203 de 5.374 Da contracultura à somaterapia: a criação e o desenvolvimento inicial de uma terapia anarquista capitulo Sylvia Romano ter., 12 de out. 21:11 para mim Da contracultura à somaterapia: a criação e o desenvolvimento inicial de uma terapia anarquista From counterculture to somatherapy: the creation and early development of an anarchist therapy Resumo Abstract Text O “mito” de criação da somaterapia: Freire “descobre” Reich Desenvolvimento teórico inicial da somaterapia Construções narrativas posteriores: a questão do nome Considerações finais AGRADECIMENTOS REFERÊNCIAS NOTAS Datas de Publicação Histórico Resumo Este trabalho faz parte de uma pesquisa maior, na qual se procura compreender como a somaterapia de Roberto Freire surgiu e se desenvolveu a partir da contracultura dos anos 1970. Abordam-se a criação e o desenvolvimento inicial da somaterapia, partindo do que se compreende ser um “mito de criação”: uma narrativa ordenada e coerente que explica o surgimento da terapia e que aparece, de forma recorrente, com poucas alterações. Analisam-se, ainda, narrativas posteriores a esse período que remetem ao processo de nomeação da somaterapia. Nesta análise, são encontrados conflitos de dados e incongruências que indicam a complexidade desses processos e o esforço dos autores no sentido de ordenação e legitimação da técnica terapêutica. somaterapia; Roberto Freire (1927-2008); terapias alternativas; anarquismo Abstract This work is part of a larger survey on how Roberto Freire’s somatherapy emerged and developed from the counterculture of the 1970s, addressing the creation and initial development of somatherapy, starting from what is understood to be a “creation myth,” an orderly and coherent narrative explaining the emergence of this therapy that is frequently repeated with few changes. Later narratives referring to the process of naming somatherapy are also examined, revealing inconsistencies and conflicts in the data that indicate the complexity of these processes and the authors’ efforts to add order and legitimacy to this therapeutic technique. somatherapy; Roberto Freire (1927-2008); alternative therapies; anarchism Roberto Freire publicou mais de trinta livros, entre os quais Cleo e Daniel , “ best-seller entre os estudantes nos anos 1970, vendendo mais de 200 mil exemplares em bancas de revista, no formato de jornalivro” (Freire, Mata, 2017). Sem tesão não há solução (1987) “ganhou mais de vinte edições e chegou a vender cerca de cem mil exemplares” ( Simões, 2011 , p.96). Segundo Carla Silva (2015a, p.14), em 1999 “a obra de Freire já vendera mais de 400 mil exemplares, número impressionante para um autor brasileiro que publicou seus principais livros entre as décadas de 1960 e 1990”. Além disso, seu nome, bem como da técnica terapêutica criada por ele, circulava frequentemente por veículos da grande imprensa. Compreendemos sua obra literária, assim como seu “maior legado”, a somaterapia, como provenientes das correntes contraculturais que emergiam em diversos países a partir da década de 1960. O termo contracultura apareceu na imprensa estadunidense como um rótulo para designar os movimentos juvenis de contestação que surgiam naquela década, sendo o movimento hippie um dos mais exemplares. Esses movimentos almejavam se contrapor a uma ideia de cultura dominante, propondo novos estilos de vida e, principalmente, novas maneiras de luta política, com passeatas e grandes happenings regados a prazer, rock n’roll e substâncias psicoativas. Compreende-se que não só o capitalismo ou as formas tradicionais de luta da esquerda foram postas em xeque pela contracultura, mas a própria noção de racionalidade moderna e científica. A crítica que se fazia era à própria forma do pensar. Do contato com religiões orientais à expansão da consciência por meio de substâncias psicoativas, da crítica ao dualismo e ao racionalismo pela afirmação do corpo, do sexo, das emoções e das intuições à crítica crucial ao adiamento infinito da realização pessoal – seja ela no consumo capitalista ou na revolução socialista –, buscava-se mais do que uma revolução política: uma revolução cultural. Dessa forma, proliferaram no período práticas alternativas de cura1 e manifestações críticas à ciência, inclusive dentro do próprio campo intelectual ( Carvalho, 2008 ). Souza e Luz (2009 , p.394), pensando o campo da história da saúde, também associam a emergência das práticas terapêuticas alternativas à contracultura. Para os autores, o surgimento e o desenvolvimento dessas terapias remontam ao final da década de 1960, tendo desempenhado importante papel no conjunto de transformações denominado contracultura. ... Naquele momento, uma juventude revolucionária partia em busca de novas soluções terapêuticas, utilizando tais práticas não apenas como terapias, mas como símbolos de uma ‘revolução cultural’. Uma parte dessa ‘estratégia revolucionária’ foi a importação de sistemas exógenos de crença e orientações filosóficas, geralmente orientais, que serviram de fundamento para a construção de um corpo ideológico de orientações práticas. Nesse contexto, os usuários das então chamadas terapias alternativas estavam à procura de práticas congruentes com essas orientações, que pudessem afirmar e materializar sua ideologia numa práxis. No Brasil o movimento contracultural teve expressão destacada em periódicos como O Pasquim e em intelectuais e artistas como Luiz Carlos Maciel, Raul Seixas e Roberto Freire. Percebemos a relação de Freire com a contracultura tanto em sua trajetória pessoal, de militante da Ação Popular no início da década de 1960 a anarquista e crítico dos próprios movimentos “tradicionais” de esquerda nos anos seguintes, quanto em sua somaterapia, na qual o trabalho com a couraça muscular, a compreensão não dualista dos conceitos de corpo e mente, a valorização da sexualidade e a nova concepção de anarquismo se relacionam diretamente com temas da contracultura, tais como hedonismo, monismo, pensamento mítico, revolução sexual, crítica anarquista às instituições e a formas tradicionais de luta política ( Boscato, 2006 ; Capellari, 2007; Carvalho, 2007 , 2008 ; Pereira, 1986 ). Assim, na presente pesquisa busca-se compreender como a somaterapia surgiu e se desenvolveu nesse contexto da contracultura das décadas de 1970 e 1980. Também conhecida por soma, essa técnica terapêutica foi idealizada e desenvolvida por Roberto Freire a partir de experiências dentro do Centro de Estudos Macunaíma, junto aos teatrólogos Myriam Muniz e Sylvio Zilber e ao professor de arquitetura da USP Flávio Império, onde pesquisavam técnicas de desbloqueio da criatividade para atores. Segundo seu idealizador, a terapia nasceu a partir de seu contato com a técnica teatral do grupo Living Theater, embasada nas teorias de Wilhelm Reich.2 A somaterapia, segundo Freire e seus seguidores, busca, por meio de dinâmicas corporais, jogos teatrais e capoeira de angola, libertar o indivíduo da neurose e da couraça muscular3 causada pela sociedade repressora. As fontes desta pesquisa foram, principalmente, as obras bibliográficas de Freire, porém, analisam-se também produções acadêmicas de somaterapeutas e simpatizantes, jornais e boletins vinculados à somaterapia, websites e matérias, anúncios e referências encontrados no acervo digital da Folha de S. Paulo e em outros veículos da imprensa. Na maior parte das fontes, são encontrados discursos biográficos ou autobiográficos que remetem diretamente a um esforço memorialista de apresentação das trajetórias de Freire e da somaterapia. Na análise das fontes, portanto, mostrou-se de suma importância a reflexão sobre os processos de memória e identidade que emergiam, bem como sua relação com a história da criação e desenvolvimento da somaterapia. Tal reflexão foi realizada principalmente a partir dos aportes teóricos de Bourdieu (1996) , Pollak (1992) , Catroga (2015) , Rondelli e Herschmann (2000) , Schmidt (2000) e Rojas (2000) . No presente artigo, aborda-se a criação da somaterapia partindo do que se compreende ser uma espécie de “mito de criação” da técnica terapêutica: uma narrativa ordenada e coerente que explica o surgimento da terapia e que aparece com poucas alterações nas diversas fontes. Na sequência, estuda-se o desenvolvimento teórico inicial, analisando como Freire entrou em contato com os diversos elementos dos quais se apropriará na constituição de sua técnica. Por fim, são analisadas com maior cuidado algumas construções narrativas posteriores a esse período, de Freire e de somaterapeutas e simpatizantes, que remetem ao processo de nomeação da somaterapia. Nesta análise, são averiguadas diversas incongruências e conflitos de dados que parecem indicar, por um lado, a complexidade desses processos e, por outro, o esforço dos autores no sentido de ordenar e legitimar a técnica terapêutica. O “mito” de criação da somaterapia: Freire “descobre” Reich A história da criação da somaterapia é sempre referenciada em uma espécie de “mito de origem”, um “acontecimento fundador”, tal qual compreendido por Pierre Nora (dez. 1993, p.25): acontecimentos ínfimos aos quais “o futuro retrospectivamente conferiu a grandiosidade das origens, a solenidade das rupturas inaugurais”. Isto é, a história da somaterapia contada nas obras de Freire e de somaterapeutas e simpatizantes se constitui, naturalmente, de construções narrativas posteriores aos fatos, que, voltando-se para o passado, procuram uma ordem coerente no emaranhado de acontecimentos que compõem os fatores desencadeantes do processo de formação dessa técnica terapêutica ( Bourdieu, 1996 ). Esse acontecimento fundador é o encontro de Freire com a obra de Wilhelm Reich, cujas teorias dariam a base científica da somaterapia. Com algumas poucas variações, esse episódio é narrado da seguinte forma nas fontes: em fins da década de 1960, o romance Cleo e Daniel estava sendo adaptado para o cinema. Porém, no meio das filmagens, as verbas para o financiamento se esgotaram, e o filme, terminado “aos trancos e barrancos”, acabou sendo um “fracasso”. Decepcionado com o resultado, Freire “fugiu” para a Europa enquanto o filme estava em cartaz. Em Paris, assistiu ao espetáculo Paradise Now , do grupo anarquista estadunidense de teatro Living Theater, e ficou maravilhado com a técnica empregada por ele. Julian Beck, diretor do grupo, conta-lhe que sua técnica se baseia nas teorias de Wilhelm Reich. Freire então mergulha apaixonadamente nas obras de Reich, reconhecendo nelas coisas que ele mesmo já sabia, “intuitivamente”, como as críticas à psicanálise freudiana, a importância do corpo em uma abordagem terapêutica, a crítica ao Estado e ao capitalismo, entre outras. Voltando ao Brasil, Freire conhece o Centro de Estudos Macunaíma e nele, com Myrian Muniz, Sílvio Zilber e Flávio Império, pesquisa exercícios teatrais para desbloqueio da criatividade de atores, os quais descobriria também servir para o desbloqueio da couraça muscular e da energia vital dos neuróticos em geral, passando a utilizar os exercícios em grupos de terapia. Assim nascia a somaterapia. O relato mais antigo desse acontecimento a que tivemos acesso está em Freire (1977) . Nesse livro, temos que a filmagem de Cleo e Daniel se deu em 1969, quando Freire, encontrando-se “sem solução financeira”, aceita a proposta de Júlio Bozzano, “um