, aparentando transtornos. Tinha aparência de drogado, exalava mal cheiro, mas não parecia bêbado e nem cheirava a álcool. Ela continua: “... depois da ronda pela casa, ele saiu um momento do quarto e eu disse ao meu marido finge que dorme e cuida das meninas, pois ele vai voltar. Minha filha que estava acordada chorava muito e falei pra ela ficar bem caladinha como se estivesse dormindo foi o que ela fez, ficou quietinha abraçada à irmã e ao pai. Ele voltou e me obrigou a manter relações sexuais com ele. Sem saber o que fazer, pedia ajuda a Deus. Aquilo foi uma humilhação muito grande, na minha cama, com o meu marido vendo tudo e as minhas filhas então? Até hoje não sei “transar” como antes, a lembrança me perturba, tenho problemas, passo mal, meu marido não se conforma, reclama. Temo que me abandone por isso. Com os olhos distantes, como se voltasse à cena do crime, Dolores informa: “... pela conversa dele, percebi que ele não falava coisa com coisa, às vezes parecia tranquilo, daí a pouco se exaltava e com a faca na mão, junto do meu pescoço. Que medo! Quando ele falou que iria fazer sexo comigo, tornei a me apavorar e, na hora, pensei na família e o quanto seria pior se fossem com as minhas filhas, pensei que era melhor eu ceder do que ele fazer algo pior conosco, ele sentou na cama e falou que não era pra eu gritar, era melhor pra mim. Ele se serviu de mim duas vezes e perguntava, gostou cachorra, tu foste pega no dente, índia é tudo assim ... Eu desesperei, além de me usar me humilhava e minhas filhas e meu marido assistindo, acho que a pequena não acordou, nem sei ... quando percebi que ele tinha saído da minha casa parece que o mundo caiu sobre mim, não tinha reação de nada lembro que peguei o celular, mas não tinha condições de ligar pra ninguém, acho que ainda não tenho mundo.” Abalada, Dolores confessou que teve dificuldade de identificar o criminoso, mas o fez. Ele respondeu processo e foi condenado, o fantasma à época era a saída do agressor da cadeia. Ela ainda vive aos sobressaltos, pois se aproxima o final do cumprimento da pena. As categorias sobre violência: enredamentos na narrativa das mulheres Nos diálogos estabelecidos com as interlocutoras é possível detectar em seus depoimentos e mesmo discurso de indígenas e quilombolas, uma série de categorias a respeito de eventos que, do ponto de vista antropológico, poderiam ser definidos analiticamente como situações de violência, embora dificilmente nossas interlocutoras tenham usado explicitamente o termo violência, as protagonistas referiram-se a todo momento a situações que atingiam seus corpos individual e coletivamente. Os corpos são atingidos de forma coletiva na medida em que a corporeidade e construída socialmente e as violações são estruturais e não individuais, além de engendrarem dor e resistências. Os fatos narrados aproximam-se da definição de violência proposta por Paula Lacerda (2015) que a entende como: [...] um amplo conjunto de situações que poderiam ser percebidas, de outro ponto de vista, como ‘causadoras de sofrimento’, pessoas se apresentam como ‘vítimas de violação de direitos’, o que as transforma em sujeito e potencializa o alcance de suas reivindicações.” (2008, 28) A primeira categoria que se refere a tais processos diz respeito a violência enfrentada coletivamente pelo povo Tembé Tenetehara na Colônia Santo Antônio do Prata, educandário que recebia as crianças indígenas sequestradas de suas comunidades e apartadas de seus parentes para serem educadas, catequizadas e “civilizadas” com base na pedagogia cristã dos missionários Capuchinhos. Posteriormente, a Colônia foi transformada em Leprosário e a ameaça de contrair a doença afastou ainda mais os Tembé Tenetehara do território que tradicionalmente ocupavam. No período de instalação do Leprosário, conforme conta Dona Maria Joana, circulava na região o boato de que era possível curar a hanseníase se o doente comesse o fígado de uma pessoa saudável. Na época chegaram a ser encontrados na mata cadáveres com o fígado retirado, o que reforçava ainda mais o temor de que uma das pessoas a serem mortas pudessem ser Tembé Tenetehara. É desse cenário que emerge a categoria massacre: as interlocutoras constantemente reafirmam, ao dizer dessas memórias que “o nosso povo foi muito massacrado no Prata”. A noção de massacre parece elucidar mais enfaticamente os acontecimentos que a categoria violência, uma vez que as violações enfrentadas coletivamente pelos Tembé Tenetehara – ditos de Santa Maria – incluem espoliação territorial, epistemicídio, quebra dos laços de parentesco e, em última instância, o adoecimento e a morte dos membros do povo. O mesmo ocorre com as mulheres Xipaya e Kuruaya que, expulsas de seus territórios no médio Xingu, vieram à cidade e vivem presas a espaços, onde sequer podiam, há 10 anos, se declarar indígenas. Eram, como referem algumas das interlocutoras, impedidas de falar a língua materna, enfrentaram o massacre da discriminação, produzida pelo racismo que se apresenta em estratégias de dominação de ordem material e ideológica, utilizada pelas estruturas coloniais para manter status privilegiado de membros do grupo dominante, produzindo a perene subalternidade dos povos etnicamente diferenciados (Moreira, 2016 ), não fosse a luta que empreendem diuturnamente. No caso das quilombolas o massacre foi/é pesado e reproduzido nas diversas narrativas. A segunda categoria que diz de processos de violência é a de escravidão. Conforme explica Maria da Paz: “os antigos do nosso povo tratavam a mulher como escrava. Ela só servia para ter filho, cuidar da casa e da roça, ser usada pelo marido e trabalhar pro pai. Hoje não pode mais ser assim, mas muitos homens no nosso povo e de fora querem tratar as mulheres nessa escravidão.” A categoria escravidão parece dizer respeito a crítica que as mulheres indígenas fazem sobre a condição feminina dentro das diversas comunidades. O entendimento de que as mulheres eram e são tratadas como escravas, guarda em seu interior a reivindicação de que sejam entendidas como sujeitos, dotadas de direitos, vontades e voz. Tal categoria diz respeito a forma como as interlocutoras pensam a mulheridade e a crítica que fazem por não serem reconhecidas de tal forma. Entre as quilombolas a condição de escrava é mencionada por conta das avós e das bisavós, entretanto, algumas vezes, a condição passada é negada para não comprometer a luta e favorecer a discriminação. A terceira categoria nos parece a que possui maior tensão ao ser utilizada analiticamente: trata-se da categoria maldade. Durante muito tempo do percurso das pesquisas que apontavam para as categorias nativas, evitou-se conjecturar sobre a mesma, por receio de que escrever sobre o assunto pudesse “dar munição” para os antagonistas em relação aos povos tradicionais. Entretanto, ao buscar as noções de justiça que permitem a luta política das mulheres, a maldade atravessou o percurso da problematização. As interlocutoras com quem se dialogou nomeiam como “homens maus” aqueles que agridem seus corpos, física e/ou sexualmente. E, a essas agressões, as mulheres indígenas dão o nome de maldades. As quilombolas, algumas vezes referem-se às violações dos homens maus, como malinesas. Denominam malinesas às penas impostas, pelos encantados, a homens (e também à mulheres) que vivem fora das normas tradicionais, malinesas que trazem como consequência efeitos deletérios às relações sociais. Malinos são os encantados que castigam os transgressores com o mal, tornando-os perniciosos ao convívio social. Os encantados que “jogam a malinesa” vivem nas matas e nos cursos d’água e por serem donos dos espaços, exigem reverências e cumprimento de obrigações, nem sempre observadas pelos homens maus que terminam “malinando” com as mulheres (ou mulheres que malinam com homens). No caso da maldade ou da malinesa entre indígenas e quilombolas, uma e outra não integram a essência dos humanos, são tomadas pelas interlocutoras como condição que, dependendo do comportamento, pode ser afastada dos humanos, sempre que, arrependidos, voltem a cumprir as obrigações com os encantados. A tensão reside no fato de que muitas vezes os homens maus ou malinos podem ser companheiros das mulheres indígenas e quilombolas ou lideranças dos referidos coletivos. Duas situações parecem ilustrativas de como a categoria maldade é posta em ação. A primeira delas diz respeito a história contada por Maria Laura, que teve a filha Maria Conceição sequestrada por um homem que circulava na comunidade. A menina passou oito dias em cativeiro submetida a violência física e sexual pelo agressor. Por fim, depois de espancá-la quase até a morte, o criminoso abandonou-a sozinha na casa onde a escondia. Embora Maria Conceição tenha sido encontrada com vida e acolhida sob o modo Tembé de cuidar do corpo, a marca da violência permanece para o resto da vida e o fato de o agressor ter muito dinheiro, à época, assegurou-lhe a impunidade. Ao contar a história de sua filha, Maria Laura referiu-se ao criminoso como um “anjo mau”, aproximando-o do mito bíblico que conta a história de Lúcifer. A mesma categoria foi utilizada pela filha de Maria da Paz, Maria Lídia, para referir-se ao seu pai. Na época ele se encontrava doente, com desmaios e fraquezas constantes, e as causas não puderam ser identificadas pelos médicos que a família procurou. Maria da Paz, desde que a conhecemos, narra as agressões cometidas pelo marido, que espancava ela e os filhos e dizia constantemente a todos palavras duras, que “machucavam” quem as ouvia. Conversando com Maria da Paz e Maria Lídia, a filha afirmou que a doença do pai era um “castigo por todas as maldades que ele fez com a gente”, com o que Maria da Paz concordou. A noção de maldade parece ter um sentido diferenciado para as mulheres indígenas se comparada aos usos que assume na sociedade dita ocidental. Enquanto no ocidente a maldade é frequentemente tomada como propriedade de pessoas perversas, entre as protagonistas indígenas a categoria parece se aproximar do que a Antropologia e os movimentos de mulheres tem chamado de machismo ou violência de gênero. Atentar para o uso diferenciado do termo pelas interlocutoras só foi possível em função do envolvimento etnográfico no contexto em que estas se inserem e por meio do diálogo e inflexão mantida pelas autoras. Por fim, a última categoria percebida como o sinônimo nativo para a violência é a de machucar. Frequentemente usada na sociedade ocidental para designar ferimentos físicos, sejam acidentais ou infringidos, machucar entre as mulheres indígenas refere-se ao ato de dizer palavras ofensivas e duras, que atacam a honra e o caráter das pessoas atingidas. Nos relatos de violência dentro das relações com os maridos – sejam eles indígenas ou não – as interlocutoras afirmam que as palavras duras são tão dolorosas e machucam tanto quanto agressões físicas. Tendo em conta a lei brasileira sobre violência doméstica, temos que o “machucar” talvez possa ser compreendido como violência psicológica11 , uma entre as possibilidades de violência contra a mulher, deslindadas nesse diploma legal. Entre as quilombolas há narrativas que informam que as palavras ofendem mais que serem marcadas por paus, chicotes e outros instrumentos de agressão. As marcas físicas podem ser tratadas, curadas, mesmo que levem tempo, mas as marcas dos machucados ferem a alma (para além do corpo) e permanecem na memória das interlocutoras e nada nem ninguém faz desaparecer. Abaixo as correspondências relativas às categorias éticas e êmicas. Thumbnail  Quadro 1 : Categorias éticas e êmicas sobre violência As categorias relativas à agência: a resistência das/entre mulheres Uma das principais questões que se tornaram visíveis no diálogo com as interlocutoras diz respeito ao fato de que as violações que