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Da contracultura à somaterapia: a criação e o desenvolvimento inicial de uma terapia anarquista
capitulo
Sylvia Romano
ter., 12 de out. 21:11
para mim
Da contracultura à somaterapia: a criação e o desenvolvimento inicial de uma terapia anarquista
From counterculture to somatherapy: the creation and early development of an anarchist therapy
Resumo
Abstract
Text
O “mito” de criação da somaterapia: Freire “descobre” Reich
Desenvolvimento teórico inicial da somaterapia
Construções narrativas posteriores: a questão do nome
Considerações finais
AGRADECIMENTOS
REFERÊNCIAS
NOTAS
Datas de Publicação
Histórico
Resumo
Este trabalho faz parte de uma pesquisa maior, na qual se procura compreender como a somaterapia de Roberto Freire surgiu e se desenvolveu a partir da contracultura dos anos 1970. Abordam-se a criação e o desenvolvimento inicial da somaterapia, partindo do que se compreende ser um “mito de criação”: uma narrativa ordenada e coerente que explica o surgimento da terapia e que aparece, de forma recorrente, com poucas alterações. Analisam-se, ainda, narrativas posteriores a esse período que remetem ao processo de nomeação da somaterapia. Nesta análise, são encontrados conflitos de dados e incongruências que indicam a complexidade desses processos e o esforço dos autores no sentido de ordenação e legitimação da técnica terapêutica.
somaterapia; Roberto Freire (1927-2008); terapias alternativas; anarquismo
Abstract
This work is part of a larger survey on how Roberto Freire’s somatherapy emerged and developed from the counterculture of the 1970s, addressing the creation and initial development of somatherapy, starting from what is understood to be a “creation myth,” an orderly and coherent narrative explaining the emergence of this therapy that is frequently repeated with few changes. Later narratives referring to the process of naming somatherapy are also examined, revealing inconsistencies and conflicts in the data that indicate the complexity of these processes and the authors’ efforts to add order and legitimacy to this therapeutic technique.
somatherapy; Roberto Freire (1927-2008); alternative therapies; anarchism
Roberto Freire publicou mais de trinta livros, entre os quais Cleo e Daniel , “ best-seller entre os estudantes nos anos 1970, vendendo mais de 200 mil exemplares em bancas de revista, no formato de jornalivro” (Freire, Mata, 2017). Sem tesão não há solução (1987) “ganhou mais de vinte edições e chegou a vender cerca de cem mil exemplares” ( Simões, 2011 , p.96). Segundo Carla Silva (2015a, p.14), em 1999 “a obra de Freire já vendera mais de 400 mil exemplares, número impressionante para um autor brasileiro que publicou seus principais livros entre as décadas de 1960 e 1990”. Além disso, seu nome, bem como da técnica terapêutica criada por ele, circulava frequentemente por veículos da grande imprensa.
Compreendemos sua obra literária, assim como seu “maior legado”, a somaterapia, como provenientes das correntes contraculturais que emergiam em diversos países a partir da década de 1960. O termo contracultura apareceu na imprensa estadunidense como um rótulo para designar os movimentos juvenis de contestação que surgiam naquela década, sendo o movimento hippie um dos mais exemplares. Esses movimentos almejavam se contrapor a uma ideia de cultura dominante, propondo novos estilos de vida e, principalmente, novas maneiras de luta política, com passeatas e grandes happenings regados a prazer, rock n’roll e substâncias psicoativas.
Compreende-se que não só o capitalismo ou as formas tradicionais de luta da esquerda foram postas em xeque pela contracultura, mas a própria noção de racionalidade moderna e científica. A crítica que se fazia era à própria forma do pensar. Do contato com religiões orientais à expansão da consciência por meio de substâncias psicoativas, da crítica ao dualismo e ao racionalismo pela afirmação do corpo, do sexo, das emoções e das intuições à crítica crucial ao adiamento infinito da realização pessoal – seja ela no consumo capitalista ou na revolução socialista –, buscava-se mais do que uma revolução política: uma revolução cultural. Dessa forma, proliferaram no período práticas alternativas de cura1 e manifestações críticas à ciência, inclusive dentro do próprio campo intelectual ( Carvalho, 2008 ).
Souza e Luz (2009 , p.394), pensando o campo da história da saúde, também associam a emergência das práticas terapêuticas alternativas à contracultura. Para os autores, o surgimento e o desenvolvimento dessas terapias
remontam ao final da década de 1960, tendo desempenhado importante papel no conjunto de transformações denominado contracultura. ... Naquele momento, uma juventude revolucionária partia em busca de novas soluções terapêuticas, utilizando tais práticas não apenas como terapias, mas como símbolos de uma ‘revolução cultural’. Uma parte dessa ‘estratégia revolucionária’ foi a importação de sistemas exógenos de crença e orientações filosóficas, geralmente orientais, que serviram de fundamento para a construção de um corpo ideológico de orientações práticas. Nesse contexto, os usuários das então chamadas terapias alternativas estavam à procura de práticas congruentes com essas orientações, que pudessem afirmar e materializar sua ideologia numa práxis.
No Brasil o movimento contracultural teve expressão destacada em periódicos como O Pasquim e em intelectuais e artistas como Luiz Carlos Maciel, Raul Seixas e Roberto Freire. Percebemos a relação de Freire com a contracultura tanto em sua trajetória pessoal, de militante da Ação Popular no início da década de 1960 a anarquista e crítico dos próprios movimentos “tradicionais” de esquerda nos anos seguintes, quanto em sua somaterapia, na qual o trabalho com a couraça muscular, a compreensão não dualista dos conceitos de corpo e mente, a valorização da sexualidade e a nova concepção de anarquismo se relacionam diretamente com temas da contracultura, tais como hedonismo, monismo, pensamento mítico, revolução sexual, crítica anarquista às instituições e a formas tradicionais de luta política ( Boscato, 2006 ; Capellari, 2007; Carvalho, 2007 , 2008 ; Pereira, 1986 ).
Assim, na presente pesquisa busca-se compreender como a somaterapia surgiu e se desenvolveu nesse contexto da contracultura das décadas de 1970 e 1980. Também conhecida por soma, essa técnica terapêutica foi idealizada e desenvolvida por Roberto Freire a partir de experiências dentro do Centro de Estudos Macunaíma, junto aos teatrólogos Myriam Muniz e Sylvio Zilber e ao professor de arquitetura da USP Flávio Império, onde pesquisavam técnicas de desbloqueio da criatividade para atores. Segundo seu idealizador, a terapia nasceu a partir de seu contato com a técnica teatral do grupo Living Theater, embasada nas teorias de Wilhelm Reich.2 A somaterapia, segundo Freire e seus seguidores, busca, por meio de dinâmicas corporais, jogos teatrais e capoeira de angola, libertar o indivíduo da neurose e da couraça muscular3 causada pela sociedade repressora.
