“Cântico dos cânticos, quântico dos quânticos”: trabalho apresenta uma análise metalinguística de canções que compõem o álbum Quanta, de Gilberto Gil, explicitando as relações dialógicas que o enunciado artístico pode estabelecer com as ciências contemporâneas e com uma visão de saúde. Para tanto, é feita uma breve apresentação sobre o quadro teórico-metodológico a ser utilizado, a metalinguística de Bakhtin, e, a partir dele, são estabelecidos três eixos de análise, privilegiando a concepção de ciência, de física quântica e de saúde e cura presentes no álbum e evidenciando as complexas relações entre arte, física e saúde. metalinguística; Mikhail Bakhtin (1895-1975); cultura Abstract This article presents a metalinguistic analysis of the songs comprising the album Quanta by Gilberto Gil, highlighting the dialogical relationships that artistic endeavors can establish between contemporary science and a vision of health. This involves a brief introduction of the theoretical/methodological framework and Bakhtin’s metalinguistics, followed by the establishment of three different analytical threads that follow the concepts of science, quantum physics, and health and healing which are present in the album, depicting the complex relationships between art, physics and health. metalinguistics; Mikhail Bakhtin (1895-1975); culture A ascensão do positivismo lógico no início do século XX determinou o desenvolvimento da concepção de conhecimento científico como produção epistêmica objetiva, neutra e desprovida de quaisquer relações com os diferentes aspectos da cultura e da filosofia (Goldstein, 2008). Tal visão de mundo foi apropriada por parte da comunidade científica e escolar, que, ainda hoje, reitera a existência do método científico (único) e negligencia a discussão filosófica pós-popperiana do século passado e do presente (Kincheloe, Tobin, 2009). Esse olhar para o empreendimento científico gerou a distinção entre duas culturas no mundo ocidental, a cultura científica e a cultura das humanidades (Snow, 1988). Em especial, no caso da física quântica, a maioria das pessoas tem acesso aos seus preceitos por meio das noções básicas discutidas no contexto escolar, que é fortemente identificado com o viés positivista (Lima, Ostermann, Cavalcanti, 2017) devido à ênfase no formalismo matemático desprovido de qualquer significado físico (Johansson et al., 2018) e, ainda, com variadas inconsistências filosóficas (Lima et al., 2018). Apesar dessas narrativas hegemônicas, que se perpetuam nas culturas científicas e escolares, historiadores, filósofos e sociólogos têm, há muito tempo, descrito as complexas inter-relações entre as ciências e as mais diversas esferas de atuação humana. Com relação especificamente à conexão do desenvolvimento da física com outros campos, tem-se o relato da motivação metafísica na revolução copernicana (Lang, 2002), do impacto dos estudos de perspectiva de Galileu na sua descrição das crateras lunares (Reis, Braga, Guerra, 2005), do marxismo na física quântica de David Bohm (Freire, 2015) e da estética na física quântica de Paul Dirac (Kragh, 2002). Apenas para citar mais alguns exemplos, essa relação pode também ser percebida no fato de a concepção de espaço e tempo galileana dialogar diretamente com a perspectiva da arte renascentista (Reis, Braga, Guerra, 2005), na crítica à mecânica newtoniana apresentada na poesia e na pintura de William Blake (Reis, Guerra, Braga, 2006), no modo como a física e a química moderna inspiram a sociologia monadal de Gabriel Tarde (2007) ou como a teoria da relatividade motiva uma teoria da linguagem sem referenciais absolutos na filosofia de Bakhtin (Holquist, 1990), na maneira como a relatividade se relaciona com o cubismo (Miller, 2006) e Salvador Dalí com a física moderna (López Ferrado, 2006), bem como nas aproximações entre física e literatura (Zanetic, 2006). A partir do reconhecimento da existência dessas hibridizações entre arte e ciência, o álbum Quanta (1997), de Gilberto Gil, apresenta-se como um complexo e profícuo objeto de estudo, tanto para a filosofia da linguagem e da cultura como para a filosofia da ciência propriamente, já tendo sido objeto de outras análises (Barros, 2008; Sawada, Araujo-Jorge, 2017). O título do álbum remete ao conceito seminal da física quântica, proposto por Einstein em 1905, no artigo com o qual ele ganhou o prêmio Nobel da Física (Einstein, 1905). Em seu álbum, Gil não faz somente menção a termos da física quântica no título e em uma canção homônima, tais elementos permeiam o conjunto como um todo. Além disso, Gil toma o conceito de ciência como objeto principal de sua lírica em duas canções (“Ciência e arte” e “A ciência em si”). Em consonância com a visão de ciência e de física quântica desenvolvida no álbum, Gilberto Gil aborda reiteradamente a questão da saúde e da cura, enfatizando as complexas relações entre mente e corpo, o que motiva a discussão sobre as relações entre física, arte e saúde. Assim, reconhecendo a importância de Gilberto Gil na consolidação da cultura brasileira e reconhecendo o caráter híbrido do álbum Quanta, que ao mesmo tempo pertence ao gênero artístico e toma como tema um conceito científico, as questões que propomos são as seguintes: (1) qual a visão (ou quais as visões) de ciência é (são) apresentada(s) no álbum Quanta? Sobre qual (quais) ciência(s) Gil está cantando? (2) Como conceito de quanta e os demais conceitos da física quântica presentes na obra dialogam com os enunciados do gênero científico da física quântica? Eles guardam alguma relação ou são totalmente ortogonais, não passando de figuras de linguagem? (3) Qual a visão de cura e saúde apresentada por Gilberto Gil e como dialoga com a visão de ciência e de física quântica apresentada? Tendo em vista essas questões norteadoras, nosso objetivo é apresentar uma “análise metalinguística” (Bakhtin, 1984) do álbum Quanta, explicitando as relações dialógicas que o enunciado de Gilberto Gil estabelece com as ciências contemporâneas (ciências naturais e da saúde). Para tanto, fazemos uma breve apresentação do quadro teórico-metodológico a ser utilizado, a metalinguística de Bakhtin (1984, 2016, 2017), e, a partir dele, estabelecemos três eixos de análise: o primeiro é a caracterização da concepção de ciência no álbum e sua relação com as descrições oferecidas pela sociologia e a filosofia da ciência; o segundo é a interpretação do processo de ressignificação e de reacentuação dos conceitos de física quântica (cuja gênese se dá no gênero do discurso científico) no gênero do discurso artístico; e o terceiro é a discussão sobre a visão de saúde e cura que Gilberto Gil traz em consonância com sua visão acerca da ciência e da física quântica. Com isso, entendemos que o presente trabalho traz, primeiramente, uma contribuição de caráter cultural e sociológico, pois colabora no sentido de caracterizar as práticas e o conhecimento científico como elementos da cultura, dela não podendo ser apartados. Em segundo lugar, contribui por meio de sua dimensão “cronotópica”;1 enquanto muitos trabalhos de pesquisa analisam as relações entre a ciência e a arte europeia do passado, apresentamos um estudo sobre a relação entre ciência e arte brasileira contemporânea.2 Quadro teórico-metodológico: a metalinguística do círculo de Bakhtin Mikhail Bakhtin (1895-1975) foi um pensador russo que se dedicou a refletir sobre questões relacionadas à linguagem em suas mais diversas manifestações da vida social. Dessa forma, embora um de seus principais temas de pesquisa fosse o campo literário, sua produção ultrapassa os limites do estudo da estética, podendo ser generalizada como uma filosofia acerca da ação humana mediada pela linguagem (Souza, 2002; Wertsch, 1993). Ele próprio denominava filosófica sua atividade, visto que “não é uma análise linguística, nem filológica, nem de investigação literária ou qualquer outra análise (investigação) especial. As considerações positivas são estas: nossa pesquisa transcorre em campos limítrofes, isto é, na fronteira de todas as referidas disciplinas, em seus cruzamentos e junções” (Bakhtin, 2017, p.71). Em diálogo com a efervescência cultural de sua época, Bakhtin teve influência de visões filosóficas predominantes em sua juventude, como o neokantismo de Hermann Cohen, e dos avanços científicos do início do século XX, como a teoria da relatividade de Einstein (Holquist, 1990). Em especial, em seus primeiros ensaios, de caráter ético-fenomenológico, Bakhtin se opõe às noções kantianas de imperativo categórico, ego transcendental e objetos-em-si, argumentando que o abismo entre a cultura (objetiva) e a vida (subjetiva) é superado na unicidade orgânica dos atos, os eventos únicos e singulares no Ser (Bakhtin, 1999). Em seu acontecimento concreto, os atos formam um todo orgânico cujas dimensões valorativas, psicológicas, sociológicas, históricas e materiais são indissolúveis (Souza, 2002). A essa abordagem fenomenológica, Bakhtin acrescentou a necessidade de se levar em consideração o método sociológico na análise dos atos mediados pela linguagem (os enunciados). Em especial, no período de produção do chamado círculo de Bakhtin, o pensador russo, juntamente com Voloshinov e Medvedev, valeu-se dessa perspectiva para entender o papel da linguagem na poética (Voloshinov, 1986a), no método formal (Bakhtin, Medvedev, 1991), na psicologia (Voloshinov, 1987) e na filosofia da linguagem (Voloshinov, 1986b) opondo-se simultaneamente aos extremos antitéticos do objetivismo abstrato (representado pela escola de Saussure) e do subjetivismo idealista (representado pela escola de Vossler). Sua proposição sintética, que se propõe a superar as antinomias das tradições citadas, é concretizada na teoria do enunciado concreto (Souza, 2002), que aparece expressamente organizada no texto Os gêneros do discurso (Bakhtin, 2016). De acordo com essa proposição, o objeto de interesse da “metalinguística” não são os elementos formais da língua (como a palavra ou a oração), mas justamente o elemento singular do evento do Ser, que unifica a vida e a cultura, o “enunciado” concreto, o elemento da comunicação verbal. Tal elemento, quando entendido em consonância com o método sociológico, passa a ser caracterizado não por suas propriedades intrínsecas, mas por sua relação complexa e dialógica com os outros: o ato de comunicação sempre se caracteriza pelo direcionamento (ou endereçamento) do enunciado ao outro, presente ou suposto, e pela resposta a enunciados anteriores, uma vez que o locutor nunca é um Adão bíblico, o primeiro a falar sobre qualquer assunto. O conceito de “resposta”, nesse caso, é entendido em uma acepção ampla: um enunciado sempre responde porque se relaciona com os outros enunciados, polemizando ou concordando com eles, discordando ou deles apropriando-se, complementando-os etc., seja de forma direta ou indireta, de modo que o autor nem precisa estar consciente disso: todo monólogo é uma réplica de um grande diálogo (Bakhtin, 2016) – um diálogo na cultura, na cadeia de comunicação discursiva do grande tempo. Ou seja, o enunciado é um elo na complexa cadeia de comunicação verbal, não expressando somente a volição do locutor, mas determinando-se pelos enunciados dos demais falantes e pelas condições e finalidades do campo de atuação humana em que é proferido. Deve-se entender, portanto, que o enunciado é uma unidade real (não artificial) da comunicação – inicia-se quando o locutor começa a falar e acaba quando ele termina, de forma que a alternância de sujeitos de fala é o primeiro critério de reconhecimento do enunciado, podendo ser uma mera interjeição ou mesmo um romance completo. O que o caracteriza não é a extensão, mas sua “conclusibilidade” semântica e a possibilidade de o interlocutor produzir uma resposta. De forma breve, na teoria bakhtiniana, os elementos constitutivos (ou determinantes) da natureza dos enunciados são os seguintes: a alternância de sujeito, a conclusibilidade (marcada pela possibilidade de resposta, pelas formas típicas de acabamento do enunciado e pela concretização do projeto de fala do locutor) e a expressividade, isto é, a relação subjetiva emocionalmente valorativa do locutor com o objeto semântico e, também, pela relação valorativa do locutor com os enunciados alheios sobre o mesmo tema. No enunciado oral, tal expressividade é marcada tipicamente pela tonalidade expressiva. No texto escrito, conseguimos reproduzir, na fala mental, a tonalidade com que usualmente escutamos ou entendemos certos enunciados reproduzindo a tonalidade típica do discurso oral. O enunciado pode, ainda, ser caracterizado por seu tema (assunto de que se fala), estrutura composicional e estilo (escolhas lexicais, fraseológicas e gramaticais). A partir das reflexões sociológicas do círculo de Bakhtin, a teoria do enunciado concreto estabelece que as características do enunciado não se relacionam só com o sujeito falante, como pensado nas teorias subjetivistas (como a de Vossler); são também determinadas pelas condições e finalidades do campo de atuação humana em que os enunciados são proferidos: “Esses enunciados refletem as condições específicas e as finalidades de cada referido campo não só por seu conteúdo (temático) e pelo estilo da linguagem, ou seja, pela seleção dos recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais da língua, mas, acima de tudo, por sua construção composicional” (Bakhtin, 2016, p.11). Dessa forma, o enunciado é uma unidade complexa. Expressa não apenas a vontade do locutor, mas se concretiza temática, estilística e composicionalmente, dependendo do campo de atuação em que é realizado. Ou seja, cada campo de atuação humana elabora o seu grupo de enunciados relativamente estáveis, o que Bakhtin denomina gênero do discurso. Bakhtin ainda diferencia os gêneros primário e secundário. O primário se refere aos diálogos imediatos do dia a dia, enquanto o secundário é expresso no contexto da cultura elaborada (romances, textos científicos etc.). De acordo com a teoria de Bakhtin, o gênero secundário se apropria do primário apagando as fronteiras do diálogo. Assim, o projeto de fala de um sujeito se manifesta, antes de tudo, pela escolha do gênero de discurso a ser utilizado. Uma vez feita a escolha, o locutor não possui liberdade infinita, expressa seu estilo individual dentro dos limites do estilo do gênero escolhido. Uma das formas de manifestação dessa liberdade individual é por meio da expressividade, que dá o “tom” do enunciado. Nesse sentido, é importante notar que o que possui tonalidade expressiva é o enunciado, não a palavra (como elemento da língua abstrata). A palavra pura é neutra, não pertence a ninguém e não é endereçada a ninguém. Deve-se observar, no entanto, que não costumamos aprender as palavras diretamente no dicionário (como um elemento abstrato), as aprendemos por meio de um processo de “assimilação ativo a partir dos enunciados dos outros” (Bakhtin, 2016, p.54). A palavra, primeiramente alheia, agora passa a ser a palavra no nosso enunciado. Nesse processo, ela ganha a expressividade do nosso enunciado, mas carrega também o eco do enunciado de que provém. Assim, nosso enunciado, por ser repleto de palavras assimiladas de enunciados dos outros, é sempre repleto de tonalidades dialógicas: “Contudo, em qualquer enunciado, quando estudado com mais profundidade em situações concretas de comunicação discursiva, descobrimos toda uma série de palavras do outro semilatentes e latentes, de diferentes graus de alteridade” (Bakhtin, 2016, p.60). Ao analisar um enunciado, podemos explicitar suas relações dialógicas, evidenciando os tons e significados herdados de outros enunciados e gêneros do discurso. Reflexões metodológicas Diferentemente das chamadas ciências exatas, a metalinguística jamais procura a exatidão, pois essa pressupõe a coincidência da coisa consigo mesma, enquanto “o objeto das ciências humanas é o ser ‘expressivo’ e ‘falante’. Esse ser nunca coincide consigo mesmo e por isso é inesgotável em seu sentido e significado” (Bakhtin, 2017, p.59). O que pretendemos, diante do enunciado de Gilberto Gil, o álbum Quanta, não é revelar seu sentido exato, mas justamente explorar possíveis sentidos que se revelam nas dimensões dialógicas que por ele ecoam. Em especial, enquanto a linguística busca analisar os elementos da língua no sistema abstrato, a metalinguística estuda as relações dialógicas dos enunciados concretos (Bakhtin, 1984). Apesar de haver diversas, talvez infinitas, formas de se fazer isso, neste trabalho optamos por três eixos. O primeiro busca explicitar a concepção de ciência presente no enunciado de Gil e posicioná-la frente às concepções de natureza da ciência existentes na sociologia e na filosofia da ciência contemporâneas, traçando as relações dialógicas entre elas, indicando como a visão de Gil polemiza, concorda, discorda e dialoga no grande tempo. O segundo eixo busca interpretar o significado e a tonalidade expressiva que o conceito quanta (que dá título ao álbum) adquire no enunciado de Gil. Partimos da ideia de que toda palavra, quando pronunciada na situação concreta, dentro de um enunciado, recebe a expressão subjetiva emocionalmente valorativa não só do locutor, mas herda ou ecoa a expressividade do gênero do discurso de que provém. Propomos uma espécie de genealogia dos quanta, resgatando historicamente o significado e a expressividade que herda no gênero do discurso científico e então interpretando a ressignificação e reacentuação que Gil lhe atribui no gênero artístico. Por fim, o terceiro eixo diz respeito à análise da concepção de saúde e cura, temática recorrente no álbum. Ao analisar a visão de Gil, conectamo-la com os resultados obtidos nos dois eixos anteriores, explicitando as relações estabelecidas entre arte, física e saúde. Deve-se