atingem os corpos das mulheres jamais foram aceitas de forma passiva, elas não se deixam paralisar. Os processos de agência – aqui utilizada no sentido atribuído por Pierre Bourdieu (1983) e Anthony Giddens (1984) – e resistência, sempre estiveram presentes nas trajetórias das indígenas e quilombolas. O silenciamentos via etnocídio atingiu seus corpos e vidas, mas não se consolidou na medida em que as protagonistas sempre estiveram dispostas a buscar alternativas e resisitir. É com o intuito de romper com o etnocídio e a destituição da memória de seus coletivos que as mulheres indígenas ou quilombolas contam histórias de extrema violência no contexto da pesquisa; supomos que elas acreditam que por meio do registro na produção antropológica, as interlocutoras mantém a expectativa de que as memórias não sejam esquecidas nem apagadas, mas que, pelo contrário, permaneçam vivas na luta por direitos coletivos e por reconhecimento. Relatar as estratégias de agência e resistência e o protagonismo das interlocutoras frente a situações de poder assimétricas coaduna-se com o objetivo de “contar para prevenir”, como disse Maria dos Anjos, há anos, quando em uma roda de conversa aconselhou as jovens presentes: “... não guardem segredos, eles envenenam a vida. Não façam como eu que evitei contar as malinesas, daí não consegui domei os maus [homens] da minha vida. Nem os de casa, nem os da rua e ninguém deve machucar nossas almas, somos pessoas, [e olhando firme as meninas moças da roda] devemos reagir, assim as malinesas vão pra longe da comunidade.” De fato, contar a história parece uma das principais categorias que distinguem a agência das mulheres diante da violência sofrida. O trabalho das autoras, membros da equipe de antropólogos do Grupo de Pesquisa Cidade, Aldeia & Patrimônio só teve início a partir do convite dos membros da comunidade para que os pesquisadores escrevessem a história do povo Tembé Tenetehara e de outros povos indígenas e quilombolas, como informamos à partida. Quando na comunidade, muitos pesquisadores foram “intimados” a entrevistar os membros mais velhos da comunidade, para garantir que as histórias que estes se lembravam fossem registradas antes que se perdessem com seu falecimento. Maria Laura, com o início das pesquisas na comunidade, decidiu começar a escrever diários, onde poderia registrar suas memórias pessoais e coletivas e repassar para os pesquisadores do grupo. Outra categoria importante nos processos de agência das mulheres indígenas, especialmente as Tembé, é a do cuidado. Conforme elucida Maria Laura: “... o nosso povo foi muito massacrado no Prata. Morreu muita gente. A gente jamais podia dizer que era índio, até hoje nós vivemos discriminados. Hoje tá muito melhor, a gente vive junto, faz nossas festas, cuida uns dos outros e o nosso povo se alegra. Mas vive com a discriminação. Não podemos usar uma roupa, que já dizem que nós não somos índios. Eu vou dizer que eu sou uma portuguesa, sendo que eu não sou? Até tem gente que diz, mas eu não digo. Eu digo o que eu sou, eu sou Tembé. Mas tem que viver com a discriminação.” Ao contrário da visão de cuidado amplamente discutida na literatura produzida na área da Enfermagem, pautada na atenção e medicalização de pessoas com doenças, ou deficiência, o cuidado tembé e das demais etnias é holístico e alimenta o corpo de forma completa, por meio do sistema tradicional de ação para saúde, que contempla não apenas o cuidado com o corpo, mas a proteção espiritual, e as lutas políticas por uma vida melhor, que acarretam uma corporeidade saudável. E esse corpo não se estrutura desconectado do ser indígena, com toda a carga política e epistemológica que a identidade enseja para as tembé, xipaya e kuruaya. Cuidar de si e dos seus implica em se proteger de violações e fortalecer o grupo para que as lutas políticas possam ser continuadas. Nesse sentido, o cuidado de si constitui um empreendimento que conforma resistências políticas, materiais e epistemológicas, em um contexto no qual o corpo vem à cena tanto como território de lutas e afirmações identitárias, quanto como alvo de opressões e estigmas. Com as mulheres quilombolas a situação é semelhante, sempre que alguém se machuca a cura vem via sistema tradicional de ação para saúde, mesmo que a pessoa machucada e violada receba atendimento dentro do sistema ocidental de ação para saúde. Outra categoria percebida como forma de agência das mulheres nas tensões que envolvem os maridos diz respeito a educação dos filhos. Segundo Maria Laura: “... a mulher é que educa o filho. Se ela não mandar ele ir lá, tomar a bença do pai, fazer um carinho no pai, ele não vai, não, fica na dele. Foi por causa de um dos meus filhos que meu marido parou de me bater. Um dia, ele era novinho, magro, magro... Ele virou pro pai e falou: “O senhor nunca mais vai bater na mamãe, hoje foi o último dia”. O pai perguntou: “E o que tu vai fazer?”. E ele disse: “Eu não sei, mas o senhor não encosta mais um dedo nela”. Depois disso, nunca mais ele me bateu.” Uma das filhas de Maria Laura, ao ver o pai com outras mulheres na rua: “... fazia um escândalo, batia nela. Uma vez enchi as coisas da mulher de areia, ficou tudo sujo. Depois ele metia a porrada em mim quando chegava em casa, mas eu nunca deixava barato.” Atualmente as crianças que na infância enfrentaram os pais em defesa de suas mães, criam redes de apoio e acolhimento das indígenas mulheres em situação de violência, seja recebendo-as em suas casas, rezando por elas ou conversando com os maridos e, muitas vezes constrangendo-os perante os demais parentes. Maria José, quilombola da comunidade Maria me ajude constrangia o marido, mostrando de casa em casa os ferimentos produzidos pelas surras que levava, porque teimava em estudar. A peregrinação de casa em casa produzia o recolhimento do agressor que, alcoolizado, tinha produzido as maldades, malinado a protagonista. Por fim, a última categoria percebida como característica da agência empreendida pelas mulheres tembé em relação a violência diz respeito ao processo de fechar o corpo. Prática também verificada entre as quilombolas. Em um contexto em que as violações de direitos ocorridas em hospitais são reais e prováveis, fechar o corpo contra coisas ruins é essencial. Entre as práticas frequentes, temos: rezar na cabeça de criança com febre; ministrar ervas medicinais para pessoas que adoecem ou são envenenadas; manter a gravidez ou interrompê-la quando as vidas da mãe e da criança estão ameaçadas; são exemplos de saberes e fazeres acionados no agenciamento de situações consideradas de risco, em que se sabe que o acesso ao sistema ocidental de ação para saúde não responde satisfatoriamente ou há dificuldades em acessá-lo. Fechar o corpo entre os povos tradicionais implica proteger as pessoas da comunidade tanto no plano físico quanto no espiritual. Os rituais podem ou não estar relacionados à alguma forma de religiosidade indígena afro-brasileira ou ocidental. Uma das interlocutoras, reconhecida “por ser uma das mais antigas dos nossos antepassados”, entre os Tembé, relata que nos tempos antigos, quando houve grande incidência de hanseníase na região, ela conseguiu paralisar o avanço da doença no corpo de uma das pessoas da comunidade utilizando as propriedades do mucuracaá, uma planta medicinal que também é utilizada entre os tembé para combater o mau-olhado. Outras indígenas afirmam que uma mulher grávida que estivesse sob os cuidados de Maria Carmen estaria em boas mãos, uma vez que ela acompanhava a gestação desde os primeiros meses até a hora do parto, no qual a mulher era virada de lado e dava a luz enquanto a interlocutora rezava em sua barriga. Despois do parto, a profissional de saúde permanecia na casa da parturiente até o resguardo terminar, portanto eram quarenta dias de cuidados diferenciados. Durante uma das idas a campo, a mãe de uma criança que havia nascido há pouco tempo encontrava-se aflita, pois o bebê não parava de chorar e não costumava ser assim. Nesse momento, Maria Carmen, sogra da mãe da criança, entrava na casa e, ao se dar conta da situação, perguntou se a menina havia ido tomar banho de igarapé. Como a resposta foi afirmativa, a interlocutora disse: “... minha filha pegue alho, amasse e misture com álcool e deixe um tempo. Depois passe com o dedo na palma da mão da neném, na sola do pé, no braço e na coxa, em forma de cruz. Vai ficar um cheirinho ruim, mas não tem problema, ela vai melhorar. Ela deve ter visto alguma coisa no igarapé, criança é muito sensível, parece um pintinho novo. Quando eu era pequena, minha tia levava a gente pro igarapé, mas ela entrava primeiro, pedia licença pra mãe da água pra gente entrar e jogava o alho na água, aí o banho era sossegado.” O alho é antídoto (combate o veneno) para os encantados que “jogam malinesa” quando as pessoas não reconhecem as regras, que não se referem apenas aos espaços de domínio dos mesmos, mas às horas proibidas do dia e da noite. A paçoca de gergelim preto “pisada” com hortelã é utilizada para “botar pra fora” (as indígenas não utilizam o termo “aborto”, as quilombolas usam expulsar), principalmente quando a gravidez ameaça a vida da mãe ou quando o parto é de risco. Para mulheres grávidas que sentem dores, ministra-se chá de gengibre. Para inflamações, especialmente em casos de problemas de próstata, o caroço de abacate mostra-se eficaz. Crianças, quando morrem antes do batismo, segundo os católicos, choram durante sete dias e precisam ser batizados para que “descansem”. A última prática mostra-se elucidativa da forma tembé de pensar a construção da “pessoa”, a partir do ato de batizar a criança morta. Para os Tembé Tenetehara não se deve negar às pessoas mortas, quando oriundas de famílias cristãs, o direito ao ritual de batismo que as forma e legitima. As situações acima descritas, integrantes das observações de campo, revelam que mesmo enfrentando situações de precariedade e violência, as mulheres exercem seu protagonismo, instituindo o “ser sujeito” e encontram alternativas para agenciar situações de violência. O corpo e as múltiplas corporeidades que coexistem entre as interlocutoras são territórios privilegiados da resistência de indígenas e quilombolas mulheres e das formas de cuidar de si mesmas. Thumbnail  Quadro 2 : Categorias êmicas e éticas sobre agência Entre oitivas e traduções Os diálogos em campo demonstram que os atos e falas das interlocutoras são ferramentas importantes para a compreensão de suas realidades. Ao mesmo tempo, analisar o discurso no contexto das relações antropológicas passa a ser um desafio, na medida em que aponta para a necessidade de proceder o controle das dificuldades de tradução etnográfica, dos etnocentrismos ocidentais e do viés da colonialidade vigente. Em trabalho de grande influência e repercussão, Gayatri Spivak (2010) questiona criticamente a (im)possibilidade de fala de determinados grupos. A autora constata que os subalternos em geral, e o sujeito historicamente emudecido, a mulher subalterna em particular, foram e são, ao longo da história, mal compreendidos ou mal representados pelo interesse pessoal dos que têm poder para representar. A proposição instigante de Spivak (2010), além de elucidar silenciamentos, colonialismos e violências, também aduz escutas anti-hegemônicas, epistemologicamente desobedientes, pós-coloniais. Inspirada pela reflexão provocativa da filósofa indiana, Lacerda (2014) considera que em meio a tentativas de silenciamento, os grupos e sujeitos subalternizados – e esse é um deslocamento analítico fundamental para que a subalternidade não seja entendida como lugar paralisante e intransponível – estão falando. Superando a perspectiva colonialista que pretende “dar voz” aos grupos subalternizados por meio da pesquisa, Lacerda (2014) tensiona a questão que