As fontes desta pesquisa foram, principalmente, as obras bibliográficas de Freire, porém, analisam-se também produções acadêmicas de somaterapeutas e simpatizantes, jornais e boletins vinculados à somaterapia, websites e matérias, anúncios e referências encontrados no acervo digital da Folha de S. Paulo e em outros veículos da imprensa. Na maior parte das fontes, são encontrados discursos biográficos ou autobiográficos que remetem diretamente a um esforço memorialista de apresentação das trajetórias de Freire e da somaterapia. Na análise das fontes, portanto, mostrou-se de suma importância a reflexão sobre os processos de memória e identidade que emergiam, bem como sua relação com a história da criação e desenvolvimento da somaterapia. Tal reflexão foi realizada principalmente a partir dos aportes teóricos de Bourdieu (1996) , Pollak (1992) , Catroga (2015) , Rondelli e Herschmann (2000) , Schmidt (2000) e Rojas (2000) .
No presente artigo, aborda-se a criação da somaterapia partindo do que se compreende ser uma espécie de “mito de criação” da técnica terapêutica: uma narrativa ordenada e coerente que explica o surgimento da terapia e que aparece com poucas alterações nas diversas fontes. Na sequência, estuda-se o desenvolvimento teórico inicial, analisando como Freire entrou em contato com os diversos elementos dos quais se apropriará na constituição de sua técnica. Por fim, são analisadas com maior cuidado algumas construções narrativas posteriores a esse período, de Freire e de somaterapeutas e simpatizantes, que remetem ao processo de nomeação da somaterapia. Nesta análise, são averiguadas diversas incongruências e conflitos de dados que parecem indicar, por um lado, a complexidade desses processos e, por outro, o esforço dos autores no sentido de ordenar e legitimar a técnica terapêutica.
O “mito” de criação da somaterapia: Freire “descobre” Reich
A história da criação da somaterapia é sempre referenciada em uma espécie de “mito de origem”, um “acontecimento fundador”, tal qual compreendido por Pierre Nora (dez. 1993, p.25): acontecimentos ínfimos aos quais “o futuro retrospectivamente conferiu a grandiosidade das origens, a solenidade das rupturas inaugurais”. Isto é, a história da somaterapia contada nas obras de Freire e de somaterapeutas e simpatizantes se constitui, naturalmente, de construções narrativas posteriores aos fatos, que, voltando-se para o passado, procuram uma ordem coerente no emaranhado de acontecimentos que compõem os fatores desencadeantes do processo de formação dessa técnica terapêutica ( Bourdieu, 1996 ).
Esse acontecimento fundador é o encontro de Freire com a obra de Wilhelm Reich, cujas teorias dariam a base científica da somaterapia. Com algumas poucas variações, esse episódio é narrado da seguinte forma nas fontes: em fins da década de 1960, o romance Cleo e Daniel estava sendo adaptado para o cinema. Porém, no meio das filmagens, as verbas para o financiamento se esgotaram, e o filme, terminado “aos trancos e barrancos”, acabou sendo um “fracasso”. Decepcionado com o resultado, Freire “fugiu” para a Europa enquanto o filme estava em cartaz. Em Paris, assistiu ao espetáculo Paradise Now , do grupo anarquista estadunidense de teatro Living Theater, e ficou maravilhado com a técnica empregada por ele. Julian Beck, diretor do grupo, conta-lhe que sua técnica se baseia nas teorias de Wilhelm Reich. Freire então mergulha apaixonadamente nas obras de Reich, reconhecendo nelas coisas que ele mesmo já sabia, “intuitivamente”, como as críticas à psicanálise freudiana, a importância do corpo em uma abordagem terapêutica, a crítica ao Estado e ao capitalismo, entre outras. Voltando ao Brasil, Freire conhece o Centro de Estudos Macunaíma e nele, com Myrian Muniz, Sílvio Zilber e Flávio Império, pesquisa exercícios teatrais para desbloqueio da criatividade de atores, os quais descobriria também servir para o desbloqueio da couraça muscular e da energia vital dos neuróticos em geral, passando a utilizar os exercícios em grupos de terapia. Assim nascia a somaterapia.
O relato mais antigo desse acontecimento a que tivemos acesso está em Freire (1977) . Nesse livro, temos que a filmagem de Cleo e Daniel se deu em 1969, quando Freire, encontrando-se “sem solução financeira”, aceita a proposta de Júlio Bozzano, “um banqueiro que conhecera casualmente”, para financiar o filme. Porém, desconhecendo as “manhas” da indústria cinematográfica, Freire acaba se encontrando em uma “lamentável situação”: “o dinheiro acaba antes do tempo, e da metade do filme para a frente, há necessidade de outros empréstimos, de dívidas em outros bancos”. Assim, Freire acaba tendo de vender o filme antecipadamente, e tal é sua decepção com o resultado final que “resolve arranjar mais um empréstimo e se manda para a Itália”, permanecendo lá por quatro meses, “escondido do filme”, até este sair de cartaz (Freire, 1977, p.339-340).
Em sua autobiografia, Freire (2002 , p.229) acrescenta que o convite para a filmagem foi realizado “em fins de 1969”, especificando também que o banco que lhe concedeu o financiamento foi o Banco Bozano Simonsen. Porém, já não menciona a situação financeira anterior que o teria motivado a aceitar a proposta, referindo-se ao convite como “fantástica informação”, falando que “fazer cinema era um sonho”, que, “como cinéfilo, eu me sentia preparado para realizar meu filme” e, por fim, “sobretudo, estava impulsionado, como sempre, pela paixão de poder experimentar uma nova forma de criação artística”. Nessa obra, portanto, o autor dá a entender que aceitou fazer a filmagem não por necessidade financeira, como apontado em Freire (1977) , mas apenas por gosto e vontade própria. Além disso, na autobiografia, em um primeiro momento, Freire não menciona seu despreparo, afirmando ter sido repentinamente informado sobre o fim do dinheiro e, inclusive, elogiando sua “sábia decisão” de ter filmado primeiramente as sequências mais complexas. Somente na sequência da narrativa reconhece sua “incompetência” quanto às administrações financeira e produtiva do filme.
Diferentemente do que afirmara na obra de 1977, em sua autobiografia o autor diz ter fugido para a Itália, mais especificamente Roma, com as “sobras de dinheiro ganho no tempo em que exerci a psicanálise”, e não, portanto, com um novo empréstimo, como afirmado anteriormente ( Freire, 2002 , p.228-232). Percebe-se, nessas passagens, que a nova narrativa distancia-se da anterior justamente no sentido de buscar apresentar uma versão melhor de si mesmo, esquecendo ou mesmo omitindo fatos que o autor não demonstra tanto apreço por ver contados, como nos lembra Pollak (1992 , p.204): “O que a memória individual grava, recalca, exclui, relembra, é evidentemente o resultado de um verdadeiro trabalho de organização”. Percebe-se, dessa forma, a mesma preocupação em dar sentido à narrativa autobiográfica apontada por Bourdieu (1996 , p.184) em seu conhecido ensaio “A ilusão biográfica”:
o relato autobiográfico se baseia sempre, ou pelo menos em parte, na preocupação de dar sentido, de tornar razoável, de extrair uma lógica ao mesmo tempo retrospectiva e prospectiva, uma consistência e uma constância, estabelecendo relações inteligíveis, como a do efeito à causa eficiente ou final, entre os estados sucessivos, assim constituídos em etapas de um desenvolvimento necessário.