ter clareza de que, em toda interpretação, os pesquisadores partem do que Bakhtin (1990) chama de excedente de visão, isto é, partem de seu posicionamento único no mundo para interpretar o enunciado em relação aos outros enunciados com que já tiveram contato. Diferentes interpretadores terão “excedentes de visão” diversos, e por isso qualquer interpretação é potencialmente infinita. O que estamos oferecendo não é “a interpretação correta” do álbum, mas uma interpretação possível. Tema e estrutura composicional do Quanta de Gilberto Gil O álbum Quanta, de autoria de Gilberto Gil, foi produzido pela Warner Music, em 1997, e possui 25 canções, cujos títulos são listados no Quadro 1. Da mesma forma que a vida de um sujeito pode ser interpretada como um grande ato completo, em que os diferentes atos singulares se apresentam e se realizam na inteireza do Ser (Bakhtin, 1999), podemos entender o disco como um enunciado singular e complexo, formado pelas diferentes músicas que materializam sua estrutura composicional. Thumbnail Quadro 1 : Títulos e compositores das canções do álbum Quanta Assim, ainda que cada música possa ter um significado próprio e um acabamento parcial, todas são indissolúveis na inteireza do enunciado, de forma que o conjunto do álbum é que expressa o projeto de fala do compositor. Essa inteireza orgânica se traduz em sua estrutura composicional: a temática científica aparece não só no título do álbum e na primeira música, homônima, mas no título das músicas 2 e 14 explicitamente, em outros tópicos da ciência, como estrela (astronomia) e internet (tecnologia) nas músicas 3 e 11, e em diversos versos das composições. As ciências e, mais especificamente, as ciências contemporâneas sintetizam, portanto, o tema sobre o qual versa o enunciado. Entretanto, ciência, nesse contexto, não pode ser pensada, a priori, simplesmente como o conceito de ciência herdado da tradição positivista, como muitas vezes acontece nos meios científicos e didáticos atuais. Uma vez que esse enunciado se concretiza em um campo de atuação humana diferenciado, o gênero artístico, é natural que o conceito de ciência apresentado adote novas acepções, não necessariamente atreladas à proposta positivista. Nesse sentido, pode-se esperar que ele dialogue com o conceito de ciência dos cientistas, polemizando com ele e, talvez, até contrariando-o. Orientado para o seu objeto, o discurso penetra neste meio dialogicamente perturbado e tenso de discursos de outrem, de julgamentos e de entonações. Ele se entrelaça com eles em interações complexas, fundindo-se com uns, isolando-se de outros, cruzando com terceiros; e tudo isso pode formar substancialmente o discurso, penetrar em todos os seus estratos semânticos, tornar complexa a sua expressão, influenciar todo o seu aspecto estilístico (Bakhtin, 2010, p.86). Uma primeira pista sobre como esse tema será tratado por Gil pode ser inferida a partir da estrutura composicional, em que se percebem diversos títulos com alusões a elementos religiosos, como “Dança de Shiva” (música 4), “Água benta” (música 6), “Graça divina” (música 10) e “Guerra santa” (música 12). Para avaliar como essa ligação se materializa, analisaremos as músicas que abordam diretamente o conceito de ciência (músicas 2 e 14) e, na sequência, suas relações com o todo orgânico do enunciado. A natureza da ciência em Quanta: a dialogia entre ciência e arte Afirmamos na seção anterior que o enunciado de Gil, embora pertença ao gênero do discurso artístico, remete, em sua estrutura composicional, à proposta de um diálogo com o universo científico. Contudo, deve-se ter clareza de que “ciência” é um termo polissêmico, e tanto no uso coloquial como em sua expressão formal, diferentes “ciências” podem ser concebidas. Na filosofia, por exemplo, pode-se encontrar um vasto espectro de posicionamentos, que variam do absolutismo epistemológico e ontológico até o relativismo radical. Quando Gil escolhe elaborar um álbum de temática científica, inevitavelmente seu enunciado está dialogando com tais posicionamentos, polemizando com eles, contrariando alguns, corroborando outros. Nosso objetivo é justamente explicitar o posicionamento de Gil, partindo da ideia de que todo posicionamento é dialógico, visto que sempre é um posicionamento em relação a outras visões (Bakhtin, 2016). A música “Ciência e arte”, a segunda do álbum de Gilberto Gil, é de autoria de Cartola e Carlos Cachaça. Isso pode ser entendido, na filosofia da linguagem de Bakhtin, como uma forma de discurso citado. Ou seja, embora os autores da música sejam outros, Gil é quem a está enunciando dentro do álbum Quanta. Isso faz com que, na visão bakhtiniana, o enunciado de Cartola e Carlos Cachaça não seja exatamente igual ao de Gil, pois a situação em que ele é proferido e o tom utilizado já não são exatamente os mesmos. Nesse processo, a voz de Gil se sobrepõe à voz dos outros compositores, herdando seus tons originais e acrescentando outros que atendem ao objetivo de Quanta. Nesse sentido, vamos tratar, no artigo, Gil como enunciador de todo o álbum, independentemente das autorias das composições. Em especial, em “Ciência e arte” pode-se perceber pela melodia e pela escolha lexical adotadas uma tonalidade expressiva altiva, exaltadora e glorificante, semelhante àquela que podemos encontrar no gênero das odes: Tu és meu Brasil em toda parte Quer na ciência ou na arte Portentoso e altaneiro. Os homens que escreveram tua história Conquistaram tuas glórias Epopeias triunfais Quero neste pobre enredo Reviver glorificando os homens teus Levá-los ao panteon dos grandes imortais Pois merecem muito mais (Quanta, 1997). Nota-se que o enunciado de Gil (o álbum), como elemento da vida concreta, é direcionado aos seus ouvintes. Dentro da música, entretanto, o endereçamento discursivo descola-se daquele do enunciado, pois a música 2 é uma ode direcionada ao Brasil (o país se torna o interlocutor), evidenciando um caso de assimilação do gênero primário pelo gênero secundário. Além disso, a expressividade altiva, glorificante, remete aos textos que narravam e exaltavam grandes empreendimentos, tal como a epopeia Os lusíadas, de Luís de Camões. Assim, como pontos de vista específicos sobre o mundo, o enunciado e o poema de Camões se encontram e coexistem na consciência enunciadora de Gil, podendo ser invocados por ele “para orquestrar os seus temas e refratar (indiretamente) as expressões das suas intenções e julgamentos de valor” (Bakhtin, 2010, p.99). Não só a expressividade da canção é similar à de Camões, mas seu título (“Ciência e arte”) aparece de forma análoga na segunda estrofe do Canto I de Os lusíadas na forma de “engenho e arte”, em que “engenho” significa, na obra de Camões (2013, p.5), técnica e habilidade: E aqueles que por obras valorosas Se vão da lei da morte libertando Cantando espalharei por toda a parte, Se a tanto me ajudar o ‘engenho e arte’ (Destaque nosso). O eco da obra de Camões ressoa na música analisada com direito aos tons que uma exaltação oferece. O paralelismo entre ambas as estrofes reside não só na expressividade e no elemento “Ciência e arte”, mas no próprio projeto de fala do locutor. Enquanto Camões queria glorificar Portugal, Gil quer glorificar o Brasil. O que diferencia um caso do outro, entretanto, é que, enquanto Camões pede “engenho e arte” para glorificar Portugal, a música expressa que o motivo para glorificar o Brasil é a própria ciência e a arte. A brasilidade, conforme apresentada nos primeiros versos, aparece como elo conector da ciência e da arte a serem apresentadas. São esses homens (cientistas e artistas) que escrevem a história gloriosa do Brasil, epopeias triunfais. Finalizando a canção, reforça-se tal ideia: Não querendo levá-los ao cume da altura Cientistas tu tens e tens cultura E neste rude poema destes pobres vates Há sábios como Pedro Américo e Cesar Lattes (Quanta, 1997). Os dois nomes citados nessa estrofe são de cientistas brasileiros, enfatizando que a ciência a ser cantada por Gil no álbum Quanta não é uma ciência qualquer, mas a nossa ciência. Nesse sentido, a menção a Pedro Américo de Figueiredo e Melo (1843-1905) é emblemática no projeto de fala que Gil estabelece, pois ele sintetiza, em sua vida, a própria visão que Gil expressará. Pedro Américo foi um intelectual brasileiro, famoso principalmente por seus trabalhos nas artes plásticas, como o “Independência ou morte”. Em uma nova leitura biográfica, entretanto, Barros (2006) enfatiza que, além de pintor, Pedro Américo se dedicou a refletir sobre os problemas sociais brasileiros e a propor soluções, como a oferta de educação pública e democrática. Mais importante ainda para o entendimento da canção “Ciência e arte” é o fato de que Pedro Américo defendeu sua tese de doutorado na Universidade de Bruxelas, intitulada A ciência e os sistemas: questões de história e de filosofia natural, em que advoga uma equiparação entre arte e ciência e propõe que a liberdade da ciência é preconizada pela liberdade da arte. De certa forma, essa é a mesma equiparação expressa pela música “Ciência e arte”, que as glorificam como partes irmãs da cultura brasileira. Em uma mesma canção, somos remetidos da expressividade de Camões à visão epistemológica de Pedro Américo. Além disso, em sua tese, Pedro Américo (2001) discute as relações entre mente e corpo, que aparecerão no álbum de Gil em sua visão de saúde e cura, como discutimos adiante. O segundo nome citado é o de Cesar Lattes, um dos maiores nomes da história da ciência brasileira, um dos responsáveis pela detecção da partícula méson pi, que teve profundo impacto na física de partículas. Lattes foi um cientista com grande repercussão nacional e internacional, tendo fundado o Centro Brasileiro de Pesquisas Física (CBPF), no Rio de Janeiro. Nesse sentido, do ponto de vista sócio-histórico-cultural, a representação da ciência no início do álbum de Gil é extremamente contra-hegemônica. Enquanto as narrativas hegemônicas tratam da ciência europeia, submetendo as produções de conhecimento de outros locais (das colônias) à metrópole (Santos, Meneses, 2009), Gil traz para seu álbum uma homenagem a duas figuras nacionais. Além disso, a concepção apresentada por Gil com a música de Carlos Cachaça e Cartola, uma vez que compõe sua visão de mundo, acaba sendo refletida na inteireza orgânica de seu enunciado. Nos seguintes trechos da música “Quanta”, Gil afirma: Sei que a arte é irmã da ciência Ambas filhas de um Deus fugaz Que faz num momento E no mesmo momento desfaz Esse vago Deus por trás do mundo Por detrás do detrás De pensamento em chamas Inspiração Arte de criar o saber Arte, descoberta, invenção Teoria em grego quer dizer O ser em contemplação (Quanta, 1997). Com isso, podemos ter uma primeira visão sobre a natureza da ciência em Quanta: trata-se de uma ciência não colonial, que equipara ciência à arte por seu sentido criativo, inspirador, inventivo. Para Gil, arte e ciência são duas manifestações da cultura brasileira, duas filhas de um deus fugaz (a menção de Gil à espiritualidade para caracterizar a ciência será retomado ao longo do artigo). Podemos, ainda, avançar na compreensão da natureza da ciência proposta por Gil por meio da canção “A ciência em si”, composta por ele em parceria com Arnaldo Antunes, em que é apresentada uma definição de ciência. Para tanto, separamos seis trechos, que rotulamos de (A) a (F). Os trechos estão na mesma ordem que aparecem na música, mas alguns versos foram omitidos para explicitar o argumento que será apresentado: (A) Se toda coincidência Tende a que se entenda E toda lenda Quer chegar aqui (B) A ciência não se aprende A ciência apreende A ciência em si (C) Se toda estrela cadente Cai pra fazer sentido E todo mito Quer ter carne aqui (D) A ciência não se ensina A ciência insemina A ciência em si (E) Se a crença quer se materializar Tanto quanto a experiência quer se abstrair (F) A ciência não avança A ciência alcança A ciência em si (Quanta, 1997). Os trechos transcritos formam três conjuntos semânticos (A com B, C com D e E com F), ou seja, possuem um acabamento de significado – formam um período. É interessante notar que as duplas possuem a mesma estrutura sintática, em que (A), (C) e (E) desempenham o papel de oração subordinada adverbial condicional, enquanto (B), (D) e (F) são as orações principais. Tal estrutura segue o formato do que é chamado na lógica de modus ponens, e que representa o pensamento dedutivo-lógico proposto por Popper (1963) como base da prática científica. Para Bakhtin, tema (conteúdo) e estilo de um texto formam um todo indissociável. Assim, percebe-se que Gil fala de ciência (tema) e estrutura sintaticamente essa parte do enunciado (estilo) remetendo ao estilo de escrita apodítica da ciência formal – revelando, de fato, essa unicidade. Esse tipo de estrutura é usado para se chegar a conclusões lógicas, como: “Se todo humano é mortal e João é humano, João é mortal”. Nessa proposição, para que a conclusão (a parte que vem depois da vírgula) seja verdadeira, as duas teses anteriores à vírgula (todo humano é mortal e João é humano) devem ser notoriamente verdadeiras também. Assim, as proposições que Gil toma como verdades notórias são: (A’) “toda coincidência tende a que se entenda” e “toda lenda quer chegar aqui”; (C’) “toda estrela cadente cai para fazer sentido” e “todo mito quer ter carne aqui”; (E’) “a crença quer se materializar” e “experiência quer se abstrair”. Essas três proposições tangenciam questões centrais nos estudos da epistemologia. Nesse aspecto, Gil consegue hibridizar características tradicionais da ciência com elementos de uma descrição contra-hegemônica que se alinha a algumas vertentes contemporâneas da filosofia e da sociologia da ciência. Popper (1963), por exemplo, distingue dois posicionamentos sobre a ciência, o instrumentalismo e o essencialismo. A visão instrumentalista, fundamentada na filosofia cética (Pessoa Jr., 2009), entende que a ciência apenas dá ordem aos diferentes dados que a natureza apresenta, tendo um papel puramente descritivo e não explicativo. A visão dogmática, por outro lado, fundante da perspectiva essencialista da ciência, também de acordo com Pessoa Jr., entende que por trás dos fenômenos observados pode-se inferir suas causas subjacentes, de forma que coincidências podem ser entendidas como pistas (sinais, signos) para que se entenda e compreenda (e não só descreva) essa realidade mais básica. Essa ideia essencialista aparece refletida em (A’) “toda coincidência tende a que se entenda”. Nesse sentido, a ciência moderna parte do pressuposto metafísico de que a realidade é compreensível, matematizável e descritível pela linguagem humana, ou seja, a todo fenômeno natural é possível atribuir um significado físico, ou como Gil menciona (C’), “toda estrela cadente cai para fazer sentido” – aqui, estrela cadente desempenha um papel metonímico, sendo um símbolo de qualquer fenômeno físico. Assim, Gil se alinha a uma perspectiva essencialista da ciência, entendendo-a como uma forma de atribuição de significado ao mundo real. Para que isso possa ser feito, o sujeito deve buscar a compreensão da natureza por meio de um processo que é intrinsicamente cognitivo, podendo ser descrito, por exemplo, pela teoria da psicologia social de Vygotsky (Wertsch, 1985), na forma de um movimento dialético entre a redução do concreto ao abstrato e a ascensão do abstrato ao concreto. Enquanto o primeiro movimento representa o processo de afastamento do sujeito em relação ao fenômeno empírico, na direção de um modelo simplificado (portanto reducionista), o segundo é o retorno em direção ao fenômeno, agora não mais o fenômeno dado, mas o fenômeno complexificado pelo processo de abstração. A tensão existente entre a redução do fenômeno ao modelo abstrato e a subsequente complexificação do real é refletida e refratada no verso (E’) “a crença quer se materializar” e “experiência quer se abstrair”. Deve-se notar que Gil usa o termo “crença”, e não “modelo”, “conjecturas” ou “hipótese”, como seria usual no gênero científico, colocando o pensamento abstrato científico em posição equivalente a outras formas de entendimento – não lhe atribuindo nenhum caráter privilegiado. Seria possível pensar que o uso da palavra “crença” se trata apenas de uma variação linguística por parte de um enunciado que não pertence ao gênero científico. Entretanto, Gil marca fortemente a equiparação do pensamento científico a outras formas de produção cultural quando diz: (A’) “E toda lenda quer chegar aqui” e (C’) “Todo mito quer ter carne aqui”. Tal ênfase dada ao esforço da crença, da lenda e do mito em se materializar na experiência resguarda paralelos com estudos antropológicos da ciência, segundo os quais nunca conseguimos escapar do tecido inteiriço que reveste nossa matriz antropológica (Lima, Ostermann, Cavalcanti, 2018). Ou seja, a pretensa dicotomia entre pensamento racional (científico) e irracional (mítico) que a civilização moderna assume ter criado, e que usa para diferenciar a civilização (metrópole) dos selvagens (colônias), é falso. Nunca escapamos nem podemos escapar do pensamento mítico, de nossas crenças e nossas lendas. A diferença, entretanto, é que na ciência se faz o esforço de materializar os mitos e lendas, hibridizando aquilo em que se crê (os fetiches) com o mundo dos não humanos (os fatos) – de modo que se lida com um mundo de “fatiches” (Latour, 1999; Lima et al., 2019). Deve-se notar que essa concepção subjacente à canção de Gilberto Gil e Arnaldo Antunes encontra ressonância na música “Ciência e arte”, em que a ciência valorizada é a da “colônia”, e não a da metrópole. Ou seja, para Gil, a ciência narrada não é a ciência moderna europeia, mas a ciência como um empreendimento de conhecimento, característico da humanidade como um todo, que