banqueiro que conhecera casualmente”, para financiar o filme. Porém, desconhecendo as “manhas” da indústria cinematográfica, Freire acaba se encontrando em uma “lamentável situação”: “o dinheiro acaba antes do tempo, e da metade do filme para a frente, há necessidade de outros empréstimos, de dívidas em outros bancos”. Assim, Freire acaba tendo de vender o filme antecipadamente, e tal é sua decepção com o resultado final que “resolve arranjar mais um empréstimo e se manda para a Itália”, permanecendo lá por quatro meses, “escondido do filme”, até este sair de cartaz (Freire, 1977, p.339-340). Em sua autobiografia, Freire (2002 , p.229) acrescenta que o convite para a filmagem foi realizado “em fins de 1969”, especificando também que o banco que lhe concedeu o financiamento foi o Banco Bozano Simonsen. Porém, já não menciona a situação financeira anterior que o teria motivado a aceitar a proposta, referindo-se ao convite como “fantástica informação”, falando que “fazer cinema era um sonho”, que, “como cinéfilo, eu me sentia preparado para realizar meu filme” e, por fim, “sobretudo, estava impulsionado, como sempre, pela paixão de poder experimentar uma nova forma de criação artística”. Nessa obra, portanto, o autor dá a entender que aceitou fazer a filmagem não por necessidade financeira, como apontado em Freire (1977) , mas apenas por gosto e vontade própria. Além disso, na autobiografia, em um primeiro momento, Freire não menciona seu despreparo, afirmando ter sido repentinamente informado sobre o fim do dinheiro e, inclusive, elogiando sua “sábia decisão” de ter filmado primeiramente as sequências mais complexas. Somente na sequência da narrativa reconhece sua “incompetência” quanto às administrações financeira e produtiva do filme. Diferentemente do que afirmara na obra de 1977, em sua autobiografia o autor diz ter fugido para a Itália, mais especificamente Roma, com as “sobras de dinheiro ganho no tempo em que exerci a psicanálise”, e não, portanto, com um novo empréstimo, como afirmado anteriormente ( Freire, 2002 , p.228-232). Percebe-se, nessas passagens, que a nova narrativa distancia-se da anterior justamente no sentido de buscar apresentar uma versão melhor de si mesmo, esquecendo ou mesmo omitindo fatos que o autor não demonstra tanto apreço por ver contados, como nos lembra Pollak (1992 , p.204): “O que a memória individual grava, recalca, exclui, relembra, é evidentemente o resultado de um verdadeiro trabalho de organização”. Percebe-se, dessa forma, a mesma preocupação em dar sentido à narrativa autobiográfica apontada por Bourdieu (1996 , p.184) em seu conhecido ensaio “A ilusão biográfica”: o relato autobiográfico se baseia sempre, ou pelo menos em parte, na preocupação de dar sentido, de tornar razoável, de extrair uma lógica ao mesmo tempo retrospectiva e prospectiva, uma consistência e uma constância, estabelecendo relações inteligíveis, como a do efeito à causa eficiente ou final, entre os estados sucessivos, assim constituídos em etapas de um desenvolvimento necessário. Quanto ao encontro com a obra de Reich, temos mais algumas dissonâncias. Em 2002, o autor relata que, após fugir para Roma, já curado da “depressão em que me encontrava”, haveria resolvido passar uns dias em Paris, onde assistiu ao espetáculo Paradise now , do Living Theater. Esse espetáculo teria lhe causado “profundo, delicioso e inesquecível impacto por sua beleza e estranha comunicação corporal, sensorial e sobretudo sensual” ( Freire, 2002 , p.232-233). Sobre o espetáculo, Silva (2015b, p.4) acrescenta, em tom poético: “ Paradise now tem um texto provocativo e instigante, mas não foi seu enredo que despertou Roberto Freire do estado melancólico e desacreditado das palavras... Foi antes o retorcer e emaranhar dos corpos dos atores”. Após o espetáculo, Freire teria procurado o diretor Julian Beck nos camarins, quando esse lhe falou sobre como o teatro convencional utilizava a técnica de interpretação de Konstantin Stanislavski, baseada em Freud, e como eles eram contra “a visão burguesa e reacionária de Freud”, passando a pesquisar a obra de Reich (Freire, 2002, p.232-233). Em Viva eu, viva tu, viva o rabo do tatu! ( Freire, 1977 , p.340), ao lado do Living Theater e com igual importância aparece o contato de Freire com “os laboratórios de teatro de Grotowski”, também baseados em Wilhelm Reich. Em Soma: uma terapia anarquista ( Freire, 1991 , p.54), também diz que seu encontro com a obra reichiana se deu por meio da “obra do polonês Jerzy Grotowski e a do conjunto Living Theater”, enquanto em sua autobiografia, bem como em alguns trabalhos acadêmicos, o nome de Grotowski é completamente ignorado ( Freire, 2002 ; Schroeder, 2004 , 2008 ; Silva, 2015a, 2015b; Simões, 2011 ). Além disso, é interessante apontar que nas obras de 1977 e 1991 Freire afirma ter conhecimento prévio de Reich: “Esse fato leva-o a ‘estudar de novo’ Reich” (Freire, 1977, p.341; destaque nosso), “autor que naquela época eu sabia apenas ser um discípulo de Freud que não era indicado para estudo nos cursos que fiz na Sociedade de Psicanálise” (Reich, 1991, p.55). Já em sua autobiografia, Freire reconstrói com alguma liberdade poética o diálogo que haveria travado com Julian Beck: – ... passamos [Beck e o Living Theater] a pesquisar uma técnica interpretativa baseada na obra de Wilhelm Reich ... Espantei-me, porque ‘nunca ouvira esse nome’. – Quem? – Wilhelm Reich... discípulo de Freud ( Freire, 2002 , p.233; destaque nosso). O autor ainda ressalta não ter existido “absolutamente nada” sobre Reich nos livros recomendados pela Sociedade Internacional de Psicanálise nos cursos que realizara ( Freire, 2002 , p.233). Em entrevista a Nahra (1995 , p.6), Freire ainda afirma: “Eu nem sequer conhecia Reich”, e esse suposto desconhecimento é também reproduzido por Cesse Neto (2014), Silva (2015a) e Simões (2011) . O somaterapeuta Cesse Neto (2014, p.182) afirma que na formação de Freire em psicanálise “nunca lhe foi mencionado o trabalho e a obra de Reich”, e que Freire só conheceria a obra reichiana com o Living Theater. Silva (2015a, p.215) também afirma: “Roberto Freire desconhecia a obra e teoria do psicanalista Wilhelm Reich”. E Simões (2011 , p.25), na mesma linha, diz que Freire só descobriu Reich após a conversa com Julian Beck. No entanto, as afirmações nas obras de Freire de 1977 e 1991 nos levam a compreender que algum conhecimento de Reich o autor deveria ter, nem que fosse apenas uma menção. Mas por que omitir isso de forma tão romanceada em sua autobiografia? Antes de arriscar responder a essa pergunta, é preciso se aproximar de uma característica bastante frequente de Freire em suas narrativas. Em 1977, o autor coloca que, ao entrar em contato com os trabalhos de Grotowski e do Living Theater percebeu “certas semelhanças – não de qualidade, mas de pesquisa – entre aqueles espetáculos e o seu O&A ”, peça teatral escrita por ele e encenada pelos integrantes do Tuca (Teatro da Universidade Católica), do qual Freire havia participado na década de 1960 ( Freire, 1977, p , p.341). Em sua autobiografia, Freire (2002, p , p.234) diz que Reich “provara cientificamente a minha própria contestação à psicanálise”. Isto é, percebemos em Freire um esforço recorrente em “essencializar” visões de mundo e comportamentos como “naturais” e, portanto, existentes desde sempre em sua pessoa, bem como naquelas pessoas compreendidas por ele como naturalmente libertárias, porém, apenas ainda não descobertas até certo momento de suas trajetórias.4 Em sua autobiografia, é comum o autor citar escritores que compreende dar voz ao que ele já sentia ou sabia intuitivamente, assim como, em sua primeira leitura de obras anarquistas, já as ter sentido não como algo novo, mas como “uma extraordinária descoberta: a ideologia anarquista correspondia exatamente ao que eu sentia dentro de mim sobre justiça social” ( Freire, 2002, p , p.34). Da mesma forma, seu contato com a antipsiquiatria também é narrado como se houvesse ocorrido, antes do contato com a referência teórica, de uma maneira espontânea, com sua “recusa à psiquiatria tradicional e a certeza de que nela percorria-se um falso caminho” ( Freire, 1991, p , p.55). No contato com a Gestalt, temos as afirmações de Freire (1977, p , p.67) que melhor esclarecem o argumento: “Quando comecei a entrar em contato com a obra de Perls, a primeira coisa que senti foi familiaridade. Uma sensação de já saber, de uma forma ou de outra, pela intuição e pela experiência, de tudo aquilo que lia. Uma espécie de comprovação, mais do que iniciação. E, na verdade, eu nunca tinha lido nada ainda a esse respeito”. Mais tarde, em Tesudos de todo mundo, uni-vos! , o argumento não muda. Freire repete a sensação de familiaridade ao estudar a Gestalt, “como se já soubesse de tudo aquilo por outra fonte que não a científica ou a filosófica”. Nessa obra, Freire (1995a, p.154, 232) também afirma que, para ele, Thomas Szasz “apenas acrescentou mais documentos teóricos e históricos àquilo que os 25 anos de exercício da profissão médica já me haviam mostrado”. Freire afirma ainda que o princípio do “monismo”5 da Gestalt era, aliás, uma atitude antiga sua, em seu posicionamento de vida e de trabalho, ela “apenas não tinha nome”. Além de seu contato com essa referência teórica, Freire essencializa também a própria Gestalt, afirmando que Perls, “ao se desentortar da psicanálise, descobriu a terapia gestáltica já pronta dentro dele” (Freire, 1977, p.68). Freire (1977 , p.67-68) compreende a Gestalt como a “abordagem original”, “natural” e “não distorcida” da vida, e “tão velha quanto o próprio mundo”. Compreende-se, portanto, que a omissão de Freire em sua autobiografia quanto a seu conhecimento prévio de Reich pode ter sido tanto proposital quanto fruto de um “natural” esquecimento. Contudo, o que está em jogo nessa omissão é que, para Freire, assumir que conhecia Reich antes de 1970, e que esse conhecimento não haveria despertado nada nele anteriormente, vai contra a coerência de sua narrativa. Admitir esse conhecimento anterior contrariaria sua narrativa de que teria se oposto radicalmente à psicanálise desde o início de sua formação, sentindo-a conservadora e burguesa ( Freire, 2002 , p.124). Se assim o fosse de fato, e Freire houvesse conhecido Reich nesse momento, provavelmente, na lógica de sua narrativa, já teria se identificado com a obra de Reich e a estudado na época. No entanto, a própria narrativa de Freire quanto à sua oposição radical e primária à psicanálise contradiz outras fontes. Em A arma é o corpo ( Freire, 1991 , p.50), tem-se que sua formação em psicanálise durou cerca de cinco anos (de 1958 a 1963), informação corroborada também em Comodo (1991 , p.12), na qual Freire afirma ter feito a formação em psicanálise “durante alguns anos”, abandonando-a em 1963, e em Freire (1973 , p.191), onde consta que ele “exerceu por alguns anos a psicanálise para, em 1963, abandonar definitivamente a medicina”. Ou seja, é possível que as críticas que Freire fará à psicanálise com o desenvolvimento da somaterapia na década de 1970 não fossem tão significativas naquele período anterior. Compreende-se, portanto, que, para o autor, admitir um possível conhecimento da obra de Reich antes de 1970 iria contra o sentimento de “descoberta” que ele haveria tido naquele