orienta Spivak (2010): como o não subalternizado, o privilegiado, pode escutar? As posições teórico-epistemológicas (que também possuem caráter político) adotadas na presente discussão objetivam favorecer a escuta etnográfica mais responsável, capaz de superar estereótipos de passividade e compreender indígenas e quilombolas como sujeitos de suas próprias histórias. A estruturação do olhar antropológico sobre o campo, em diálogo com os conceitos e categorias referidas, foi essencial para compreensão das interlocutoras como protagonistas de suas próprias histórias, não como vítimas passivas, desagenciadas e paralisadas diante de violações. Qualquer procedimento em sentido contrário seria uma prática etnocêntrica. Atentar para as narrativas das mulheres indígenas e quilombolas, a partir do que foi explicitado, é um esforço que vai além de retomar o protagonismo de vozes subalternizadas. Trata-se de uma tentativa de constituição de possibilidades de outra epistemologia, outras referências e sensibilidades, diferentes das que o pensamento colonial afirma serem as únicas dignas de serem aprendidas e respeitadas. A partir das falas desses sujeitos, confrontamos a tentativa histórica de epistemícidio (Santos, 2010) e assimilação que incide sobre os povos indígenas e quilombolas, e, mais especificamente sobre mulheres indígenas e quilombolas/ indígenas e quilombolas mulheres. Trata-se de uma opção metodológica que abriga dimensões e responsabilidades políticas, de contemplar enunciações ditas e tomadas como periféricas e arbitrariamente alijadas pelo pensamento ocidental e colonial. Por diálogos e justiças A diversidade das agências e possibilidades de justiça nos permite esterçar para diferentes lados saindo dos limites de nossos axiomas, verdades que consideramos inquestionáveis e supostamente válidas universalmente. Axiomas estes que muitas vezes são utilizadas como princípios que mantém privilégios de uns em detrimentos de outros secularmente subalternizados. Não se trata de atribuir valor superior aos conhecimentos tradicionais ou mesmo de aderir a eles, mas de considerá-los em diálogo para produzir a melhor justiça, sem diluí-los na ciência desenvolvida na academia. A importância das reflexões que se faz é tentar indicar que as agências das mulheres e modos diversos de conhecimentos, é indicar também que se pode pensar de outro modo e que os variados sistemas de justiça precisam, de fato, dialogar. Sabemos que os estudos acerca da violência de gênero no país muitas vezes utilizam o termo violência sem muita precisão, como se violência doméstica, violência intrafamiliar, violência contra a mulher, entre outros, fossem capazes de abarcar reflexões sobre realidades diversas. Fazer o esforço de compreender noções êmicas do termo afasta o perigo da reificação e induz a “diálogos ouvintes”, que postulamos aqui, em contraposição aos “diálogos surdos.” Ainda sobre a questão dos termos utilizados para abordar a violência, contemporaneamente tem se preferido falar em mulheres em situação de violência ao invés de violência contra a mulher, para indicar que a violência é transitória e não um destino que as mulheres devem cumprir (Campos, 2011). Além disso, a mudança de termo e, por conseguinte, de enfoque, impele a pensar a questão fora do molde algoz versus vítima, possibilitando compreender que, mesmo sendo vítima, especialmente num sentido jurídico-estatal, não significa não ter poder e força de resistir. As narrativas e corporeidades de mulheres indígenas e quilombolas/ indígenas e quilombolas mulheres desafiam compreensões do senso comum sobre situações de violência e nos fazem compreender que vítimas são sujeitos. Dessa forma, como sujeitos que são, devem poder acionar sistemas tradicionais de justiça ou mesmo a “justiça dos brancos”, como dizem algumas. Porém, a colonialidade, especialmente a de gênero (Lugones, 2008 ) cria contextos em que os dois lados olvidam as demandas pelo fim de maldades e malinesas. Referências bibliográficas ALEIXO, Mariah Torres. 2015. Indígenas e quilombolas icamiabas em situação de violência: rompendo fronteiras em busca de direitos Dissertação de mestrado, Programa de Pós-Graduação em Direito, UFPA. (Inédita) BELTRÃO, Jane Felipe. 2012. Histórias ‘em suspenso’: os Tembé ‘de Santa Maria’, estratégias de enfrentamento do etnocídio ‘cordial’. Revista História Hoje, São Paulo, v. 1, no 2, p. 195-212. BOURDIEU, Pierre. 1983. Esboço de uma teoria da prática In: ORTIZ, Renato (Org.). Pierre Bourdieu: sociologia São Paulo: Ática, p.46-81. BRASIL. Lei nº. 11.340 de 7 de agosto de 2006 Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm » http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11340.htm CAMPOS, Carmem Heim de. “Razão e sensibilidade: Teoria feminista do direito e Lei Maria da Penha.” In CAMPOS, Carmem Heim de. (Org.). Lei Maria da Penha comentada em uma perspectiva jurídico-feminista Rio de Janeiro. Lumen Juris, 2011. pp. 01-27. DAS, Veena. 2008a. El acto de presenciar. Violencia, conocimiento envenenado y subjetividad. In: ORTEGA, Francisco (Org.). Veena Das : sujetos del dolor, agentes de dignidad Bogotá: Universidad Nacional de Colombia, p 343-374. DAS, Veena. 2008. Lenguaje y cuerpo: transacciones en la construcción del dolor. In: ORTEGA, Francisco (Org.). Veena Das : sujetos del dolor, agentes de dignidad Bogotá: Universidad Nacional de Colombia, p 343-374. GIDDENS, Anthony. 1984. The constitution of society Cambridge: Polity. GUEERTZ, Clifford. 2013. O saber local: fatos e leis em uma perspectiva comparativa. In GUEERTZ, Clifford. O saber local – novos ensaios em antropologia interpretativa Petrópolis: Editora Vozes. LACERDA, Paula. 2014. Comunicação oral. In: Antopologia em Foco IV, Belém. LACERDA, Paula. 2015. Meninos de Altamira: violência, luta política e administração pública Rio de Janeiro: Garamond. LUGONES, María. 2008. Colonialidad y género. In Tabula Rasa, num. 9, julio-diciembre, Universidad Colegio Mayor de Cundinamarca, Colombia, p. 73-101. Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=39600906 Acesso em: 10.out.2013. » http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=39600906 Moreira, Adilson. 2016. Direito Discriminatório Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=TkgAEQtClRU Acesso em: 04.set.2016.

Distinção e capital cultural hoje Distinction and cultural capital today: introduction Edison Bertoncelo Michel Nicolau Netto Fábio RibeiroSOBRE OS AUTORES Neste dossiê, reunimos artigos que debatem a distinção no mundo contemporâneo, inspirados pelas pesquisas pioneiras realizadas desde a década de 1970 por Pierre Bourdieu e sua equipe. Como introdução, apresentamos um breve resumo da concepção bourdieusiana elaborada principalmente no texto clássico A distinção (Bourdieu, 1979), em que Bourdieu desenvolveu uma análise complexa e original da sociedade francesa a partir de abordagens metodológicas diversas. Em suas conclusões, enfatizou a importância do capital cultural, e do fenômeno associado da distinção, para estabelecer uma representação adequada do espaço social francês e suas hierarquias para além das análises tradicionais com foco apenas em questões econômicas no sentido estrito. Em seguida, faremos um resumo das discussões sobre o debate classe e cultura com base na leitura de uma série de textos que dialogam, mais ou menos criticamente, com Pierre Bourdieu e, em especial, com A distinção. A partir disso, apresentamos algumas implicações do que se expôs para pesquisas futuras, e destacamos as contribuições dos artigos que compõem este dossiê. Uma breve história d’A distinção Os trabalhos de Pierre Bourdieu sobre a relação entre classe, cultura e estilo de vida são o desenvolvimento de pesquisas anteriores feitas em geral sob encomenda de órgãos governamentais em busca de melhoria de políticas públicas. Em Os herdeiros (1964), Bourdieu e Jean-Claude Passeron observaram que, embora a escola pública francesa oferecesse condições similares de aprendizado, o desempenho dos alunos não era o mesmo. A diferença da origem de classe entre os que obtinham sucesso - e chegavam à universidade - e os que eram excluídos no processo precisava de uma explicação que não fosse baseada em preconceitos de classe. Os autores foram capazes de perceber que a suposta cultura universal ensinada nas escolas encontra direta correspondência com um conjunto de conhecimentos e valores típicos das classes dominantes. A socialização das crianças na cultura burguesa produzia uma experiência de continuidade entre a cultura escolar e a cultura familiar. Para explicar esse processo, Bourdieu e Passeron falam da incorporação de um capital linguístico pelas crianças com origem nas classes dominantes, que seria um conjunto de conhecimentos e competências linguísticas, estilos pessoais e atitudes (Lamont e Lareau, 1988), que criam um senso de pertencimento à escola. De forma correlata, a ausência desse capital produzia um estranhamento do ambiente escolar nas crianças oriundas de meios sociais não burgueses. A diferença em desempenho, portanto, pode ser explicada justamente pelo valor desse capital incorporado pela criança em sua socialização familiar. A relação entre escola, desempenho e origem de classe segue em A reprodução (1970). Ali, tanto quanto a partir da edição inglesa de 1979 de Os herdeiros (apudPrieur e Savage, 2013), o termo agora mobilizado é capital cultural, tido por Tony Bennett e Elizabeth Silva (2011, p. 429) como o mais criativo conceito do autor, de fato “um neologismo - e não uma reelaboração de um léxico herdado” como seria o caso de outros conceitos como campo e habitus. Simultaneamente, Bourdieu trabalhava com o universo das artes e percebia, de um lado, uma relação entre gosto e origem de classe (no caso o interesse pela fotografia, em Un art moyen, de 1965), e de outro a relação entre classe e as disposições para apreciação da arte (como no livro O amor pela arte, de 1966). Os trabalhos desenvolvidos na década de 1960 já se articulavam tanto na mente de Bourdieu quanto em suas intenções de pesquisa. Como revela Monique de Saint-Martin (2015), desde 1962 o autor francês organizava workshops para discutir os temas que em 1979 apareceriam em A distinção e que já começavam a aparecer nos textos aqui citados. Entre o final da década de 1960, com a fundação do Centre Européen de Sociologie (1968), e o começo da década seguinte, especialmente com a fundação da revista Actes de la Recherche en Sciences Sociales (1975), Bourdieu começa a adquirir condições materiais apropriadas para se lançar no plano audacioso de investigar a importância da cultura nos processos de reprodução de classe na sociedade francesa. Não se tratava mais de se pensar em espaços isolados da sociedade (na escola, no museu, na prática fotográfica), mas na sociedade de forma integral. O centro e a revista permitiram tanto um espaço de divulgação de pesquisas de interesse de seu diretor, quanto a reunião de jovens e talentosos pesquisadores, entre os quais alguns de seus antigos colaboradores, como Luc Boltanski, com quem publicou Un art moyen. Nesse momento, há uma intensificação de pesquisas e textos que vão desaguar n’A distinção, e o livro pode mesmo ser considerado “o ponto no qual pesquisa e artigos se encontram e interagem” (Saint-Martin, 2015). De fato, aparecem no livro pesquisas e reflexões anteriormente publicadas e que vão solidificando conceitos, hipóteses e metodologias. Seguindo a lista formulada por Saint-Martin, temos: “Disposition esthétique et compétence artistique” (Bourdieu, 1971), “Les fractions de la classe dominante et les modes d’appropriation des oeuvres d’art” (Bourdieu, 1974); “Anatomie du goût” (Bourdieu e Saint-Martin, 1976); “La production de la croyance” (Bourdieu, 1977a); “Titres et quartiers de noblesse culturelle: la critique sociale