concretiza mitos e abstrai experiências. A consumação dessa visão é, então, apresentada nas três conclusões: (B’) “A ciência não se aprende, a ciência apreende a ciência em si”; (D’) “A ciência não ensina, a ciência insemina a ciência em si”; (F’) “A ciência não avança, a ciência alcança a ciência em si”. Uma possível interpretação para esses trechos é que Gil e Antunes estão fazendo um jogo entre os dois significados do significante “ciência”. O primeiro é a ciência como empreendimento científico, o segundo é o ato de estar ciente. Assim, a ciência (ato de estar ciente) é algo que não se ensina, não se aprende e não avança. A ciência (empreendimento científico) apreende a ciência em si (estar ciente), insemina a ciência em si (estar ciente), alcança a ciência em si (estar ciente). Estamos em condição de sintetizar a concepção de ciência do álbum Quanta: a prática científica é todo e qualquer ato de tomada de (cons)ciência, de elucidação, de lucidez. Ciência não é só o que os cientistas fazem (ou o que a ciência europeia moderna diz ser), mas qualquer ato de cognição que leve em consideração ao mesmo tempo o movimento dialético de materialização da crença e de abstração da experiência, em qualquer domínio da atividade humana e por qualquer cultura (metrópole ou colônia), sendo possível ser equiparada à arte por sua natureza criativa e inventiva. Nesse sentido, a ciência nunca pode ser ensinada ou aprendida, porque estar ciente é um estado “em si”, não podendo ser ordenado ou hierarquizado. Essa noção rompe com a visão de progresso científico propagada pela visão hegemônica de ciência, segundo a qual todas as culturas têm que seguir o progresso determinado pela metrópole, e suas tecnologias (Santos, Meneses, 2009). As técnicas indígenas que garantem produção de alimentos de forma sustentável, por exemplo, nunca seriam narradas como progresso sob tal perspectiva. A proposta decolonialista de Gil aparece refletida em outras partes do álbum. Na música “Pílula de alho”, ele faz alusão a um medicamento popular existente no Brasil (a pílula de alho) e o narra como um grande empreendimento científico: A pílula de alho Da planta antibiótica Da velha medicina Que desenvolvimento! Que lindo ensinamento (Quanta, 1997). O trecho “Que desenvolvimento!” jamais seria atribuído a uma pílula de alho, segundo a lógica de ciência colonialista. É somente a partir de uma visão decolonialista que a ciência (estado de estar ciente) e a medicina popular podem ser valorizadas como um desenvolvimento e um ensinamento. A mesma visão aparece expressa na música “Água benta”, em que os feitos de um feiticeiro de Ossãin superam as ações de um médico: A medicina e o seu doutor Nada puderam fazer O desespero se apoderou Do padre, do pai, da mãe Foi quando então alguém se lembrou De um feiticeiro de Ossãin Um simples banho de folhas fez O que não se esperava mais (Quanta, 1997). Assim, a perspectiva epistemológica decolonialista de Gil permeia e molda o seu enunciado artístico-científico e sua visão de medicina. A partir dele, podemos entender como que o conceito de quanta é, então, abordado. Quanta: a física quântica de Gil a Einstein e de Einstein a Gil Nos trechos dessa seção, realçamos os termos que são tipicamente utilizados nos artigos e livros de física quântica, tanto no texto dos autores como no enunciado de Gilberto Gil, de forma a explicitar as relações dialógicas que se estabelecem. Na música homônima ao álbum, Gil explica: Quanta do latim Plural de quantum. Quantum, por sua vez, foi um conceito introduzido por Einstein para falar da radiação eletromagnética (luz, por exemplo). Até 1905, a concepção hegemônica sobre a luz considerava-a uma “onda eletromagnética”, que se estendia continuamente pelo espaço. A proposta de Einstein, porém, seria que a luz (sob certas condições específicas) deveria ser considerada um conjunto de “porções discretas”, muito bem localizadas no espaço – os quanta. Como a propriedade de “estar bem localizado no espaço” é atribuída à “partícula”, e não a ondas, concebe-se que a proposta “quântica” é, inicialmente, uma teoria “corpuscular”, considerando a luz como um conjunto de “corpúsculos” ou “grânulos” de radiação. Dessa forma, segundo Einstein, quando há um conjunto de muitos quanta, eles se comportam como um grupo único, manifestando propriedades “ondulatórias”. Apenas quando a luz tem “intensidade baixa” o suficiente, de modo que haja poucos quanta, é que as características “corpusculares” ou “granulares” se manifestam. Essa é uma visão ainda predominante na física quântica, de forma que Pessoa Jr. (2003) caracteriza a teoria como uma descrição da radiação eletromagnética de “baixa intensidade” (muito fraca). Deve-se observar, entretanto, que os conceitos físicos não são estáticos, mas elementos dinâmicos da realidade, que vão se articulando com outros elementos ao longo da história e recebendo novos significados (Lima et al., 2018). No caso dos quanta, o próprio Einstein passou a lhe atribuir um novo conceito em 1909, entendendo que os quanta (corpúsculos) eram guiados por um “campo contínuo”. Tal ideia foi reapropriada pelo físico francês Louis de Broglie, que propôs que o quantum seria um conjunto material de “onda e partícula”. Uma série de outros significados foi atribuída ao conceito de quantum, de modo que até hoje uma das características da física quântica é possuir uma multiplicidade de interpretações, todas consistentes internamente, mas inconsistentes entre si (Jammer, 1974; Pessoa Jr., 2003). Em especial, na década de 1970, foi apresentada a possibilidade de introduzir o conceito de consciência na física quântica, como uma alternativa para resolver um problema conceitual sério da teoria, o chamado problema da medida (Pessoa Jr., 1992). Tal problema pode ser enunciado de maneira simplificada da seguinte forma: um “sistema quântico” (como um elétron) pode ser sempre descrito por uma “função de onda”. Essa onda evolui no tempo de dois modos distintos: um quando o sistema está isolado e portanto não há nenhuma forma de observação (nesse caso, o sistema evolui obedecendo à “equação de Schrödinger” – supondo regime não relativístico); o segundo, quando o sistema interage, como num processo de “medida” (nesse caso, o sistema não pode se encontrar em uma “sobreposição de estados” e é sempre “medido” em um estado específico – o que é comumente chamado de “colapso da função de onda”). Tal distinção é denominada por alguns complementaridade entre observação e coordenação espaçotemporal (Pessoa Jr., 2003). Suponhamos que o objeto quântico que está sendo estudado é um elétron. Nesse caso, a “medida” da posição do elétron por um instrumento macroscópico causaria o “colapso da função de onda” e provocaria a observação da posição em uma região específica. O problema aparece quando percebemos que o elétron (objeto quântico) não interage com o instrumento macroscópico como um todo; mas interage com componentes microscópicos do instrumento de medida (outros objetos quânticos); então, na prática, teríamos diferentes objetos quânticos, que resultariam em uma nova função de onda, agora de todo o sistema, que continuaria obedecendo à equação de Schrödinger. Ou seja, na prática nunca deveria acontecer o colapso da função de onda. Isso é conhecido como problema da medida. As vertentes do “misticismo quântico” (que costumam ser mal vistas pela vertente hegemônica, podendo, aliás, ter seu status científico questionado pela comunidade) respondem que esse problema reside em afirmar que, se o colapso da função de onda não pode ser explicado por um ente material (o instrumento de medida), deve haver algo não material que o cause. Esse elemento não material, responsável pelo colapso da função de onda, seria então “a consciência”. Essa concepção tem motivado uma série de propostas e especulações sobre as relações entre “mente” e realidade. Além das propostas da década de 1970, pode-se destacar propostas mais recentes, como a de Amit Goswami (1990), físico que vem protagonizando o que ele denomina ativismo quântico. Deve-se ressaltar que essas são algumas interpretações possíveis da física quântica, entre inúmeras outras que, embora internamente consistentes, divergem por completo quanto à forma como entendem a realidade (Pessoa Jr., 2003). A partir desse breve histórico da física quântica, podemos interpretar o seguinte trecho da música “Quanta”: ‘Quando quase não há Quantidade que se medir’ Qualidade que se expressar ‘Fragmento infinitésimo’ Quase que apenas ‘mental’ Quantum ‘granulado’ no mel Quantum ‘ondulado’ no sal (Quanta, 1997; destaques nossos). Observa-se que na teoria de Bakhtin o gênero artístico é o que apresenta maior liberdade, pois, diferentemente do que ocorre no campo da prosa, o diálogo não se estabelece de maneira direta com o discurso alheio: “A língua do poeta é sua própria linguagem, ele está nela e é dela inseparável. Ele utiliza cada forma, cada palavra, cada expressão no seu sentido direto por assim dizer, ‘sem aspas’, isto é, exatamente como a expressão pura e imediata de seu pensar” (Bakhtin, 2010, p.94). Mesmo assim, a partir do que foi exposto sobre a história do quantum, percebe-se que o conceito atribuído por Gil está fortemente ancorado na história do conceito no gênero do discurso científico da física quântica. Os dois primeiros versos marcados dialogam diretamente com a ideia de um ente que se manifesta ou que se percebe nas radiações de baixa intensidade, como define Pessoa Jr. O quantum é um elemento mínimo de energia, um fragmento infinitésimo, como diz Gil, cuja interpretação pode estar associada, em uma proposta não hegemônica, a uma relação com a mente ou a consciência. Além disso, o quantum se manifesta tanto por suas propriedades granulares quanto ondulatórias. Ou seja, o enunciado de Gil costura um conceito acerca do quantum a partir de visões da própria física quântica, em especial com sua acepção idealista, expressando de maneira valorativa a unidade entre matéria e espírito na realidade mais fundamental da natureza. A visão ondulatória do quantum também é expressa na capa do álbum, em que uma superfície ondulada é representada (Figura 1): Figura 1 : Imagem adaptada da capa do álbum Quanta (https://www.amazon.in/Quanta-Gilberto-Gil/dp/B000024SCC) Com toda poesia inerente a uma canção, pode-se dizer que Gil expressa uma interpretação filosoficamente legítima do conceito de quantum, que não é única e tampouco a mais difundida na comunidade dos físicos, mas que é defendida por intelectuais das correntes contra-hegemônicas. Nesse sentido, pode-se entender que o quantum é expressado, ou seja, subjetivamente valorizado, por aquilo que representa de fascinante, contraintuitivo e, nesse contexto, místico. O quantum de Gil carrega o tom científico hegemônico ao ressaltar seu caráter dual (corpuscular e ondulatório), e o tom contra-hegemônico ao ser considerado algo quase mental. Essas “vozes” se sobrepõem à voz de Gil em uma visão lírica e mística da realidade. Deve-se notar que, no contexto da física quântica, houve o avanço do conhecimento científico a respeito da estrutura da matéria, levando ao conhecimento de materiais radioativos (como urânio e rádio) e ao avanço tecnológico nuclear a eles associado. Gil também expressa essa dimensão oriunda do quantum no seguinte trecho: “Mel de ‘urânio’, sal de ‘rádio’”. Por fim, ele retoma a ideia de que o quantum possui uma acepção mental, ou, nas palavras dele, ideal (no sentido de se opor ao material, como em “filosofia idealista”): “Qualquer coisa quase ‘ideal’” (Quanta, 1997). Tal visão idealista do quantum, conectando-o ao mundo mental, é reconectada ao todo orgânico do enunciado pela visão mística que Gil traz, principalmente por meio do conceito de Deus. Já havíamos mencionado o trecho da canção “Quanta” em que ele fala de “um Deus fugaz/Que faz num momento/E no mesmo momento desfaz/Esse vago Deus por trás do mundo/Por detrás do detrás” (Quanta, 1997). No misticismo quântico, o conceito de Deus aparece algumas vezes atrelado à ideia de uma grande consciência por trás de todos os fenômenos, responsável pelo colapso das funções de onda no Universo. Dessa forma, a visão quântica de Gil é uma visão mental, idealista, mística, que retoma a ideia de um Deus uno capaz de fazer a realidade se manifestar; tal visão ainda é reforçada pelo trecho da música que inspira o título do presente artigo: Cântico dos cânticos Quântico dos quânticos. Além do jogo de sonoridade, a menção ao “Cântico dos cânticos” reforça a ideia de união entre Deus e a realidade, mente e matéria, pois é o título de um livro do Antigo Testamento que narra o amor romântico. Algumas interpretações contemporâneas (Hagedorn, 2005), entretanto, entendem que o texto é uma metáfora para o amor entre Deus e o povo de Israel, visão que retoma a ideia mística de um Deus uno, imanente a toda a realidade. Tal visão, veiculada também pela tradição filosófica de Parmênides, inspira até hoje a busca de uma teoria unificada na física (Feyerabend, 2010). Outro trecho que remete a essa visão mística pode ser encontrado na música “Dança de Shiva”: Quem me vir dançar Verá que quem dança é Shiva Quem dança, quem dança é Shiva Quem me vir já não me verá (Quanta, 1997). Shiva é o deus da destruição nas tradições religiosas indianas. A destruição, nesse contexto, é entendida como elemento indispensável da realidade, pois traz a renovação, a possibilidade de renascimento. A imagem de Shiva e de sua dança foi proposta como uma metáfora para a realidade dinâmica que nos compõe, como no caso das constantes aniquilações entre partículas existentes na natureza, apontadas, por exemplo, pelo físico austríaco Fritjof Capra (2011) em seu livro O tao da física, escrito na década de 1970, no qual o autor faz uma série de paralelos entre a física moderna e o misticismo oriental. Em 2004, o Conselho Europeu para Pesquisas Nucleares (Cern, na sigla em francês) inaugurou uma estátua de Shiva no interior da instituição (Figura 2), mencionando o trabalho de Capra. Figura 2 : Estátua de Shiva no Cern, aludindo à metáfora de Capra (http://www.fritjofcapra.net.. [Mens/shivas .age

👏👃“Cântico dos cânticos, quântico dos quânticos”: as relações dialógicas entre artes, ciências contemporâneas e saúde no álbum Quanta, de Gilberto Gil “Cântico dos cânticos, quântico dos quânticos:” dialogical relationships between art, contemporary science, and health in the album Quanta by Gilberto Gil Resumo Abstract Text Quadro teórico-metodológico: a metalinguística do círculo de Bakhtin Reflexões metodológicas Tema e estrutura composicional do Quanta de Gilberto Gil A natureza da ciência em Quanta: a dialogia entre ciência e arte Quanta: a física quântica de Gil a Einstein e de Einstein a Gil Reflexões sobre saúde, cura e relação mente/corpo Considerações finais REFERÊNCIAS NOTAS Datas de Publicação Histórico Resumo O trabalho apresenta uma análise metalinguística de canções que compõem o álbum Quanta, de Gilberto Gil, explicitando as relações dialógicas que o enunciado artístico pode estabelecer com as ciências contemporâneas e com uma visão de saúde. Para tanto, é feita uma breve apresentação sobre o quadro teórico-metodológico a ser utilizado, a metalinguística de Bakhtin, e, a partir dele, são estabelecidos três eixos de análise, privilegiando a concepção de ciência, de física quântica e de saúde e cura presentes no álbum e evidenciando as complexas relações entre arte, física e saúde. metalinguística; Mikhail Bakhtin (1895-1975); cultura Abstract This article presents a metalinguistic analysis of the songs comprising the album Quanta by Gilberto Gil, highlighting the dialogical relationships that artistic endeavors can establish between contemporary science and a vision of health. This involves a brief introduction of the theoretical/methodological framework and Bakhtin’s metalinguistics, followed by the establishment of three different analytical threads that follow the concepts of science, quantum physics, and health and healing which are present in the album, depicting the complex relationships between art, physics and health. metalinguistics; Mikhail Bakhtin (1895-1975); culture A ascensão do positivismo lógico no início do século XX determinou o desenvolvimento da concepção de conhecimento científico como produção epistêmica objetiva, neutra e desprovida de quaisquer relações com os diferentes aspectos da cultura e da filosofia (Goldstein, 2008). Tal visão de mundo foi apropriada por parte da comunidade científica e escolar, que, ainda hoje, reitera a existência do método científico (único) e negligencia a discussão filosófica pós-popperiana do século passado e do presente (Kincheloe, Tobin, 2009). Esse olhar para o empreendimento científico gerou a distinção entre duas culturas no mundo ocidental, a cultura científica e a cultura das humanidades (Snow, 1988). Em especial, no caso da física quântica, a maioria das pessoas tem acesso aos seus preceitos por meio das noções básicas discutidas no contexto escolar, que é fortemente identificado com o viés positivista (Lima, Ostermann, Cavalcanti, 2017) devido à ênfase no formalismo matemático desprovido de qualquer significado físico (Johansson et al., 2018) e, ainda, com variadas inconsistências filosóficas (Lima et al., 2018). Apesar dessas narrativas hegemônicas, que se perpetuam nas culturas científicas e escolares, historiadores, filósofos e sociólogos têm, há muito tempo, descrito as complexas inter-relações entre as ciências e as mais diversas esferas de atuação humana. Com relação especificamente à conexão do desenvolvimento da física com outros campos, tem-se o relato da motivação metafísica na revolução copernicana (Lang, 2002), do impacto dos estudos de perspectiva de Galileu na sua descrição das crateras lunares (Reis, Braga, Guerra, 2005), do