tempo, como se estivesse entrando em contato com elementos que nele estiveram “sempre” presentes. Percebe-se, dessa forma, que a memória de Freire seleciona, de modo consciente ou não, apenas o que torna sua narrativa coerente e condizente com aquilo que ele pensa de si mesmo e do mundo ( Bourdieu, 1996 ; Catroga, 2015 ; Pollak, 1992 ; Schmidt, 2000 ). Sua narrativa dá a entender, assim, que ele já possuía uma perspectiva crítica da psicanálise desde sempre, o que, como vimos, entra em aparente contradição com outras fontes. Dessa forma, compreende-se essas alegações como uma construção da memória que busca transcrever o ocorrido em uma ordem lógica e coerente. Desenvolvimento teórico inicial da somaterapia Voltando ao Brasil, ainda em 1970, Freire “mergulhou” no estudo de Reich, lendo em sequência A revolução sexual, Análise do caráter e A função do orgasmo . Silva (2015a) defende a tese da reconstrução da existência de Roberto Freire a partir da viagem à Europa no final da década de 1960, tratando o episódio do encontro com a obra de Reich como um “divisor de águas”, um “acontecimento-ruptura” na vida de Freire. Silva (2015a, p.212, 216) se refere a essa viagem como autoexílio, e quando narra esse episódio que culminou com o encontro com Reich, afirma: Roberto Freire, após várias prisões, torturas e a perda de diversos empregos – por ‘solicitação’ dos militares – vivenciou uma grande crise existencial em 1968. Com a crescente violência perpetrada pelos militares, a Europa se tornou não só um refúgio para os exilados, mas também um local de reencontro com a liberdade de pensamento e ação, com a democracia, com uma realidade antiautoritária. Freire viajou para a Itália, em seguida para a França, fugindo do regime autoritário, das impossibilidades do fazer artístico e da militância, sendo esta a mais marcante das muitas viagens ao exterior durante a ditadura militar. O autoexílio tornou-se uma possibilidade de reinvenção de si. Percebe-se que os motivos alegados por Freire (2002 , p.232) para a viagem não são citados, isto é, a “vergonha que passei a sentir pelo fracasso do filme Cleo e Daniel ”. A autora aborda, portanto, o período da vida de Roberto Freire compreendido entre o encontro com Reich e a publicação de Viva eu, viva tu, viva o rabo do tatu! (1977) como um “tempo intermediário” na vida dele, que marcaria a passagem da militância marxista ao viver anarquista (Silva, 2015a, p.213, 216). Entre 1970 e 1974, Freire realiza diversas viagens de pesquisa à Europa, aprofundando-se nas práticas terapêuticas que comporão, com Reich, o instrumental metodológico e teórico da somaterapia (Silva, 2015a, p.230). Além de Reich, portanto, cuja obra é sempre referenciada como a principal base teórica e científica da somaterapia, outros autores e obras também são citados como sendo influências fundamentais na criação da técnica terapêutica. Desses, os que marcam presença mais frequente são: Alexander Lowen, discípulo estadunidense de Reich, que aprofundou os estudos da bioenergética; Frederik Perls, criador da Gestalt-terapia; e David Cooper, Gregory Bateson e Franco Basaglia, com a antipsiquiatria. A ordem do itinerário de pesquisa realizado por Freire não é descrita detalhadamente em nenhuma obra a que tivemos acesso. Em sua autobiografia, em uma primeira referência superficial a esses estudos, ele narra que desenvolvera “um novo método terapêutico, baseado em Wilhelm Reich e depois ampliado por pesquisas próprias e apoiado pelas descobertas recentes no campo da antropologia, da gestalt e da antipsiquiatria” (Freire, 2002, p.237). Podemos deduzir das informações dispostas nessa obra que, após Reich, o primeiro dos teóricos citados em que Freire se aprofundou foi Alexander Lowen, porém, isso só depois de sua separação de Gessy,6 em 1972. No mesmo período, descobriria também Frederik Perls, criador da Gestalt-terapia. A antipsiquiatria, aparentemente, teria aparecido em sua trajetória bem depois. Em sua narrativa autobiográfica, além daquela primeira menção superficial, Freire só viria a mencionar a antipsiquiatria, citando David Cooper e Ronald Laing, após o contato com o Centro de Estudos Macunaíma, e a leitura de Corpos em revolta , de Thomas Hanna, e A fabricação da loucura , de Thomas Szasz, isso 66 páginas depois da menção à Gestalt-terapia de Perls. Nesse ínterim, Freire (2002 , 243-309) narra sua experiência jornalística na revista Realidade e sua vivência como jurado em festivais de música, além de alguns outros relatos pessoais. Em A arma é o corpo ( Freire, 1991 ), há todo um capítulo dedicado ao “Breve histórico da soma”, em que o autor aponta as principais raízes/influências de sua técnica terapêutica. Sobre a bioenergética e a Gestalt-terapia, afirma tê-las realizado “terapeuticamente em poucos meses na Europa” (p.53). Já quanto ao contato com a antipsiquiatria, que refere primeiro ter acontecido de forma espontânea, por sua recusa pessoal à psiquiatria tradicional, como já vimos, e depois devido a “um alcoolismo que começava a tornar-se crônico” ( Freire, 1991 , p.55), ao se consultar com antipsiquiatras europeus que lhe iniciaram nas obras de Gregory Bateson, David Cooper e Ronald Laing. Porém, não é com nenhuma dessas influências teóricas que Freire inicia esse capítulo. A primeira raiz elencada pelo autor é o teatro, citando, de sua experiência na área, entre 1958 e 1963, as aulas de “Psicologia do ator” ministradas na Escola de Arte Dramática, a participação no Teatro de Arena, a presidência do Teatro Brasileiro de Comédia e a direção do Serviço Nacional de Teatro, além de suas quatro peças teatrais montadas na época. Porém, salienta que a “origem teatral da soma fica mais explícita nas duas montagens teatrais das quais participei como diretor artístico e autor no Tuca ... em 1966 e 1968: Morte e vida severina ... e O&A ” ( Freire, 1991, p , p.50). Especialmente esta última, de sua autoria, teve o desenvolvimento bastante influenciado pelas técnicas de expressão corporal aprendidas com discípulos de Rudolf Laban na Europa, como Maurice Béjart (p.50). A segunda raiz apontada pelo autor é a ludoterapia. Segundo Freire (1991 , p.51), “trata-se de uma terapia aplicada às crianças”, na qual, “por meio de jogos e brinquedos padronizados, as crianças reproduzem em suas brincadeiras os conflitos que estão vivendo”. A somaterapia, portanto, viria a utilizar “semelhante metodologia, porém em adultos”. Esclarece o autor: “Através de exercícios (jogos, brinquedos) procura-se certa regressão das pessoas do grupo terapêutico. Durante essa regressão em jogos e brincadeiras padronizados (exercícios), as pessoas revelam, através de ‘bandeiras’, os conflitos resultantes de sua participação na vida social cotidiana e adulta” (p.51). Seu contato com a ludoterapia se deu por intermédio de madre Cristina Sodré Doria, diretora do setor de Psicologia do Instituto Sedes Sapientiae, da PUC-SP, quando Freire (1991 , p.51, 52) a entrevistou para uma reportagem na revista Realidade , em 1967. A terceira raiz, “sem dúvida a mais importante”, diz Freire, “é de natureza política”. É ao se colocar como “socialista perseguido por suas atividades subversivas”, ao lado da luta revolucionária da juventude contra “o fascismo, a violência, o autoritarismo da ditadura militar”, que ele se coloca também contra as terapias existentes, considerando-as “reacionárias e a serviço da vida burguesa e mantidas pelo autoritarismo militar”. Freire ainda destaca que “era impossível confiar em terapeutas para um relato da realidade emocional e psicológica que se vivia na vida clandestina durante a ditadura”, e que o psicanalista “poderia ser mais um a serviço do Estado (houve casos em que vários colegas foram entregues à polícia ou hospícios). Os sobreviventes aspiravam a uma terapia revolucionária” (Freire, 1991, p.52; Cleidejane, 3 fev. 1991, p.7). Coimbra (1995 , 2004 ) reitera essa realidade ao apontar para o papel de psiquiatras e psicólogos na rotulação dos subversivos como “loucos” e “desajustados”, servindo assim aos propósitos repressivos do governo militar. Freire (1991 , p.52-53) destaca também a situação de precariedade psicológica dos militantes, submetidos à vida clandestina, “sempre fortemente marcada pela solidão, pelo medo, pelo risco iminente e constante da prisão e da morte”, o que “produzia tensões crônicas, desajustes emocionais e distúrbios psicológicos de todos os tipos”. Ele conclui, daí, que “o maior inimigo do militante clandestino não eram, propriamente, os agentes da ditadura, mas sim a falta de equilíbrio emocional e psicológico proveniente da sua origem e formação burguesa”. Dessa forma, Freire buscava criar “uma terapia através da qual a juventude sublevada pudesse livrar-se dos resíduos burgueses de sua personalidade, bem como sustentá-la emocional e psicologicamente na luta contra a ditadura militar”. Uma terapia, “marcada por uma visão socialista do homem”, que “funcionasse como os hospitais de campanha durante as guerras. Os militantes clandestinos que lutavam contra a ditadura, quando a neurose os bloqueasse, poderiam ser tratados de imediato e, uma vez recuperados, devolvidos à luta”. “E foi assim”, narra o autor, “que nasceu a soma”, servindo aos militantes durante todo o tempo da ditadura, inclusive como “fonte de recursos financeiros para o sustento de suas famílias, enquanto eram obrigados a viver escondidos” (Freire, 1991, p.53). Em Tesudos de todo mundo, uni-vos! , Freire (1995b, p.129) explicita que essa ajuda financeira ocorria por meio de uma porcentagem repassada aos militantes que lhe indicavam clientes.7 Somente na sequência, portanto, Freire (1991 , p.54-56) falaria das tradicionais influências8 da somaterapia: Living Theater, Grotowski, Reich, Lowen, Perls, Bateson, Cooper e Laing, bem como do Centro de Estudos Macunaíma. Porém, apesar de todas essas influências se apresentarem como fundamentais na composição da somaterapia, Freire (1977 , p.341) afirma que “sua experiência de vida, seu ecletismo de estudo, vivência e atuação em diferentes campos das artes e das ciências são os ingredientes mais importantes e mais característicos de seu método terapêutico”. Ou ainda, em outras palavras, “a soma teve sua base científica em Wilhelm Reich, em Frederik Perls, em Gregory Bateson, em David Cooper” etc., mas “a amálgama de todas essas experiências e descobertas era praticada com o que eu próprio vivia, experimentava e descobria, movido por um profundo amor ao ser humano” ( Freire, 1991 , p.36). Construções narrativas posteriores: a questão do nome Como abordamos na seção anterior, ao longo dos anos 1970 a técnica terapêutica desenvolvida por Freire foi incorporando diversas correntes teóricas. Além disso, principalmente a partir das experiências realizadas junto ao Centro de Estudos Macunaíma, aspectos práticos da terapia também foram se desenvolvendo e mudando. Dessa forma, compreende-se que a técnica terapêutica de Freire não foi a mesma desde sempre, o que se reflete, aliás, nas mudanças de nomeação que sofreu. Em minha dissertação, analiso também o desenvolvimento prático inicial da somaterapia e construções narrativas posteriores a respeito do processo de criação da técnica terapêutica. Nessas análises, verifica-se a importância crucial das experiências realizadas junto aos demais integrantes do Centro de Estudos Macunaíma