du jugement esthétique” (Bourdieu e Saint Martin, 1976); “Les stratégies de reconversion” (Bourdieu et al., 1973); “Questions de politique” (Bourdieu, 1977b), “Classement, déclassement, reclassement” (Bourdieu, 1978) e “Le couturier et sa griffe” (Bourdieu e Delsaut, 1975). Em “A anatomia do gosto”, de 1976, Bourdieu e Saint-Martin já constroem os espaços social e dos estilos de vida, sendo que muitos dos trechos desse ensaio aparecem integralmente ou em partes em A distinção. Bourdieu também se beneficiou do desenvolvimento da estatística, em especial da “escola francesa de análise de dados”, e das técnicas computacionais1. Na década de 1960, o grupo de Jean-Paul Benzécri cunhou o termo “análise de correspondências múltiplas”, utilizada por Bourdieu e Saint-Martin em “A anatomia do gosto” e por Bourdieu em A distinção, para a medição das distâncias relativas dos indivíduos no espaço social de acordo com o acúmulo e a estrutura de seus capitais, nessa ocasião, medindo-se os capitais econômico e cultural. É com base nessa técnica de análise de dados que Bourdieu e Saint-Martin são capazes de construir o espaço social francês e a ele sobrepor o espaço dos estilos de vida. É a coincidência entre as posições dos sujeitos de acordo com seus capitais (volume e estrutura) e a legitimidade de suas práticas culturais definidoras de seus estilos de vida que permitiu que Bourdieu lançasse a tese da homologia entre os espaços. Voltaremos à metodologia mais adiante nesta introdução, mas aqui destacamos que a possibilidade de se medirem as posições relativas dos sujeitos concretizava o pressuposto teórico de Bourdieu de que a sociedade é formada por posições objetivas relacionais, ou seja, as posições se definem umas em relação às outras. As “classes no papel” ou classes teóricas são o resultado desse esforço de classificação sociológica, a partir do qual é possível identificar conjuntos de agentes que ocupam posições relativas vizinhas no espaço social em função da distribuição dos capitais relevantes. As classes assim construídas diferem das classes preconcebidas ou pressupostas como em muitas correntes do marxismo e da economia prevalentes na época (ver Bourdieu, 2015, pp. 99-120). A estatística e a computação, assim como os estatísticos reunidos no Instituto Nacional de Estatística e dos Estudos Econômicos (INSEE) e no Centro de Pesquisa pelo Estudo e Observação das Condições de Vida (Crédoc), permitem a representação visual e geométrica da sociedade que Bourdieu e seus colegas descobriam empiricamente. Após A distinção, o tema do capital cultural permaneceu central na obra de Bourdieu, especialmente em suas grandes pesquisas dos anos 1980, Homo academicus (1984) e La noblesse d’État (1989), e foi desenvolvido também nas aulas de Bourdieu como membro do Collège de France. Nessas aulas, o sociólogo destaca as diferenças entre sua concepção e a ideia mais difundida na época de “capital humano”, associada a economistas como Gary Becker e Jacob Mincer, que buscava interpretar os resultados dos investimentos em educação apenas em relação à sua conversão direta em capital econômico. Já Bourdieu, como de costume, enfatizava o aspecto relacional e também temporal do conceito de capital cultural, que não pode ser reduzido diretamente a seu aspecto monetário (ver Bourdieu, 2016, pp. 239-257). Assim, fica mais fácil perceber a função teórica desempenhada pelo conceito de capital cultural, além da função metodológica já explicitada em obras como A distinção. Em termos teóricos, o capital cultural e sua relação com os conceitos adicionais de habitus e capital simbólico permitem a Bourdieu afastar-se tanto de uma abordagem enfatizada em particular na economia, na qual o fundamento da ação social está em indivíduos racionais que buscam maximizar seu interesse (ver Bourdieu, 2017, passim), quanto de abordagens de inspiração durkheimiana que localizam aquilo que é próprio ao social e à sociologia em instituições completamente externas aos indivíduos (Bourdieu, 2016, pp. 229-262). Da mesma maneira, a ideia de distinção ganha maior aporte teórico na abordagem bourdieusiana como o fenômeno por excelência que permite àqueles que ocupam posições dominantes em determinados campos não só recolher e acumular lucros de distinção, mas também, através das lutas dentro do campo, estabelecer a própria estrutura do campo, ou seja, a hierarquia que favoreça a reprodução do capital que eles próprios possuem - num processo em que, como Bourdieu enfatiza, nada precisa acontecer intencionalmente, na lógica do complô (Bourdieu, 2016, p. 291). Críticas e reflexões a partir dos debates sobre A distinção Dessa forma, é possível dizer que não só A distinção é o resultado de quase duas décadas de um trabalho coletivo que reuniu tanto indivíduos quanto instituições francesas, mas também continuou alimentando as pesquisas e reflexões de Bourdieu no decorrer de sua carreira. E seu resultado é proporcional ao tamanho dos esforços e trabalhos despendidos. O estudo da relação entre classe e cultura tem uma longa tradição na sociologia e remonta ao menos a Weber, Veblen, Simmel e Elias. A distinção segue essa tradição e se torna - ao menos do que nela se consolida, como conceitos, métodos etc. - objeto frequente de reflexões e questionamentos na sociologia. Nas próximas seções, tematizamos alguns debates centrais à literatura que se debruçou nessa problemática construída n’A distinção. Onivorismo e a crítica da homologia estrutural e do capital cultural Na década de 1990, quando ganhava impulso o movimento de apropriação dos estudos de Bourdieu sobre a distinção para além da França (a primeira tradução da obra para o inglês ocorreu em 1984), surgiu uma ideia que, posteriormente, viria a ser interpretada por muitos autores dentro da sociologia da cultura e da sociologia da estratificação social como uma crítica à abordagem bourdieusiana da relação entre classes sociais, gostos e estilos de vida. Essa ideia, mais propriamente um conceito “provisório” do que uma teoria ou mesmo uma hipótese, foi desenvolvida nos estudos do sociólogo estadunidense Richard Peterson com seus colaboradores (Peterson, 1992, 1997, 2005; Peterson e Simkus, 1992; Peterson e Kern, 1996). Como argumenta Gayo (2016), “a ideia do onívoro foi desenvolvida de uma posição de alto status e forte legitimidade na sociologia norte-americana” (p. 104). Peterson era então reconhecido nacional e internacionalmente entre seus pares por seus trabalhos sobre indústrias culturais e produção cultural, além de ter publicado fartamente em revistas acadêmicas de elevado prestígio, como Poetics (Ibidem). Se os debates em torno do onivorismo cultural (o termo aludindo a uma “metáfora zoológica” tão criticada por Bernard Lahire) ganharam enorme impulso, estimulando a produção de vários estudos ao longo das décadas seguintes e tornando-se ponto de passagem obrigatório para as pesquisas recentes sobre gostos e práticas culturais, parte disso se deve, certamente, ao contexto acadêmico norte-americano e à posição de Richard Peterson nele. A esses fatores também se deve o fato de que essa ideia ganhou mais tração nos debates na sociologia norte-americana do que na sociologia europeia (sobretudo a francesa): “o onívoro cultural era uma reiteração posterior de um tema familiar dentro da sociologia dos Estados Unidos que afirmava que a geração nascida após a Segunda Guerra Mundial era mais próspera, educada, aberta e tolerante do que as gerações posteriores de norte-americanos” (Idem, p. 106). É menos claro, no entanto, porque esse conceito foi interpretado posteriormente como tendo implicações críticas aos estudos de Bourdieu sobre a distinção. Ironicamente, Peterson, em seus próprios estudos (sobretudo em uma publicação recente, 2005), afirmava que o onivorismo não apontava para uma refutação, mas apenas uma reformulação dos argumentos de Bourdieu. Se os estudos de Peterson foram lidos posteriormente como sendo uma espécie de refutação ao livro A distinção, isso se deve, em parte, à forma como essa obra foi apropriada fora da França, sobretudo pela sociologia de língua inglesa. Como destaca Holt (1998), durante muito tempo a sociologia norte-americana fez uma leitura “substancialista” dessa obra, minimizando um elemento que lhe é central, seu caráter relacional. Lizardo e Skiles (2016) sustentam que o entendimento convencional de que o debate sobre o onivorismo questionou a validade empírica das ideias de Bourdieu quanto à associação entre gosto e classe está baseado em uma leitura incorreta do trabalho de Bourdieu. Tal leitura parte de dois pressupostos: i) de que as práticas culturais dos indivíduos de “status elevado” podem ser classificadas em um padrão de tipo “exclusivismo esnobe” [snobbish exclusiveness], ou seja, tais indivíduos gostam ou fazem coisas associadas à “alta cultura”, rejeitando a cultura popular; ii) A distinção pode ser lida como um estudo de como as classes superiores, fortemente ligadas à alta cultura, se distinguem das classes populares, com seus gostos e práticas vulgares (Idem, p. 91). O argumento contido na primeira premissa ignora que a aversão estética é um mecanismo de produção de fronteiras simbólicas que opera tanto vertical quanto horizontalmente; no caso da segunda premissa, minimiza-se a ênfase conferida por Bourdieu à multidimensionalidade do espaço social, que se traduz, por intermédio do habitus, em oposições no espaço simbólico. Isso implica, por exemplo, que as lutas em torno da imposição dos modos legítimos de viver são travadas não apenas entre diferentes classes, mas, sobretudo, entre diferentes frações das mesmas classes (por exemplo, o “ascetismo aristocrático” dos intelectuais em oposição ao “gosto do luxo” da burguesia proprietária e dirigente). Voltando aos estudos de Peterson, a ideia do onivorismo não parece muito complicada: a velha distinção entre alta e baixa cultura estaria sendo substituída por outra, entre onívoros e unívoros. Os primeiros, além de se apropriarem da “alta cultura”, também consumiriam “cultura popular”. Os unívoros teriam um repertório de gostos e práticas restrito à “baixa cultura”. Nesse sentido, o onivorismo apontaria para “repertórios de práticas culturais, emergindo no final do século xx, que são marcados por uma amplitude crescente de gostos e participação cultural e também por uma disposição para transgredir fronteiras previamente construídas entre itens ou gêneros culturais hierarquicamente ordenados” (Karademir e Warde, 2016, p. 77). Em alguns estudos, “onivorismo” é substituído por “ecletismo”, mas a ideia é a mesma. O desenvolvimento original do conceito aponta para mudanças nos princípios de distribuição dos gostos e das práticas culturais, do “esnobismo” para o “onivorismo”. O onivorismo implica, portanto, a combinação de gostos e práticas, que atravessam diferentes registros culturais. Não basta, portanto, para ser caracterizado como onívoro, que um indivíduo goste de muitos gêneros ou participe de muitas atividades culturais. Ocorrendo no contexto de transformações sociais e culturais - relacionadas com o aumento da oferta de bens culturais, a “estetização” da cultura popular, a maior mobilidade social -, a emergência dessa nova “orientação” em relação às formas culturais teria efeitos profundos para as estratégias de distinção, para a importância da “alta cultura” na hierarquização social etc. Antes de analisarmos esses possíveis efeitos, no entanto, é essencial investigar a validade empírica da tese de Peterson. Como argumentam Karademir e Warde, há muitas dificuldades para avaliar a suposta importância do onivorismo enquanto novo “princípio” subjacente à distribuição de gostos e práticas culturais, dificuldades que dizem respeito à falta de consenso na literatura que opera com esse conceito quanto às maneiras de defini-lo e