marxismo na física quântica de David Bohm (Freire, 2015) e da estética na física quântica de Paul Dirac (Kragh, 2002). Apenas para citar mais alguns exemplos, essa relação pode também ser percebida no fato de a concepção de espaço e tempo galileana dialogar diretamente com a perspectiva da arte renascentista (Reis, Braga, Guerra, 2005), na crítica à mecânica newtoniana apresentada na poesia e na pintura de William Blake (Reis, Guerra, Braga, 2006), no modo como a física e a química moderna inspiram a sociologia monadal de Gabriel Tarde (2007) ou como a teoria da relatividade motiva uma teoria da linguagem sem referenciais absolutos na filosofia de Bakhtin (Holquist, 1990), na maneira como a relatividade se relaciona com o cubismo (Miller, 2006) e Salvador Dalí com a física moderna (López Ferrado, 2006), bem como nas aproximações entre física e literatura (Zanetic, 2006). A partir do reconhecimento da existência dessas hibridizações entre arte e ciência, o álbum Quanta (1997), de Gilberto Gil, apresenta-se como um complexo e profícuo objeto de estudo, tanto para a filosofia da linguagem e da cultura como para a filosofia da ciência propriamente, já tendo sido objeto de outras análises (Barros, 2008; Sawada, Araujo-Jorge, 2017). O título do álbum remete ao conceito seminal da física quântica, proposto por Einstein em 1905, no artigo com o qual ele ganhou o prêmio Nobel da Física (Einstein, 1905). Em seu álbum, Gil não faz somente menção a termos da física quântica no título e em uma canção homônima, tais elementos permeiam o conjunto como um todo. Além disso, Gil toma o conceito de ciência como objeto principal de sua lírica em duas canções (“Ciência e arte” e “A ciência em si”). Em consonância com a visão de ciência e de física quântica desenvolvida no álbum, Gilberto Gil aborda reiteradamente a questão da saúde e da cura, enfatizando as complexas relações entre mente e corpo, o que motiva a discussão sobre as relações entre física, arte e saúde. Assim, reconhecendo a importância de Gilberto Gil na consolidação da cultura brasileira e reconhecendo o caráter híbrido do álbum Quanta, que ao mesmo tempo pertence ao gênero artístico e toma como tema um conceito científico, as questões que propomos são as seguintes: (1) qual a visão (ou quais as visões) de ciência é (são) apresentada(s) no álbum Quanta? Sobre qual (quais) ciência(s) Gil está cantando? (2) Como conceito de quanta e os demais conceitos da física quântica presentes na obra dialogam com os enunciados do gênero científico da física quântica? Eles guardam alguma relação ou são totalmente ortogonais, não passando de figuras de linguagem? (3) Qual a visão de cura e saúde apresentada por Gilberto Gil e como dialoga com a visão de ciência e de física quântica apresentada? Tendo em vista essas questões norteadoras, nosso objetivo é apresentar uma “análise metalinguística” (Bakhtin, 1984) do álbum Quanta, explicitando as relações dialógicas que o enunciado de Gilberto Gil estabelece com as ciências contemporâneas (ciências naturais e da saúde). Para tanto, fazemos uma breve apresentação do quadro teórico-metodológico a ser utilizado, a metalinguística de Bakhtin (1984, 2016, 2017), e, a partir dele, estabelecemos três eixos de análise: o primeiro é a caracterização da concepção de ciência no álbum e sua relação com as descrições oferecidas pela sociologia e a filosofia da ciência; o segundo é a interpretação do processo de ressignificação e de reacentuação dos conceitos de física quântica (cuja gênese se dá no gênero do discurso científico) no gênero do discurso artístico; e o terceiro é a discussão sobre a visão de saúde e cura que Gilberto Gil traz em consonância com sua visão acerca da ciência e da física quântica. Com isso, entendemos que o presente trabalho traz, primeiramente, uma contribuição de caráter cultural e sociológico, pois colabora no sentido de caracterizar as práticas e o conhecimento científico como elementos da cultura, dela não podendo ser apartados. Em segundo lugar, contribui por meio de sua dimensão “cronotópica”;1 enquanto muitos trabalhos de pesquisa analisam as relações entre a ciência e a arte europeia do passado, apresentamos um estudo sobre a relação entre ciência e arte brasileira contemporânea.2 Quadro teórico-metodológico: a metalinguística do círculo de Bakhtin Mikhail Bakhtin (1895-1975) foi um pensador russo que se dedicou a refletir sobre questões relacionadas à linguagem em suas mais diversas manifestações da vida social. Dessa forma, embora um de seus principais temas de pesquisa fosse o campo literário, sua produção ultrapassa os limites do estudo da estética, podendo ser generalizada como uma filosofia acerca da ação humana mediada pela linguagem (Souza, 2002; Wertsch, 1993). Ele próprio denominava filosófica sua atividade, visto que “não é uma análise linguística, nem filológica, nem de investigação literária ou qualquer outra análise (investigação) especial. As considerações positivas são estas: nossa pesquisa transcorre em campos limítrofes, isto é, na fronteira de todas as referidas disciplinas, em seus cruzamentos e junções” (Bakhtin, 2017, p.71). Em diálogo com a efervescência cultural de sua época, Bakhtin teve influência de visões filosóficas predominantes em sua juventude, como o neokantismo de Hermann Cohen, e dos avanços científicos do início do século XX, como a teoria da relatividade de Einstein (Holquist, 1990). Em especial, em seus primeiros ensaios, de caráter ético-fenomenológico, Bakhtin se opõe às noções kantianas de imperativo categórico, ego transcendental e objetos-em-si, argumentando que o abismo entre a cultura (objetiva) e a vida (subjetiva) é superado na unicidade orgânica dos atos, os eventos únicos e singulares no Ser (Bakhtin, 1999). Em seu acontecimento concreto, os atos formam um todo orgânico cujas dimensões valorativas, psicológicas, sociológicas, históricas e materiais são indissolúveis (Souza, 2002). A essa abordagem fenomenológica, Bakhtin acrescentou a necessidade de se levar em consideração o método sociológico na análise dos atos mediados pela linguagem (os enunciados). Em especial, no período de produção do chamado círculo de Bakhtin, o pensador russo, juntamente com Voloshinov e Medvedev, valeu-se dessa perspectiva para entender o papel da linguagem na poética (Voloshinov, 1986a), no método formal (Bakhtin, Medvedev, 1991), na psicologia (Voloshinov, 1987) e na filosofia da linguagem (Voloshinov, 1986b) opondo-se simultaneamente aos extremos antitéticos do objetivismo abstrato (representado pela escola de Saussure) e do subjetivismo idealista (representado pela escola de Vossler). Sua proposição sintética, que se propõe a superar as antinomias das tradições citadas, é concretizada na teoria do enunciado concreto (Souza, 2002), que aparece expressamente organizada no texto Os gêneros do discurso (Bakhtin, 2016). De acordo com essa proposição, o objeto de interesse da “metalinguística” não são os elementos formais da língua (como a palavra ou a oração), mas justamente o elemento singular do evento do Ser, que unifica a vida e a cultura, o “enunciado” concreto, o elemento da comunicação verbal. Tal elemento, quando entendido em consonância com o método sociológico, passa a ser caracterizado não por suas propriedades intrínsecas, mas por sua relação complexa e dialógica com os outros: o ato de comunicação sempre se caracteriza pelo direcionamento (ou endereçamento) do enunciado ao outro, presente ou suposto, e pela resposta a enunciados anteriores, uma vez que o locutor nunca é um Adão bíblico, o primeiro a falar sobre qualquer assunto. O conceito de “resposta”, nesse caso, é entendido em uma acepção ampla: um enunciado sempre responde porque se relaciona com os outros enunciados, polemizando ou concordando com eles, discordando ou deles apropriando-se, complementando-os etc., seja de forma direta ou indireta, de modo que o autor nem precisa estar consciente disso: todo monólogo é uma réplica de um grande diálogo (Bakhtin, 2016) – um diálogo na cultura, na cadeia de comunicação discursiva do grande tempo. Ou seja, o enunciado é um elo na complexa cadeia de comunicação verbal, não expressando somente a volição do locutor, mas determinando-se pelos enunciados dos demais falantes e pelas condições e finalidades do campo de atuação humana em que é proferido. Deve-se entender, portanto, que o enunciado é uma unidade real (não artificial) da comunicação – inicia-se quando o locutor começa a falar e acaba quando ele termina, de forma que a alternância de sujeitos de fala é o primeiro critério de reconhecimento do enunciado, podendo ser uma mera interjeição ou mesmo um romance completo. O que o caracteriza não é a extensão, mas sua “conclusibilidade” semântica e a possibilidade de o interlocutor produzir uma resposta. De forma breve, na teoria bakhtiniana, os elementos constitutivos (ou determinantes) da natureza dos enunciados são os seguintes: a alternância de sujeito, a conclusibilidade (marcada pela possibilidade de resposta, pelas formas típicas de acabamento do enunciado e pela concretização do projeto de fala do locutor) e a expressividade, isto é, a relação subjetiva emocionalmente valorativa do locutor com o objeto semântico e, também, pela relação valorativa do locutor com os enunciados alheios sobre o mesmo tema. No enunciado oral, tal expressividade é marcada tipicamente pela tonalidade expressiva. No texto escrito, conseguimos reproduzir, na fala mental, a tonalidade com que usualmente escutamos ou entendemos certos enunciados reproduzindo a tonalidade típica do discurso oral. O enunciado pode, ainda, ser caracterizado por seu tema (assunto de que se fala), estrutura composicional e estilo (escolhas lexicais, fraseológicas e gramaticais). A partir das reflexões sociológicas do círculo de Bakhtin, a teoria do enunciado concreto estabelece que as características do enunciado não se relacionam só com o sujeito falante, como pensado nas teorias subjetivistas (como a de Vossler); são também determinadas pelas condições e finalidades do campo de atuação humana em que os enunciados são proferidos: “Esses enunciados refletem as condições específicas e as finalidades de cada referido campo não só por seu conteúdo (temático) e pelo estilo da linguagem, ou seja, pela seleção dos recursos lexicais, fraseológicos e gramaticais da língua, mas, acima de tudo, por sua construção composicional” (Bakhtin, 2016, p.11). Dessa forma, o enunciado é uma unidade complexa. Expressa não apenas a vontade do locutor, mas se concretiza temática, estilística e composicionalmente, dependendo do campo de atuação em que é realizado. Ou seja, cada campo de atuação humana elabora o seu grupo de enunciados relativamente estáveis, o que Bakhtin denomina gênero do discurso. Bakhtin ainda diferencia os gêneros primário e secundário. O primário se refere aos diálogos imediatos do dia a dia, enquanto o secundário é expresso no contexto da cultura elaborada (romances, textos científicos etc.). De acordo com a teoria de Bakhtin, o gênero secundário se apropria do primário apagando as fronteiras do diálogo. Assim, o projeto de fala de um sujeito se manifesta, antes de tudo, pela escolha do gênero de discurso a ser utilizado. Uma vez feita a escolha, o locutor não possui liberdade infinita, expressa seu estilo individual dentro dos limites do estilo do gênero escolhido. Uma das formas de manifestação dessa liberdade individual é por meio da expressividade, que dá o “tom” do enunciado. Nesse sentido, é importante notar que o que possui tonalidade expressiva é o enunciado, não a palavra (como elemento da língua abstrata). A palavra pura é neutra, não pertence a ninguém e não é endereçada a ninguém. Deve-se observar, no entanto, que não costumamos aprender as palavras diretamente no dicionário (como um elemento abstrato), as aprendemos por meio de um processo de “assimilação ativo a partir dos enunciados dos outros” (Bakhtin, 2016, p.54). A palavra, primeiramente alheia, agora passa a ser a palavra no nosso enunciado. Nesse processo, ela ganha a expressividade do nosso enunciado, mas carrega também o eco do enunciado de que provém. Assim, nosso enunciado, por ser repleto de palavras assimiladas de enunciados dos outros, é sempre repleto de tonalidades dialógicas: “Contudo, em qualquer enunciado, quando estudado com mais profundidade em situações concretas de comunicação discursiva, descobrimos toda uma série de palavras do outro semilatentes e latentes, de diferentes graus de alteridade” (Bakhtin, 2016, p.60). Ao analisar um enunciado, podemos explicitar suas relações dialógicas, evidenciando os tons e significados herdados de outros enunciados e gêneros do discurso. Reflexões metodológicas Diferentemente das chamadas ciências exatas, a metalinguística jamais procura a exatidão, pois essa pressupõe a coincidência da coisa consigo mesma, enquanto “o objeto das ciências humanas é o ser ‘expressivo’ e ‘falante’. Esse ser nunca coincide consigo mesmo e por isso é inesgotável em seu sentido e significado” (Bakhtin, 2017, p.59). O que pretendemos, diante do enunciado de Gilberto Gil, o álbum Quanta, não é revelar seu sentido exato, mas justamente explorar possíveis sentidos que se revelam nas dimensões dialógicas que por ele ecoam. Em especial, enquanto a linguística busca analisar os elementos da língua no sistema abstrato, a metalinguística estuda as relações dialógicas dos enunciados concretos (Bakhtin, 1984). Apesar de haver diversas, talvez infinitas, formas de se fazer isso, neste trabalho optamos por três eixos. O primeiro busca explicitar a concepção de ciência presente no enunciado de Gil e posicioná-la frente às concepções de natureza da ciência existentes na sociologia e na filosofia da ciência contemporâneas, traçando as relações dialógicas entre elas, indicando como a visão de Gil polemiza, concorda, discorda e dialoga no grande tempo. O segundo eixo busca interpretar o significado e a tonalidade expressiva que o conceito quanta (que dá título ao álbum) adquire no enunciado de Gil. Partimos da ideia de que toda palavra, quando pronunciada na situação concreta, dentro de um enunciado, recebe a expressão subjetiva emocionalmente valorativa não só do locutor, mas herda ou ecoa a expressividade do gênero do discurso de que provém. Propomos uma espécie de genealogia dos quanta, resgatando historicamente o significado e a expressividade que herda no gênero do discurso científico e então interpretando a ressignificação e reacentuação que Gil lhe atribui no gênero artístico. Por fim, o terceiro eixo diz respeito à análise da concepção de saúde e cura, temática recorrente no álbum. Ao analisar a visão de Gil, conectamo-la com os resultados obtidos nos dois eixos anteriores, explicitando as relações estabelecidas entre arte, física e saúde. Deve-se ter clareza de que, em toda interpretação, os pesquisadores partem do que Bakhtin (1990) chama de excedente de visão, isto é, partem de seu posicionamento único no mundo para interpretar o enunciado em relação aos outros enunciados com que já tiveram contato. Diferentes interpretadores terão “excedentes de visão” diversos, e por isso qualquer interpretação é potencialmente infinita. O que estamos oferecendo não é “a interpretação correta” do álbum, mas uma interpretação possível. Tema e estrutura composicional do Quanta de Gilberto Gil O álbum Quanta, de autoria de Gilberto Gil, foi produzido pela Warner Music, em 1997, e possui 25 canções, cujos títulos são listados no Quadro 1. Da mesma forma que a vida de um sujeito pode ser interpretada como um grande ato completo, em que os diferentes atos singulares se apresentam e se realizam na inteireza do Ser (Bakhtin, 1999), podemos entender o disco como um enunciado singular e complexo, formado pelas diferentes músicas que materializam sua estrutura composicional. Thumbnail Quadro 1 : Títulos e compositores das canções do álbum Quanta Assim, ainda que cada música possa ter um significado próprio e um acabamento parcial, todas são indissolúveis na inteireza do enunciado, de forma que o conjunto do álbum é que expressa o projeto de fala do compositor. Essa inteireza orgânica se traduz em sua estrutura composicional: a temática científica aparece não só no título do álbum e na primeira música, homônima, mas no título das músicas 2 e 14 explicitamente, em outros tópicos da ciência, como estrela (astronomia) e internet (tecnologia) nas músicas 3 e 11, e em diversos versos das composições. As ciências e, mais especificamente, as ciências contemporâneas sintetizam, portanto, o tema sobre o qual versa o enunciado. Entretanto, ciência, nesse contexto, não pode ser pensada, a priori, simplesmente como o conceito de ciência herdado da tradição positivista, como muitas vezes acontece nos meios científicos e didáticos atuais. Uma vez que esse enunciado se concretiza em um campo de atuação humana diferenciado, o gênero artístico, é natural que o conceito de ciência apresentado adote novas acepções, não necessariamente atreladas à proposta positivista. Nesse sentido, pode-se esperar que ele dialogue com o conceito de ciência dos cientistas, polemizando com ele e, talvez, até contrariando-o. Orientado para o seu objeto, o discurso penetra neste meio dialogicamente perturbado e tenso de discursos de outrem, de julgamentos e de entonações. Ele se entrelaça com eles em interações complexas, fundindo-se com uns, isolando-se de outros, cruzando com terceiros; e tudo isso pode formar substancialmente o discurso, penetrar em todos os seus estratos semânticos, tornar complexa a sua expressão, influenciar todo o seu aspecto estilístico (Bakhtin, 2010, p.86). Uma primeira pista sobre como esse tema será tratado por Gil pode ser inferida a partir da estrutura composicional, em que se percebem diversos títulos com alusões a elementos