Quanto ao encontro com a obra de Reich, temos mais algumas dissonâncias. Em 2002, o autor relata que, após fugir para Roma, já curado da “depressão em que me encontrava”, haveria resolvido passar uns dias em Paris, onde assistiu ao espetáculo Paradise now , do Living Theater. Esse espetáculo teria lhe causado “profundo, delicioso e inesquecível impacto por sua beleza e estranha comunicação corporal, sensorial e sobretudo sensual” ( Freire, 2002 , p.232-233). Sobre o espetáculo, Silva (2015b, p.4) acrescenta, em tom poético: “ Paradise now tem um texto provocativo e instigante, mas não foi seu enredo que despertou Roberto Freire do estado melancólico e desacreditado das palavras... Foi antes o retorcer e emaranhar dos corpos dos atores”.
Após o espetáculo, Freire teria procurado o diretor Julian Beck nos camarins, quando esse lhe falou sobre como o teatro convencional utilizava a técnica de interpretação de Konstantin Stanislavski, baseada em Freud, e como eles eram contra “a visão burguesa e reacionária de Freud”, passando a pesquisar a obra de Reich (Freire, 2002, p.232-233). Em Viva eu, viva tu, viva o rabo do tatu! ( Freire, 1977 , p.340), ao lado do Living Theater e com igual importância aparece o contato de Freire com “os laboratórios de teatro de Grotowski”, também baseados em Wilhelm Reich. Em Soma: uma terapia anarquista ( Freire, 1991 , p.54), também diz que seu encontro com a obra reichiana se deu por meio da “obra do polonês Jerzy Grotowski e a do conjunto Living Theater”, enquanto em sua autobiografia, bem como em alguns trabalhos acadêmicos, o nome de Grotowski é completamente ignorado ( Freire, 2002 ; Schroeder, 2004 , 2008 ; Silva, 2015a, 2015b; Simões, 2011 ).
Além disso, é interessante apontar que nas obras de 1977 e 1991 Freire afirma ter conhecimento prévio de Reich: “Esse fato leva-o a ‘estudar de novo’ Reich” (Freire, 1977, p.341; destaque nosso), “autor que naquela época eu sabia apenas ser um discípulo de Freud que não era indicado para estudo nos cursos que fiz na Sociedade de Psicanálise” (Reich, 1991, p.55). Já em sua autobiografia, Freire reconstrói com alguma liberdade poética o diálogo que haveria travado com Julian Beck:
– ... passamos [Beck e o Living Theater] a pesquisar uma técnica interpretativa baseada na obra de Wilhelm Reich ... Espantei-me, porque ‘nunca ouvira esse nome’.
– Quem?
– Wilhelm Reich... discípulo de Freud ( Freire, 2002 , p.233; destaque nosso).
O autor ainda ressalta não ter existido “absolutamente nada” sobre Reich nos livros recomendados pela Sociedade Internacional de Psicanálise nos cursos que realizara ( Freire, 2002 , p.233). Em entrevista a Nahra (1995 , p.6), Freire ainda afirma: “Eu nem sequer conhecia Reich”, e esse suposto desconhecimento é também reproduzido por Cesse Neto (2014), Silva (2015a) e Simões (2011) . O somaterapeuta Cesse Neto (2014, p.182) afirma que na formação de Freire em psicanálise “nunca lhe foi mencionado o trabalho e a obra de Reich”, e que Freire só conheceria a obra reichiana com o Living Theater. Silva (2015a, p.215) também afirma: “Roberto Freire desconhecia a obra e teoria do psicanalista Wilhelm Reich”. E Simões (2011 , p.25), na mesma linha, diz que Freire só descobriu Reich após a conversa com Julian Beck. No entanto, as afirmações nas obras de Freire de 1977 e 1991 nos levam a compreender que algum conhecimento de Reich o autor deveria ter, nem que fosse apenas uma menção. Mas por que omitir isso de forma tão romanceada em sua autobiografia?
Antes de arriscar responder a essa pergunta, é preciso se aproximar de uma característica bastante frequente de Freire em suas narrativas. Em 1977, o autor coloca que, ao entrar em contato com os trabalhos de Grotowski e do Living Theater percebeu “certas semelhanças – não de qualidade, mas de pesquisa – entre aqueles espetáculos e o seu O&A ”, peça teatral escrita por ele e encenada pelos integrantes do Tuca (Teatro da Universidade Católica), do qual Freire havia participado na década de 1960 ( Freire, 1977, p , p.341). Em sua autobiografia, Freire (2002, p , p.234) diz que Reich “provara cientificamente a minha própria contestação à psicanálise”. Isto é, percebemos em Freire um esforço recorrente em “essencializar” visões de mundo e comportamentos como “naturais” e, portanto, existentes desde sempre em sua pessoa, bem como naquelas pessoas compreendidas por ele como naturalmente libertárias, porém, apenas ainda não descobertas até certo momento de suas trajetórias.4 Em sua autobiografia, é comum o autor citar escritores que compreende dar voz ao que ele já sentia ou sabia intuitivamente, assim como, em sua primeira leitura de obras anarquistas, já as ter sentido não como algo novo, mas como “uma extraordinária descoberta: a ideologia anarquista correspondia exatamente ao que eu sentia dentro de mim sobre justiça social” ( Freire, 2002, p , p.34). Da mesma forma, seu contato com a antipsiquiatria também é narrado como se houvesse ocorrido, antes do contato com a referência teórica, de uma maneira espontânea, com sua “recusa à psiquiatria tradicional e a certeza de que nela percorria-se um falso caminho” ( Freire, 1991, p , p.55). No contato com a Gestalt, temos as afirmações de Freire (1977, p , p.67) que melhor esclarecem o argumento: “Quando comecei a entrar em contato com a obra de Perls, a primeira coisa que senti foi familiaridade. Uma sensação de já saber, de uma forma ou de outra, pela intuição e pela experiência, de tudo aquilo que lia. Uma espécie de comprovação, mais do que iniciação. E, na verdade, eu nunca tinha lido nada ainda a esse respeito”. Mais tarde, em Tesudos de todo mundo, uni-vos! , o argumento não muda. Freire repete a sensação de familiaridade ao estudar a Gestalt, “como se já soubesse de tudo aquilo por outra fonte que não a científica ou a filosófica”. Nessa obra, Freire (1995a, p.154, 232) também afirma que, para ele, Thomas Szasz “apenas acrescentou mais documentos teóricos e históricos àquilo que os 25 anos de exercício da profissão médica já me haviam mostrado”.