operacionalizá-lo, aos domínios e itens culturais que devem ser considerados, às medidas de posição social (classe social, status), à necessidade de uso de dados de diferentes tipos (qualitativos e/ou quantitativos), aos procedimentos para medir mudança social e, por fim, quanto aos critérios a empregar para operacionalizar uma noção central ao onivorismo, que é aquela da abertura à diversidade. Ora, se o onivorismo, pelo menos segundo a definição original, significa o “cruzamento” de fronteiras culturais e a composição “eclética” de gostos e práticas, então é necessário adotar algum critério para determinar quais são as fronteiras relevantes e onde estão localizadas. Por exemplo, em um estudo de Peterson e Kern (1996), ópera e música clássica foram consideradas gêneros eruditos; bluegrass, country, gospel, rock e blues, gêneros inferiores; musicais da Broadway, músicas leves (easy listening) e big band, gêneros médios. Com base nessa classificação, repertórios musicais que combinassem, por exemplo, ópera e rock, ou ópera e easy listening seriam considerados onívoros. É óbvio, portanto, que o modo de construir a classificação e a hierarquização dos gêneros musicais interfere fortemente nos resultados sobre a suposta emergência e/ou crescimento de repertórios onívoros. Nos próprios estudos de Peterson, como salienta Brisson (2019), há diferentes procedimentos para produzir tais classificações musicais, dificultando a comparabilidade dos resultados, o que não seria necessariamente um problema, tivessem tais modificações tido o objetivo de incorporar evoluções temporais das hierarquias musicais (estetização, intelectualização ou popularização de gêneros ou subgêneros musicais) ou, então, nos modos como tais hierarquias são subjetivamente percebidas e internalizadas pelos indivíduos. Não foi o caso. Pelo que foi exposto, é provável que o onivorismo seja um “artefato metodológico” (Brisson, 2019, p. 10). De fato, a falta de consenso sobre o que é onivorismo e como operacionalizá-lo reduz nossa capacidade de estimar a validade empírica da tese de Peterson. Além disso, é preciso refletir se, mesmo que empiricamente válida, a tese acrescentaria algo aos debates sobre classes, gostos e estilos de vida na tradição bourdieusiana (Bertoncelo, 2019). A “tese” do onivorismo introduz implicações opostas ou radicalmente diferentes daquelas associadas à hipótese das homologias para a investigação das práticas culturais? Suspeitamos que não. No estudo d’A distinção, já está presente o argumento de que um dos principais marcadores da distinção é a propensão e a capacidade dos agentes para transpor a disposição estética para novos objetos e domínios da vida social. O “esnobe”, a quem supostamente o onívoro estaria substituindo no mundo contemporâneo, não seria mais distinto ou distintivo: ao invés disso, como sublinham Lizardo e Skiles (2016), o “esnobismo”, entendido como uma orientação que privilegia tão somente os bens culturais institucionalmente consagrados em detrimento daqueles da “cultura popular”, seria um indício da aquisição tardia da disposição estética, mais próximo da “boa vontade cultural” da pequena burguesia. Essas considerações críticas, no entanto, não invalidam por completo a importância dos debates acerca do onivorismo. Ainda que este não constitua um objeto sociológico propriamente novo e que faltem as condições adequadas para apreciar a validade empírica das mudanças apreendidas por esse conceito, o debate serviu para arejar as discussões em torno da distinção. De fato, como conceber e investigar a distinção e a formação de capital cultural em um contexto marcado pela crescente circulação global de pessoas e objetos, pela disseminação das tics, pela ampliação da esfera do simbólico, pelas mudanças nos sistemas educacionais? É possível que essa capacidade “tolerante” para transpor a disposição estética para domínios não artísticos ou culturais e para objetos não consagrados, mesmo vulgares, tenha ela própria sido transposta para outras regiões do espaço social, não se restringindo, portanto, às frações mais intelectualizadas? O estudo britânico Culture, class, distincion aponta nessa direção: […] em suma, a cultura importa para a classe média, e até mais para seus estratos mais elevados. O capital cultural objetivado e institucionalizado opera como um recurso valioso, mas não exclusivamente por meio do controle da cultura legítima. Ao invés, a orientação requerida se dirige para a apreciação reflexiva, em um espírito de abertura, de uma diversidade de produtos culturais, mas continuam a existir fronteiras além das quais não é respeitável atravessar (Bennett et al., 2009, p. 194). Diferentemente, outros estudos apontam que esse ecletismo seletivo é a manifestação de certas disposições ao consumo que “divertidamente” [playfully] atravessam fronteiras culturais estabelecidas. A combinação entre gostos “estabelecidos” e “emergentes” expressa não tanto uma orientação onívora ou um novo tipo de capital cultural, mas, ao invés disso, o domínio do simbólico que está na raiz do capital cultural teorizado por Bourdieu, que opera, no entanto, em um contexto social marcadamente diferente (Flemmen; Jarness e Rosenlund, 2018). A perda da eficácia da “alta cultura” como distintiva? Uma das principais contribuições dos debates em torno do onivorismo para a Sociologia tem a ver com a problematização dos efeitos da “alta cultura” para os processos de distinção social2. Estudos recentes evidenciam que as classes superiores, sobretudo em suas frações mais intelectualizadas e cultivadas, possuem gostos “ecléticos”, que não se reduzem à “alta cultura” assim entendida (Flemmen; Jarness; Rosenlund, 2018, 2019; Prieur; Savage, 2011; Bennett et al., 2009). Mais: o consumo da “alta cultura” vem declinando socialmente, mesmo nas classes superiores, em especial nas gerações mais novas (Gripsrud et al., 2011; Purhonen et al., 2011; Dimaggio e Mukhtar, 2004)3. Quais as implicações disso para a relação entre “alta cultura” e capital cultural? Para alguns, a “alta cultura” não representa mais (ou jamais representou, fora do contexto francês) uma forma de capital cultural (Halle, 1992; Lamont, 1992). Diferentemente, DiMaggio e Mukhtar argumentam, baseados em um estudo sobre a evolução do consumo cultural nos Estados Unidos ao longo de duas décadas (1982-2002), que a “alta cultura” permanece central para a formação e acumulação de capital cultural, ainda que exista uma tendência geral de redução de seu público consumidor, mesmo que não na mesma magnitude para todas as formas culturais assim classificadas4. Conforme esse mesmo estudo, as atividades culturais populares tiveram uma redução de seu público tão grande quanto aquela da “alta cultura”, e o consumo cultural dos menos educados caiu mais fortemente do que o dos mais educados. Tais processos evidenciam, assim, que o declínio da “alta cultura” tem mais a ver com o aumento da competição por outras formas de uso do tempo livre e de modos de consumo da cultura do que propriamente com a perda de eficácia distintiva da “alta cultura”5. De forma similar, um estudo conduzido entre estudantes de ensino superior na Noruega, que cobre um período parecido com o anterior (1998-2008), aponta que, apesar de um declínio significativo das práticas associadas à “cultura legítima tradicional” - em menor medida entre estudantes de humanidades do que de disciplinas técnicas -, elas permanecem fortemente associadas às classes superiores e ainda gozam de elevado reconhecimento, o que indicaria, segundo o estudo, a provável persistência da eficácia distintiva da “alta cultura”, ou seja, ela ainda opera como um capital cultural (Gripsurd et al., 2011, pp. 524-525). Ao mesmo tempo, a contínua redução do interesse pela “alta cultura” e de seu consumo, especialmente entre os mais jovens e mais escolarizados, tenderia a torná-la uma cultura de “nichos sociais”, não mais gozando de reconhecimento social generalizado. Conforme argumentam DiMaggio e Mukhtar, “nós suspeitamos que se a participação [na “alta cultura”] continuar a cair, em algum momento, essas formas artísticas se tornarão irrelevantes para a cultura compartilhada das famílias e grupos sociais cujas chances de vida são mais dependentes do manejo de capital cultural” (Idem, p. 191). Ainda que tal tendência se concretize, esse processo teria como consequência a irrelevância do capital cultural como um princípio de diferenciação e hierarquização social? Embora, como argumentamos, a “alta cultura” ainda goze de algum reconhecimento social para além de seu público consumidor, cada vez mais restrito às classes superiores, é pouco provável que o que se entende por “cultura legítima” se restrinja a essas formas culturais (Špaček, 2017). Uma leitura relacional do capital cultural e dos processos distintivos “abre caminho para uma definição da disposição estética parcialmente dissociada dos conteúdos nos quais ela opera” (Coulangeon, 2015, p. 56). Holt (1998) chama atenção para os riscos de uma leitura substancialista que associa a “cultura legítima” à “alta cultura”, leitura essa que leva à conclusão de que a ausência de qualquer associação significativa entre o consumo da “alta cultura”, de um lado, e o pertencimento às classes superiores, de outro, indicaria a irrelevância do capital cultural na produção de desigualdades e na construção de fronteiras simbólicas e sociais. Holt entende que tal argumento confunde os aspectos abstrato e particular do capital cultural. Para ele, enquanto o aspecto abstrato é produzido pela incorporação das estruturas sociais condicionadas pelas classes, o particular é específico do campo em que o capital cultural é articulado. Dessa forma, o que os agentes incorporam não é exatamente um gosto pela “alta cultura”, mas uma condição específica de julgamento do mundo social que se manifestará como distintivo em objetos diferentes em cada campo social. Não haveria nada, portanto, de essencial no domínio da “alta cultura” para Bourdieu, sendo isso apenas um capital particular relevante para o estudo da sociedade francesa, mas que pode não importar para outros tempos ou outras sociedades. Ao invés de pressupor, deve-se, então, encontrar qual o capital específico que importa em cada contexto. É por isso que, para Holt (1997), mais importante é o estado incorporado do capital cultural, pois é ele que criará as condições para que os agentes possam ocupar posições dominantes em diferentes campos e neles controlar seus capitais específicos. Para dar um exemplo simples, é o capital cultural incorporado que permite a membros da elite ocuparem posições dominantes em campos tão distantes como o acadêmico e o financeiro, fazendo valer esse capital abstrato para o domínio dos capitais específicos. Na mesma linha, seguiram Prieur e Savage (2013). Sem adentrarem em discussão sobre campo, eles diferenciam a visão sobre o conceito de capital cultural em flexível e fixo. Segundo eles, o fixo seria a visão que atrela o capital cultural a um objeto específico - por exemplo, à “alta cultura”. Com esse olhar, “é fácil descartar a análise de Bourdieu como obsoleta e irrelevante” (Prieur e Savage, 2013, p. 249). Contudo, para eles, Bourdieu entendia o capital cultural como flexível, ou seja, uma forma de poder de qualidades exclusivas e relacionais, que se forma em objetos específicos de acordo com a relação que eles possuem com outros objetos. Assim, se a “alta cultura” não seria mais a concretização (ou, para voltar a Holt, a particularização) do capital cultural, outros objetos o são, devendo o pesquisador identificar quais. Na próxima seção voltaremos a esse debate, apresentando o que os autores chamam de “capital cultural emergente”. Não entendemos, contudo, que devemos descartar de maneira tão radical a “alta cultura” como forma de distinção. Isso