na constituição da técnica terapêutica, bem como a construção de narrativas que exageram a data de criação da mesma, buscando uma data ou ano preciso para o acontecimento, e muitas vezes jogando essa data para um momento anterior a suas principais influências ou mesmo anterior à criação do Macunaíma ( Ferraz, 2018 , p.67-71, 75-83). Neste artigo, limitaremos a análise ao processo de nomeação da técnica terapêutica. A palavra somaterapia teria surgido apenas em 1973 ( Freire, 1988 , p.21). Segundo Freire, a denominação teria sido inspirada no conceito de soma, utilizado por Thomas Hanna na obra Corpos em revolta . A ideia de utilizar esse conceito para designar seu método terapêutico teria ocorrido a partir de uma conversa com João Meireles, “primeira pessoa interessada em tornar-se somaterapeuta”, na qual discutiam a obra de Hanna, pois a mesma era leitura obrigatória para os alunos do Macunaíma ( Freire, 1991 , p.57). Cesse Neto9 (2014, p.181, 185) também confirma que a palavra soma foi encontrada por Freire em meados da década de 1970, porém reitera que apenas em 1976 o trabalho terapêutico dele passaria a ser nomeado somaterapia. Em Viva eu, viva tu,viva o rabo do tatu! ( Freire, 1977 ), é citado um longo trecho de Hanna, explicitando o conceito de soma. Essa citação também é reproduzida na íntegra em Soma: uma terapia anarquista ( Freire, 1988 , p.22-24) e Eu é um outro ( Freire, 2002 , p.299-301). Segundo Freire (1988 , p.21), o radical “soma” vem do grego e significa corpo, mas para Hanna o conceito de soma seria muito mais abrangente, significando não apenas corpo, mas “Eu, o ser corporal”: O soma é vivo; ele está sempre contraindo-se e distendendo-se ... Soma é pulsação, fluência, síntese e relaxamento. ... Os somas humanos são coisas únicas que estão ejaculando, peidando, soluçando, trepando... sofrendo, esperando, empalidecendo... Os somas são os seres vivos e orgânicos que você é nesse momento, nesse lugar onde você está. O soma é tudo o que você é, pulsando dentro dessa membrana frágil que muda, cresce e morre ( Freire, 1977 , p.254-255). Apropriando-se da definição de Hanna, Freire (1977 , p.256) defende que a somaterapia seria, portanto, “a luta e o trabalho para liberar nosso soma do que impede sua autorregulação espontânea, seu crescimento e desenvolvimento natural. ... somaterapia é a utilização de técnicas e procedimentos que libertem e façam fluir harmonicamente a bioenergia por todo o ser somático, de modo que ele possa satisfazer suas necessidades vitais, pessoais, sociais e ambientais”. Compreende-se, assim, como Freire se utilizou desse conceito trazido por Hanna para denominar sua prática terapêutica, que já vinha sendo construída anteriormente. Como vimos, João da Mata (Cesse Neto, 2014, p.181) diz que a designação somaterapia passaria a ser utilizada a partir de 1976. Comparada com a análise feita de Freire (1977) , a informação de Mata parece correta. Nessa obra, Freire explica que, em uma primeira fase de seu trabalho terapêutico, o designava antipsicoterapia, influenciado pela antipsiquiatria, e após, adotando o conceito de soma, passa a denominar somaterapia. Porém, na página anterior a essa explicação (a primeira da introdução), o autor ainda utiliza o termo psicoterapia para se referir a seu trabalho: “especialmente em função de meu trabalho na psicoterapia”, “o tipo de psicoterapia que pratico exige”. No final do mesmo livro, Freire ainda se refere aos interessados em aprender essa técnica terapêutica como psicoterapeutas, e não somaterapeutas10 ( Freire, 1977 , p.19-21, 342). Percebe-se, portanto, um indício de que a mudança na denominação da técnica terapêutica era bastante recente em relação à redação do livro. Em Soma: uma terapia anarquista ( Freire, 1988 ), consta outro debate acerca de uma nova terminologia para designar a técnica terapêutica. Aqui, o autor pontua que, antes de se apropriar do conceito de soma, “praticava uma psicoterapia de origem analítica”, a qual foi sendo revisada e transformada em uma “antipsicoterapia”. Porém, tendo encontrado a denominação “somaterapia”, o autor coloca que, na época da escrita desse livro, essa própria denominação já encontrava problemas (p.21). Assim explica o autor: Terapia, em grego, pode designar o desenvolvimento das pessoas, mas a medicina a tem usado como ato de curar. Por isso somaterapia, para corresponder à sua realidade prática e cotidiana, deveria ser conhecida como somapedagogia. Isto designaria corretamente o que faço: ensinar as pessoas a conhecer o seu soma e passar a viver segundo as reais e próprias características somáticas, únicas e exclusivas ( Freire, 1988 , p.21). Continuando o raciocínio, o autor aponta para uma nova direção. Compreendendo “soma” como a “totalidade viva da pessoa, num todo abrangente da energia vital materializada em algo pulsante, dinâmico, metabólico e finito”, Freire (1988 , p.21) decide por “evitar o sufixo terapia”, passando a designar seu trabalho apenas por soma. No entanto, tal mudança na designação da técnica não ocorre de forma absoluta e definitiva. Freire (1991) procura remeter-se à sua técnica terapêutica apenas com o termo soma, inclusive, ao reproduzir um trecho que define sua técnica ( Freire, 1977 ), uma das poucas modificações que faz é justamente trocar somaterapia por soma. Porém, ao longo desse mesmo livro, o termo somaterapia insiste em aparecer ( Freire, 1991 , p.116, 117). O termo somaterapia aparece também em algumas produções acadêmicas bem posteriores de somaterapeutas e simpatizantes, como em Schroeder (2004 , 2008 ) e Silva (2015a, 2015b). O próprio website da somaterapia tem por endereço esse termo (www.somaterapia.com.br), mencionando ambos os termos, soma e somaterapia, como sinônimos, tal qual em artigo de João da Mata (s.d., p.3): “A somaterapia ou apenas soma é uma técnica”. A confusão de termos é tal, que Silva (2015b, p.1) chega a definir a “terapia ‘soma’” como “psicoterapia libertária”, indo diretamente de encontro a Freire (2002 , p.411-412), que afirma categoricamente: “Não fazemos uma psicoterapia, por considerarmos não ser a mente o foco da ação terapêutica, e sim todo o soma”. Silva produziu uma tese de doutorado sobre a trajetória intelectual de Freire, analisando tanto a autobiografia do autor como alguns aspectos de sua técnica terapêutica. Entende-se, portanto, que seu equívoco não pode ser compreendido apenas como ato falho individual, mas como reflexo de uma técnica terapêutica que em sua história está em contínua transformação, apresentando rupturas, dissensos e contradições internamente.11 Takeguma (2009) relata um acontecimento na trajetória da somaterapia que, caso seja verídico, pode apontar para uma melhor compreensão desse esforço de Freire em substituir o termo somaterapia por somapedagogia e, posteriormente, por apenas soma. Takeguma é um ex-somaterapeuta que participou de intenso debate na internet no qual contrapunha-se às críticas realizadas à somaterapia por Fábio Veronesi, também ex-somaterapeuta (Takeguma, 2009, 2010; Veronesi, 2009 ). Segundo o autor, em dado momento não informado, “o Conselho Regional de Psicologia tentou processar e impedir a soma de existir”, porém, “não conseguiram, pois ela não se propõe, nem é, Clínica. ... O CRP considerou a soma ser um curso livre (pedagogia) e assim não estando dentro de seu âmbito psicológico” (Takeguma, 2009). Como já citado, Freire (1988 , p.21) compreende que “terapia, em grego, pode designar o desenvolvimento das pessoas, mas a medicina a tem usado como ato de curar”. Isto é, se Freire pautasse o nome de sua técnica terapêutica apenas no que ele compreende dos termos, não teria motivo para mudar o nome. Contudo, como “a medicina a tem usado [a palavra terapia] como ato de curar”, a mudança de nome se impôs como necessária. Nas fontes analisadas, não encontramos nenhuma outra informação a respeito desse episódio com o Conselho Regional de Psicologia, não sendo possível, portanto, averiguar a veracidade desse relato. No entanto, compreende-se que, se verídico, esse episódio pode ter exercido influência importante nesse processo de mudança de nome. Tanto é que a afirmação da somaterapia como pedagogia, mesmo que o nome somapedagogia não tenha “pegado”, é recorrente nas obras de Freire e nas produções de somaterapeutas e simpatizantes a partir da publicação de Freire (1988), como podemos observar nos seguintes trechos: “A soma é uma terapia com forma de pedagogia e uma pedagogia com efeitos terapêuticos” (Freire, Mata, 1993, p.5). Freire (1977) , porém, não faz nenhuma menção à somaterapia como prática pedagógica. O que vai contra a crença de Takeguma (2009; destaques no original) de que “‘desde o início da pesquisa da soma’, Freire optou por um ‘viés’ de pedagogia e não de psicologia”. Ainda quanto ao nome somaterapia, Takeguma (2009) traz algumas questões até certo ponto interessantes. Procurando esclarecer um pouco a história da utilização do termo soma por Freire, cita um correio eletrônico que teria recebido de Marinho Piacentini, que teria sido “amigo íntimo” de Freire no início da década de 1970. Segundo sua página eletrônica pessoal, Marinho Piacentini é diretor teatral, dramaturgo, romancista, professor e psicoterapeuta. Introduziu no Brasil o Teatro Laboratório Grotowskiano, escreveu diversas peças premiadas, lecionou disciplinas na USP e na Unicamp e “é pioneiro no Brasil na introdução de técnicas laboratoriais para psicoterapias grupais”, sendo ainda representante na América Latina do mestre indiano Osho (Piacentini, 2017). No e-mail mencionado, ele teria contado a Takeguma como desenvolveu “um trabalho corporal baseado em Jung e Reich”, entre 1966 e 1970, que “culminou com o espetáculo Terceiro Demônio que ficou em cartaz ... de 70 a 72”, participando de diversos festivais. Em 71 o Grotowski conheceu meu trabalho e me convidou para trabalhar com ele ... Nesta época o Roberto se apaixonou pelo meu trabalho (...)12 ... e ia ver o espetáculo quase todas as noites. ... A partir do meu contato com Grotowski em 71 comecei a ministrar laboratórios teatrais cujo objetivo era o autoconhecimento, a autossuperação. O objetivo do ator era alcançar a plenitude (Piacentini citado em Takeguma, 2009). Percebe-se, nessa passagem, tomando por verdadeiros os fatos apresentados, que o trabalho de Piacentini deveria ser relativamente importante e teria marcado Freire de alguma forma, possivelmente até influenciando seu próprio trabalho terapêutico. Entretanto, o nome de Marinho Piacentini não é citado em nenhuma obra de Freire a que tivemos acesso, nem nos textos de somaterapeutas e simpatizantes que analisamos, com exceção, é claro, de Takeguma (2009). A crítica que Takeguma faz a Freire é justamente nesse sentido, porém em um aspecto mais específico. Segundo Takeguma, Piacentini teria conhecido Osho em 1976, quando recebeu um novo nome, Shanti Somesh, que significa “mestre do soma”. Voltando ao Brasil, ainda em 1976, ele teria aberto um Centro de Terapias do Osho chamado de Soma (Takeguma, 2009). No ano seguinte, Piacentini teria ficado “sabendo da tarde de autógrafos do Roberto”, quando do lançamento de Viva eu, viva tu, viva o rabo do tatu! , e então teve a ideia de “fazer uma apostila detalhando todos os trabalhos que eu vinha realizando, que juntava minha experiência pessoal + Grotowski + Osho. ... Fui à tarde de autógrafos. Não conversamos. Dei-lhe um abraço apertado, saudoso e entreguei-lhe a apostila que se intitulava Somaterapia . Nunca mais nos vimos, e ele nem se deu ao trabalho de ligar-me para agradecer” (Piacentini citado em Takeguma, 2009). Takeguma, assim, vê o fato de Freire ignorar a suposta influência de Piacentini, sequer o citando em suas obras, como uma atitude antiética de Freire. Além disso, compreende que Freire faz isso possivelmente “por não concordar com a linha então mística de Piacentini”, e afirma: “Pode-se desconfiar inclusive que Freire se inspira em Piacentini, mas não tem coragem de assumir, deslocando a escolha para um teórico que apontava essa forma poética de definir soma, como a totalidade do ser”. Isto é, para Thomas Hanna. Takeguma deslinda sua crítica colocando que Freire cita o livro Corpos em revolta , de Hanna, de 1970, “só que a edição no Brasil é somente de 1976”. Além disso, Takeguma também lembra que Freire afirma que o conceito de soma surgiu, para ele, a partir de uma conversa com um assistente em 1973. Porém, Takeguma afirma que “esse mesmo assistente, em palestra conjunta comigo em 2008, fala que na época o nome usado era ‘psicotranse e antipsicoterapia’” (Takeguma, 2009; destaques no original). A crítica de Takeguma é bastante pertinente, sobretudo por se tratar de um dos principais somaterapeutas do grupo de Freire na década de 1990, tendo uma convivência bastante próxima com ele e com a somaterapia. Takeguma aponta como “o ego de Freire em relação a seu trabalho o impedia de dar crédito a outros” e como “ele só elogia no seu percurso como terapeuta aqueles que estão sob sua liderança e sempre rompeu com quem o criticava” (Takeguma, 2009), o que leva a compreender que é bem possível que Freire tenha sido influenciado de alguma forma pelo trabalho de Piacentini e que não o tenha citado por motivos diversos. Também se percebe em Freire certo esforço de distanciar e contrapor sua proposta terapêutica, compreendida por ele como científica, às demais técnicas terapêuticas mais alinhadas com correntes místicas ou espirituais ( Ferraz, 2018 , p.91-98). Da mesma forma, é bem possível que o relato de Freire sobre a conversa que teria tido com determinado assistente, da qual teria surgido o conceito de soma, seja um tanto romanceado, com alguma liberdade poética, de modo consciente ou não, ou mesmo adornado pelas armadilhas da memória, paralelamente a um esforço recorrente de Freire em explicar suas opções metodológicas, teóricas e políticas por um viés racional e com datações precisas. Por outro lado, há algumas incongruências na construção da crítica realizada por Takeguma. Primeiro, o fato de o livro de Hanna ser publicado no Brasil apenas em 1976 não é, absolutamente, motivo suficiente para descartar o contato de Freire com a obra antes disso. Freire viveu um ano em Paris logo após formar-se em medicina, viajou várias vezes à Europa, adquiriu as obras de Reich ainda no continente europeu, já iniciando sua leitura. É possível deduzir que Freire (1977, p.68) tivesse conhecimento suficiente da língua inglesa para ler a obra de Hanna no original, pois o próprio afirma ter lido O livro da terapia gestáltica , de Joel Latner, no original em inglês. De qualquer forma, há também a informação de que a obra de Hanna era adotada como leitura obrigatória para os alunos do Macunaíma. É possível que no Macunaíma exigissem conhecimento prévio de inglês de seus alunos? Independentemente, em Caiaffo (2009 , p.121), encontra-se referência a uma edição brasileira da obra de Hanna datada de 1972, da Edições Mundo Musical.13 Em segundo lugar, Takeguma coloca que, por Piacentini ter criado seu espaço chamado Soma em 1976 e ter levado uma apostila chamada Somaterapia para Freire em sessão de lançamento, este deveria necessariamente ter entrado em contato com o conceito de soma por intermédio de Piacentini, e não de qualquer outra referência. Quanto ao conhecimento de Freire a respeito do mencionado centro, só o que se pode afirmar é que o autor não cita isso em nenhuma das obras pesquisadas. Agora, quanto à dita apostila entregue a Freire, salienta-se que a entrega teria sido em uma “tarde de autógrafos”, após o lançamento de Viva eu, viva tu ..., sendo que nessa obra Freire já afirmava sua técnica terapêutica com o termo somaterapia. É simplesmente possível que Freire, constrangido ao saber de outra terapia de nome idêntico tenha, propositadamente, omitido isso em suas obras. Porém, é difícil acreditar que o autor, com seu recorrente esforço em se contrapor e se distanciar de outras práticas terapêuticas mais alinhadas ao misticismo, tenha adotado de forma consciente o mesmo nome de uma prática dessas para sua proposta terapêutica afirmada como “científica”. Considerações finais O objetivo maior desta pesquisa era, em suma, compreender a complexidade e a diversidade humana nos seus anseios de transformação da realidade. Para isso, elaborou-se o estudo no sentido de buscar compreender como emergiu e se desenvolveu, a partir da contracultura dos anos 1970, a somaterapia de Roberto Freire: uma técnica terapêutica que mescla elementos da contracultura, do anarquismo, do discurso científico, de correntes terapêuticas alternativas e da vida pessoal de seu criador. O objeto escolhido acabou se mostrando excelente recorte para se compreender melhor a complexidade dos movimentos do período e de sua relação, por vezes contraditória, com a cultura e a sociedade circundantes, às quais esses movimentos buscam se contrapor. Na análise do processo de criação da somaterapia, verifica-se uma espécie de “mito de criação” da técnica terapêutica: uma narrativa-padrão acerca da criação da técnica terapêutica que se repete tanto nos textos de Freire quanto nos dos somaterapeutas e simpatizantes, e que demonstra um esforço em apresentar a criação da somaterapia de forma lógica, racional, ordenada e coerente, apontando causas e intenções. No entanto, no cruzamento dessas narrativas com outras fontes, percebem-se várias incongruências que atestam o caráter complexo desse processo e apontam, ao mesmo tempo, para o esforço memorialista, consciente ou não, dos autores. Ao abordar o desenvolvimento inicial da somaterapia, buscou-se compreender como Freire foi se apropriando de elementos diversos na composição de sua técnica terapêutica e como, no desenvolvimento dela, foram determinantes os contatos e experiências práticas, como a convivência com os integrantes do Centro de Estudos Macunaíma. No entanto, constatam-se também discursos recorrentes, tanto na obra de Freire quanto nas de somaterapeutas e simpatizantes, que, ao buscar contar a história da somaterapia de uma forma lógica e coerente, acabam por exagerar alguns aspectos dessa história. Isso se manifesta especialmente na busca por uma data precisa para a criação da técnica, ou em uma narrativa que coloca a somaterapia como sendo essencialmente a mesma desde a sua criação, ignorando influências diversas ou mesmo as mudanças de denominação, o que é entendido como algo atrelado a uma estratégia de legitimação da terapia. Compreende-se, por fim, que a história da criação e do desenvolvimento da somaterapia está intimamente atrelada à trajetória de vida de seu criador, e que as dissonâncias e irregularidades encontradas nos discursos referentes a essa história refletem a complexidade intrínseca aos processos humanos, em especial verificada na história dessa técnica terapêutica que emerge em um cenário marcadamente complexo e contraditório como é o da contracultura e do período dos anos 1960 a 1980. AGRADECIMENTOS Esta pesquisa foi parcialmente realizada com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior–Demanda Social (Capes–DS). Agradeço à professora Juliane C.P. Serres, da Universidade Federal de Pelotas, e ao professor José M.R. Remedi, da Universidade Federal de Santa Maria, as indicações teóricas para análise dos processos de identidade e memória e demais apontamentos pertinentes a toda a pesquisa. E também à estimada professora Beatriz T. Weber, a orientação geral dessa pesquisa e, especialmente, a supervisão e orientação na edição final deste artigo. REFERÊNCIAS ALBERTINI, Paulo. Wilhelm Reich: percurso histórico e inserção do pensamento no Brasil. Boletim de Psicologia , v.61, n.135, p.159-176, 2011. BOSCATO, Luiz A.L. Vivendo a sociedade alternativa: Raul Seixas no panorama da contracultura jovem . Tese (Doutorado em História Social) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2006. BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In: Amado, Janaína; Ferreira, Marieta M. (org.). Usos e abusos da história oral . Rio de Janeiro: Editora FGV, 1996. p.183-191. CAIAFFO, Stéfanis S. Cartogramas de um terapeuta anárquico . Tese (Doutorado em Psicologia Social) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009. CAPPELARI, Marcos A. O discurso da contracultura no Brasil: o underground através de Luiz Carlos Maciel (c.1970) . Tese (Doutorado em História) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2007. CARVALHO, Cesar A. Viagem ao mundo alternativo: a contracultura nos anos 80 . São Paulo: Editora Unesp, 2008. CARVALHO, Cesar A. Mito e contracultura. Mediações , v.12, p.55-77, 2007. CATROGA, Fernando. Memória, história e historiografia . Rio de Janeiro: Editora FGV, 2015. CESSE NETO, João M.R. A arte-luta da capoeira angola e práticas libertárias . Tese (Doutorado em Psicologia) – Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2014. CLEIDEJANE, Maria. O pai da Soma solta o verbo. Jornal do Commercio , Caderno C, p.7-8, 3 fev. 1991. Disponível em: . Acesso em: 14 set. 2017. » http://www.somaterapia.com.br/publicaoes/imprensa/> COIMBRA, Cecíclia M.B. Práticas “psi” no Brasil do “milagre”: algumas de suas produções. Mnemosine , v.1, n.0, p.43-52, 2004. COIMBRA, Cecília M.B. Guardiães da ordem: uma viagem pelas práticas psi no Brasil do “milagre” . Rio de Janeiro: Oficina do Autor, 1995. COMODO, Roberto. Militante do prazer . Revista JB , p.12-15, 1991. Disponível em:

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  1. Apresentação | especial Ficções do feminino na literatura brasileira
    Redaçãodisse:
    3 de janeiro de 2024
    Apresentação | especial Ficções do feminino na literatura brasileira
    Nesta primeira edição de 2024, a Cult reúne nove textos, publicados anteriormente em edições diversas, que cobrem o período de 2015 a 2023, sob a ótica do amplo espectro irradiado pela escritura feminina em terras brasileiras. A poesia de Ana Cristina Cesar, Eliane Potiguara, Orides Fontela e Stella do Patrocínio e a prosa de Clarice Lispector, Hilda Hilst, Maura Lopes Cançado e Ruth Guimarães são analisadas por um grupo de nove articulistas que transitam pelo ensaísmo acadêmico, a crítica literária e o jornalismo cultural, revelando novos aspectos da obra dessas escritoras que, cada uma a seu modo, produziram uma literatura marcada pela inventividade temática, pela ousadia formal e pela singularidade. Se quisermos entender o que a literatura brasileira do século 20 produziu de melhor, os nomes dessas oito demiurgas são incontornáveis. Feliz a língua que é capaz de dar plasticidade às imagens e às formulações concebidas por elas. Feliz a literatura a partir de cujo tear elas tramaram fios tão densos e resistentes.