Freire afirma ainda que o princípio do “monismo”5 da Gestalt era, aliás, uma atitude antiga sua, em seu posicionamento de vida e de trabalho, ela “apenas não tinha nome”. Além de seu contato com essa referência teórica, Freire essencializa também a própria Gestalt, afirmando que Perls, “ao se desentortar da psicanálise, descobriu a terapia gestáltica já pronta dentro dele” (Freire, 1977, p.68). Freire (1977 , p.67-68) compreende a Gestalt como a “abordagem original”, “natural” e “não distorcida” da vida, e “tão velha quanto o próprio mundo”.
Compreende-se, portanto, que a omissão de Freire em sua autobiografia quanto a seu conhecimento prévio de Reich pode ter sido tanto proposital quanto fruto de um “natural” esquecimento. Contudo, o que está em jogo nessa omissão é que, para Freire, assumir que conhecia Reich antes de 1970, e que esse conhecimento não haveria despertado nada nele anteriormente, vai contra a coerência de sua narrativa. Admitir esse conhecimento anterior contrariaria sua narrativa de que teria se oposto radicalmente à psicanálise desde o início de sua formação, sentindo-a conservadora e burguesa ( Freire, 2002 , p.124). Se assim o fosse de fato, e Freire houvesse conhecido Reich nesse momento, provavelmente, na lógica de sua narrativa, já teria se identificado com a obra de Reich e a estudado na época. No entanto, a própria narrativa de Freire quanto à sua oposição radical e primária à psicanálise contradiz outras fontes. Em A arma é o corpo ( Freire, 1991 , p.50), tem-se que sua formação em psicanálise durou cerca de cinco anos (de 1958 a 1963), informação corroborada também em Comodo (1991 , p.12), na qual Freire afirma ter feito a formação em psicanálise “durante alguns anos”, abandonando-a em 1963, e em Freire (1973 , p.191), onde consta que ele “exerceu por alguns anos a psicanálise para, em 1963, abandonar definitivamente a medicina”. Ou seja, é possível que as críticas que Freire fará à psicanálise com o desenvolvimento da somaterapia na década de 1970 não fossem tão significativas naquele período anterior.
Compreende-se, portanto, que, para o autor, admitir um possível conhecimento da obra de Reich antes de 1970 iria contra o sentimento de “descoberta” que ele haveria tido naquele tempo, como se estivesse entrando em contato com elementos que nele estiveram “sempre” presentes. Percebe-se, dessa forma, que a memória de Freire seleciona, de modo consciente ou não, apenas o que torna sua narrativa coerente e condizente com aquilo que ele pensa de si mesmo e do mundo ( Bourdieu, 1996 ; Catroga, 2015 ; Pollak, 1992 ; Schmidt, 2000 ). Sua narrativa dá a entender, assim, que ele já possuía uma perspectiva crítica da psicanálise desde sempre, o que, como vimos, entra em aparente contradição com outras fontes. Dessa forma, compreende-se essas alegações como uma construção da memória que busca transcrever o ocorrido em uma ordem lógica e coerente.
Desenvolvimento teórico inicial da somaterapia
Voltando ao Brasil, ainda em 1970, Freire “mergulhou” no estudo de Reich, lendo em sequência A revolução sexual, Análise do caráter e A função do orgasmo . Silva (2015a) defende a tese da reconstrução da existência de Roberto Freire a partir da viagem à Europa no final da década de 1960, tratando o episódio do encontro com a obra de Reich como um “divisor de águas”, um “acontecimento-ruptura” na vida de Freire. Silva (2015a, p.212, 216) se refere a essa viagem como autoexílio, e quando narra esse episódio que culminou com o encontro com Reich, afirma:
Roberto Freire, após várias prisões, torturas e a perda de diversos empregos – por ‘solicitação’ dos militares – vivenciou uma grande crise existencial em 1968. Com a crescente violência perpetrada pelos militares, a Europa se tornou não só um refúgio para os exilados, mas também um local de reencontro com a liberdade de pensamento e ação, com a democracia, com uma realidade antiautoritária. Freire viajou para a Itália, em seguida para a França, fugindo do regime autoritário, das impossibilidades do fazer artístico e da militância, sendo esta a mais marcante das muitas viagens ao exterior durante a ditadura militar. O autoexílio tornou-se uma possibilidade de reinvenção de si.
Percebe-se que os motivos alegados por Freire (2002 , p.232) para a viagem não são citados, isto é, a “vergonha que passei a sentir pelo fracasso do filme Cleo e Daniel ”. A autora aborda, portanto, o período da vida de Roberto Freire compreendido entre o encontro com Reich e a publicação de Viva eu, viva tu, viva o rabo do tatu! (1977) como um “tempo intermediário” na vida dele, que marcaria a passagem da militância marxista ao viver anarquista (Silva, 2015a, p.213, 216).
Entre 1970 e 1974, Freire realiza diversas viagens de pesquisa à Europa, aprofundando-se nas práticas terapêuticas que comporão, com Reich, o instrumental metodológico e teórico da somaterapia (Silva, 2015a, p.230). Além de Reich, portanto, cuja obra é sempre referenciada como a principal base teórica e científica da somaterapia, outros autores e obras também são citados como sendo influências fundamentais na criação da técnica terapêutica. Desses, os que marcam presença mais frequente são: Alexander Lowen, discípulo estadunidense de Reich, que aprofundou os estudos da bioenergética; Frederik Perls, criador da Gestalt-terapia; e David Cooper, Gregory Bateson e Franco Basaglia, com a antipsiquiatria.
A ordem do itinerário de pesquisa realizado por Freire não é descrita detalhadamente em nenhuma obra a que tivemos acesso. Em sua autobiografia, em uma primeira referência superficial a esses estudos, ele narra que desenvolvera “um novo método terapêutico, baseado em Wilhelm Reich e depois ampliado por pesquisas próprias e apoiado pelas descobertas recentes no campo da antropologia, da gestalt e da antipsiquiatria” (Freire, 2002, p.237). Podemos deduzir das informações dispostas nessa obra que, após Reich, o primeiro dos teóricos citados em que Freire se aprofundou foi Alexander Lowen, porém, isso só depois de sua separação de Gessy,6 em 1972. No mesmo período, descobriria também Frederik Perls, criador da Gestalt-terapia. A antipsiquiatria, aparentemente, teria aparecido em sua trajetória bem depois. Em sua narrativa autobiográfica, além daquela primeira menção superficial, Freire só viria a mencionar a antipsiquiatria, citando David Cooper e Ronald Laing, após o contato com o Centro de Estudos Macunaíma, e a leitura de Corpos em revolta , de Thomas Hanna, e A fabricação da loucura , de Thomas Szasz, isso 66 páginas depois da menção à Gestalt-terapia de Perls. Nesse ínterim, Freire (2002 , 243-309) narra sua experiência jornalística na revista Realidade e sua vivência como jurado em festivais de música, além de alguns outros relatos pessoais.