se dá por dois motivos. Um primeiro motivo se refere ao que encontramos em algumas pesquisas, mas destacamos aqui Omar Lizardo (2006). O autor estuda a relação de conversão entre capital cultural e capital social. Sua tese central é inverter a noção clássica de que capital social se converte em cultural, para mostrar que o cultural se converte, com mais frequência, em social. Entretanto, o que mais nos interessa aqui é notar que, em diferentes redes de relacionamento, há a operação de diferentes conhecimentos culturais. Segundo o autor, a cultura popular tem um “valor generalizado de conversão”. Ou seja, a cultura popular pode ser convertida em diferentes redes de relacionamento, produzindo, inclusive, redes amplas de laços fracos. Já a “cultura de elite (highbrow) […] tem um valor restrito de conversão: ela deve mais provavelmente sustentar redes de laços fortes” (Lizardo, 2006, p. 783), que permitirão maiores vantagens para seus integrantes. Em outras palavras, o ecletismo cultural da elite lhe permite formar diferentes redes de socialização, sendo essas redes dependentes do conhecimento cultural mais amplo, mas também do reconhecimento das hierarquias culturais. Essa ideia se aproxima tanto à de repertório, de Michèle Lamont, quanto de variações intraindividuais de Bernard Lahire. Para ambos os autores, os agentes mobilizam diferentes conhecimentos em contextos específicos. A diferença, contudo, é que a ideia de Lizardo, e esse é o ponto aqui, nos permite vislumbrar a permanência da relevância da “alta cultura” como forma de distinção. Esforço similar foi empreendido em artigo recente (Ábile et al., 2021), em que se argumentou que a perda da relevância da “alta cultura” foi observada em pesquisas que relacionaram a “alta cultura” ao campo propriamente artístico. O texto propõe olhar como a “alta cultura” é operada em outros campos para produzir distinções. Assim, demonstra-se que os capitais valorizados no campo artístico são mobilizados pelos campos da gastronomia e da moda para produzirem diferenciações. Estilistas e cozinheiros que se aproximam de artistas (e mesmo querem ser considerados artistas) se diferenciam dos outros, e seus produtos se tornam distintivos. Sendo práticas que recebem reconhecimento social (especialmente por programas de televisão), mas, ao mesmo tempo, exclusivas de uma elite, elas produzem distinção e operam como capital cultural. Dessa forma, argumenta-se que a “alta cultura” pode ser vista ainda operando como capital cultural, mesmo em domínios que não o artístico. Do gosto à prática: de “o quê” para “como” Uma outra forma de se pesquisar o capital cultural, mal captada especialmente por pesquisas baseadas em preferências, é a diferenciação entre “o que” se consome e o “como” se consome. Essa preocupação com a modalidade das práticas está bem exemplificada em um estudo de Vegard Jarness (2015), autor que pesquisou formas de consumo cultural e estratificação social na cidade de Stavanger, na Noruega. Segundo ele, as críticas direcionadas à noção de capital cultural ignoram a distinção entre opus operatum e modus operandi, ou seja, entre um conjunto de preferências (mais ou menos volumosas e “ecléticas”) e os esquemas de avaliação e apreciação subjacentes às escolhas. No contexto da ampliação da produção, difusão e consumo de bens simbólicos e das possibilidades de estetização da vida cotidiana, é provável que “gostar das mesmas coisas” signifique cada vez menos “ter os mesmos gostos” (Idem, p. 67). Na verdade, “quando os mesmos bens culturais comuns são apreciados de modos diferentes, isso pode tornar a prática ainda mais distintiva” (Idem, p. 77). Dessa forma, se indivíduos de diferentes classes ou frações de classe declaram preferências similares em gosto (por exemplo, musical), é possível que o modo como ouvem música ou mesmo a justificativa que dão para suas preferências possam se diferenciar, manifestando diferentes habitus incorporados e produzindo fronteiras que separam as classes e geram distinção. Formas emergentes de capital cultural e novas formas de distinção? Retornando à visão sobre capital cultural flexível ou à diferença de capital cultural abstrato e particular, alguns autores argumentam a favor da emergência de formas emergentes de capital cultural. Mike Savage e Annick Prieur argumentam que, em um contexto em que se ampliam os universos de possíveis escolhas estéticas e em que o valor do domínio da “cultura erudita tradicional” se reduz a mercados de concorrência social cada vez mais restritos, é provável que os agentes equipados com mais capital cultural privilegiem um tipo de apropriação “reflexiva”, distanciada e irônica, sustentada por uma capacidade de explicitar as razões da escolha. “Irônico” aqui implica que os agentes (re)conhecem os significantes do gosto e são capazes de associar diferentes significados a práticas mainstream. Além disso, tais agentes são capazes de se posicionar para além de certos enquadramentos nacionais, regionais ou locais, adotando uma orientação cosmopolita. Esses aspectos da prática - apropriação irônica, “reflexiva” e distanciada, a partir de um enquadramento cosmopolita - teriam um “novo” valor distintivo e, por isso, os autores utilizam o conceito de formas emergentes de capital cultural para apreendê-los (Prieur e Savage, 2011, 2013). Em suma, esse conceito apreende possíveis mudanças no gosto dominante, sobretudo nas gerações mais novas, indicando a operação de “novos” modos de distinção social não mais baseados na estética do desinteresse, que, nos trabalhos de Bourdieu, constituía o princípio subjacente à apropriação legítima das formas culturais “sérias” (Friedman et al., 2015) Por outro lado, outros estudos questionam a suposta novidade dessa modalidade de consumo que combina elementos do “tradicional” e do “contemporâneo”, argumentando que as “formas emergentes” de capital cultural ou as “novas” formas de distinção não pressupõem nada além do domínio do simbólico aplicado em novos contextos sociais (Flemmen; Jarness e Rosenlund, 2018; Atkinson, 2017). Um outro conjunto de estudos busca perceber outras formas de capital. Trata-se também da emergência de capital, mas não necessariamente cultural. É o caso mais frequente de pesquisas que se focam na aparência ou na beleza. Um conjunto de autores (Vandebroek, 2015; Anderson, Grunert, Katz e Lovascio, 2010; Holla e Kuipers, 2015) considera que tais características, ao serem avaliadas como distintivas por certos grupos, operam como um capital que denominam estético. Da mesma maneira que outras formas de capital, a condição de sua acumulação é predisposta pela posição do agente no espaço social. Uma variação dessa visão percebe que esse capital estético é mais importante para as mulheres (elas são mais frequentemente avaliadas por critérios estéticos). Contudo, mesmo a elas, esse capital é de pouca vantagem, pois é mobilizado pelos homens. Em outras palavras, o capital estético acumulado por uma mulher serve, no mais das vezes, como distinção para os homens. Ashley Mears (2015) mostra “os usos do capital corporal feminino por homens que se apropriam de mulheres como um recurso simbólico para gerar lucro, status e laços sociais num mundo exclusivo de homens de negócio” (Mears, 2015, p. 22). Seus estudos se focam na relação entre homens e mulheres em feiras e eventos internacionais de produtos. Contudo, isso pode ser relacionado com aquilo que Randall Collins chama de “trabalho goffmaniano” das mulheres. Seu foco é mostrar que, seja em casa ou em suas profissões, as mulheres tendem a se focar em trabalhos que produzem status. O diálogo com Mears é que esse status também é apropriado no mais das vezes pelo homem, seja ele o chefe, seja ele o marido. Essas duas análises colocam um ponto importante para a própria teoria dos capitais. Em geral, as pesquisas se focam na posse de capitais por agentes de acordo com suas posições sociais. Contudo, pouca atenção é dada à possibilidade de os agentes se apropriarem de capitais acumulados por outros. Ou seja, ainda que capitais sejam acumulados por determinados agentes de acordo com suas condições, esses mesmos capitais podem ser apropriados por outros em melhores condições sociais. Nas análises citadas, é o caso de capitais acumulados por mulheres e mobilizados em proveito de homens. Podemos estender esse raciocínio para outros campos, como a relação entre as altas classes e a cultura popular etc. Distinção e classe social no mundo contemporâneo O estudo da distinção nos coloca, como vimos, inúmeros desafios de natureza teórica. Ao mesmo tempo, existem dificuldades propriamente metodológicas no estudo desse tema. O conceito de distinção, tal como empregado por Bourdieu, supõe diferença e hierarquia. Há muitas evidências empíricas de que as práticas culturais são estratificadas e diferenciadas socialmente. Mais fundamentalmente, a hipótese da homologia - da correspondência estrutural entre o espaço social e o espaço dos estilos de vida - encontra sustentação empírica em estudos realizados em diversas sociedades, indicando que os estilos de vida são estruturados não apenas pelo volume de capital possuído pelos agentes, mas também por sua composição (Flemmen, Jarness e Rosenlund, 2019; Atkinson, 2017; Pereira, 2005)6. É possível, assim, não apenas diferenciar as classes superiores das classes médias e inferiores, mas também, como já demonstrado n’A distinção, diferenciar frações das classes superiores em função do peso dos diferentes recursos pertinentes a um dado universo social (Börjesson et al., 2016). E a mesma diferenciação interna pode ser encontrada para as demais classes, considerando os recursos específicos e modalidades de estilização da vida típicas a essas regiões do espaço social (Pereira, 2005). Por outro lado, uma parte importante desses estudos voltou-se para a investigação de um aspecto da distinção, aquele referente à produção, acumulação e transmissão de capital cultural7. Consequentemente, é pouco comum a utilização de uma ampla variedade de indicadores para mensurar as práticas dos agentes em diferentes domínios da vida social, restringindo-se frequentemente ao consumo da cultura entendida em um sentido bastante restrito (em parte devido às limitações decorrentes do uso de fontes secundárias). Ademais, a operacionalização da noção de espaço social, a partir da construção de diversos indicadores de formas de capital e de trajetórias sociais, tem recebido relativamente pouca atenção nos estudos de classe recentes inspirados pela tradição bourdieusiana8. Se, apesar das ressalvas anteriores, é possível dizer que o aspecto da distribuição diferencial das propriedades das práticas está, de alguma forma, bem documentado, o outro elemento da distinção, qual seja, a hierarquia, parece menos explorado nos estudos que se debruçam sobre essa temática. A mera evidência estatística da raridade de uma prática ou gosto não implica necessariamente que ele hierarquize os agentes. Os instrumentos geralmente utilizados para “mapear” os gostos e as práticas culturais não são suficientes para responder a esta questão. Os dados produzidos por meio de surveys são muito úteis (sobretudo quando produzidos a partir da problemática da pesquisa), porque possibilitam evidenciar a ocorrência empírica de homologias entre as práticas dos agentes em diferentes domínios e suas posições relativas no espaço social. É necessário, no entanto, dar alguns passos adicionais para apreendermos a problemática da distinção em sua totalidade. Como a hipótese da homologia sugere haver correspondências entre as hierarquias operantes nos diversos campos sociais, por um lado, e entre elas e as hierarquias vigentes no espaço social, por outro, uma primeira tarefa consiste em situar as práticas em seus campos específicos e reconstruir a estrutura desses