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Corporeidades silenciadas: reflexões sobre as narrativas de mulheres violadas Corporealities silenced: reflections about the narratives of violated women Jane Felipe Beltrão Camille Gouveia Castelo Branco Barata Mariah Torres Aleixo Sobre os autores » Resumo » Abstract » Text» De traduções olvidadas e diálogos “surdos” » Os segredos da escuta » O veneno da dor » As categorias sobre violência: enredamentos na narrativa das mulheres » As categorias relativas à agência: a resistência das/entre mulheres » Entre oitivas e traduções » Por diálogos e justiças » Referências bibliográficas » Datas de Publicação » Histórico Resumo Refletir sobre as formas de narrar as violências enfrentadas por indígenas e quilombolas mulheres/mulheres indígenas e quilombolas é a proposta do texto para discutir a possibilidade de tradução etnográfica das categorias nativas em confronto com as categorias acadêmicas para referir as mulheres em situação de violência, identificando as agências das protagonistas. indígenas; quilombolas; violência Abstract Reflect about the ways of narrate the violence faced for indigenous and maroons women/women indigenous and maroons is the propositions of the article to discuss the possibility of ethnographic translation of native categories in confrontation with the academic categories to refer women in violence situations, identify the agencies of the protagonists indigenous; maroons; violence De traduções olvidadas e diálogos “surdos” No ensaio que hoje pode ser considerado clássico para o que se convencionou chamar Antropologia Jurídica ou Antropologia do Direito2 , Geertz (2013) enuncia que o Direito é construído à luz de saberes e artesanatos locais, isto é, tem a ver com a cultura na qual ele tem vida, onde “funciona.” Segundo o autor, há diversos sentidos de direito e justiça – o que ele denomina de sensibilidades jurídicas – as quais, no contexto contemporâneo, são obrigadas a conversar, em suas palavras, “... uma iluminando o que a outra obscurece.” (2013, p. 237) De acordo com essa afirmação, o estudo e a prática do Direito devem ser feitos por meio da tradução cultural, buscando compreender as sensibilidades jurídicas que estão em jogo nas contendas, seja aquelas levadas à justiça estatal, seja as que são discutidas e resolvidas à luz das normas comunitárias e, principalmente, as que caminham na fronteira entre tais normatividades. 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Os segredos da escuta Assim, nosso objetivo é refletir sobre as formas de narrar a violência que atinge os corpos das interlocutoras que pertencem a povos indígenas e coletivos quilombolas e debater acerca das possibilidades de tradução etnográfica a partir da identificação das categorias nativas que compõem a enunciação das interlocutoras, considerando as diferenciadas noções de justiça presentes entre as mulheres que emprestam seus depoimentos às autoras do texto. Para alcance dos objetivos, procura-se compreender como se dá a construção da corporeidade entre as mulheres indígenas e quilombolas/indígenas e quilombolas mulheres, pela possibilidade de demonstrar como o corpo se apresenta entre elas como território privilegiado de resistência e luta. A marca do presente trabalho são as reflexões que ressaltam e problematizam as categorias que integram a epistemologia e o olhar nativo sobre corpo e violência. Para os limites da reflexão proposta, é importante esclarecer que os depoimentos oferecidos pelas interlocutoras foram ditos às pesquisadoras em diversos momentos, os quais compreendem um lastro de 15 anos de pesquisa, sem que estas tivessem a intenção de trabalhar especificamente violência e violação de corpos, entretanto, os depoimentos foram como que aflorando pela impossibilidade – estatal e/ou comunitária – de oitiva das mulheres em situação de violência. Selecionou-se depoimentos de mulheres indígenas pertencentes aos povos Tembé Tenetehara5 , hoje moradores do município de Santa Maria do Pará, Xipaya6 e Kuruaya7 que vivem no médio Xingu e, no caso das quilombolas, selecionamos as interlocutoras moradoras das diversas comunidades localizadas no arquipélago do Marajó, também no estado do Pará. Destacam-se trajetórias e memórias que marcam de modo indelével o etnocídio praticado via colonização (Beltrão, 2012), que até o presente atinge os corpos e as vidas de pessoas indígenas e quilombolas via colonialidade.8 Nesse sentido, é latente na narrativa das interlocutoras a referência ao processo de expulsão territorial, sequestro de crianças indígenas e quilombolas pela ação missionária e/ou do Estado, tentativas reiteradas e violentas de genocídio, em face da tentativa de homogeneização e apagamento das pertenças. Vale, porém, ressaltar que a colonialidade incide de forma específica e brutal necessariamente sobre os corpos das mulheres, pois esta, segundo Lugones (2008) , se instituiu também como colonialidade gênero, que instituiu o sistema de gênero colonial/moderno, baseado nas dicotomias homem/mulher e público/privado, como o padrão. Isso ocultou sistemas de organização dos “mundos sexuais” nativos, em que muitas vezes as fronteiras entre masculino e feminino eram fluídas e as mulheres exerciam papéis importantes na vida coletiva. Não tratamos aqui de perscrutar esses sistemas “originais” e nem acreditamos que, hoje, isso seja possível. Porém, importa ter isso em consideração para um olhar etnográfico mais apurado. O ponto nevrálgico, locus em que os caminhos etnográficos se tornam mais “nebulosos”: ter o corpo marcado, como é o caso de indígenas e quilombolas mulheres/mulheres indígenas e quilombolas, pela violência física e sexual, muitas vezes infringida pelos próprios “parentes”, ou ainda por pessoas não indígenas e quilombolas, fato que mobiliza sentimentos como dor, sofrimento e vergonha. A possibilidade de ouvir (com tudo o que o ato da escuta representa para a Antropologia) implica em cuidados9 redobrados na interpretação de atos e falas que não são ditos a qualquer pessoa, nem em qualquer lugar. Os processos de violação dos corpos, vividos como eventos devastadores, segundo as interlocutoras, também formam seus modos de narrar, de liderar e de agir politicamente. De alguma forma, somos “ouvintes” privilegiadas, considerando a confiança com a qual fomos brindadas, portanto nosso compromisso com a ocultação das identidades é fato. O veneno da dor Veena Das (2008a), em seus escritos, problematiza a correlação entre dor e linguagem. Segundo a autora, por meio da expressão da dor, é possível sair da privacidade sufocante que ela produz na vítima. De acordo com Das (2008a), eventos devastadores produzem um tipo de conhecimento que só é alcançado pela experimentação do sofrimento, um conhecimento venenoso. Portanto, violências extremas não seriam apenas responsáveis pela destruição de vidas e corpos. Atuam, também, na construção de sujeitos e linguagens da dor. A enunciação da dor pede, portanto, admissão e reconhecimento, o que nem sempre ocorre. Trata-se, nos termos da autora, de sentir a dor no corpo do outro. Essa é a proposta ao fazer antropológico, requisitado de forma envergonhada, mas insistente por nossas interlocutoras. De acordo com Michael Taussig (1993), a reprodução da imagem dos povos indígenas como selvagens, irracionais e violentos é o que possibilita a propagação do terror colonial. E no caso dos coletivos quilombolas a estratégia de resistência e luta dos negros é imperdoável ao mundo colonial, afinal, os africanos são equiparadamente considerados, como os indígenas, pessoas desprezíveis. Trata-se uma operação mimética por parte do colonizador, que conduz a atos de extrema violência, não importando se esse imaginário é verdadeiro ou não. As culturas do terror criam, desse modo, o que o autor denomina como espaços de morte, nos quais indígenas, africanos e brancos viram nascer o Novo Mundo. Segundo Taussig (1993) o terror é o mediador por excelência da hegemonia colonial e acrescenta-se da discriminação presente em nossa sociedade. O autor afirma ainda que “... as culturas do terror são nutridas pelo entremesclar do silêncio e do mito.” (Taussig, 1993, 30) Os efeitos paralisantes e silenciadores do terror encontrariam na narrativa sua primeira possibilidade de cura. Quando decidiram falar sobre as violências que marcaram de forma mais ou menos severa suas trajetórias, nossas interlocutoras começaram a vencer a primeira imposição do terror, o silêncio. Como diz Maria Aparecida, quilombola, que por ser estudante universitária, escreveu seu depoimento: “não vou falar e também nunca escrevi, mas faço [o texto] porque não consigo explicar porque aconteceu comigo, talvez não haja explicação, e mesmo que tivesse jamais iria me fazer esquecer aquele homem imundo que me rasgou e tudo que aconteceu comigo. Neste caso, a forma de prevenção pra que não possa acontecer com outras mulheres é contar e contar do massacre que sofri. Mas para isso tenho que ter coragem para dar o testemunho, mas tenho muita vergonha por isso escrevo. Peço que a senhora conte, leve adiante, o massacre não pode continuar.” Para compreender o que diz Taussig (1993), traz-se à consideração e em complemento à Maria Aparecida, o depoimento de Maria Dolores, de pertença Kuruaya, que narra seu pânico no dia da violação, praticada dentro de sua casa, na frente do marido e das filhas, que à época tinham respectivamente oito anos e dois anos: “Dormi, como todas as noites, com meu marido e minhas filhas na minha cama. De madrugada acordei e levei o maior susto da minha vida, me deparei com um homem passando da sala pra cozinha, pois a porta do quarto ficava entre aberta durante a noite, então no primeiro momento imaginei que pudesse ser alguém de fora, pensei que fosse meu marido, então olhei na cama e vi as meninas e ele, percebi que tinha alguém na casa e não era o meu marido, ele dormia com as crianças. Logo depois minha filha de oito anos acordou e percebeu que eu estava bastante assustada e nervosa, então falei que tinha alguém na casa, pedi que ela não fizesse escândalo. Na hora, eu só pedia a Deus proteção pra minha família e, ao mesmo tempo, sem saber o que fazer e como agir naquela situação de angústia e muito muito medo.” Na sequência dos acontecimentos, Dolores se apercebe do perigo e evoca Deus: “... com toda Tua sabedoria me traz tranquilidade e, nas minhas orações, pedi que Deus fizesse aquela pessoa ter compaixão e não fizesse nada com meu marido e com as minhas filhas, eu coloquei minha vida nas mãos Dele. Eu dizia: Deus coloco minha família em suas mãos me proteja e me ilumine nesta noite, pois sei que corro perigo, me abençoe, te peço em amém. Dona a senhora já teve medo?” Dolores prossegue a narrativa, ofegante, e esclarece, “... agradeço todos os dias a Deus, eu esqueci parcialmente o fato, só que por mais que os anos passem, eu não consigo falar com as pessoas sobre o assunto, por medo e até mesmo vergonha.” O relato foi adiante, entrecortado pelo choro às vezes discreto, outras vezes convulsivo a ponto de interromper a narrativa. Ela segurava as minhas mãos10 com força, de certo ainda sentia pânico e as marcas corporais que se apresentavam vivas, intensas! O relato é bastante longo, mas importante para compreensão da dor, silenciada pelas circunstância e sobretudo pela vergonha. Diz a Kuruaya: “... trabalhei o dia inteiro, sou professora no bairro dos índios, local tomado pela violência. Nunca tive medo de nada. A casa é pequenininha. Toda noite eu tenho o costume de verificar portas e janelas, e nesse dia não foi diferente, entretanto nunca imaginei que alguém pudesse entrar na casa de alguém pelo telhado, por onde entrou o bandido. Quando me dei conta do perigo fingi que estava dormindo e observei por baixo do travesseiro que ele [o bandido] se aproximava e logo entrou no quarto meio agachado, ficando em volta do berço da minha filha. Chegou perto da cama e pôs a faca no meu pescoço, daí eu gritei e ele se debruçou em cima da cama fazendo ameaças, dizendo pra não gritar se não iria matar todo mundo caso eu não trepasse [mantivesse relações sexuais] com ele.” Dolores informou que ele estava visivelmente muito perturbado andando de um lado para o outro, parecia não saber o que fazer, aparentando transtornos. Tinha aparência de drogado, exalava mal cheiro, mas não parecia bêbado e nem cheirava a álcool. Ela continua: “... depois da ronda pela casa, ele saiu um momento do quarto e eu disse ao meu marido finge que dorme e cuida das meninas, pois ele vai voltar. Minha filha que estava acordada chorava muito e falei pra ela ficar bem caladinha como se estivesse dormindo foi o que ela fez, ficou quietinha abraçada à irmã e ao pai. Ele voltou e me obrigou a manter relações sexuais com ele. Sem saber o que fazer, pedia ajuda a Deus. Aquilo foi uma humilhação muito grande, na minha cama, com o meu marido vendo tudo e as minhas filhas então? Até hoje não sei “transar” como antes, a lembrança me perturba, tenho problemas, passo mal, meu marido não se conforma, reclama. Temo que me abandone por isso. Com os olhos distantes, como se voltasse à cena do crime, Dolores informa: “... pela conversa dele, percebi que ele não falava coisa com coisa, às vezes parecia tranquilo, daí a pouco se exaltava e com a faca na mão, junto do meu pescoço. Que medo! Quando ele falou que iria fazer sexo comigo, tornei a me apavorar e, na hora, pensei na família e o quanto seria pior se fossem com as minhas filhas, pensei que era melhor eu ceder