Em A arma é o corpo ( Freire, 1991 ), há todo um capítulo dedicado ao “Breve histórico da soma”, em que o autor aponta as principais raízes/influências de sua técnica terapêutica. Sobre a bioenergética e a Gestalt-terapia, afirma tê-las realizado “terapeuticamente em poucos meses na Europa” (p.53). Já quanto ao contato com a antipsiquiatria, que refere primeiro ter acontecido de forma espontânea, por sua recusa pessoal à psiquiatria tradicional, como já vimos, e depois devido a “um alcoolismo que começava a tornar-se crônico” ( Freire, 1991 , p.55), ao se consultar com antipsiquiatras europeus que lhe iniciaram nas obras de Gregory Bateson, David Cooper e Ronald Laing. Porém, não é com nenhuma dessas influências teóricas que Freire inicia esse capítulo. A primeira raiz elencada pelo autor é o teatro, citando, de sua experiência na área, entre 1958 e 1963, as aulas de “Psicologia do ator” ministradas na Escola de Arte Dramática, a participação no Teatro de Arena, a presidência do Teatro Brasileiro de Comédia e a direção do Serviço Nacional de Teatro, além de suas quatro peças teatrais montadas na época. Porém, salienta que a “origem teatral da soma fica mais explícita nas duas montagens teatrais das quais participei como diretor artístico e autor no Tuca ... em 1966 e 1968: Morte e vida severina ... e O&A ” ( Freire, 1991, p , p.50). Especialmente esta última, de sua autoria, teve o desenvolvimento bastante influenciado pelas técnicas de expressão corporal aprendidas com discípulos de Rudolf Laban na Europa, como Maurice Béjart (p.50).
A segunda raiz apontada pelo autor é a ludoterapia. Segundo Freire (1991 , p.51), “trata-se de uma terapia aplicada às crianças”, na qual, “por meio de jogos e brinquedos padronizados, as crianças reproduzem em suas brincadeiras os conflitos que estão vivendo”. A somaterapia, portanto, viria a utilizar “semelhante metodologia, porém em adultos”. Esclarece o autor: “Através de exercícios (jogos, brinquedos) procura-se certa regressão das pessoas do grupo terapêutico. Durante essa regressão em jogos e brincadeiras padronizados (exercícios), as pessoas revelam, através de ‘bandeiras’, os conflitos resultantes de sua participação na vida social cotidiana e adulta” (p.51). Seu contato com a ludoterapia se deu por intermédio de madre Cristina Sodré Doria, diretora do setor de Psicologia do Instituto Sedes Sapientiae, da PUC-SP, quando Freire (1991 , p.51, 52) a entrevistou para uma reportagem na revista Realidade , em 1967.
A terceira raiz, “sem dúvida a mais importante”, diz Freire, “é de natureza política”. É ao se colocar como “socialista perseguido por suas atividades subversivas”, ao lado da luta revolucionária da juventude contra “o fascismo, a violência, o autoritarismo da ditadura militar”, que ele se coloca também contra as terapias existentes, considerando-as “reacionárias e a serviço da vida burguesa e mantidas pelo autoritarismo militar”. Freire ainda destaca que “era impossível confiar em terapeutas para um relato da realidade emocional e psicológica que se vivia na vida clandestina durante a ditadura”, e que o psicanalista “poderia ser mais um a serviço do Estado (houve casos em que vários colegas foram entregues à polícia ou hospícios). Os sobreviventes aspiravam a uma terapia revolucionária” (Freire, 1991, p.52; Cleidejane, 3 fev. 1991, p.7).
Coimbra (1995 , 2004 ) reitera essa realidade ao apontar para o papel de psiquiatras e psicólogos na rotulação dos subversivos como “loucos” e “desajustados”, servindo assim aos propósitos repressivos do governo militar. Freire (1991 , p.52-53) destaca também a situação de precariedade psicológica dos militantes, submetidos à vida clandestina, “sempre fortemente marcada pela solidão, pelo medo, pelo risco iminente e constante da prisão e da morte”, o que “produzia tensões crônicas, desajustes emocionais e distúrbios psicológicos de todos os tipos”. Ele conclui, daí, que “o maior inimigo do militante clandestino não eram, propriamente, os agentes da ditadura, mas sim a falta de equilíbrio emocional e psicológico proveniente da sua origem e formação burguesa”.
Dessa forma, Freire buscava criar “uma terapia através da qual a juventude sublevada pudesse livrar-se dos resíduos burgueses de sua personalidade, bem como sustentá-la emocional e psicologicamente na luta contra a ditadura militar”. Uma terapia, “marcada por uma visão socialista do homem”, que “funcionasse como os hospitais de campanha durante as guerras. Os militantes clandestinos que lutavam contra a ditadura, quando a neurose os bloqueasse, poderiam ser tratados de imediato e, uma vez recuperados, devolvidos à luta”. “E foi assim”, narra o autor, “que nasceu a soma”, servindo aos militantes durante todo o tempo da ditadura, inclusive como “fonte de recursos financeiros para o sustento de suas famílias, enquanto eram obrigados a viver escondidos” (Freire, 1991, p.53). Em Tesudos de todo mundo, uni-vos! , Freire (1995b, p.129) explicita que essa ajuda financeira ocorria por meio de uma porcentagem repassada aos militantes que lhe indicavam clientes.7
Somente na sequência, portanto, Freire (1991 , p.54-56) falaria das tradicionais influências8 da somaterapia: Living Theater, Grotowski, Reich, Lowen, Perls, Bateson, Cooper e Laing, bem como do Centro de Estudos Macunaíma. Porém, apesar de todas essas influências se apresentarem como fundamentais na composição da somaterapia, Freire (1977 , p.341) afirma que “sua experiência de vida, seu ecletismo de estudo, vivência e atuação em diferentes campos das artes e das ciências são os ingredientes mais importantes e mais característicos de seu método terapêutico”. Ou ainda, em outras palavras, “a soma teve sua base científica em Wilhelm Reich, em Frederik Perls, em Gregory Bateson, em David Cooper” etc., mas “a amálgama de todas essas experiências e descobertas era praticada com o que eu próprio vivia, experimentava e descobria, movido por um profundo amor ao ser humano” ( Freire, 1991 , p.36).