religiosos, como “Dança de Shiva” (música 4), “Água benta” (música 6), “Graça divina” (música 10) e “Guerra santa” (música 12). Para avaliar como essa ligação se materializa, analisaremos as músicas que abordam diretamente o conceito de ciência (músicas 2 e 14) e, na sequência, suas relações com o todo orgânico do enunciado. A natureza da ciência em Quanta: a dialogia entre ciência e arte Afirmamos na seção anterior que o enunciado de Gil, embora pertença ao gênero do discurso artístico, remete, em sua estrutura composicional, à proposta de um diálogo com o universo científico. Contudo, deve-se ter clareza de que “ciência” é um termo polissêmico, e tanto no uso coloquial como em sua expressão formal, diferentes “ciências” podem ser concebidas. Na filosofia, por exemplo, pode-se encontrar um vasto espectro de posicionamentos, que variam do absolutismo epistemológico e ontológico até o relativismo radical. Quando Gil escolhe elaborar um álbum de temática científica, inevitavelmente seu enunciado está dialogando com tais posicionamentos, polemizando com eles, contrariando alguns, corroborando outros. Nosso objetivo é justamente explicitar o posicionamento de Gil, partindo da ideia de que todo posicionamento é dialógico, visto que sempre é um posicionamento em relação a outras visões (Bakhtin, 2016). A música “Ciência e arte”, a segunda do álbum de Gilberto Gil, é de autoria de Cartola e Carlos Cachaça. Isso pode ser entendido, na filosofia da linguagem de Bakhtin, como uma forma de discurso citado. Ou seja, embora os autores da música sejam outros, Gil é quem a está enunciando dentro do álbum Quanta. Isso faz com que, na visão bakhtiniana, o enunciado de Cartola e Carlos Cachaça não seja exatamente igual ao de Gil, pois a situação em que ele é proferido e o tom utilizado já não são exatamente os mesmos. Nesse processo, a voz de Gil se sobrepõe à voz dos outros compositores, herdando seus tons originais e acrescentando outros que atendem ao objetivo de Quanta. Nesse sentido, vamos tratar, no artigo, Gil como enunciador de todo o álbum, independentemente das autorias das composições. Em especial, em “Ciência e arte” pode-se perceber pela melodia e pela escolha lexical adotadas uma tonalidade expressiva altiva, exaltadora e glorificante, semelhante àquela que podemos encontrar no gênero das odes: Tu és meu Brasil em toda parte Quer na ciência ou na arte Portentoso e altaneiro. Os homens que escreveram tua história Conquistaram tuas glórias Epopeias triunfais Quero neste pobre enredo Reviver glorificando os homens teus Levá-los ao panteon dos grandes imortais Pois merecem muito mais (Quanta, 1997). Nota-se que o enunciado de Gil (o álbum), como elemento da vida concreta, é direcionado aos seus ouvintes. Dentro da música, entretanto, o endereçamento discursivo descola-se daquele do enunciado, pois a música 2 é uma ode direcionada ao Brasil (o país se torna o interlocutor), evidenciando um caso de assimilação do gênero primário pelo gênero secundário. Além disso, a expressividade altiva, glorificante, remete aos textos que narravam e exaltavam grandes empreendimentos, tal como a epopeia Os lusíadas, de Luís de Camões. Assim, como pontos de vista específicos sobre o mundo, o enunciado e o poema de Camões se encontram e coexistem na consciência enunciadora de Gil, podendo ser invocados por ele “para orquestrar os seus temas e refratar (indiretamente) as expressões das suas intenções e julgamentos de valor” (Bakhtin, 2010, p.99). Não só a expressividade da canção é similar à de Camões, mas seu título (“Ciência e arte”) aparece de forma análoga na segunda estrofe do Canto I de Os lusíadas na forma de “engenho e arte”, em que “engenho” significa, na obra de Camões (2013, p.5), técnica e habilidade: E aqueles que por obras valorosas Se vão da lei da morte libertando Cantando espalharei por toda a parte, Se a tanto me ajudar o ‘engenho e arte’ (Destaque nosso). O eco da obra de Camões ressoa na música analisada com direito aos tons que uma exaltação oferece. O paralelismo entre ambas as estrofes reside não só na expressividade e no elemento “Ciência e arte”, mas no próprio projeto de fala do locutor. Enquanto Camões queria glorificar Portugal, Gil quer glorificar o Brasil. O que diferencia um caso do outro, entretanto, é que, enquanto Camões pede “engenho e arte” para glorificar Portugal, a música expressa que o motivo para glorificar o Brasil é a própria ciência e a arte. A brasilidade, conforme apresentada nos primeiros versos, aparece como elo conector da ciência e da arte a serem apresentadas. São esses homens (cientistas e artistas) que escrevem a história gloriosa do Brasil, epopeias triunfais. Finalizando a canção, reforça-se tal ideia: Não querendo levá-los ao cume da altura Cientistas tu tens e tens cultura E neste rude poema destes pobres vates Há sábios como Pedro Américo e Cesar Lattes (Quanta, 1997). Os dois nomes citados nessa estrofe são de cientistas brasileiros, enfatizando que a ciência a ser cantada por Gil no álbum Quanta não é uma ciência qualquer, mas a nossa ciência. Nesse sentido, a menção a Pedro Américo de Figueiredo e Melo (1843-1905) é emblemática no projeto de fala que Gil estabelece, pois ele sintetiza, em sua vida, a própria visão que Gil expressará. Pedro Américo foi um intelectual brasileiro, famoso principalmente por seus trabalhos nas artes plásticas, como o “Independência ou morte”. Em uma nova leitura biográfica, entretanto, Barros (2006) enfatiza que, além de pintor, Pedro Américo se dedicou a refletir sobre os problemas sociais brasileiros e a propor soluções, como a oferta de educação pública e democrática. Mais importante ainda para o entendimento da canção “Ciência e arte” é o fato de que Pedro Américo defendeu sua tese de doutorado na Universidade de Bruxelas, intitulada A ciência e os sistemas: questões de história e de filosofia natural, em que advoga uma equiparação entre arte e ciência e propõe que a liberdade da ciência é preconizada pela liberdade da arte. De certa forma, essa é a mesma equiparação expressa pela música “Ciência e arte”, que as glorificam como partes irmãs da cultura brasileira. Em uma mesma canção, somos remetidos da expressividade de Camões à visão epistemológica de Pedro Américo. Além disso, em sua tese, Pedro Américo (2001) discute as relações entre mente e corpo, que aparecerão no álbum de Gil em sua visão de saúde e cura, como discutimos adiante. O segundo nome citado é o de Cesar Lattes, um dos maiores nomes da história da ciência brasileira, um dos responsáveis pela detecção da partícula méson pi, que teve profundo impacto na física de partículas. Lattes foi um cientista com grande repercussão nacional e internacional, tendo fundado o Centro Brasileiro de Pesquisas Física (CBPF), no Rio de Janeiro. Nesse sentido, do ponto de vista sócio-histórico-cultural, a representação da ciência no início do álbum de Gil é extremamente contra-hegemônica. Enquanto as narrativas hegemônicas tratam da ciência europeia, submetendo as produções de conhecimento de outros locais (das colônias) à metrópole (Santos, Meneses, 2009), Gil traz para seu álbum uma homenagem a duas figuras nacionais. Além disso, a concepção apresentada por Gil com a música de Carlos Cachaça e Cartola, uma vez que compõe sua visão de mundo, acaba sendo refletida na inteireza orgânica de seu enunciado. Nos seguintes trechos da música “Quanta”, Gil afirma: Sei que a arte é irmã da ciência Ambas filhas de um Deus fugaz Que faz num momento E no mesmo momento desfaz Esse vago Deus por trás do mundo Por detrás do detrás De pensamento em chamas Inspiração Arte de criar o saber Arte, descoberta, invenção Teoria em grego quer dizer O ser em contemplação (Quanta, 1997). Com isso, podemos ter uma primeira visão sobre a natureza da ciência em Quanta: trata-se de uma ciência não colonial, que equipara ciência à arte por seu sentido criativo, inspirador, inventivo. Para Gil, arte e ciência são duas manifestações da cultura brasileira, duas filhas de um deus fugaz (a menção de Gil à espiritualidade para caracterizar a ciência será retomado ao longo do artigo). Podemos, ainda, avançar na compreensão da natureza da ciência proposta por Gil por meio da canção “A ciência em si”, composta por ele em parceria com Arnaldo Antunes, em que é apresentada uma definição de ciência. Para tanto, separamos seis trechos, que rotulamos de (A) a (F). Os trechos estão na mesma ordem que aparecem na música, mas alguns versos foram omitidos para explicitar o argumento que será apresentado: (A) Se toda coincidência Tende a que se entenda E toda lenda Quer chegar aqui (B) A ciência não se aprende A ciência apreende A ciência em si (C) Se toda estrela cadente Cai pra fazer sentido E todo mito Quer ter carne aqui (D) A ciência não se ensina A ciência insemina A ciência em si (E) Se a crença quer se materializar Tanto quanto a experiência quer se abstrair (F) A ciência não avança A ciência alcança A ciência em si (Quanta, 1997). Os trechos transcritos formam três conjuntos semânticos (A com B, C com D e E com F), ou seja, possuem um acabamento de significado – formam um período. É interessante notar que as duplas possuem a mesma estrutura sintática, em que (A), (C) e (E) desempenham o papel de oração subordinada adverbial condicional, enquanto (B), (D) e (F) são as orações principais. Tal estrutura segue o formato do que é chamado na lógica de modus ponens, e que representa o pensamento dedutivo-lógico proposto por Popper (1963) como base da prática científica. Para Bakhtin, tema (conteúdo) e estilo de um texto formam um todo indissociável. Assim, percebe-se que Gil fala de ciência (tema) e estrutura sintaticamente essa parte do enunciado (estilo) remetendo ao estilo de escrita apodítica da ciência formal – revelando, de fato, essa unicidade. Esse tipo de estrutura é usado para se chegar a conclusões lógicas, como: “Se todo humano é mortal e João é humano, João é mortal”. Nessa proposição, para que a conclusão (a parte que vem depois da vírgula) seja verdadeira, as duas teses anteriores à vírgula (todo humano é mortal e João é humano) devem ser notoriamente verdadeiras também. Assim, as proposições que Gil toma como verdades notórias são: (A’) “toda coincidência tende a que se entenda” e “toda lenda quer chegar aqui”; (C’) “toda estrela cadente cai para fazer sentido” e “todo mito quer ter carne aqui”; (E’) “a crença quer se materializar” e “experiência quer se abstrair”. Essas três proposições tangenciam questões centrais nos estudos da epistemologia. Nesse aspecto, Gil consegue hibridizar características tradicionais da ciência com elementos de uma descrição contra-hegemônica que se alinha a algumas vertentes contemporâneas da filosofia e da sociologia da ciência. Popper (1963), por exemplo, distingue dois posicionamentos sobre a ciência, o instrumentalismo e o essencialismo. A visão instrumentalista, fundamentada na filosofia cética (Pessoa Jr., 2009), entende que a ciência apenas dá ordem aos diferentes dados que a natureza apresenta, tendo um papel puramente descritivo e não explicativo. A visão dogmática, por outro lado, fundante da perspectiva essencialista da ciência, também de acordo com Pessoa Jr., entende que por trás dos fenômenos observados pode-se inferir suas causas subjacentes, de forma que coincidências podem ser entendidas como pistas (sinais, signos) para que se entenda e compreenda (e não só descreva) essa realidade mais básica. Essa ideia essencialista aparece refletida em (A’) “toda coincidência tende a que se entenda”. Nesse sentido, a ciência moderna parte do pressuposto metafísico de que a realidade é compreensível, matematizável e descritível pela linguagem humana, ou seja, a todo fenômeno natural é possível atribuir um significado físico, ou como Gil menciona (C’), “toda estrela cadente cai para fazer sentido” – aqui, estrela cadente desempenha um papel metonímico, sendo um símbolo de qualquer fenômeno físico. Assim, Gil se alinha a uma perspectiva essencialista da ciência, entendendo-a como uma forma de atribuição de significado ao mundo real. Para que isso possa ser feito, o sujeito deve buscar a compreensão da natureza por meio de um processo que é intrinsicamente cognitivo, podendo ser descrito, por exemplo, pela teoria da psicologia social de Vygotsky (Wertsch, 1985), na forma de um movimento dialético entre a redução do concreto ao abstrato e a ascensão do abstrato ao concreto. Enquanto o primeiro movimento representa o processo de afastamento do sujeito em relação ao fenômeno empírico, na direção de um modelo simplificado (portanto reducionista), o segundo é o retorno em direção ao fenômeno, agora não mais o fenômeno dado, mas o fenômeno complexificado pelo processo de abstração. A tensão existente entre a redução do fenômeno ao modelo abstrato e a subsequente complexificação do real é refletida e refratada no verso (E’) “a crença quer se materializar” e “experiência quer se abstrair”. Deve-se notar que Gil usa o termo “crença”, e não “modelo”, “conjecturas” ou “hipótese”, como seria usual no gênero científico, colocando o pensamento abstrato científico em posição equivalente a outras formas de entendimento – não lhe atribuindo nenhum caráter privilegiado. Seria possível pensar que o uso da palavra “crença” se trata apenas de uma variação linguística por parte de um enunciado que não pertence ao gênero científico. Entretanto, Gil marca fortemente a equiparação do pensamento científico a outras formas de produção cultural quando diz: (A’) “E toda lenda quer chegar aqui” e (C’) “Todo mito quer ter carne aqui”. Tal ênfase dada ao esforço da crença, da lenda e do mito em se materializar na experiência resguarda paralelos com estudos antropológicos da ciência, segundo os quais nunca conseguimos escapar do tecido inteiriço que reveste nossa matriz antropológica (Lima, Ostermann, Cavalcanti, 2018). Ou seja, a pretensa dicotomia entre pensamento racional (científico) e irracional (mítico) que a civilização moderna assume ter criado, e que usa para diferenciar a civilização (metrópole) dos selvagens (colônias), é falso. Nunca escapamos nem podemos escapar do pensamento mítico, de nossas crenças e nossas lendas. A diferença, entretanto, é que na ciência se faz o esforço de materializar os mitos e lendas, hibridizando aquilo em que se crê (os fetiches) com o mundo dos não humanos (os fatos) – de modo que se lida com um mundo de “fatiches” (Latour, 1999; Lima et al., 2019). Deve-se notar que essa concepção subjacente à canção de Gilberto Gil e Arnaldo Antunes encontra ressonância na música “Ciência e arte”, em que a ciência valorizada é a da “colônia”, e não a da metrópole. Ou seja, para Gil, a ciência narrada não é a ciência moderna europeia, mas a ciência como um empreendimento de conhecimento, característico da humanidade como um todo, que concretiza mitos e abstrai experiências. A consumação dessa visão é, então, apresentada nas três conclusões: (B’) “A ciência não se aprende, a ciência apreende a ciência em si”; (D’) “A ciência não ensina, a ciência insemina a ciência em si”; (F’) “A ciência não avança, a ciência alcança a ciência em si”. Uma possível interpretação para esses trechos é que Gil e Antunes estão fazendo um jogo entre os dois significados do significante “ciência”. O primeiro é a ciência como empreendimento científico, o segundo é o ato de estar ciente. Assim, a ciência (ato de estar ciente) é algo que não se ensina, não se aprende e não avança. A ciência (empreendimento científico) apreende a ciência em si (estar ciente), insemina a ciência em si (estar ciente), alcança a ciência em si (estar ciente). Estamos em condição de sintetizar a concepção de ciência do álbum Quanta: a prática científica é todo e qualquer ato de tomada de (cons)ciência, de elucidação, de lucidez. Ciência não é só o que os cientistas fazem (ou o que a ciência europeia moderna diz ser), mas qualquer ato de cognição que leve em consideração ao mesmo tempo o movimento dialético de materialização da crença e de abstração da experiência, em qualquer domínio da atividade humana e por qualquer cultura (metrópole ou colônia), sendo possível ser equiparada à arte por sua natureza criativa e inventiva. Nesse sentido, a ciência nunca pode ser ensinada ou aprendida, porque estar ciente é um estado “em si”, não podendo ser ordenado ou hierarquizado. Essa noção rompe com a visão de progresso científico propagada pela visão hegemônica de ciência, segundo a qual todas as culturas têm que seguir o progresso determinado pela metrópole, e suas tecnologias (Santos, Meneses, 2009). As técnicas indígenas que garantem produção de alimentos de forma sustentável, por exemplo, nunca seriam narradas como progresso sob tal perspectiva. A proposta decolonialista de Gil aparece refletida em outras partes do álbum. Na música “Pílula de alho”, ele faz alusão a um medicamento popular existente no Brasil (a pílula de alho) e o narra como um grande empreendimento científico: A pílula de alho Da planta antibiótica Da velha medicina Que desenvolvimento! Que lindo ensinamento (Quanta, 1997). O trecho “Que desenvolvimento!” jamais seria atribuído a uma pílula de alho, segundo a lógica de ciência colonialista. É somente a partir de uma visão decolonialista que a ciência (estado de estar ciente) e a medicina popular podem ser valorizadas como um desenvolvimento e um ensinamento. A mesma visão aparece expressa na música “Água benta”, em que os feitos de um feiticeiro de Ossãin superam as ações de um médico: A medicina e o seu doutor Nada puderam fazer O desespero se apoderou Do padre, do pai, da mãe Foi quando então alguém se lembrou De um feiticeiro de Ossãin Um simples banho de folhas fez O que não se esperava mais (Quanta, 1997). Assim, a perspectiva epistemológica decolonialista de Gil permeia e molda o seu enunciado artístico-científico