do que ele fazer algo pior conosco, ele sentou na cama e falou que não era pra eu gritar, era melhor pra mim. Ele se serviu de mim duas vezes e perguntava, gostou cachorra, tu foste pega no dente, índia é tudo assim ... Eu desesperei, além de me usar me humilhava e minhas filhas e meu marido assistindo, acho que a pequena não acordou, nem sei ... quando percebi que ele tinha saído da minha casa parece que o mundo caiu sobre mim, não tinha reação de nada lembro que peguei o celular, mas não tinha condições de ligar pra ninguém, acho que ainda não tenho mundo.” Abalada, Dolores confessou que teve dificuldade de identificar o criminoso, mas o fez. Ele respondeu processo e foi condenado, o fantasma à época era a saída do agressor da cadeia. Ela ainda vive aos sobressaltos, pois se aproxima o final do cumprimento da pena. As categorias sobre violência: enredamentos na narrativa das mulheres Nos diálogos estabelecidos com as interlocutoras é possível detectar em seus depoimentos e mesmo discurso de indígenas e quilombolas, uma série de categorias a respeito de eventos que, do ponto de vista antropológico, poderiam ser definidos analiticamente como situações de violência, embora dificilmente nossas interlocutoras tenham usado explicitamente o termo violência, as protagonistas referiram-se a todo momento a situações que atingiam seus corpos individual e coletivamente. Os corpos são atingidos de forma coletiva na medida em que a corporeidade e construída socialmente e as violações são estruturais e não individuais, além de engendrarem dor e resistências. Os fatos narrados aproximam-se da definição de violência proposta por Paula Lacerda (2015) que a entende como: [...] um amplo conjunto de situações que poderiam ser percebidas, de outro ponto de vista, como ‘causadoras de sofrimento’, pessoas se apresentam como ‘vítimas de violação de direitos’, o que as transforma em sujeito e potencializa o alcance de suas reivindicações.” (2008, 28) A primeira categoria que se refere a tais processos diz respeito a violência enfrentada coletivamente pelo povo Tembé Tenetehara na Colônia Santo Antônio do Prata, educandário que recebia as crianças indígenas sequestradas de suas comunidades e apartadas de seus parentes para serem educadas, catequizadas e “civilizadas” com base na pedagogia cristã dos missionários Capuchinhos. Posteriormente, a Colônia foi transformada em Leprosário e a ameaça de contrair a doença afastou ainda mais os Tembé Tenetehara do território que tradicionalmente ocupavam. No período de instalação do Leprosário, conforme conta Dona Maria Joana, circulava na região o boato de que era possível curar a hanseníase se o doente comesse o fígado de uma pessoa saudável. Na época chegaram a ser encontrados na mata cadáveres com o fígado retirado, o que reforçava ainda mais o temor de que uma das pessoas a serem mortas pudessem ser Tembé Tenetehara. É desse cenário que emerge a categoria massacre: as interlocutoras constantemente reafirmam, ao dizer dessas memórias que “o nosso povo foi muito massacrado no Prata”. A noção de massacre parece elucidar mais enfaticamente os acontecimentos que a categoria violência, uma vez que as violações enfrentadas coletivamente pelos Tembé Tenetehara – ditos de Santa Maria – incluem espoliação territorial, epistemicídio, quebra dos laços de parentesco e, em última instância, o adoecimento e a morte dos membros do povo. O mesmo ocorre com as mulheres Xipaya e Kuruaya que, expulsas de seus territórios no médio Xingu, vieram à cidade e vivem presas a espaços, onde sequer podiam, há 10 anos, se declarar indígenas. Eram, como referem algumas das interlocutoras, impedidas de falar a língua materna, enfrentaram o massacre da discriminação, produzida pelo racismo que se apresenta em estratégias de dominação de ordem material e ideológica, utilizada pelas estruturas coloniais para manter status privilegiado de membros do grupo dominante, produzindo a perene subalternidade dos povos etnicamente diferenciados (Moreira, 2016 ), não fosse a luta que empreendem diuturnamente. No caso das quilombolas o massacre foi/é pesado e reproduzido nas diversas narrativas. A segunda categoria que diz de processos de violência é a de escravidão. Conforme explica Maria da Paz: “os antigos do nosso povo tratavam a mulher como escrava. Ela só servia para ter filho, cuidar da casa e da roça, ser usada pelo marido e trabalhar pro pai. Hoje não pode mais ser assim, mas muitos homens no nosso povo e de fora querem tratar as mulheres nessa escravidão.” A categoria escravidão parece dizer respeito a crítica que as mulheres indígenas fazem sobre a condição feminina dentro das diversas comunidades. O entendimento de que as mulheres eram e são tratadas como escravas, guarda em seu interior a reivindicação de que sejam entendidas como sujeitos, dotadas de direitos, vontades e voz. Tal categoria diz respeito a forma como as interlocutoras pensam a mulheridade e a crítica que fazem por não serem reconhecidas de tal forma. Entre as quilombolas a condição de escrava é mencionada por conta das avós e das bisavós, entretanto, algumas vezes, a condição passada é negada para não comprometer a luta e favorecer a discriminação. A terceira categoria nos parece a que possui maior tensão ao ser utilizada analiticamente: trata-se da categoria maldade. Durante muito tempo do percurso das pesquisas que apontavam para as categorias nativas, evitou-se conjecturar sobre a mesma, por receio de que escrever sobre o assunto pudesse “dar munição” para os antagonistas em relação aos povos tradicionais. Entretanto, ao buscar as noções de justiça que permitem a luta política das mulheres, a maldade atravessou o percurso da problematização. As interlocutoras com quem se dialogou nomeiam como “homens maus” aqueles que agridem seus corpos, física e/ou sexualmente. E, a essas agressões, as mulheres indígenas dão o nome de maldades. As quilombolas, algumas vezes referem-se às violações dos homens maus, como malinesas. Denominam malinesas às penas impostas, pelos encantados, a homens (e também à mulheres) que vivem fora das normas tradicionais, malinesas que trazem como consequência efeitos deletérios às relações sociais. Malinos são os encantados que castigam os transgressores com o mal, tornando-os perniciosos ao convívio social. Os encantados que “jogam a malinesa” vivem nas matas e nos cursos d’água e por serem donos dos espaços, exigem reverências e cumprimento de obrigações, nem sempre observadas pelos homens maus que terminam “malinando” com as mulheres (ou mulheres que malinam com homens). No caso da maldade ou da malinesa entre indígenas e quilombolas, uma e outra não integram a essência dos humanos, são tomadas pelas interlocutoras como condição que, dependendo do comportamento, pode ser afastada dos humanos, sempre que, arrependidos, voltem a cumprir as obrigações com os encantados. A tensão reside no fato de que muitas vezes os homens maus ou malinos podem ser companheiros das mulheres indígenas e quilombolas ou lideranças dos referidos coletivos. Duas situações parecem ilustrativas de como a categoria maldade é posta em ação. A primeira delas diz respeito a história contada por Maria Laura, que teve a filha Maria Conceição sequestrada por um homem que circulava na comunidade. A menina passou oito dias em cativeiro submetida a violência física e sexual pelo agressor. Por fim, depois de espancá-la quase até a morte, o criminoso abandonou-a sozinha na casa onde a escondia. Embora Maria Conceição tenha sido encontrada com vida e acolhida sob o modo Tembé de cuidar do corpo, a marca da violência permanece para o resto da vida e o fato de o agressor ter muito dinheiro, à época, assegurou-lhe a impunidade. Ao contar a história de sua filha, Maria Laura referiu-se ao criminoso como um “anjo mau”, aproximando-o do mito bíblico que conta a história de Lúcifer. A mesma categoria foi utilizada pela filha de Maria da Paz, Maria Lídia, para referir-se ao seu pai. Na época ele se encontrava doente, com desmaios e fraquezas constantes, e as causas não puderam ser identificadas pelos médicos que a família procurou. Maria da Paz, desde que a conhecemos, narra as agressões cometidas pelo marido, que espancava ela e os filhos e dizia constantemente a todos palavras duras, que “machucavam” quem as ouvia. Conversando com Maria da Paz e Maria Lídia, a filha afirmou que a doença do pai era um “castigo por todas as maldades que ele fez com a gente”, com o que Maria da Paz concordou. A noção de maldade parece ter um sentido diferenciado para as mulheres indígenas se comparada aos usos que assume na sociedade dita ocidental. Enquanto no ocidente a maldade é frequentemente tomada como propriedade de pessoas perversas, entre as protagonistas indígenas a categoria parece se aproximar do que a Antropologia e os movimentos de mulheres tem chamado de machismo ou violência de gênero. Atentar para o uso diferenciado do termo pelas interlocutoras só foi possível em função do envolvimento etnográfico no contexto em que estas se inserem e por meio do diálogo e inflexão mantida pelas autoras. Por fim, a última categoria percebida como o sinônimo nativo para a violência é a de machucar. Frequentemente usada na sociedade ocidental para designar ferimentos físicos, sejam acidentais ou infringidos, machucar entre as mulheres indígenas refere-se ao ato de dizer palavras ofensivas e duras, que atacam a honra e o caráter das pessoas atingidas. Nos relatos de violência dentro das relações com os maridos – sejam eles indígenas ou não – as interlocutoras afirmam que as palavras duras são tão dolorosas e machucam tanto quanto agressões físicas. Tendo em conta a lei brasileira sobre violência doméstica, temos que o “machucar” talvez possa ser compreendido como violência psicológica11 , uma entre as possibilidades de violência contra a mulher, deslindadas nesse diploma legal. Entre as quilombolas há narrativas que informam que as palavras ofendem mais que serem marcadas por paus, chicotes e outros instrumentos de agressão. As marcas físicas podem ser tratadas, curadas, mesmo que levem tempo, mas as marcas dos machucados ferem a alma (para além do corpo) e permanecem na memória das interlocutoras e nada nem ninguém faz desaparecer. Abaixo as correspondências relativas às categorias éticas e êmicas. Thumbnail  Quadro 1 : Categorias éticas e êmicas sobre violência As categorias relativas à agência: a resistência das/entre mulheres Uma das principais questões que se tornaram visíveis no diálogo com as interlocutoras diz respeito ao fato de que as violações que atingem os corpos das mulheres jamais foram aceitas de forma passiva, elas não se deixam paralisar. Os processos de agência – aqui utilizada no sentido atribuído por Pierre Bourdieu (1983) e Anthony Giddens (1984) – e resistência, sempre estiveram presentes nas trajetórias das indígenas e quilombolas. O silenciamentos via etnocídio atingiu seus corpos e vidas, mas não se consolidou na medida em que as protagonistas sempre estiveram dispostas a buscar alternativas e resisitir. É com o intuito de romper com o etnocídio e a destituição da memória de seus coletivos que as mulheres indígenas ou quilombolas contam histórias de extrema violência no contexto da pesquisa; supomos que elas acreditam que por meio do registro na produção antropológica, as interlocutoras mantém a expectativa de que as memórias não sejam esquecidas nem apagadas, mas que, pelo contrário, permaneçam vivas na luta por direitos coletivos e por reconhecimento. Relatar as estratégias de agência e resistência e o protagonismo das interlocutoras frente a situações de poder assimétricas coaduna-se com o objetivo de “contar para prevenir”, como disse Maria dos Anjos, há anos, quando em uma roda de conversa aconselhou as jovens presentes: “... não guardem segredos, eles envenenam a vida. Não façam como eu que evitei contar as malinesas, daí não consegui domei os maus [homens] da minha vida. Nem os de casa, nem os da rua e ninguém deve machucar nossas almas, somos pessoas, [e olhando firme as meninas moças da roda] devemos reagir, assim as malinesas vão pra longe da comunidade.” De fato, contar a história parece uma das principais categorias que distinguem a agência das mulheres diante da violência sofrida. O trabalho das autoras, membros da equipe de antropólogos do Grupo de Pesquisa Cidade, Aldeia & Patrimônio só teve início a partir do convite dos membros da comunidade para que os pesquisadores escrevessem a história do povo Tembé Tenetehara e de outros povos indígenas e quilombolas, como informamos à partida. Quando na comunidade, muitos pesquisadores foram “intimados” a entrevistar os membros mais velhos da comunidade, para garantir que as histórias que estes se lembravam fossem registradas antes que se perdessem com seu falecimento. Maria Laura, com o início das pesquisas na comunidade, decidiu começar a escrever diários, onde poderia registrar suas memórias pessoais e coletivas e repassar para os pesquisadores do grupo. Outra categoria importante nos processos de agência das mulheres indígenas, especialmente as Tembé, é a do cuidado. Conforme elucida Maria Laura: “... o nosso povo foi muito massacrado no Prata. Morreu muita gente. A gente jamais podia dizer que era índio, até hoje nós vivemos discriminados. Hoje tá muito melhor, a gente vive junto, faz nossas festas, cuida uns dos outros e o nosso povo se alegra. Mas vive com a discriminação. Não podemos usar uma roupa, que já dizem que nós não somos índios. Eu vou dizer que eu sou uma portuguesa, sendo que eu não sou? Até tem gente que diz, mas eu não digo. Eu digo o que eu sou, eu sou Tembé. Mas tem que viver com a discriminação.” Ao contrário da visão de cuidado amplamente discutida na literatura produzida na área da Enfermagem, pautada na atenção e medicalização de pessoas com doenças, ou deficiência, o cuidado tembé e das demais etnias é holístico e alimenta o corpo de forma completa, por meio do sistema tradicional de ação para saúde, que contempla não apenas o cuidado com o corpo, mas a proteção espiritual, e as lutas políticas por uma vida melhor, que acarretam uma corporeidade saudável. E esse corpo não se estrutura desconectado do ser indígena, com toda a carga política e epistemológica que a identidade enseja para as tembé, xipaya e kuruaya. Cuidar de si e dos seus implica em se proteger de violações e fortalecer o grupo para que as lutas políticas possam ser continuadas. Nesse sentido, o cuidado de si constitui um empreendimento que conforma resistências políticas, materiais e epistemológicas, em um contexto no qual o corpo vem à cena tanto como território de lutas e afirmações identitárias, quanto como alvo de opressões e estigmas. Com as mulheres quilombolas a situação é semelhante, sempre que alguém se machuca a cura vem via sistema tradicional de ação para saúde, mesmo que a pessoa machucada e violada receba atendimento dentro do sistema ocidental de ação para saúde. Outra categoria percebida como forma de agência das mulheres nas tensões que envolvem os maridos diz respeito a educação dos filhos. Segundo Maria Laura: “... a mulher é que educa o filho. Se ela não mandar ele ir lá, tomar a bença do pai, fazer um carinho no pai, ele não vai, não, fica na dele. Foi por causa de um dos meus filhos que meu marido parou de me bater. Um dia, ele era novinho, magro, magro... Ele virou pro pai e falou: “O senhor nunca mais vai bater na mamãe, hoje foi o último dia”. O pai perguntou: “E o que tu vai fazer?”