Construções narrativas posteriores: a questão do nome
Como abordamos na seção anterior, ao longo dos anos 1970 a técnica terapêutica desenvolvida por Freire foi incorporando diversas correntes teóricas. Além disso, principalmente a partir das experiências realizadas junto ao Centro de Estudos Macunaíma, aspectos práticos da terapia também foram se desenvolvendo e mudando. Dessa forma, compreende-se que a técnica terapêutica de Freire não foi a mesma desde sempre, o que se reflete, aliás, nas mudanças de nomeação que sofreu.
Em minha dissertação, analiso também o desenvolvimento prático inicial da somaterapia e construções narrativas posteriores a respeito do processo de criação da técnica terapêutica. Nessas análises, verifica-se a importância crucial das experiências realizadas junto aos demais integrantes do Centro de Estudos Macunaíma na constituição da técnica terapêutica, bem como a construção de narrativas que exageram a data de criação da mesma, buscando uma data ou ano preciso para o acontecimento, e muitas vezes jogando essa data para um momento anterior a suas principais influências ou mesmo anterior à criação do Macunaíma ( Ferraz, 2018 , p.67-71, 75-83). Neste artigo, limitaremos a análise ao processo de nomeação da técnica terapêutica.
A palavra somaterapia teria surgido apenas em 1973 ( Freire, 1988 , p.21). Segundo Freire, a denominação teria sido inspirada no conceito de soma, utilizado por Thomas Hanna na obra Corpos em revolta . A ideia de utilizar esse conceito para designar seu método terapêutico teria ocorrido a partir de uma conversa com João Meireles, “primeira pessoa interessada em tornar-se somaterapeuta”, na qual discutiam a obra de Hanna, pois a mesma era leitura obrigatória para os alunos do Macunaíma ( Freire, 1991 , p.57). Cesse Neto9 (2014, p.181, 185) também confirma que a palavra soma foi encontrada por Freire em meados da década de 1970, porém reitera que apenas em 1976 o trabalho terapêutico dele passaria a ser nomeado somaterapia.
Em Viva eu, viva tu,viva o rabo do tatu! ( Freire, 1977 ), é citado um longo trecho de Hanna, explicitando o conceito de soma. Essa citação também é reproduzida na íntegra em Soma: uma terapia anarquista ( Freire, 1988 , p.22-24) e Eu é um outro ( Freire, 2002 , p.299-301). Segundo Freire (1988 , p.21), o radical “soma” vem do grego e significa corpo, mas para Hanna o conceito de soma seria muito mais abrangente, significando não apenas corpo, mas “Eu, o ser corporal”:
O soma é vivo; ele está sempre contraindo-se e distendendo-se ... Soma é pulsação, fluência, síntese e relaxamento. ... Os somas humanos são coisas únicas que estão ejaculando, peidando, soluçando, trepando... sofrendo, esperando, empalidecendo... Os somas são os seres vivos e orgânicos que você é nesse momento, nesse lugar onde você está. O soma é tudo o que você é, pulsando dentro dessa membrana frágil que muda, cresce e morre ( Freire, 1977 , p.254-255).
Apropriando-se da definição de Hanna, Freire (1977 , p.256) defende que a somaterapia seria, portanto, “a luta e o trabalho para liberar nosso soma do que impede sua autorregulação espontânea, seu crescimento e desenvolvimento natural. ... somaterapia é a utilização de técnicas e procedimentos que libertem e façam fluir harmonicamente a bioenergia por todo o ser somático, de modo que ele possa satisfazer suas necessidades vitais, pessoais, sociais e ambientais”.
Compreende-se, assim, como Freire se utilizou desse conceito trazido por Hanna para denominar sua prática terapêutica, que já vinha sendo construída anteriormente. Como vimos, João da Mata (Cesse Neto, 2014, p.181) diz que a designação somaterapia passaria a ser utilizada a partir de 1976. Comparada com a análise feita de Freire (1977) , a informação de Mata parece correta. Nessa obra, Freire explica que, em uma primeira fase de seu trabalho terapêutico, o designava antipsicoterapia, influenciado pela antipsiquiatria, e após, adotando o conceito de soma, passa a denominar somaterapia. Porém, na página anterior a essa explicação (a primeira da introdução), o autor ainda utiliza o termo psicoterapia para se referir a seu trabalho: “especialmente em função de meu trabalho na psicoterapia”, “o tipo de psicoterapia que pratico exige”. No final do mesmo livro, Freire ainda se refere aos interessados em aprender essa técnica terapêutica como psicoterapeutas, e não somaterapeutas10 ( Freire, 1977 , p.19-21, 342). Percebe-se, portanto, um indício de que a mudança na denominação da técnica terapêutica era bastante recente em relação à redação do livro.
Em Soma: uma terapia anarquista ( Freire, 1988 ), consta outro debate acerca de uma nova terminologia para designar a técnica terapêutica. Aqui, o autor pontua que, antes de se apropriar do conceito de soma, “praticava uma psicoterapia de origem analítica”, a qual foi sendo revisada e transformada em uma “antipsicoterapia”. Porém, tendo encontrado a denominação “somaterapia”, o autor coloca que, na época da escrita desse livro, essa própria denominação já encontrava problemas (p.21). Assim explica o autor:
Terapia, em grego, pode designar o desenvolvimento das pessoas, mas a medicina a tem usado como ato de curar. Por isso somaterapia, para corresponder à sua realidade prática e cotidiana, deveria ser conhecida como somapedagogia. Isto designaria corretamente o que faço: ensinar as pessoas a conhecer o seu soma e passar a viver segundo as reais e próprias características somáticas, únicas e exclusivas ( Freire, 1988 , p.21).
Continuando o raciocínio, o autor aponta para uma nova direção. Compreendendo “soma” como a “totalidade viva da pessoa, num todo abrangente da energia vital materializada em algo pulsante, dinâmico, metabólico e finito”, Freire (1988 , p.21) decide por “evitar o sufixo terapia”, passando a designar seu trabalho apenas por soma. No entanto, tal mudança na designação da técnica não ocorre de forma absoluta e definitiva.
Freire (1991) procura remeter-se à sua técnica terapêutica apenas com o termo soma, inclusive, ao reproduzir um trecho que define sua técnica ( Freire, 1977 ), uma das poucas modificações que faz é justamente trocar somaterapia por soma. Porém, ao longo desse mesmo livro, o termo somaterapia insiste em aparecer ( Freire, 1991 , p.116, 117). O termo somaterapia aparece também em algumas produções acadêmicas bem posteriores de somaterapeutas e simpatizantes, como em Schroeder (2004 , 2008 ) e Silva (2015a, 2015b). O próprio website da somaterapia tem por endereço esse termo (www.somaterapia.com.br), mencionando ambos os termos, soma e somaterapia, como sinônimos, tal qual em artigo de João da Mata (s.d., p.3): “A somaterapia ou apenas soma é uma técnica”.