e sua visão de medicina. A partir dele, podemos entender como que o conceito de quanta é, então, abordado. Quanta: a física quântica de Gil a Einstein e de Einstein a Gil Nos trechos dessa seção, realçamos os termos que são tipicamente utilizados nos artigos e livros de física quântica, tanto no texto dos autores como no enunciado de Gilberto Gil, de forma a explicitar as relações dialógicas que se estabelecem. Na música homônima ao álbum, Gil explica: Quanta do latim Plural de quantum. Quantum, por sua vez, foi um conceito introduzido por Einstein para falar da radiação eletromagnética (luz, por exemplo). Até 1905, a concepção hegemônica sobre a luz considerava-a uma “onda eletromagnética”, que se estendia continuamente pelo espaço. A proposta de Einstein, porém, seria que a luz (sob certas condições específicas) deveria ser considerada um conjunto de “porções discretas”, muito bem localizadas no espaço – os quanta. Como a propriedade de “estar bem localizado no espaço” é atribuída à “partícula”, e não a ondas, concebe-se que a proposta “quântica” é, inicialmente, uma teoria “corpuscular”, considerando a luz como um conjunto de “corpúsculos” ou “grânulos” de radiação. Dessa forma, segundo Einstein, quando há um conjunto de muitos quanta, eles se comportam como um grupo único, manifestando propriedades “ondulatórias”. Apenas quando a luz tem “intensidade baixa” o suficiente, de modo que haja poucos quanta, é que as características “corpusculares” ou “granulares” se manifestam. Essa é uma visão ainda predominante na física quântica, de forma que Pessoa Jr. (2003) caracteriza a teoria como uma descrição da radiação eletromagnética de “baixa intensidade” (muito fraca). Deve-se observar, entretanto, que os conceitos físicos não são estáticos, mas elementos dinâmicos da realidade, que vão se articulando com outros elementos ao longo da história e recebendo novos significados (Lima et al., 2018). No caso dos quanta, o próprio Einstein passou a lhe atribuir um novo conceito em 1909, entendendo que os quanta (corpúsculos) eram guiados por um “campo contínuo”. Tal ideia foi reapropriada pelo físico francês Louis de Broglie, que propôs que o quantum seria um conjunto material de “onda e partícula”. Uma série de outros significados foi atribuída ao conceito de quantum, de modo que até hoje uma das características da física quântica é possuir uma multiplicidade de interpretações, todas consistentes internamente, mas inconsistentes entre si (Jammer, 1974; Pessoa Jr., 2003). Em especial, na década de 1970, foi apresentada a possibilidade de introduzir o conceito de consciência na física quântica, como uma alternativa para resolver um problema conceitual sério da teoria, o chamado problema da medida (Pessoa Jr., 1992). Tal problema pode ser enunciado de maneira simplificada da seguinte forma: um “sistema quântico” (como um elétron) pode ser sempre descrito por uma “função de onda”. Essa onda evolui no tempo de dois modos distintos: um quando o sistema está isolado e portanto não há nenhuma forma de observação (nesse caso, o sistema evolui obedecendo à “equação de Schrödinger” – supondo regime não relativístico); o segundo, quando o sistema interage, como num processo de “medida” (nesse caso, o sistema não pode se encontrar em uma “sobreposição de estados” e é sempre “medido” em um estado específico – o que é comumente chamado de “colapso da função de onda”). Tal distinção é denominada por alguns complementaridade entre observação e coordenação espaçotemporal (Pessoa Jr., 2003). Suponhamos que o objeto quântico que está sendo estudado é um elétron. Nesse caso, a “medida” da posição do elétron por um instrumento macroscópico causaria o “colapso da função de onda” e provocaria a observação da posição em uma região específica. O problema aparece quando percebemos que o elétron (objeto quântico) não interage com o instrumento macroscópico como um todo; mas interage com componentes microscópicos do instrumento de medida (outros objetos quânticos); então, na prática, teríamos diferentes objetos quânticos, que resultariam em uma nova função de onda, agora de todo o sistema, que continuaria obedecendo à equação de Schrödinger. Ou seja, na prática nunca deveria acontecer o colapso da função de onda. Isso é conhecido como problema da medida. As vertentes do “misticismo quântico” (que costumam ser mal vistas pela vertente hegemônica, podendo, aliás, ter seu status científico questionado pela comunidade) respondem que esse problema reside em afirmar que, se o colapso da função de onda não pode ser explicado por um ente material (o instrumento de medida), deve haver algo não material que o cause. Esse elemento não material, responsável pelo colapso da função de onda, seria então “a consciência”. Essa concepção tem motivado uma série de propostas e especulações sobre as relações entre “mente” e realidade. Além das propostas da década de 1970, pode-se destacar propostas mais recentes, como a de Amit Goswami (1990), físico que vem protagonizando o que ele denomina ativismo quântico. Deve-se ressaltar que essas são algumas interpretações possíveis da física quântica, entre inúmeras outras que, embora internamente consistentes, divergem por completo quanto à forma como entendem a realidade (Pessoa Jr., 2003). A partir desse breve histórico da física quântica, podemos interpretar o seguinte trecho da música “Quanta”: ‘Quando quase não há Quantidade que se medir’ Qualidade que se expressar ‘Fragmento infinitésimo’ Quase que apenas ‘mental’ Quantum ‘granulado’ no mel Quantum ‘ondulado’ no sal (Quanta, 1997; destaques nossos). Observa-se que na teoria de Bakhtin o gênero artístico é o que apresenta maior liberdade, pois, diferentemente do que ocorre no campo da prosa, o diálogo não se estabelece de maneira direta com o discurso alheio: “A língua do poeta é sua própria linguagem, ele está nela e é dela inseparável. Ele utiliza cada forma, cada palavra, cada expressão no seu sentido direto por assim dizer, ‘sem aspas’, isto é, exatamente como a expressão pura e imediata de seu pensar” (Bakhtin, 2010, p.94). Mesmo assim, a partir do que foi exposto sobre a história do quantum, percebe-se que o conceito atribuído por Gil está fortemente ancorado na história do conceito no gênero do discurso científico da física quântica. Os dois primeiros versos marcados dialogam diretamente com a ideia de um ente que se manifesta ou que se percebe nas radiações de baixa intensidade, como define Pessoa Jr. O quantum é um elemento mínimo de energia, um fragmento infinitésimo, como diz Gil, cuja interpretação pode estar associada, em uma proposta não hegemônica, a uma relação com a mente ou a consciência. Além disso, o quantum se manifesta tanto por suas propriedades granulares quanto ondulatórias. Ou seja, o enunciado de Gil costura um conceito acerca do quantum a partir de visões da própria física quântica, em especial com sua acepção idealista, expressando de maneira valorativa a unidade entre matéria e espírito na realidade mais fundamental da natureza. A visão ondulatória do quantum também é expressa na capa do álbum, em que uma superfície ondulada é representada (Figura 1): Figura 1 : Imagem adaptada da capa do álbum Quanta (https://www.amazon.in/Quanta-Gilberto-Gil/dp/B000024SCC) Com toda poesia inerente a uma canção, pode-se dizer que Gil expressa uma interpretação filosoficamente legítima do conceito de quantum, que não é única e tampouco a mais difundida na comunidade dos físicos, mas que é defendida por intelectuais das correntes contra-hegemônicas. Nesse sentido, pode-se entender que o quantum é expressado, ou seja, subjetivamente valorizado, por aquilo que representa de fascinante, contraintuitivo e, nesse contexto, místico. O quantum de Gil carrega o tom científico hegemônico ao ressaltar seu caráter dual (corpuscular e ondulatório), e o tom contra-hegemônico ao ser considerado algo quase mental. Essas “vozes” se sobrepõem à voz de Gil em uma visão lírica e mística da realidade. Deve-se notar que, no contexto da física quântica, houve o avanço do conhecimento científico a respeito da estrutura da matéria, levando ao conhecimento de materiais radioativos (como urânio e rádio) e ao avanço tecnológico nuclear a eles associado. Gil também expressa essa dimensão oriunda do quantum no seguinte trecho: “Mel de ‘urânio’, sal de ‘rádio’”. Por fim, ele retoma a ideia de que o quantum possui uma acepção mental, ou, nas palavras dele, ideal (no sentido de se opor ao material, como em “filosofia idealista”): “Qualquer coisa quase ‘ideal’” (Quanta, 1997). Tal visão idealista do quantum, conectando-o ao mundo mental, é reconectada ao todo orgânico do enunciado pela visão mística que Gil traz, principalmente por meio do conceito de Deus. Já havíamos mencionado o trecho da canção “Quanta” em que ele fala de “um Deus fugaz/Que faz num momento/E no mesmo momento desfaz/Esse vago Deus por trás do mundo/Por detrás do detrás” (Quanta, 1997). No misticismo quântico, o conceito de Deus aparece algumas vezes atrelado à ideia de uma grande consciência por trás de todos os fenômenos, responsável pelo colapso das funções de onda no Universo. Dessa forma, a visão quântica de Gil é uma visão mental, idealista, mística, que retoma a ideia de um Deus uno capaz de fazer a realidade se manifestar; tal visão ainda é reforçada pelo trecho da música que inspira o título do presente artigo: Cântico dos cânticos Quântico dos quânticos. Além do jogo de sonoridade, a menção ao “Cântico dos cânticos” reforça a ideia de união entre Deus e a realidade, mente e matéria, pois é o título de um livro do Antigo Testamento que narra o amor romântico. Algumas interpretações contemporâneas (Hagedorn, 2005), entretanto, entendem que o texto é uma metáfora para o amor entre Deus e o povo de Israel, visão que retoma a ideia mística de um Deus uno, imanente a toda a realidade. Tal visão, veiculada também pela tradição filosófica de Parmênides, inspira até hoje a busca de uma teoria unificada na física (Feyerabend, 2010). Outro trecho que remete a essa visão mística pode ser encontrado na música “Dança de Shiva”: Quem me vir dançar Verá que quem dança é Shiva Quem dança, quem dança é Shiva Quem me vir já não me verá (Quanta, 1997). Shiva é o deus da destruição nas tradições religiosas indianas. A destruição, nesse contexto, é entendida como elemento indispensável da realidade, pois traz a renovação, a possibilidade de renascimento. A imagem de Shiva e de sua dança foi proposta como uma metáfora para a realidade dinâmica que nos compõe, como no caso das constantes aniquilações entre partículas existentes na natureza, apontadas, por exemplo, pelo físico austríaco Fritjof Capra (2011) em seu livro O tao da física, escrito na década de 1970, no qual o autor faz uma série de paralelos entre a física moderna e o misticismo oriental. Em 2004, o Conselho Europeu para Pesquisas Nucleares (Cern, na sigla em francês) inaugurou uma estátua de Shiva no interior da instituição (Figura 2), mencionando o trabalho de Capra. Figura 2 : Estátua de Shiva no Cern, aludindo à metáfora de Capra (http://www.fritjofcapra.net/shivas ... [Mensagem cortada] Exibir toda a mensagem

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Corporeidades silenciadas: reflexões sobre as narrativas de mulheres violadas Corporealities silenced: reflections about the narratives of violated women Jane Felipe Beltrão Camille Gouveia Castelo Branco Barata Mariah Torres Aleixo Sobre os autores » Resumo » Abstract » Text» De traduções olvidadas e diálogos “surdos” » Os segredos da escuta » O veneno da dor » As categorias sobre violência: enredamentos na narrativa das mulheres » As categorias relativas à agência: a resistência das/entre mulheres » Entre oitivas e traduções » Por diálogos e justiças » Referências bibliográficas » Datas de Publicação » Histórico Resumo Refletir sobre as formas de narrar as violências enfrentadas por indígenas e quilombolas mulheres/mulheres indígenas e quilombolas é a proposta do texto para discutir a possibilidade de tradução etnográfica das categorias nativas em confronto com as categorias acadêmicas para referir as mulheres em situação de violência, identificando as agências das protagonistas. indígenas; quilombolas; violência Abstract Reflect about the ways of narrate the violence faced for indigenous and maroons women/women indigenous and maroons is the propositions of the article to discuss the possibility of ethnographic translation of native categories in confrontation with the academic categories to refer women in violence situations, identify the agencies of the protagonists indigenous; maroons; violence De traduções olvidadas e diálogos “surdos” No ensaio que hoje pode ser considerado clássico para o que se convencionou chamar Antropologia Jurídica ou Antropologia do Direito2 , Geertz (2013) enuncia que o Direito é construído à luz de saberes e artesanatos locais, isto é, tem a ver com a cultura na qual ele tem vida, onde “funciona.” Segundo o autor, há diversos sentidos de direito e justiça – o que ele denomina de sensibilidades jurídicas – as quais, no contexto contemporâneo, são obrigadas a conversar, em suas palavras, “... uma iluminando o que a outra obscurece.” (2013, p. 237) De acordo com essa afirmação, o estudo e a prática do Direito devem ser feitos por meio da tradução cultural, buscando compreender as sensibilidades jurídicas que estão em jogo nas contendas, seja aquelas levadas à justiça estatal, seja as que são discutidas e resolvidas à luz das normas comunitárias e, principalmente, as que caminham na fronteira entre tais normatividades. Partimos desse pressuposto para compreender as maneiras pelas quais mulheres indígenas e quilombolas/indígenas e quilombolas mulheres3 da Amazônia paraense resistem às violências do cotidiano e perscrutar suas sensibilidades em meio às situações de violência. Não se trata aqui de analisar estratégias de movimentos de mulheres indígenas e/ou quilombolas para conseguir alcançar suas reivindicações políticas, o que não deixaria de ser importante objeto de reflexão, mas sim de entender as próprias corporeidades das protagonistas como estratégias de resistência. Esta última, que pode parecer mais individualizada e circunstancial num primeiro olhar, ganha contornos coletivos quando se observa o compartilhamento de histórias, as redes de ajuda e solidariedade criadas pelas mulheres, entre outras agências, como veremos a seguir. Temos em conta que esse diálogo entre noções de justiça não ocorre com paridade de armas, pois o Estado brasileiro se constituiu olvidando etnicidades e engendrando políticas de homogeneização e integração dos grupos diferenciados à “sociedade nacional.” A conversa entre as sensibilidades jurídicas no país ocorre na forma do que Yrigoyen Fajardo (2011) denomina pluralismo jurídico subordinado colonial, isto é, de modo a não reconhecer noções de direito que não sejam as provenientes do Estado. Quando se pensa em questões relativas às mulheres etnicamente diferenciadas a questão se complexifica. A promulgação de leis específicas às mulheres, que consideram a violência como crime4 , fruto de anos de reivindicações e estudos promovidos por organizações e coletivos feministas, diz pouco sobre diferenças de ordem cultural, étnica e racial. Diante disso, compreender noções de violência bem como as estratégias de resistência das protagonistas se impõe. Os segredos da escuta Assim, nosso objetivo é refletir sobre as formas de narrar a violência que atinge os corpos das interlocutoras que pertencem a povos indígenas e coletivos quilombolas e debater acerca das possibilidades de tradução etnográfica a partir da identificação das categorias nativas que compõem a enunciação das interlocutoras, considerando as diferenciadas noções de justiça presentes entre as mulheres que emprestam seus depoimentos às autoras do texto. Para alcance dos objetivos, procura-se compreender como se dá a construção da corporeidade entre as mulheres indígenas e quilombolas/indígenas e quilombolas mulheres, pela possibilidade de demonstrar como o corpo se apresenta entre elas como território privilegiado de resistência e luta. A marca do presente trabalho são as reflexões que ressaltam e problematizam as categorias que integram a epistemologia e o olhar nativo sobre corpo e violência. Para os limites da reflexão proposta, é importante esclarecer que os depoimentos oferecidos pelas interlocutoras foram ditos às pesquisadoras em diversos momentos, os quais compreendem um lastro de 15 anos de pesquisa, sem que estas tivessem a intenção de trabalhar especificamente violência e violação de corpos, entretanto, os depoimentos foram como que aflorando pela impossibilidade – estatal e/ou comunitária – de oitiva das mulheres em situação de violência. Selecionou-se depoimentos de mulheres indígenas pertencentes aos povos Tembé Tenetehara5 , hoje moradores do município de Santa Maria do Pará, Xipaya6 e Kuruaya7 que vivem no médio Xingu e, no caso das quilombolas, selecionamos as interlocutoras moradoras das diversas comunidades localizadas no arquipélago do Marajó, também no estado do Pará. Destacam-se trajetórias e memórias que marcam de modo indelével o etnocídio praticado via colonização (Beltrão, 2012), que até o presente atinge os corpos e as vidas de pessoas indígenas e quilombolas via colonialidade.8 Nesse sentido, é latente na narrativa das interlocutoras a referência ao processo de expulsão territorial, sequestro de crianças indígenas e quilombolas pela ação missionária e/ou do Estado, tentativas reiteradas e violentas de genocídio, em face da tentativa de homogeneização e apagamento das pertenças. Vale, porém, ressaltar que a colonialidade incide de forma específica e brutal necessariamente sobre os corpos das mulheres, pois esta, segundo Lugones (2008) , se