campos (suas instâncias de legitimação, suas hierarquias e seus agentes, os valores que os orientam, os objetos em disputa), além das relações entre eles9. Há muitos estudos desse tipo na sociologia no Brasil e alhures10. Ademais, é preciso avançar na investigação dos aspectos subjetivos de como “as pessoas explicitamente avaliam, estimam e julgam os estilos de vida dos outros (Sølvberg e Jarness, 2019, p. 180). Como produzir dados desse tipo? Como apreender empiricamente os modos pelos quais as pessoas categorizam e hierarquizam os estilos de vida? Que técnicas de observação podemos empregar para investigar as disputas em torno do valor das propriedades dos estilos de vida e o reconhecimento pelos agentes dessas hierarquias? Essa é uma tarefa fundamental, uma vez que, para que possamos considerar determinadas práticas ou gostos como distintos e distintivos, é essencial evidenciar o amplo reconhecimento da legitimidade de tais práticas ou gostos. Como argumentam Sølvberg e Jarness, os estudos de Lamont sobre as fronteiras sociais e simbólicas nos ajudam a avançar nessas indagações. Fronteiras simbólicas são “distinções conceituais feitas pelos atores sociais para categorizar objetos, pessoas, práticas, e, até mesmo, o tempo e o espaço. São ferramentas pelas quais os indivíduos e grupos lutam para chegar a definições da realidade compartilhadas” (Lamont e Molnár, 2002, p. 168). Por sua vez, fronteiras sociais são “formas objetivadas de diferenças sociais manifestadas no acesso desigual e na distribuição desigual de recursos (materiais e imateriais) e de oportunidades sociais” (Idem, ibidem). Mapear as fronteiras simbólicas, retornando aos argumentos de Sølvberg e Jarness (2019), pode ser bastante útil para investigar empiricamente “se e como as diferenças de estilos de vida baseadas em classe estão, de fato, ligadas a processos de exclusão e inclusão” (p. 180). Em Money, morals and manners (1992), Lamont investigou o processo de construção de fronteiras de diferentes tipos (cultural, econômica e moral) com base em entrevistas em profundidade com informantes norte-americanos e franceses. O modo como as pessoas falam de si e dos outros, as categorias que mobilizam, em seus discursos, para nomear, definir, avaliar suas próprias ações e as dos outros constituem dados importantes a partir dos quais podemos apreender como as fronteiras sociais e simbólicas são construídas e reconstruídas na vida social. Ao mesmo tempo, há uma tendência quase incontornável por parte dos indivíduos de idealizar seus comportamentos em situações sociais. Por isso, em situações de entrevista, é provável que os informantes recorram à produção de narrativas “honoráveis”, por meio das quais buscam transmitir uma imagem de si como indivíduos tolerantes, minimizando as diferenças de classe e evitando julgamentos ou o uso de categorias que impliquem hierarquização ou estigmatização. Mais: para os membros das classes superiores, apresentarem-se como pessoas tolerantes, “decentes”, igualitárias contribuiria, intencionalmente ou não, para a reprodução da legitimidade cultural e das fronteiras de classe (Sølvberg e Jarness, 2019, p. 23). Para que a situação de entrevista não se transforme em uma mera instância de produção de discursos complacentes ou condescendentes, é essencial que adotemos técnicas que permitam “extrair” as chamadas narrativas “viscerais”, aquelas carregadas de sentimentos de desgosto, julgamentos morais e estéticos, de categorias que produzem hierarquias entre grupos de pessoas11. A probabilidade de produção de tais narrativas “honoráveis” ou “viscerais” pode variar conforme o contexto: onde, com quem, de quem, do que se fala. Nos estudos de Sam Friedman sobre a estruturação social do gosto por comédia, por exemplo, seus informantes de frações superiores mais dotados de capital cultural construíam, em suas falas, fronteiras simbólicas baseadas na percepção da inabilidade de certas audiências de entenderem “formas mais elevadas” de comédia. Aparentemente, quando as pessoas falam sobre “o que as faz rir”, elas se sentem menos constrangidas em marcar distância com quem não compartilham seus gostos: “a comédia parece ter um poder único para definir fronteiras simbólicas, enraizado em sua conexão às propriedades sociais do humor…” (Friedman, 2014, p. 148)12. Neste sentido, tem sido cada vez mais relevante o emprego de múltiplas técnicas de pesquisa, que captem a complexidade das relações entre classe e distinção. Muito além de buscar saber as práticas raras e comuns, as que caracterizam mais o gosto de uma classe do que de outra, essas técnicas buscam nos ajudar a responder quais as práticas e os gostos mobilizados para a produção de fronteiras simbólicas. Em uma pluralidade de práticas e gostos que caracterizam a vida dos sujeitos, quais aqueles que se tornam, para usar outra expressão de Lamont, o repertório das diferentes classes nas lutas sociais. Ao fazer esse tipo de pergunta, deslocamos o capital cultural de seu aspecto distintivo para a temática do poder. Isso significa que o interesse recai na esfera da legitimidade de gostos e práticas. E, dessa forma, importa perguntar sobre as novas e antigas instâncias de legitimidade que marcam a esfera cultural. A legitimidade cultural na França de Bourdieu era altamente marcada pelo controle do Estado (operando nas escolas, nos museus, nas salas de concerto etc.), pelo gosto burguês e pela separação de alta e baixa culturas. O que ocorre com essas instâncias com o desenvolvimento da indústria cultural, da cultura produzida por empreendimentos privados e, em especial, pelos novos meios de comunicação, como a internet? A busca de respostas a perguntas como essa e outras que fizemos aparecem nos textos reunidos neste dossiê. A temática de novas configurações do capital cultural e formas de definição das fronteiras simbólicas são observadas no texto “Consumo e capital informacional nas lógicas de distinção entre os grupos dominados”, de Ana Lúcia de Castro. A autora leva o debate sobre a distinção para as classes populares e, nelas, a cultura de consumo. Seu objeto privilegiado de análise é o movimento hype, que envolve a adoção por jovens das classes populares de um consumo de bens restritos típicos do universo do luxo, mas ao mesmo tempo um afastamento das práticas mais legítimas desse universo e da classe dominante. A autora nota como nesse movimento o capital cultural é mobilizado não a partir de seus elementos tradicionais (como a “alta cultura”), mas a partir de um conhecimento da cultura digital que produz um capital informacional. Assim, é pela mobilização desse capital que os agentes do movimento hype são capazes de traçar as fronteiras simbólicas que os diferenciam de outros membros das classes populares. O capital cultural, ela argumenta, continua operando, mas sob formas não antevistas por Bourdieu. Mas se o capital cultural continua operando, sob novas formas, também deve haver instâncias que sejam fonte desse capital na contemporaneidade. Não é estranho à obra de Bourdieu observar o papel da escola e da língua nesse contexto. Contudo, a contemporaneidade exige que repensemos a escola, em especial em relação ao processo de globalização. A isso se dedica Miqueli Michetti no texto “Bilíngues, bilíngues de verdade e global citizens: distinção e disposições no mercado educacional”. O foco agora se volta para as classes altas e sua tentativa de buscar manter o valor do capital cultural que detêm. Para tanto, a inserção dessas classes em uma suposta cultura cosmopolita produz o efeito desejado. Os filhos da elite vão estudar em escolas em que não apenas aprendem uma língua estrangeira (o inglês, em geral), mas incorporam uma disposição cosmopolita e, com ela, a noção de que uma vida desterritorializada, voltada para o mundo, é superior. Dessa forma, em torno de noções que supõem o “bem”, como diversidade cultural, a valorização da diferença, a tolerância etc., o que na verdade se produz é um capital cultural, marcado pela disposição cosmopolita, que, mais uma vez, apenas a elite é capaz de adquirir. Ainda sobre o campo educacional brasileiro, Carlos Moris, Fernando Casselato, Matheus Nascimento, Gabriela Agostini e Luciana Massi mostram outro lado da atuação do capital cultural através de uma excelente aplicação do método de análise de correspondências múltiplas, que demonstra o efeito muito forte do capital cultural nas chances de sucesso no Enem e, portanto, nas chances de acesso à universidade, remetendo aos estudos bourdieusianos clássicos sobre o tema. O tema da distinção ligado ao capital cultural das elites muda de ares e nos leva ao Chile, onde Modesto Gayo e María Luisa Méndez mostram, através de métodos quantitativos e qualitativos, a existência de uma fragmentação ideológica na elite chilena, em contraposição a teorias que pressupõem um conservadorismo inerente a qualquer grupo no topo da hierarquia social. Aproveitando-se do momento de alta tensão e conflitos na sociedade chilena, o artigo estabelece correlações que sugerem uma clivagem entre grupos de elite que apoiam a mudança constitucional e querem um papel protagonista nesse processo, e outros que temem e gostariam de impedir mudanças profundas. Esses grupos, por sua vez, podem ser correlacionados a atitudes opostas no espectro político e ideológico. Do Chile, passamos para a Argentina e o texto de Alexandra Tedesco, um trabalho de sociologia histórica centrado na figura de Victoria Ocampo, escritora fundamental para a formação do campo intelectual argentino no século XX. Através de uma análise cuidadosa de sua trajetória, percebemos também a operação do habitus e do capital cultural incorporado na formação e reprodução de mecanismos de distinção da elite cultural argentina. A relação entre classe, cultura e política reaparece no artigo de Alana Meirelles Vieira, “Entre cultura e política: a distinção da produção de opinião na mídia”. Mobilizando de modo bastante frutífero os conceitos bourdieusianos de espaço social, habitus, campo e capital, a autora problematiza as tomadas de posição no mercado de produção política, centrado na mídia, considerando as homologias das posições e das trajetórias sociais dos agentes nos campos político, jornalístico, econômico e, mais amplamente, no espaço das classes sociais. Com base na análise de dados primários produzidos a partir de entrevistas em profundidade e de pesquisa documental, o trabalho contribui para dar corpo a uma vertente da Sociologia da Cultura que não se furta aos desafios de apreender os determinantes de classe, pela mediação do habitus, nas tomadas de posição política e ideológica. O texto de Michel Nicolau Netto e Bárbara Venturini Ábile propõe a tematização das homologias das hierarquias no campo da moda e no espaço das classes sociais, a partir da investigação empírica de dois eventos de colaboração criativa entre marcas de luxo e fast fashion, entendidos como instâncias empíricas do encontro entre o “sagrado” e o “profano”. Com base em dados produzidos por meio de pesquisa de material visual e de entrevistas em profundidade, os autores argumentam que tais colaborações pressupõem (e também reproduzem) o reconhecimento pelos agentes das hierarquias simbólicas e, portanto, do valor das marcas enquanto signos de distinção nesse subespaço simbólico. Por isso, os eventos de colaboração criativa servem também como uma instância de observação da luta de classes em torno da imposição dos modos legítimos de viver, luta em que as classes superiores quase sempre detêm os recursos necessários para a preservação da raridade relativa em que se assentam seus privilégios. Fechando o dossiê, apresentamos uma entrevista realizada por e-mail com o pesquisador norueguês Johannes Hjellbrekke, que nos traz observações muito interessantes sobre o uso da metodologia