A confusão de termos é tal, que Silva (2015b, p.1) chega a definir a “terapia ‘soma’” como “psicoterapia libertária”, indo diretamente de encontro a Freire (2002 , p.411-412), que afirma categoricamente: “Não fazemos uma psicoterapia, por considerarmos não ser a mente o foco da ação terapêutica, e sim todo o soma”. Silva produziu uma tese de doutorado sobre a trajetória intelectual de Freire, analisando tanto a autobiografia do autor como alguns aspectos de sua técnica terapêutica. Entende-se, portanto, que seu equívoco não pode ser compreendido apenas como ato falho individual, mas como reflexo de uma técnica terapêutica que em sua história está em contínua transformação, apresentando rupturas, dissensos e contradições internamente.11
Takeguma (2009) relata um acontecimento na trajetória da somaterapia que, caso seja verídico, pode apontar para uma melhor compreensão desse esforço de Freire em substituir o termo somaterapia por somapedagogia e, posteriormente, por apenas soma. Takeguma é um ex-somaterapeuta que participou de intenso debate na internet no qual contrapunha-se às críticas realizadas à somaterapia por Fábio Veronesi, também ex-somaterapeuta (Takeguma, 2009, 2010; Veronesi, 2009 ). Segundo o autor, em dado momento não informado, “o Conselho Regional de Psicologia tentou processar e impedir a soma de existir”, porém, “não conseguiram, pois ela não se propõe, nem é, Clínica. ... O CRP considerou a soma ser um curso livre (pedagogia) e assim não estando dentro de seu âmbito psicológico” (Takeguma, 2009).
Como já citado, Freire (1988 , p.21) compreende que “terapia, em grego, pode designar o desenvolvimento das pessoas, mas a medicina a tem usado como ato de curar”. Isto é, se Freire pautasse o nome de sua técnica terapêutica apenas no que ele compreende dos termos, não teria motivo para mudar o nome. Contudo, como “a medicina a tem usado [a palavra terapia] como ato de curar”, a mudança de nome se impôs como necessária. Nas fontes analisadas, não encontramos nenhuma outra informação a respeito desse episódio com o Conselho Regional de Psicologia, não sendo possível, portanto, averiguar a veracidade desse relato. No entanto, compreende-se que, se verídico, esse episódio pode ter exercido influência importante nesse processo de mudança de nome. Tanto é que a afirmação da somaterapia como pedagogia, mesmo que o nome somapedagogia não tenha “pegado”, é recorrente nas obras de Freire e nas produções de somaterapeutas e simpatizantes a partir da publicação de Freire (1988), como podemos observar nos seguintes trechos: “A soma é uma terapia com forma de pedagogia e uma pedagogia com efeitos terapêuticos” (Freire, Mata, 1993, p.5). Freire (1977) , porém, não faz nenhuma menção à somaterapia como prática pedagógica. O que vai contra a crença de Takeguma (2009; destaques no original) de que “‘desde o início da pesquisa da soma’, Freire optou por um ‘viés’ de pedagogia e não de psicologia”.
Ainda quanto ao nome somaterapia, Takeguma (2009) traz algumas questões até certo ponto interessantes. Procurando esclarecer um pouco a história da utilização do termo soma por Freire, cita um correio eletrônico que teria recebido de Marinho Piacentini, que teria sido “amigo íntimo” de Freire no início da década de 1970. Segundo sua página eletrônica pessoal, Marinho Piacentini é diretor teatral, dramaturgo, romancista, professor e psicoterapeuta. Introduziu no Brasil o Teatro Laboratório Grotowskiano, escreveu diversas peças premiadas, lecionou disciplinas na USP e na Unicamp e “é pioneiro no Brasil na introdução de técnicas laboratoriais para psicoterapias grupais”, sendo ainda representante na América Latina do mestre indiano Osho (Piacentini, 2017). No e-mail mencionado, ele teria contado a Takeguma como desenvolveu “um trabalho corporal baseado em Jung e Reich”, entre 1966 e 1970, que “culminou com o espetáculo Terceiro Demônio que ficou em cartaz ... de 70 a 72”, participando de diversos festivais.
Em 71 o Grotowski conheceu meu trabalho e me convidou para trabalhar com ele ... Nesta época o Roberto se apaixonou pelo meu trabalho (...)12 ... e ia ver o espetáculo quase todas as noites. ... A partir do meu contato com Grotowski em 71 comecei a ministrar laboratórios teatrais cujo objetivo era o autoconhecimento, a autossuperação. O objetivo do ator era alcançar a plenitude (Piacentini citado em Takeguma, 2009).
Percebe-se, nessa passagem, tomando por verdadeiros os fatos apresentados, que o trabalho de Piacentini deveria ser relativamente importante e teria marcado Freire de alguma forma, possivelmente até influenciando seu próprio trabalho terapêutico. Entretanto, o nome de Marinho Piacentini não é citado em nenhuma obra de Freire a que tivemos acesso, nem nos textos de somaterapeutas e simpatizantes que analisamos, com exceção, é claro, de Takeguma (2009).
A crítica que Takeguma faz a Freire é justamente nesse sentido, porém em um aspecto mais específico. Segundo Takeguma, Piacentini teria conhecido Osho em 1976, quando recebeu um novo nome, Shanti Somesh, que significa “mestre do soma”. Voltando ao Brasil, ainda em 1976, ele teria aberto um Centro de Terapias do Osho chamado de Soma (Takeguma, 2009). No ano seguinte, Piacentini teria ficado “sabendo da tarde de autógrafos do Roberto”, quando do lançamento de Viva eu, viva tu, viva o rabo do tatu! , e então teve a ideia de “fazer uma apostila detalhando todos os trabalhos que eu vinha realizando, que juntava minha experiência pessoal + Grotowski + Osho. ... Fui à tarde de autógrafos. Não conversamos. Dei-lhe um abraço apertado, saudoso e entreguei-lhe a apostila que se intitulava Somaterapia . Nunca mais nos vimos, e ele nem se deu ao trabalho de ligar-me para agradecer” (Piacentini citado em Takeguma, 2009).
Takeguma, assim, vê o fato de Freire ignorar a suposta influência de Piacentini, sequer o citando em suas obras, como uma atitude antiética de Freire. Além disso, compreende que Freire faz isso possivelmente “por não concordar com a linha então mística de Piacentini”, e afirma: “Pode-se desconfiar inclusive que Freire se inspira em Piacentini, mas não tem coragem de assumir, deslocando a escolha para um teórico que apontava essa forma poética de definir soma, como a totalidade do ser”. Isto é, para Thomas Hanna. Takeguma deslinda sua crítica colocando que Freire cita o livro Corpos em revolta , de Hanna, de 1970, “só que a edição no Brasil é somente de 1976”. Além disso, Takeguma também lembra que Freire afirma que o conceito de soma surgiu, para ele, a partir de uma conversa com um assistente em 1973. Porém, Takeguma afirma que “esse mesmo assistente, em palestra conjunta comigo em 2008, fala que na época o nome usado era ‘psicotranse e antipsicoterapia’” (Takeguma, 2009; destaques no original).