instituiu também como colonialidade gênero, que instituiu o sistema de gênero colonial/moderno, baseado nas dicotomias homem/mulher e público/privado, como o padrão. Isso ocultou sistemas de organização dos “mundos sexuais” nativos, em que muitas vezes as fronteiras entre masculino e feminino eram fluídas e as mulheres exerciam papéis importantes na vida coletiva. Não tratamos aqui de perscrutar esses sistemas “originais” e nem acreditamos que, hoje, isso seja possível. Porém, importa ter isso em consideração para um olhar etnográfico mais apurado. O ponto nevrálgico, locus em que os caminhos etnográficos se tornam mais “nebulosos”: ter o corpo marcado, como é o caso de indígenas e quilombolas mulheres/mulheres indígenas e quilombolas, pela violência física e sexual, muitas vezes infringida pelos próprios “parentes”, ou ainda por pessoas não indígenas e quilombolas, fato que mobiliza sentimentos como dor, sofrimento e vergonha. A possibilidade de ouvir (com tudo o que o ato da escuta representa para a Antropologia) implica em cuidados9 redobrados na interpretação de atos e falas que não são ditos a qualquer pessoa, nem em qualquer lugar. Os processos de violação dos corpos, vividos como eventos devastadores, segundo as interlocutoras, também formam seus modos de narrar, de liderar e de agir politicamente. De alguma forma, somos “ouvintes” privilegiadas, considerando a confiança com a qual fomos brindadas, portanto nosso compromisso com a ocultação das identidades é fato. O veneno da dor Veena Das (2008a), em seus escritos, problematiza a correlação entre dor e linguagem. Segundo a autora, por meio da expressão da dor, é possível sair da privacidade sufocante que ela produz na vítima. De acordo com Das (2008a), eventos devastadores produzem um tipo de conhecimento que só é alcançado pela experimentação do sofrimento, um conhecimento venenoso. Portanto, violências extremas não seriam apenas responsáveis pela destruição de vidas e corpos. Atuam, também, na construção de sujeitos e linguagens da dor. A enunciação da dor pede, portanto, admissão e reconhecimento, o que nem sempre ocorre. Trata-se, nos termos da autora, de sentir a dor no corpo do outro. Essa é a proposta ao fazer antropológico, requisitado de forma envergonhada, mas insistente por nossas interlocutoras. De acordo com Michael Taussig (1993), a reprodução da imagem dos povos indígenas como selvagens, irracionais e violentos é o que possibilita a propagação do terror colonial. E no caso dos coletivos quilombolas a estratégia de resistência e luta dos negros é imperdoável ao mundo colonial, afinal, os africanos são equiparadamente considerados, como os indígenas, pessoas desprezíveis. Trata-se uma operação mimética por parte do colonizador, que conduz a atos de extrema violência, não importando se esse imaginário é verdadeiro ou não. As culturas do terror criam, desse modo, o que o autor denomina como espaços de morte, nos quais indígenas, africanos e brancos viram nascer o Novo Mundo. Segundo Taussig (1993) o terror é o mediador por excelência da hegemonia colonial e acrescenta-se da discriminação presente em nossa sociedade. O autor afirma ainda que “... as culturas do terror são nutridas pelo entremesclar do silêncio e do mito.” (Taussig, 1993, 30) Os efeitos paralisantes e silenciadores do terror encontrariam na narrativa sua primeira possibilidade de cura. Quando decidiram falar sobre as violências que marcaram de forma mais ou menos severa suas trajetórias, nossas interlocutoras começaram a vencer a primeira imposição do terror, o silêncio. Como diz Maria Aparecida, quilombola, que por ser estudante universitária, escreveu seu depoimento: “não vou falar e também nunca escrevi, mas faço [o texto] porque não consigo explicar porque aconteceu comigo, talvez não haja explicação, e mesmo que tivesse jamais iria me fazer esquecer aquele homem imundo que me rasgou e tudo que aconteceu comigo. Neste caso, a forma de prevenção pra que não possa acontecer com outras mulheres é contar e contar do massacre que sofri. Mas para isso tenho que ter coragem para dar o testemunho, mas tenho muita vergonha por isso escrevo. Peço que a senhora conte, leve adiante, o massacre não pode continuar.” Para compreender o que diz Taussig (1993), traz-se à consideração e em complemento à Maria Aparecida, o depoimento de Maria Dolores, de pertença Kuruaya, que narra seu pânico no dia da violação, praticada dentro de sua casa, na frente do marido e das filhas, que à época tinham respectivamente oito anos e dois anos: “Dormi, como todas as noites, com meu marido e minhas filhas na minha cama. De madrugada acordei e levei o maior susto da minha vida, me deparei com um homem passando da sala pra cozinha, pois a porta do quarto ficava entre aberta durante a noite, então no primeiro momento imaginei que pudesse ser alguém de fora, pensei que fosse meu marido, então olhei na cama e vi as meninas e ele, percebi que tinha alguém na casa e não era o meu marido, ele dormia com as crianças. Logo depois minha filha de oito anos acordou e percebeu que eu estava bastante assustada e nervosa, então falei que tinha alguém na casa, pedi que ela não fizesse escândalo. Na hora, eu só pedia a Deus proteção pra minha família e, ao mesmo tempo, sem saber o que fazer e como agir naquela situação de angústia e muito muito medo.” Na sequência dos acontecimentos, Dolores se apercebe do perigo e evoca Deus: “... com toda Tua sabedoria me traz tranquilidade e, nas minhas orações, pedi que Deus fizesse aquela pessoa ter compaixão e não fizesse nada com meu marido e com as minhas filhas, eu coloquei minha vida nas mãos Dele. Eu dizia: Deus coloco minha família em suas mãos me proteja e me ilumine nesta noite, pois sei que corro perigo, me abençoe, te peço em amém. Dona a senhora já teve medo?” Dolores prossegue a narrativa, ofegante, e esclarece, “... agradeço todos os dias a Deus, eu esqueci parcialmente o fato, só que por mais que os anos passem, eu não consigo falar com as pessoas sobre o assunto, por medo e até mesmo vergonha.” O relato foi adiante, entrecortado pelo choro às vezes discreto, outras vezes convulsivo a ponto de interromper a narrativa. Ela segurava as minhas mãos10 com força, de certo ainda sentia pânico e as marcas corporais que se apresentavam vivas, intensas! O relato é bastante longo, mas importante para compreensão da dor, silenciada pelas circunstância e sobretudo pela vergonha. Diz a Kuruaya: “... trabalhei o dia inteiro, sou professora no bairro dos índios, local tomado pela violência. Nunca tive medo de nada. A casa é pequenininha. Toda noite eu tenho o costume de verificar portas e janelas, e nesse dia não foi diferente, entretanto nunca imaginei que alguém pudesse entrar na casa de alguém pelo telhado, por onde entrou o bandido. Quando me dei conta do perigo fingi que estava dormindo e observei por baixo do travesseiro que ele [o bandido] se aproximava e logo entrou no quarto meio agachado, ficando em volta do berço da minha filha. Chegou perto da cama e pôs a faca no meu pescoço, daí eu gritei e ele se debruçou em cima da cama fazendo ameaças, dizendo pra não gritar se não iria matar todo mundo caso eu não trepasse [mantivesse relações sexuais] com ele.” Dolores informou que ele estava visivelmente muito perturbado andando de um lado para o outro, parecia não saber o que fazer, aparentando transtornos. Tinha aparência de drogado, exalava mal cheiro, mas não parecia bêbado e nem cheirava a álcool. Ela continua: “... depois da ronda pela casa, ele saiu um momento do quarto e eu disse ao meu marido finge que dorme e cuida das meninas, pois ele vai voltar. Minha filha que estava acordada chorava muito e falei pra ela ficar bem caladinha como se estivesse dormindo foi o que ela fez, ficou quietinha abraçada à irmã e ao pai. Ele voltou e me obrigou a manter relações sexuais com ele. Sem saber o que fazer, pedia ajuda a Deus. Aquilo foi uma humilhação muito grande, na minha cama, com o meu marido vendo tudo e as minhas filhas então? Até hoje não sei “transar” como antes, a lembrança me perturba, tenho problemas, passo mal, meu marido não se conforma, reclama. Temo que me abandone por isso. Com os olhos distantes, como se voltasse à cena do crime, Dolores informa: “... pela conversa dele, percebi que ele não falava coisa com coisa, às vezes parecia tranquilo, daí a pouco se exaltava e com a faca na mão, junto do meu pescoço. Que medo! Quando ele falou que iria fazer sexo comigo, tornei a me apavorar e, na hora, pensei na família e o quanto seria pior se fossem com as minhas filhas, pensei que era melhor eu ceder do que ele fazer algo pior conosco, ele sentou na cama e falou que não era pra eu gritar, era melhor pra mim. Ele se serviu de mim duas vezes e perguntava, gostou cachorra, tu foste pega no dente, índia é tudo assim ... Eu desesperei, além de me usar me humilhava e minhas filhas e meu marido assistindo, acho que a pequena não acordou, nem sei ... quando percebi que ele tinha saído da minha casa parece que o mundo caiu sobre mim, não tinha reação de nada lembro que peguei o celular, mas não tinha condições de ligar pra ninguém, acho que ainda não tenho mundo.” Abalada, Dolores confessou que teve dificuldade de identificar o criminoso, mas o fez. Ele respondeu processo e foi condenado, o fantasma à época era a saída do agressor da cadeia. Ela ainda vive aos sobressaltos, pois se aproxima o final do cumprimento da pena. As categorias sobre violência: enredamentos na narrativa das mulheres Nos diálogos estabelecidos com as interlocutoras é possível detectar em seus depoimentos e mesmo discurso de indígenas e quilombolas, uma série de categorias a respeito de eventos que, do ponto de vista antropológico, poderiam ser definidos analiticamente como situações de violência, embora dificilmente nossas interlocutoras tenham usado explicitamente o termo violência, as protagonistas referiram-se a todo momento a situações que atingiam seus corpos individual e coletivamente. Os corpos são atingidos de forma coletiva na medida em que a corporeidade e construída socialmente e as violações são estruturais e não individuais, além de engendrarem dor e resistências. Os fatos narrados aproximam-se da definição de violência proposta por Paula Lacerda (2015) que a entende como: [...] um amplo conjunto de situações que poderiam ser percebidas, de outro ponto de vista, como ‘causadoras de sofrimento’, pessoas se apresentam como ‘vítimas de violação de direitos’, o que as transforma em sujeito e potencializa o alcance de suas reivindicações.” (2008, 28) A primeira categoria que se refere a tais processos diz respeito a violência enfrentada coletivamente pelo povo Tembé Tenetehara na Colônia Santo Antônio do Prata, educandário que recebia as crianças indígenas sequestradas de suas comunidades e apartadas de seus parentes para serem educadas, catequizadas e “civilizadas” com base na pedagogia cristã dos missionários Capuchinhos. Posteriormente, a Colônia foi transformada em Leprosário e a ameaça de contrair a doença afastou ainda mais os Tembé Tenetehara do território que tradicionalmente ocupavam. No período de instalação do Leprosário, conforme conta Dona Maria Joana, circulava na região o boato de que era possível curar a hanseníase se o doente comesse o fígado de uma pessoa saudável. Na época chegaram a ser encontrados na mata cadáveres com o fígado retirado, o que reforçava ainda mais o temor de que uma das pessoas a serem mortas pudessem ser Tembé Tenetehara. É desse cenário que emerge a categoria massacre: as interlocutoras constantemente reafirmam, ao dizer dessas memórias que “o nosso povo foi muito massacrado no Prata”. A noção de massacre parece elucidar mais enfaticamente os acontecimentos que a categoria violência, uma vez que as violações enfrentadas coletivamente pelos Tembé Tenetehara – ditos de Santa Maria – incluem espoliação territorial, epistemicídio, quebra dos laços de parentesco e, em última instância, o adoecimento e a morte dos membros do povo. O mesmo ocorre com as mulheres Xipaya e Kuruaya que, expulsas de seus territórios no médio Xingu, vieram à cidade e vivem presas a espaços, onde sequer podiam, há 10 anos, se declarar indígenas. Eram, como referem algumas das interlocutoras, impedidas de falar a língua materna, enfrentaram o massacre da discriminação, produzida pelo racismo que se apresenta em estratégias de dominação de ordem material e ideológica, utilizada pelas estruturas coloniais para manter status privilegiado de membros do grupo dominante, produzindo a perene subalternidade dos povos etnicamente diferenciados (Moreira, 2016 ), não fosse a luta que empreendem diuturnamente. No caso das quilombolas o massacre foi/é pesado e reproduzido nas diversas narrativas. A segunda categoria que diz de processos de violência é a de escravidão. Conforme explica Maria da Paz: “os antigos do nosso povo tratavam a mulher como escrava. Ela só servia para ter filho, cuidar da casa e da roça, ser usada pelo marido e trabalhar pro pai. Hoje não pode mais ser assim, mas muitos homens no nosso povo e de fora querem tratar as mulheres nessa escravidão.” A categoria escravidão parece dizer respeito a crítica que as mulheres indígenas fazem sobre a condição feminina dentro das diversas comunidades. O entendimento de que as mulheres eram e são tratadas como escravas, guarda em seu interior a reivindicação de que sejam entendidas como sujeitos, dotadas de direitos, vontades e voz. Tal categoria diz respeito a forma como as interlocutoras pensam a mulheridade e a crítica que fazem por não serem reconhecidas de tal forma. Entre as quilombolas a condição de escrava é mencionada por conta das avós e das bisavós, entretanto, algumas vezes, a condição passada é negada para não comprometer a luta e favorecer a discriminação. A terceira categoria nos parece a que possui maior tensão ao ser utilizada analiticamente: trata-se da categoria maldade. Durante muito tempo do percurso das pesquisas que apontavam para as categorias nativas, evitou-se conjecturar sobre a mesma, por receio de que escrever sobre o assunto pudesse “dar munição” para os antagonistas em relação aos povos tradicionais. Entretanto, ao buscar as noções de justiça que permitem a luta política das mulheres, a maldade atravessou o percurso da problematização. As interlocutoras com quem se dialogou nomeiam como “homens maus” aqueles que agridem seus corpos, física e/ou sexualmente. E, a essas agressões, as mulheres indígenas dão o nome de maldades. As quilombolas, algumas vezes referem-se às violações dos homens maus, como malinesas. Denominam malinesas às penas impostas, pelos encantados, a homens (e também à mulheres) que vivem fora das normas tradicionais, malinesas que trazem como consequência efeitos deletérios às relações sociais. Malinos são os encantados que castigam os transgressores com o mal, tornando-os perniciosos ao convívio social. Os encantados que “jogam a malinesa” vivem nas matas e nos cursos d’água e por serem donos dos espaços, exigem reverências e cumprimento de obrigações, nem sempre observadas pelos homens maus que terminam “malinando” com as mulheres (ou mulheres que malinam com homens). No caso da maldade ou da malinesa entre indígenas e quilombolas, uma e outra não integram a essência dos humanos, são tomadas pelas interlocutoras como condição que, dependendo do comportamento, pode ser afastada dos humanos, sempre que, arrependidos, voltem a cumprir as obrigações com os encantados. A tensão reside no fato de que muitas vezes os homens maus ou malinos podem ser companheiros das mulheres indígenas e quilombolas ou lideranças dos referidos coletivos. Duas situações parecem ilustrativas de como a categoria maldade é posta em ação. A primeira delas diz respeito a história contada por Maria Laura, que teve a filha Maria Conceição sequestrada por um homem que circulava na comunidade. A menina passou oito dias em cativeiro submetida a violência física e sexual pelo agressor. Por fim, depois de espancá-la quase até a morte, o criminoso abandonou-a sozinha na casa onde a escondia. Embora Maria Conceição tenha sido encontrada com vida e acolhida sob o modo Tembé de cuidar do corpo, a marca da violência permanece para o resto da vida e o fato de o agressor ter muito dinheiro, à época, assegurou-lhe a impunidade. Ao contar a história de sua filha, Maria Laura referiu-se ao criminoso como um “anjo mau”, aproximando-o do mito bíblico que conta a história de Lúcifer. A mesma categoria foi utilizada pela filha de Maria da Paz, Maria Lídia, para referir-se ao seu pai. Na época ele se encontrava doente, com desmaios e fraquezas constantes, e as causas não puderam ser identificadas pelos médicos que a família procurou. Maria da Paz, desde que a conhecemos, narra as agressões cometidas pelo marido, que espancava ela e os filhos e dizia constantemente a todos palavras duras, que “machucavam” quem as ouvia. Conversando com Maria da Paz e Maria Lídia, a filha afirmou que a doença do pai era um “castigo por todas as maldades que ele fez com a gente”, com o que Maria da Paz concordou. A noção de maldade parece ter um sentido diferenciado para as mulheres indígenas se comparada aos usos que assume na sociedade dita ocidental. Enquanto no ocidente a maldade é frequentemente tomada como propriedade de pessoas perversas, entre as protagonistas indígenas a categoria parece se aproximar do que a Antropologia e os movimentos de mulheres tem chamado de machismo ou violência de gênero. Atentar para o uso diferenciado do termo pelas interlocutoras só foi possível em função do envolvimento etnográfico no contexto em que estas se inserem e por meio do diálogo e inflexão mantida pelas autoras. Por fim, a última categoria percebida como o sinônimo nativo para a violência é a de machucar. Frequentemente usada na sociedade