bourdieusiana para a produção de projetos de pesquisa no século XXI e a relevância contínua do conceito de capital cultural em nossas sociedades, já tão distantes da França das décadas de 1960 e 70 que Bourdieu investigou. Referências Bibliográficas Ábile, B. V.; Ferreira, T. A.; Miraldi, J. C. & Nicolau Netto, M. (2021), “A arte entre estilistas e chefs: os repertórios da arte e a delimitação das fronteiras na gastronomia e na moda”. CSOn-line: Revista Eletrônica de Ciências Sociais Anderson, Tammy L.; Grunert, Catherine; Katz, Arielle & Lovascio, Samantha. (2010), “Aesthetic capital: A research review on beauty perks and penalties”. Sociology Compass, 4: 564-575. Atkinson, Will. (2017), Class in the new millennium: the structure, homologies and experience of the Britain social space Londres, Nova York: Routledge, Taylor & Francis Group. Bennett, Tony & Silva, Elizabeth. (2011), “Introduction: cultural capital - histories, limits, prospects”. Poetics, 39: 427-443. Bennett, Tony et al (2009), Culture, class, distinction Londres: Routledge. Bertoncelo, Edison. (2022), Construindo espaços relacionais com a análise de correspondências múltiplas: aplicações nas ciências sociais Brasília: Editora da Enap. Bertoncelo, Edison. (2019), “Consumo cultural e manutenção das distâncias sociais no Brasil”. In: Pulici, Carolina & Fernandes, Dmitri (orgs.). As lógicas sociais do gosto São Paulo: Editora Unifesp. Börjesson, Mikael; Broady, Donald; Le Roux, Brigitte; Lidegran, Ida & Palme, Mikael. (2016), “Cultural capital in the elite subfield of Swedish higher education”. Poetics , 56 (3): 15-34. Bourdieu, Pierre. (1971), “Disposition esthétique et compétence artistique”. Les Temps Modernes, 27 (295): 1345-1378. Bourdieu, Pierre. (1974), “Les fractions de la classe dominante et les modes d’appropriation des œuvres d’art”. Information sur les Sciences Sociales, 13 (3). Bourdieu, Pierre. (février 1977a), “La production de la croyance”. Actes de la Recherche en Sciences Sociales, 13: 3-43. Bourdieu, Pierre. (septembre 1977b), “Questions de politique”.Actes de la Recherche en Sciences Sociales . vol. 16, pp. 55-89. Bourdieu, Pierre. (1978), “Titres et quartiers de noblesse culturelle élements d’une critique sociale du jugement esthetique”. Ethnologie Française, 8, (2/3):107-44. Bourdieu, Pierre. (nov. 1978), “Classement, déclassement, reclassement”.Actes de la Recherche en Sciences Sociales , 24: 2-22. Bourdieu, Pierre. (1979), La distinction: critique sociale du jugement Paris, Les Éditions de Minuit. Bourdieu, Pierre. (1984), Homo academicus Paris, Les Éditions de Minuit. Bourdieu, Pierre. (1989), La noblesse d’État Paris: Les Éditions de Minuit. Bourdieu, Pierre. (2015), Sociologie générale, volume 1. Paris, Seuil. Bourdieu, Pierre. (2016), Sociologie générale , volume 2. Paris, Seuil. Bourdieu, Pierre. (2017), Anthropologie économique Paris, Seuil. Bourdieu, Pierre; Boltanski, Luc; Castel, Robert & Chamboredon, Jean-Claude. (1965), Un art moyen: essai sur les usages sociaux de la photographie Paris: Les Éditions de Minuit . Bourdieu, Pierre; Darbel, Alain & Schnapper, Dominique. (2007, [1966]), L’amour de l’art: les musées d’art européens et leur public Paris: Les Éditions de Minuit . Bourdieu, Pierre & Passeron, Jean-Claude. (1964), Les héritiers: les étudiants et la culture Paris: Les Éditions de Minuit . Bourdieu, Pierre & Passeron, Jean-Claude. (1970), La reproduction: éléments pour une théorie du système d’enseignement Paris: Les Éditions de Minuit . Bourdieu, Pierre & Delsaut, Yvette. (janvier 1975), “Le couturier et sa griffe: contribution à une théorie de la magie”.Actes de la Recherche en Sciences Sociales , 1 (1): 7-36. Bourdieu, Pierre & Saint-Martin, Monique de. (octobre 1976), “Anatomie du gout”.Actes de la Recherche en Sciences Sociales , 2 (5): 2-81. Bourdieu, Pierre; Boltanski, Luc & Saint-Martin, Monique de. (1973), “Les strategies de reconversion: Les classes sociales et le systeme d’enseignement”. Social Science Information, 12 (5): 61-113. Brisson, Romain. (2019), “Back to the original omnivore: on the artefactual nature of Peterson’s thesis of omnivorousness”. Poetics , 76: 1-14. Coulangeon, Philippe. (2015), “Social mobility and musical tastes: A reappraisal of the social meaning of taste eclecticism”. Poetics , 51 (4): 54-68. Dimaggio, P. & Mukhtar, T. (2004), “Arts participation as cultural capital in the United States, 1982-2002: Signs of decline?”. Poetics , 32: 169-194. Flemmen, Magne & Haakestad, Hedda. (2018), “Class and politics in twenty-first century Norway: a homology of positions and position-taking”. European Societies, 20 (3): 401-423. Flemmen, Magne; Jarness, Vegard & Rosenlund, Lennart. (2018), “Social space and cultural class divisions: the forms of capital and contemporary lifestyle differentiation”. The British Journal of Sociology, 69 (10): 124-153. Flemmen, Magne; Jarness, Vegard & Rosenlund, Lennart. (2019), “Class and status: on the misconstrual of the conceptual distinction and a neo-Bourdieusian alternative”. The British Journal of Sociology , 70 (3): 816-866. Friedman, Sam. (2014), Comedy and distinction: the cultural currency of a “good” sense of humour Abingdon, Routledge. Disponível em http://eprints.lse.ac.uk/59932/. » http://eprints.lse.ac.uk/59932 Friedman, Sam; Savage, Mike; Hanquinet, Laurie & Miles, Andrew. (2015), “Cultural sociology and new forms of distinction”. Poetics , 53 (6): 1-8. Gayo, Modesto. (2016), “A critique of the omnivore - From the origin of the idea of omnivorousness to the Latin American experience”. In: Hanquinet, Laurie & Savage, Mike (orgs.). Routledge International Handbook of the Sociology of Art and Culture Nova York: Routledge, pp. 103-115. Gripsrud, Jostein; Hovden, Jan Fredrik & Moe, Hallvard. (2011), “Changing relations: Class, education and cultural capital”. Poetics , 39 (1): 507-529. Halle, David. ([1992] 2015), “O público para a arte abstrata: classe, cultura e poder”. In: Lamont, Michèle & Fournier, Marcel. Cultivando diferenças: fronteiras simbólicas e a formação da desigualdade São Paulo: Edições Sesc. Harrits, Gitte S.; Prieur, Annick; Rosenland, Lennart & Skjott-Larsen, Jakob. (2010), “Class and politics in Denmark: Are both old and new politics structured by class?”. Scandinavian Political Studies, 33 (1): 1-27. Holla, Sylvia & Kuipers, Giselinde. (2015), “Aesthetic capital”. In: Hanquinet, Laurie & Savage, Mike (orgs.). Routledge International Handbook of the Sociology of Art and Culture . London: Routledge, pp. 290-304. Holt, Douglas B. (1998), “Does cultural capital structure American consumption?”. Journal of Consumer Research, 25 (1): 1-25. Holt, Douglas B. (1997), “Distinction in America? Recovering Bourdieu’s theory of tastes from its critics”. Poetics , 25: 93-120. Jarness, Vegard. (2015), “Modes of consumption: from what to how in cultural stratification research”. Poetics , 53: 65-79. Karademir, Irmak H. & Warde, Alan. (2016), “The cultural omnivore thesis: methodological aspects of the debate”. In: Hanquinet, Laurie & Savage, Mike (orgs.). Routledge International Handbook of the Sociology of Art and Culture . Nova York: Routledge , pp. 76-89. Lamont, Michèle. (1992), Money, morals and manners. The culture of the French and the American upper-middle-class Chicago, University of Chicago Press. Lamont, Michèle & Molnár, Viràg. (2002), “The study of boundaries in the social sciences”. Annual Review of Sociology, 28: 167-195. Lamont, Michele & Lareau, Annette. (1988), “Cultural capital: allusions, gaps and glissandos in recent theoretical developments”. Sociological Theory, 6: 153-168. Lindell, Johan. (2018), “Distinction recapped: Digital news repertoires in the class structure”. New media & society, 20 (8): 3029-3049. Lindell, Johan & Hovden, Jan Fredrik. (2018), “Distinctions in the media welfare state: audience fragmentation in post-egalitarian Sweden”. Media, Culture & Society, 40 (5). Lizardo, Omar. (2006), “How cultural tastes shape personal networks”. American Sociological Review, 71: 778-807. Lizardo, Omar & Skiles, Sara. (2016), “After omnivorousness: Is Bourdieu still relevant?”. In: Hanquinet, Laurie & Savage, Mike (orgs.). Routledge International Handbook of the Sociology of Art and Culture . Nova York: Routledge , pp. 90-103. Mears, Ashley. (2015), “Girls as elite distinction: the appropriation of bodily capital”. Poetics , 53: 22-37. Miceli, Sergio & Pontes, Heloisa (orgs.). (2014), Cultura e sociedade: Brasil e Argentina São Paulo, Edusp. Nault, Jean-François; Baumann, Shyon; Childress, Clayton & Rawlings, Craig M. (2021), “The social positions of taste between and within music genres: From omnivore to snob”. European Journal of Cultural Studies, 24 (3): 717-740. Pereira, José Virgílio Borges. (2005), Classes e culturas de classe das famílias portuenses: classes sociais e modalidades de estilização da vida na cidade do Porto Porto, Edições Afrontamento. Peterson, Richard A. (2005), “Problems in comparative research: The example of omnivorousness”. Poetics , 33 (5-6): 257-282. Peterson, Richard A. (1997), “The rise and fall of highbrow snobbery as a status marker”. Poetics , 25 (2-3): 75-92. Peterson, Richard A. (1992), “Understanding audience segmentation: From elite and mass to omnivore and univore”. Poetics , 21 (4): 243-258. Peterson, R. A. & Kern, R. M. (1996), “Changing highbrow taste: From snob to omnivore”. American Sociological Review , 61 (5): 900-907. Peterson, Richard A. & Simkus, A. (1992), “How musical tastes mark occupational status groups”. In: Lamont, M. & Fournier, M. (orgs.). Cultivating differences. Symbolic boundaries and the making of inequality Chicago, University of Chicago Press, pp. 152-168. Prieur, Annick & Savage, Mike. (2011), “Updating cultural capital theory: a discussion based on studies in Denmark and in Britain”. Poetics , 39: 566-580. Prieur, Annick & Savage, Mike. (2013), “Emerging forms of cultural capital”. European Societies , 15 (2): 246-267. Pulici, Carolina. (2014), “A alimentação solene e parcimoniosa: práticas gastronômicas como fonte de distinção das elites brasileiras”. Revista Eco Pós, 17 (3): 1-15. Purhonen, Semi; Gronow, Jukka & Rahkonen, Keijo. (2011), “Highbrow culture in Finland: Knowledge, taste and participation”. Acta Sociologica, 54 (4): 385-402. Rosenlund, Lennart. (2015), “Working with Distinction: Scandinavian experiences”. In: Coulangeon, Philippe & Duval, Julien. The Routledge Companion to Bourdieu’s Distinction Oxon; Nova York: Routledge . Rosenlund, Lennart. (2009), Exploring the city with Bourdieu: applying Pierre Bourdieu’s theories and methods to study the community Sarbruque, vdm Verlag. Saint-Martin, M. (2015), “From Anatomie du goût to La distinction: attempting to construct the social space. Some markers for the history of the research”. In: Coulangeon, Philippe & Duval, Julien. The Routledge Companion to Bourdieu’s Distinction Oxon; Nova York: Routledge . Savage, Mike et al (2015), Social class in the 21 century Londres, Pelican Books. Sølvberg, Lisa M. B. & Jarness, Vegard. (2019), “Methodological challenges when mapping symbolic boundaries”. Cultural Sociology, 13 (2): 178-197. Špaček, Ondřej. (2017), “Measuring cultural capital: Taste and legitimate culture of Czech youth”. Sociological Research Online, 22 (1): 1-17. Van Den Haak, Marcel & Wilterdink, Nico. (2019), “Struggling with distinction: How and why people switch between cultural hierarchy and equality”. European Journal of Cultural Studies , 22 (4): 416-432. Vandebroek, Dieter. (2015), “Classifying bodies, classified bodies, class bodies: a carnal critique of the judgment of taste”. In: Coulangeon, Philippe & Duval, Julien. The Routledge companion to Bourdieu’s Distinction Oxon; Nova York: Routledge . 1 Bertoncelo, 2022. 2

Tempos difíceis. Sobre a importância do feminismo*