A crítica de Takeguma é bastante pertinente, sobretudo por se tratar de um dos principais somaterapeutas do grupo de Freire na década de 1990, tendo uma convivência bastante próxima com ele e com a somaterapia. Takeguma aponta como “o ego de Freire em relação a seu trabalho o impedia de dar crédito a outros” e como “ele só elogia no seu percurso como terapeuta aqueles que estão sob sua liderança e sempre rompeu com quem o criticava” (Takeguma, 2009), o que leva a compreender que é bem possível que Freire tenha sido influenciado de alguma forma pelo trabalho de Piacentini e que não o tenha citado por motivos diversos. Também se percebe em Freire certo esforço de distanciar e contrapor sua proposta terapêutica, compreendida por ele como científica, às demais técnicas terapêuticas mais alinhadas com correntes místicas ou espirituais ( Ferraz, 2018 , p.91-98). Da mesma forma, é bem possível que o relato de Freire sobre a conversa que teria tido com determinado assistente, da qual teria surgido o conceito de soma, seja um tanto romanceado, com alguma liberdade poética, de modo consciente ou não, ou mesmo adornado pelas armadilhas da memória, paralelamente a um esforço recorrente de Freire em explicar suas opções metodológicas, teóricas e políticas por um viés racional e com datações precisas.
Por outro lado, há algumas incongruências na construção da crítica realizada por Takeguma. Primeiro, o fato de o livro de Hanna ser publicado no Brasil apenas em 1976 não é, absolutamente, motivo suficiente para descartar o contato de Freire com a obra antes disso. Freire viveu um ano em Paris logo após formar-se em medicina, viajou várias vezes à Europa, adquiriu as obras de Reich ainda no continente europeu, já iniciando sua leitura. É possível deduzir que Freire (1977, p.68) tivesse conhecimento suficiente da língua inglesa para ler a obra de Hanna no original, pois o próprio afirma ter lido O livro da terapia gestáltica , de Joel Latner, no original em inglês. De qualquer forma, há também a informação de que a obra de Hanna era adotada como leitura obrigatória para os alunos do Macunaíma. É possível que no Macunaíma exigissem conhecimento prévio de inglês de seus alunos? Independentemente, em Caiaffo (2009 , p.121), encontra-se referência a uma edição brasileira da obra de Hanna datada de 1972, da Edições Mundo Musical.13
Em segundo lugar, Takeguma coloca que, por Piacentini ter criado seu espaço chamado Soma em 1976 e ter levado uma apostila chamada Somaterapia para Freire em sessão de lançamento, este deveria necessariamente ter entrado em contato com o conceito de soma por intermédio de Piacentini, e não de qualquer outra referência. Quanto ao conhecimento de Freire a respeito do mencionado centro, só o que se pode afirmar é que o autor não cita isso em nenhuma das obras pesquisadas. Agora, quanto à dita apostila entregue a Freire, salienta-se que a entrega teria sido em uma “tarde de autógrafos”, após o lançamento de Viva eu, viva tu ..., sendo que nessa obra Freire já afirmava sua técnica terapêutica com o termo somaterapia. É simplesmente possível que Freire, constrangido ao saber de outra terapia de nome idêntico tenha, propositadamente, omitido isso em suas obras. Porém, é difícil acreditar que o autor, com seu recorrente esforço em se contrapor e se distanciar de outras práticas terapêuticas mais alinhadas ao misticismo, tenha adotado de forma consciente o mesmo nome de uma prática dessas para sua proposta terapêutica afirmada como “científica”.
Considerações finais
O objetivo maior desta pesquisa era, em suma, compreender a complexidade e a diversidade humana nos seus anseios de transformação da realidade. Para isso, elaborou-se o estudo no sentido de buscar compreender como emergiu e se desenvolveu, a partir da contracultura dos anos 1970, a somaterapia de Roberto Freire: uma técnica terapêutica que mescla elementos da contracultura, do anarquismo, do discurso científico, de correntes terapêuticas alternativas e da vida pessoal de seu criador. O objeto escolhido acabou se mostrando excelente recorte para se compreender melhor a complexidade dos movimentos do período e de sua relação, por vezes contraditória, com a cultura e a sociedade circundantes, às quais esses movimentos buscam se contrapor.
Na análise do processo de criação da somaterapia, verifica-se uma espécie de “mito de criação” da técnica terapêutica: uma narrativa-padrão acerca da criação da técnica terapêutica que se repete tanto nos textos de Freire quanto nos dos somaterapeutas e simpatizantes, e que demonstra um esforço em apresentar a criação da somaterapia de forma lógica, racional, ordenada e coerente, apontando causas e intenções. No entanto, no cruzamento dessas narrativas com outras fontes, percebem-se várias incongruências que atestam o caráter complexo desse processo e apontam, ao mesmo tempo, para o esforço memorialista, consciente ou não, dos autores.
Ao abordar o desenvolvimento inicial da somaterapia, buscou-se compreender como Freire foi se apropriando de elementos diversos na composição de sua técnica terapêutica e como, no desenvolvimento dela, foram determinantes os contatos e experiências práticas, como a convivência com os integrantes do Centro de Estudos Macunaíma. No entanto, constatam-se também discursos recorrentes, tanto na obra de Freire quanto nas de somaterapeutas e simpatizantes, que, ao buscar contar a história da somaterapia de uma forma lógica e coerente, acabam por exagerar alguns aspectos dessa história. Isso se manifesta especialmente na busca por uma data precisa para a criação da técnica, ou em uma narrativa que coloca a somaterapia como sendo essencialmente a mesma desde a sua criação, ignorando influências diversas ou mesmo as mudanças de denominação, o que é entendido como algo atrelado a uma estratégia de legitimação da terapia.
Compreende-se, por fim, que a história da criação e do desenvolvimento da somaterapia está intimamente atrelada à trajetória de vida de seu criador, e que as dissonâncias e irregularidades encontradas nos discursos referentes a essa história refletem a complexidade intrínseca aos processos humanos, em especial verificada na história dessa técnica terapêutica que emerge em um cenário marcadamente complexo e contraditório como é o da contracultura e do período dos anos 1960 a 1980.
AGRADECIMENTOS
Esta pesquisa foi parcialmente realizada com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior–Demanda Social (Capes–DS). Agradeço à professora Juliane C.P. Serres, da Universidade Federal de Pelotas, e ao professor José M.R. Remedi, da Universidade Federal de Santa Maria, as indicações teóricas para análise dos processos de identidade e memória e demais apontamentos pertinentes a toda a pesquisa. E também à estimada professora Beatriz T. Weber, a orientação geral dessa pesquisa e, especialmente, a supervisão e orientação na edição final deste artigo.
REFERÊNCIAS
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