ocidental para designar ferimentos físicos, sejam acidentais ou infringidos, machucar entre as mulheres indígenas refere-se ao ato de dizer palavras ofensivas e duras, que atacam a honra e o caráter das pessoas atingidas. Nos relatos de violência dentro das relações com os maridos – sejam eles indígenas ou não – as interlocutoras afirmam que as palavras duras são tão dolorosas e machucam tanto quanto agressões físicas. Tendo em conta a lei brasileira sobre violência doméstica, temos que o “machucar” talvez possa ser compreendido como violência psicológica11 , uma entre as possibilidades de violência contra a mulher, deslindadas nesse diploma legal. Entre as quilombolas há narrativas que informam que as palavras ofendem mais que serem marcadas por paus, chicotes e outros instrumentos de agressão. As marcas físicas podem ser tratadas, curadas, mesmo que levem tempo, mas as marcas dos machucados ferem a alma (para além do corpo) e permanecem na memória das interlocutoras e nada nem ninguém faz desaparecer. Abaixo as correspondências relativas às categorias éticas e êmicas. Thumbnail  Quadro 1 : Categorias éticas e êmicas sobre violência As categorias relativas à agência: a resistência das/entre mulheres Uma das principais questões que se tornaram visíveis no diálogo com as interlocutoras diz respeito ao fato de que as violações que atingem os corpos das mulheres jamais foram aceitas de forma passiva, elas não se deixam paralisar. Os processos de agência – aqui utilizada no sentido atribuído por Pierre Bourdieu (1983) e Anthony Giddens (1984) – e resistência, sempre estiveram presentes nas trajetórias das indígenas e quilombolas. O silenciamentos via etnocídio atingiu seus corpos e vidas, mas não se consolidou na medida em que as protagonistas sempre estiveram dispostas a buscar alternativas e resisitir. É com o intuito de romper com o etnocídio e a destituição da memória de seus coletivos que as mulheres indígenas ou quilombolas contam histórias de extrema violência no contexto da pesquisa; supomos que elas acreditam que por meio do registro na produção antropológica, as interlocutoras mantém a expectativa de que as memórias não sejam esquecidas nem apagadas, mas que, pelo contrário, permaneçam vivas na luta por direitos coletivos e por reconhecimento. Relatar as estratégias de agência e resistência e o protagonismo das interlocutoras frente a situações de poder assimétricas coaduna-se com o objetivo de “contar para prevenir”, como disse Maria dos Anjos, há anos, quando em uma roda de conversa aconselhou as jovens presentes: “... não guardem segredos, eles envenenam a vida. Não façam como eu que evitei contar as malinesas, daí não consegui domei os maus [homens] da minha vida. Nem os de casa, nem os da rua e ninguém deve machucar nossas almas, somos pessoas, [e olhando firme as meninas moças da roda] devemos reagir, assim as malinesas vão pra longe da comunidade.” De fato, contar a história parece uma das principais categorias que distinguem a agência das mulheres diante da violência sofrida. O trabalho das autoras, membros da equipe de antropólogos do Grupo de Pesquisa Cidade, Aldeia & Patrimônio só teve início a partir do convite dos membros da comunidade para que os pesquisadores escrevessem a história do povo Tembé Tenetehara e de outros povos indígenas e quilombolas, como informamos à partida. Quando na comunidade, muitos pesquisadores foram “intimados” a entrevistar os membros mais velhos da comunidade, para garantir que as histórias que estes se lembravam fossem registradas antes que se perdessem com seu falecimento. Maria Laura, com o início das pesquisas na comunidade, decidiu começar a escrever diários, onde poderia registrar suas memórias pessoais e coletivas e repassar para os pesquisadores do grupo. Outra categoria importante nos processos de agência das mulheres indígenas, especialmente as Tembé, é a do cuidado. Conforme elucida Maria Laura: “... o nosso povo foi muito massacrado no Prata. Morreu muita gente. A gente jamais podia dizer que era índio, até hoje nós vivemos discriminados. Hoje tá muito melhor, a gente vive junto, faz nossas festas, cuida uns dos outros e o nosso povo se alegra. Mas vive com a discriminação. Não podemos usar uma roupa, que já dizem que nós não somos índios. Eu vou dizer que eu sou uma portuguesa, sendo que eu não sou? Até tem gente que diz, mas eu não digo. Eu digo o que eu sou, eu sou Tembé. Mas tem que viver com a discriminação.” Ao contrário da visão de cuidado amplamente discutida na literatura produzida na área da Enfermagem, pautada na atenção e medicalização de pessoas com doenças, ou deficiência, o cuidado tembé e das demais etnias é holístico e alimenta o corpo de forma completa, por meio do sistema tradicional de ação para saúde, que contempla não apenas o cuidado com o corpo, mas a proteção espiritual, e as lutas políticas por uma vida melhor, que acarretam uma corporeidade saudável. E esse corpo não se estrutura desconectado do ser indígena, com toda a carga política e epistemológica que a identidade enseja para as tembé, xipaya e kuruaya. Cuidar de si e dos seus implica em se proteger de violações e fortalecer o grupo para que as lutas políticas possam ser continuadas. Nesse sentido, o cuidado de si constitui um empreendimento que conforma resistências políticas, materiais e epistemológicas, em um contexto no qual o corpo vem à cena tanto como território de lutas e afirmações identitárias, quanto como alvo de opressões e estigmas. Com as mulheres quilombolas a situação é semelhante, sempre que alguém se machuca a cura vem via sistema tradicional de ação para saúde, mesmo que a pessoa machucada e violada receba atendimento dentro do sistema ocidental de ação para saúde. Outra categoria percebida como forma de agência das mulheres nas tensões que envolvem os maridos diz respeito a educação dos filhos. Segundo Maria Laura: “... a mulher é que educa o filho. Se ela não mandar ele ir lá, tomar a bença do pai, fazer um carinho no pai, ele não vai, não, fica na dele. Foi por causa de um dos meus filhos que meu marido parou de me bater. Um dia, ele era novinho, magro, magro... Ele virou pro pai e falou: “O senhor nunca mais vai bater na mamãe, hoje foi o último dia”. O pai perguntou: “E o que tu vai fazer?”. E ele disse: “Eu não sei, mas o senhor não encosta mais um dedo nela”. Depois disso, nunca mais ele me bateu.” Uma das filhas de Maria Laura, ao ver o pai com outras mulheres na rua: “... fazia um escândalo, batia nela. Uma vez enchi as coisas da mulher de areia, ficou tudo sujo. Depois ele metia a porrada em mim quando chegava em casa, mas eu nunca deixava barato.” Atualmente as crianças que na infância enfrentaram os pais em defesa de suas mães, criam redes de apoio e acolhimento das indígenas mulheres em situação de violência, seja recebendo-as em suas casas, rezando por elas ou conversando com os maridos e, muitas vezes constrangendo-os perante os demais parentes. Maria José, quilombola da comunidade Maria me ajude constrangia o marido, mostrando de casa em casa os ferimentos produzidos pelas surras que levava, porque teimava em estudar. A peregrinação de casa em casa produzia o recolhimento do agressor que, alcoolizado, tinha produzido as maldades, malinado a protagonista. Por fim, a última categoria percebida como característica da agência empreendida pelas mulheres tembé em relação a violência diz respeito ao processo de fechar o corpo. Prática também verificada entre as quilombolas. Em um contexto em que as violações de direitos ocorridas em hospitais são reais e prováveis, fechar o corpo contra coisas ruins é essencial. Entre as práticas frequentes, temos: rezar na cabeça de criança com febre; ministrar ervas medicinais para pessoas que adoecem ou são envenenadas; manter a gravidez ou interrompê-la quando as vidas da mãe e da criança estão ameaçadas; são exemplos de saberes e fazeres acionados no agenciamento de situações consideradas de risco, em que se sabe que o acesso ao sistema ocidental de ação para saúde não responde satisfatoriamente ou há dificuldades em acessá-lo. Fechar o corpo entre os povos tradicionais implica proteger as pessoas da comunidade tanto no plano físico quanto no espiritual. Os rituais podem ou não estar relacionados à alguma forma de religiosidade indígena afro-brasileira ou ocidental. Uma das interlocutoras, reconhecida “por ser uma das mais antigas dos nossos antepassados”, entre os Tembé, relata que nos tempos antigos, quando houve grande incidência de hanseníase na região, ela conseguiu paralisar o avanço da doença no corpo de uma das pessoas da comunidade utilizando as propriedades do mucuracaá, uma planta medicinal que também é utilizada entre os tembé para combater o mau-olhado. Outras indígenas afirmam que uma mulher grávida que estivesse sob os cuidados de Maria Carmen estaria em boas mãos, uma vez que ela acompanhava a gestação desde os primeiros meses até a hora do parto, no qual a mulher era virada de lado e dava a luz enquanto a interlocutora rezava em sua barriga. Despois do parto, a profissional de saúde permanecia na casa da parturiente até o resguardo terminar, portanto eram quarenta dias de cuidados diferenciados. Durante uma das idas a campo, a mãe de uma criança que havia nascido há pouco tempo encontrava-se aflita, pois o bebê não parava de chorar e não costumava ser assim. Nesse momento, Maria Carmen, sogra da mãe da criança, entrava na casa e, ao se dar conta da situação, perguntou se a menina havia ido tomar banho de igarapé. Como a resposta foi afirmativa, a interlocutora disse: “... minha filha pegue alho, amasse e misture com álcool e deixe um tempo. Depois passe com o dedo na palma da mão da neném, na sola do pé, no braço e na coxa, em forma de cruz. Vai ficar um cheirinho ruim, mas não tem problema, ela vai melhorar. Ela deve ter visto alguma coisa no igarapé, criança é muito sensível, parece um pintinho novo. Quando eu era pequena, minha tia levava a gente pro igarapé, mas ela entrava primeiro, pedia licença pra mãe da água pra gente entrar e jogava o alho na água, aí o banho era sossegado.” O alho é antídoto (combate o veneno) para os encantados que “jogam malinesa” quando as pessoas não reconhecem as regras, que não se referem apenas aos espaços de domínio dos mesmos, mas às horas proibidas do dia e da noite. A paçoca de gergelim preto “pisada” com hortelã é utilizada para “botar pra fora” (as indígenas não utilizam o termo “aborto”, as quilombolas usam expulsar), principalmente quando a gravidez ameaça a vida da mãe ou quando o parto é de risco. Para mulheres grávidas que sentem dores, ministra-se chá de gengibre. Para inflamações, especialmente em casos de problemas de próstata, o caroço de abacate mostra-se eficaz. Crianças, quando morrem antes do batismo, segundo os católicos, choram durante sete dias e precisam ser batizados para que “descansem”. A última prática mostra-se elucidativa da forma tembé de pensar a construção da “pessoa”, a partir do ato de batizar a criança morta. Para os Tembé Tenetehara não se deve negar às pessoas mortas, quando oriundas de famílias cristãs, o direito ao ritual de batismo que as forma e legitima. As situações acima descritas, integrantes das observações de campo, revelam que mesmo enfrentando situações de precariedade e violência, as mulheres exercem seu protagonismo, instituindo o “ser sujeito” e encontram alternativas para agenciar situações de violência. O corpo e as múltiplas corporeidades que coexistem entre as interlocutoras são territórios privilegiados da resistência de indígenas e quilombolas mulheres e das formas de cuidar de si mesmas. Thumbnail  Quadro 2 : Categorias êmicas e éticas sobre agência Entre oitivas e traduções Os diálogos em campo demonstram que os atos e falas das interlocutoras são ferramentas importantes para a compreensão de suas realidades. Ao mesmo tempo, analisar o discurso no contexto das relações antropológicas passa a ser um desafio, na medida em que aponta para a necessidade de proceder o controle das dificuldades de tradução etnográfica, dos etnocentrismos ocidentais e do viés da colonialidade vigente. Em trabalho de grande influência e repercussão, Gayatri Spivak (2010) questiona criticamente a (im)possibilidade de fala de determinados grupos. A autora constata que os subalternos em geral, e o sujeito historicamente emudecido, a mulher subalterna em particular, foram e são, ao longo da história, mal compreendidos ou mal representados pelo interesse pessoal dos que têm poder para representar. A proposição instigante de Spivak (2010), além de elucidar silenciamentos, colonialismos e violências, também aduz escutas anti-hegemônicas, epistemologicamente desobedientes, pós-coloniais. Inspirada pela reflexão provocativa da filósofa indiana, Lacerda (2014) considera que em meio a tentativas de silenciamento, os grupos e sujeitos subalternizados – e esse é um deslocamento analítico fundamental para que a subalternidade não seja entendida como lugar paralisante e intransponível – estão falando. Superando a perspectiva colonialista que pretende “dar voz” aos grupos subalternizados por meio da pesquisa, Lacerda (2014) tensiona a questão que orienta Spivak (2010): como o não subalternizado, o privilegiado, pode escutar? As posições teórico-epistemológicas (que também possuem caráter político) adotadas na presente discussão objetivam favorecer a escuta etnográfica mais responsável, capaz de superar estereótipos de passividade e compreender indígenas e quilombolas como sujeitos de suas próprias histórias. A estruturação do olhar antropológico sobre o campo, em diálogo com os conceitos e categorias referidas, foi essencial para compreensão das interlocutoras como protagonistas de suas próprias histórias, não como vítimas passivas, desagenciadas e paralisadas diante de violações. Qualquer procedimento em sentido contrário seria uma prática etnocêntrica. Atentar para as narrativas das mulheres indígenas e quilombolas, a partir do que foi explicitado, é um esforço que vai além de retomar o protagonismo de vozes subalternizadas. Trata-se de uma tentativa de constituição de possibilidades de outra epistemologia, outras referências e sensibilidades, diferentes das que o pensamento colonial afirma serem as únicas dignas de serem aprendidas e respeitadas. A partir das falas desses sujeitos, confrontamos a tentativa histórica de epistemícidio (Santos, 2010) e assimilação que incide sobre os povos indígenas e quilombolas, e, mais especificamente sobre mulheres indígenas e quilombolas/ indígenas e quilombolas mulheres. Trata-se de uma opção metodológica que abriga dimensões e responsabilidades políticas, de contemplar enunciações ditas e tomadas como periféricas e arbitrariamente alijadas pelo pensamento ocidental e colonial. Por diálogos e justiças A diversidade das agências e possibilidades de justiça nos permite esterçar para diferentes lados saindo dos limites de nossos axiomas, verdades que consideramos inquestionáveis e supostamente válidas universalmente. Axiomas estes que muitas vezes são utilizadas como princípios que mantém privilégios de uns em detrimentos de outros secularmente subalternizados. Não se trata de atribuir valor superior aos conhecimentos tradicionais ou mesmo de aderir a eles, mas de considerá-los em diálogo para produzir a melhor justiça, sem diluí-los na ciência desenvolvida na academia. A importância das reflexões que se faz é tentar indicar que as agências das mulheres e modos diversos de conhecimentos, é indicar também que se pode pensar de outro modo e que os variados sistemas de justiça precisam, de fato, dialogar. Sabemos que os estudos acerca da violência de gênero no país muitas vezes utilizam o termo violência sem muita precisão, como se violência doméstica, violência intrafamiliar, violência contra a mulher, entre outros, fossem capazes de abarcar reflexões sobre realidades diversas. Fazer o esforço de compreender noções êmicas do termo afasta o perigo da reificação e induz a “diálogos ouvintes”, que postulamos aqui, em contraposição aos “diálogos surdos.” Ainda sobre a questão dos termos utilizados para abordar a violência, contemporaneamente tem se preferido falar em mulheres em situação de violência ao invés de violência contra a mulher, para indicar que a violência é transitória e não um destino que as mulheres devem cumprir (Campos, 2011). Além disso, a mudança de termo e, por conseguinte, de enfoque, impele a pensar a questão fora do molde algoz versus vítima, possibilitando compreender que, mesmo sendo vítima, especialmente num sentido jurídico-estatal, não significa não ter poder e força de resistir. As narrativas e corporeidades de mulheres indígenas e quilombolas/ indígenas e quilombolas mulheres desafiam compreensões do senso comum sobre situações de violência e nos fazem compreender que vítimas são sujeitos. Dessa forma, como sujeitos que são, devem poder acionar sistemas tradicionais de justiça ou mesmo a “justiça dos brancos”, como dizem algumas. Porém, a colonialidade, especialmente a de gênero (Lugones, 2008 ) cria contextos em que os dois lados olvidam as demandas pelo fim de maldades e malinesas. Referências bibliográficas ALEIXO, Mariah Torres. 2015. Indígenas e quilombolas icamiabas em situação de violência: rompendo fronteiras em busca de direitos Dissertação de mestrado, Programa de Pós-Graduação em Direito, UFPA. (Inédita) BELTRÃO, Jane Felipe. 2012. Histórias ‘em suspenso’: os Tembé ‘de Santa Maria’, estratégias de enfrentamento do etnocídio ‘cordial’. Revista História Hoje, São Paulo, v. 1, no 2, p. 195-212. BOURDIEU, Pierre. 1983. Esboço de uma teoria da prática In: ORTIZ, Renato (Org.). Pierre Bourdieu: sociologia São Paulo: Ática, p.46-81. BRASIL. 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Tempos difíceis. Sobre a importância do feminismo*