. E ele disse: “Eu não sei, mas o senhor não encosta mais um dedo nela”. Depois disso, nunca mais ele me bateu.” Uma das filhas de Maria Laura, ao ver o pai com outras mulheres na rua: “... fazia um escândalo, batia nela. Uma vez enchi as coisas da mulher de areia, ficou tudo sujo. Depois ele metia a porrada em mim quando chegava em casa, mas eu nunca deixava barato.” Atualmente as crianças que na infância enfrentaram os pais em defesa de suas mães, criam redes de apoio e acolhimento das indígenas mulheres em situação de violência, seja recebendo-as em suas casas, rezando por elas ou conversando com os maridos e, muitas vezes constrangendo-os perante os demais parentes. Maria José, quilombola da comunidade Maria me ajude constrangia o marido, mostrando de casa em casa os ferimentos produzidos pelas surras que levava, porque teimava em estudar. A peregrinação de casa em casa produzia o recolhimento do agressor que, alcoolizado, tinha produzido as maldades, malinado a protagonista. Por fim, a última categoria percebida como característica da agência empreendida pelas mulheres tembé em relação a violência diz respeito ao processo de fechar o corpo. Prática também verificada entre as quilombolas. Em um contexto em que as violações de direitos ocorridas em hospitais são reais e prováveis, fechar o corpo contra coisas ruins é essencial. Entre as práticas frequentes, temos: rezar na cabeça de criança com febre; ministrar ervas medicinais para pessoas que adoecem ou são envenenadas; manter a gravidez ou interrompê-la quando as vidas da mãe e da criança estão ameaçadas; são exemplos de saberes e fazeres acionados no agenciamento de situações consideradas de risco, em que se sabe que o acesso ao sistema ocidental de ação para saúde não responde satisfatoriamente ou há dificuldades em acessá-lo. Fechar o corpo entre os povos tradicionais implica proteger as pessoas da comunidade tanto no plano físico quanto no espiritual. Os rituais podem ou não estar relacionados à alguma forma de religiosidade indígena afro-brasileira ou ocidental. Uma das interlocutoras, reconhecida “por ser uma das mais antigas dos nossos antepassados”, entre os Tembé, relata que nos tempos antigos, quando houve grande incidência de hanseníase na região, ela conseguiu paralisar o avanço da doença no corpo de uma das pessoas da comunidade utilizando as propriedades do mucuracaá, uma planta medicinal que também é utilizada entre os tembé para combater o mau-olhado. Outras indígenas afirmam que uma mulher grávida que estivesse sob os cuidados de Maria Carmen estaria em boas mãos, uma vez que ela acompanhava a gestação desde os primeiros meses até a hora do parto, no qual a mulher era virada de lado e dava a luz enquanto a interlocutora rezava em sua barriga. Despois do parto, a profissional de saúde permanecia na casa da parturiente até o resguardo terminar, portanto eram quarenta dias de cuidados diferenciados. Durante uma das idas a campo, a mãe de uma criança que havia nascido há pouco tempo encontrava-se aflita, pois o bebê não parava de chorar e não costumava ser assim. Nesse momento, Maria Carmen, sogra da mãe da criança, entrava na casa e, ao se dar conta da situação, perguntou se a menina havia ido tomar banho de igarapé. Como a resposta foi afirmativa, a interlocutora disse: “... minha filha pegue alho, amasse e misture com álcool e deixe um tempo. Depois passe com o dedo na palma da mão da neném, na sola do pé, no braço e na coxa, em forma de cruz. Vai ficar um cheirinho ruim, mas não tem problema, ela vai melhorar. Ela deve ter visto alguma coisa no igarapé, criança é muito sensível, parece um pintinho novo. Quando eu era pequena, minha tia levava a gente pro igarapé, mas ela entrava primeiro, pedia licença pra mãe da água pra gente entrar e jogava o alho na água, aí o banho era sossegado.” O alho é antídoto (combate o veneno) para os encantados que “jogam malinesa” quando as pessoas não reconhecem as regras, que não se referem apenas aos espaços de domínio dos mesmos, mas às horas proibidas do dia e da noite. A paçoca de gergelim preto “pisada” com hortelã é utilizada para “botar pra fora” (as indígenas não utilizam o termo “aborto”, as quilombolas usam expulsar), principalmente quando a gravidez ameaça a vida da mãe ou quando o parto é de risco. Para mulheres grávidas que sentem dores, ministra-se chá de gengibre. Para inflamações, especialmente em casos de problemas de próstata, o caroço de abacate mostra-se eficaz. Crianças, quando morrem antes do batismo, segundo os católicos, choram durante sete dias e precisam ser batizados para que “descansem”. A última prática mostra-se elucidativa da forma tembé de pensar a construção da “pessoa”, a partir do ato de batizar a criança morta. Para os Tembé Tenetehara não se deve negar às pessoas mortas, quando oriundas de famílias cristãs, o direito ao ritual de batismo que as forma e legitima. As situações acima descritas, integrantes das observações de campo, revelam que mesmo enfrentando situações de precariedade e violência, as mulheres exercem seu protagonismo, instituindo o “ser sujeito” e encontram alternativas para agenciar situações de violência. O corpo e as múltiplas corporeidades que coexistem entre as interlocutoras são territórios privilegiados da resistência de indígenas e quilombolas mulheres e das formas de cuidar de si mesmas. Thumbnail  Quadro 2 : Categorias êmicas e éticas sobre agência Entre oitivas e traduções Os diálogos em campo demonstram que os atos e falas das interlocutoras são ferramentas importantes para a compreensão de suas realidades. Ao mesmo tempo, analisar o discurso no contexto das relações antropológicas passa a ser um desafio, na medida em que aponta para a necessidade de proceder o controle das dificuldades de tradução etnográfica, dos etnocentrismos ocidentais e do viés da colonialidade vigente. Em trabalho de grande influência e repercussão, Gayatri Spivak (2010) questiona criticamente a (im)possibilidade de fala de determinados grupos. A autora constata que os subalternos em geral, e o sujeito historicamente emudecido, a mulher subalterna em particular, foram e são, ao longo da história, mal compreendidos ou mal representados pelo interesse pessoal dos que têm poder para representar. A proposição instigante de Spivak (2010), além de elucidar silenciamentos, colonialismos e violências, também aduz escutas anti-hegemônicas, epistemologicamente desobedientes, pós-coloniais. Inspirada pela reflexão provocativa da filósofa indiana, Lacerda (2014) considera que em meio a tentativas de silenciamento, os grupos e sujeitos subalternizados – e esse é um deslocamento analítico fundamental para que a subalternidade não seja entendida como lugar paralisante e intransponível – estão falando. Superando a perspectiva colonialista que pretende “dar voz” aos grupos subalternizados por meio da pesquisa, Lacerda (2014) tensiona a questão que orienta Spivak (2010): como o não subalternizado, o privilegiado, pode escutar? As posições teórico-epistemológicas (que também possuem caráter político) adotadas na presente discussão objetivam favorecer a escuta etnográfica mais responsável, capaz de superar estereótipos de passividade e compreender indígenas e quilombolas como sujeitos de suas próprias histórias. A estruturação do olhar antropológico sobre o campo, em diálogo com os conceitos e categorias referidas, foi essencial para compreensão das interlocutoras como protagonistas de suas próprias histórias, não como vítimas passivas, desagenciadas e paralisadas diante de violações. Qualquer procedimento em sentido contrário seria uma prática etnocêntrica. Atentar para as narrativas das mulheres indígenas e quilombolas, a partir do que foi explicitado, é um esforço que vai além de retomar o protagonismo de vozes subalternizadas. Trata-se de uma tentativa de constituição de possibilidades de outra epistemologia, outras referências e sensibilidades, diferentes das que o pensamento colonial afirma serem as únicas dignas de serem aprendidas e respeitadas. A partir das falas desses sujeitos, confrontamos a tentativa histórica de epistemícidio (Santos, 2010) e assimilação que incide sobre os povos indígenas e quilombolas, e, mais especificamente sobre mulheres indígenas e quilombolas/ indígenas e quilombolas mulheres. Trata-se de uma opção metodológica que abriga dimensões e responsabilidades políticas, de contemplar enunciações ditas e tomadas como periféricas e arbitrariamente alijadas pelo pensamento ocidental e colonial. Por diálogos e justiças A diversidade das agências e possibilidades de justiça nos permite esterçar para diferentes lados saindo dos limites de nossos axiomas, verdades que consideramos inquestionáveis e supostamente válidas universalmente. Axiomas estes que muitas vezes são utilizadas como princípios que mantém privilégios de uns em detrimentos de outros secularmente subalternizados. Não se trata de atribuir valor superior aos conhecimentos tradicionais ou mesmo de aderir a eles, mas de considerá-los em diálogo para produzir a melhor justiça, sem diluí-los na ciência desenvolvida na academia. A importância das reflexões que se faz é tentar indicar que as agências das mulheres e modos diversos de conhecimentos, é indicar também que se pode pensar de outro modo e que os variados sistemas de justiça precisam, de fato, dialogar. Sabemos que os estudos acerca da violência de gênero no país muitas vezes utilizam o termo violência sem muita precisão, como se violência doméstica, violência intrafamiliar, violência contra a mulher, entre outros, fossem capazes de abarcar reflexões sobre realidades diversas. Fazer o esforço de compreender noções êmicas do termo afasta o perigo da reificação e induz a “diálogos ouvintes”, que postulamos aqui, em contraposição aos “diálogos surdos.” Ainda sobre a questão dos termos utilizados para abordar a violência, contemporaneamente tem se preferido falar em mulheres em situação de violência ao invés de violência contra a mulher, para indicar que a violência é transitória e não um destino que as mulheres devem cumprir (Campos, 2011). Além disso, a mudança de termo e, por conseguinte, de enfoque, impele a pensar a questão fora do molde algoz versus vítima, possibilitando compreender que, mesmo sendo vítima, especialmente num sentido jurídico-estatal, não significa não ter poder e força de resistir. As narrativas e corporeidades de mulheres indígenas e quilombolas/ indígenas e quilombolas mulheres desafiam compreensões do senso comum sobre situações de violência e nos fazem compreender que vítimas são sujeitos. Dessa forma, como sujeitos que são, devem poder acionar sistemas tradicionais de justiça ou mesmo a “justiça dos brancos”, como dizem algumas. Porém, a colonialidade, especialmente a de gênero (Lugones, 2008 ) cria contextos em que os dois lados olvidam as demandas pelo fim de maldades e malinesas. Referências bibliográficas ALEIXO, Mariah Torres. 2015. Indígenas e quilombolas icamiabas em situação de violência: rompendo fronteiras em busca de direitos Dissertação de mestrado, Programa de Pós-Graduação em Direito, UFPA. (Inédita) BELTRÃO, Jane Felipe. 2012. Histórias ‘em suspenso’: os Tembé ‘de Santa Maria’, estratégias de enfrentamento do etnocídio ‘cordial’. Revista História Hoje, São Paulo, v. 1, no 2, p. 195-212. BOURDIEU, Pierre. 1983. Esboço de uma teoria da prática In: ORTIZ, Renato (Org.). Pierre Bourdieu: sociologia São Paulo: Ática, p.46-81. BRASIL. 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Tempos difíceis. Sobre a importância do feminismo*